XXXIII Edição Revista RESSONÂNCIA

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XXXIII

MAIO 2021

A NOVA MEDICINA


A ve l o c i d a d e a q u e a M e d i c i n a a c r e s c e nta c o n h e c i m e nto a o r e p e r tó r i o j á ex i s te nte e s e r e i nve nta é fa s c i n a nte , a l g o q u e , a l i á s , é b a s ta nte v i s í ve l n o s m o m e nto s h i s tó r i c o s q u e a t u a l m e nte e nf r e nta m o s . I n s p i r a d o s n a r u t u r a s i g n i f i c a ti va d o p a r a d i g m a c i e ntí f i c o, e s c o l h e m o s A N ova M e d i c i n a c o m o o te m a d e s ta e d i ç ã o, p r o c u r a n d o ex p l o r a r d e q u e m o d o e s ta m u d a n ç a i r á i m p a c ta r a M e d i c i n a , o M u n d o e n ó s , o s P r of i s s i o n a i s d e S a ú d e d e A m a n h ã . C o m e s te te m a , n ã o n o s r efe r i m o s a p e n a s à p a n d e m i a C OV I D -1 9, a q u a l tí n h a m o s n e c e s s a r i a m e nte q u e e n g l o b a r p e l a s u a p e r ti n ê n c i a , n ã o s ó p a r a o s d i a s d e h o j e , c o m o p a r a a s d é c a d a s f u t u r a s . Pr o c u r a m o s ta m b é m e nfa ti za r a s vá r i a s l u ta s s o c i a i s e p r o g r e s s o s m é d i c o s q u e s e tê m i nte n s i f i c a d o a p a r d a m e s m a e à s q u a i s a M e d i c i n a n ã o é , n e m p o d e s e r, a l h e i a . P o r u m l a d o, s ã o a b o r d a d o s a l g u n s d o s d e s a f i o s p r e s e nte s e f u t u r o s d a e n g e n h a r i a g e n é ti c a , d i s c u s s ã o e m p a r te a l a va n c a d a p e l a p r o d u ç ã o d e va c i n a s c o m r e c u r s o à m e s m a , e , p o r o u tr o l a d o, d i s c u te m - s e q u e s tõ e s s o c i a l m e nte r e l eva nte s c o m o o r a c i s m o, o fe m i n i s m o e o s e u i m p a c to n o a c e s s o a o s c u i d a d o s d e s a ú d e . F i n a l m e nte , n ã o s e p o d i a f a l a r d a m e ta m o r fo s e d a M e d i c i n a s e m r efe r i r o p r o g r e s s o n a a b o r d a g e m à s d o e n ç a s p s i q u i á tr i c a s e a i nte r a ç ã o b i d i r e c i o n a l e ntr e a P o l í ti c a e a S a ú d e . C o m i s to e m m e nte , d e d i c a m o s e s ta tr i g é s i m a te r c e i r a e d i ç ã o d a R ES S O N Â N C I A a to d a s a s p e s s o a s c uj o tr a b a l h o e te m p o c o n d uze m a u m a M e d i c i n a m a i s a va n ç a d a e , s i m u l ta n e a m e nte , m a i s h u m a n a . Em e s p e c i a l , a g r a d e c e m o s a o s n o s s o s p r ofe s s o r e s , q u e r c i e nti s ta s , q u e r m é d i c o s , à n o s s a D i r e ç ã o Ed i to r i a l , c uj a c r i a ti v i d a d e e e m p e n h o n o s s u r p r e e n d e e i n s p i r a , a o s n o s s o s c o l a b o r a d o r e s , q u e n o s m ove m a s e r m e l h o r e s e a to d a a e q u i p a p o r d e tr á s d a e l a b o r a ç ã o e d i s tr i b u i ç ã o d e s ta r ev i s ta , s e m a q u a l n ã o p o d e r í a m o s c o nti n u a r a ofe r e c e r n ova s e d i ç õ e s to d o s o s anos. P o r f i m , q u e r í a m o s d e i xa r u m a g r a d e c i m e nto e s p e c i a l a o s a l u n o s q u e , m e s m o q u a n d o t u d o p a r e c e i n a l c a n ç á ve l , p e r s i s te m e m ove m a c i ê n c i a e a s a ú d e , c o n s ti t u i n d o u m a ve r d a d e i r a N ova M e d i c i n a q u e s e tr a n s fo r m a a c a d a d i a q u e p a s s a . B r u n a A l ve s & Va s c o Lo b o C o o r d e n a ç ã o - G e r a l d a R ev i s ta R e s s o n â n c i a


CRÓNICA 1 O QUE SE VÊ E O QUE SE CARREGA

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MEDICINA E CIÊNCIA BRINCAR AOS DEUSES: QUANDO O GENOM A É FEITO À MEDIDA PROGRESSO DA ABORDAGEM ÀS DOENÇAS P S I Q U I ÁT R I C A S

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GRANDE ENTREVISTA M É D I C O D O F U T U R O : Q U E P E R S P E T I VA S ? E N T R E V I S TA – D R . N U N O G A I B I N O

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MEDICINA E SOCIEDADE D I Z- M E Q U E M É S , D I R -T E - E I D O Q U E S O F R E S

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M E D I C I N A E P O L Í T I C A J U R A M E N T O D E H I P Ó C R I TA S ?

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P O D E A D E F E S A D A I G U A L D A D E S E R E X T R E M I S TA ?

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CULTURA U TO P I A O U D I S TO P I A? — M e d S c e n e

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I LU S T R AÇÃO D E A N A I SA B E L PAC H E C O — C u rA r t e

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CRÓNICA 2 P R E S S P L AY T O C O N T I N U E

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CRÓNICA 1

José Rodrigues

O que se vê e o que se carrega O

s dias de torpor que a atmosfera característica do período entre o Natal e o ano novo proporciona são convidativos à reflexão e a alguma introspeção. Mais ou menos por essa altura, comprei a revista Turning Points, uma colaboração do Expresso com o The New York Times que, nas próprias palavras do jornal português, procurava “antever o que se vai seguir a um dos anos [n.d.r. 2020] mais surpreendentes das nossas vidas”. Confesso que não foi uma leitura arrebatadora, muito menos inspiradora. Terminei esta leitura apreensivo com os vários problemas globais levantados, a imprevisibilidade do seu curso e, sobretudo, o sentimento da minha impotência enquanto cidadão para lhes fazer frente. Ainda assim, é também neste mundo que, tantas vezes, nos espantamos e maravilhamos. E com coisas tão simples como uma tarde de sol na varanda ou um passeio de bicicleta. É, pois, curiosa a paradoxalidade com que, em diferentes momentos, mesmo que separados por dias, a mesma pessoa pode observar o mesmo mundo e ter sentimentos diametralmente opostos e profundamente antagónicos. As palavras de Goethe, compreendidas metafórica e não anatomicamente, aplicam-se aqui perfeitamente: “um homem vê no mundo o que carrega no coração”.

De entre os vários problemas levantados na já referida revista, um deles – Give the A.I. Economy a Human Touch1 – abordou brevemente o impacto da inteligência artificial na Medicina. Lembro-me de o ter terminado, sobretudo pelo parágrafo relacionado com a nossa (futura) profissão, com a ansiedade característica de algo que se estranha e causa receio – porque nos pode comprometer – mas para o qual não se antevê qualquer solução.

Uns tempos mais tarde, deparei-me com um outro artigo2 que, interpretando de forma bastante semelhante o impacto da inteligência artificial na Medicina, discorria sobre as tendências em educação médica para esta nova era. Preconizava então quatro aspetos fundamentais: 1) o reforço de uma abordagem humanista que garanta a segurança do paciente através da formação de médicos humanistas e da promoção da colaboração entre os vários profissionais de saúde; 2) o contacto precoce com doentes e a integração longitudinal da prática clínica como promotores da qualidade dos cuidados prestados e, também, da motivação dos estudantes; 3) a assunção de uma atitude que vá para lá das paredes dos hospitais e esteja mais próxima da sociedade, através de programas que coloquem os estudantes em contacto com as comunidades, a sua diversidade e as suas necessidades; 4) a individualização da aprendizagem potenciada pelo manancial de oportunidades que a tecnologia trouxe, destacandose não só algumas já consolidadas como o acesso a inúmeras fontes de informação ou a maior facilidade de contacto com docentes e colegas, mas ainda outras que estão paulatinamente a ser introduzidas, como a simulação médica. Ao ler este artigo, ainda que separado apenas meras semanas do anterior, senti-me mais confiante. Eu continuava a ser (praticamente) o mesmo, bem como o mundo. Os desafios idem. Mas a perspetiva já não era de impotência, mas de adaptação ao futuro. O caminho pode ser longo e sinuoso, mas existe. E “um homem vê no mundo o que carrega no coração”.

(1) Han, E., Yeo, S., Kim, M., Lee, Y., Park, K., & Roh, H. (2019). Medical education trends for future physicians in the era of advanced technology and artificial intelligence: An integrative review. BMC Medical Education, 19(1). doi:10.1186/s12909-019-1891-5 (2) https://www.nytimes.com/2020/12/10/opinion/artificial-intelligence-economy.html, consultado a 07/04/2021

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MEDICI CIÊNCIA


INA & A


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MEDICINA E CIÊNCIA

Filipa Dias

Brincar aos Deuses: Quando o Genoma é Feito à Medida O

ser humano tem vindo a “iludir” a seleção natural há centenas de anos. Não fosse a invenção de óculos, nenhum míope teria chegado aos dias de hoje, por exemplo. Contudo, neste momento, já possuímos as ferramentas para bem mais do que iludir. Os avanços da Engenharia Genética tornaram-se num dos maiores pontos de viragem da História: pela primeira vez, em teoria, temos a capacidade de eliminar a seleção natural por completo. Se a Edição Genómica soa a algo retirado diretamente dum filme de ficção científica, pode dizer-se agora que é algo bem tangível e atual. O desafio está em traçar a linha entre ser bem usada, mal usada e ainda ser bem intencionada, mas com consequências terríveis não previstas.

Que ferramentas são estas? A primeira foi galardoada com um Prémio Nobel da Química em 2020: RNA-guided CRISPR-Cas9 system. Trata-se de um mecanismo imunológico que foi observado em procariotas já nos anos 90, que permite a clivagem de sequências específicas de ADN viral que tenha infetado os mesmos1. O que Emmanuelle Charpentier e Jennifer A. Doudna trouxeram de novo, em 2012, traduz-se na capacidade de apropriar essa mesma maquinaria e operacionalizá-la numa variedade de outras células e organismos, tendo eles comprovado que é possível ser utilizada para excisar qualquer sequência de ADN pretendida2. Com isto, surgiu também a oportunidade de inserir novos genes numa sequência genética. As aplicações de tais achados são incontáveis, destacandose um potencial revolucionário na Medicina.

A malária provocou cerca de 400 000 mortes em 20193. E se este número descesse para zero? O biólogo Anthony James e a sua equipa estabeleceram como objetivo bloquear a transmissão de doenças pelos mosquitos vetores, como a malária. Para concretizálo, foi necessário, primeiramente, o desenvolvimento de um gene híbrido que, aquando da sua expressão no mosquito, interferisse com o desenvolvimento do patógeno, conferindo-lhe resistência ao mesmo. O passo seguinte passou por desenvolver um procedimento que permitisse a transferência desses genes para as populações de mosquitos nos ecossistemas, chegando ao CRISPR-Cas9 gene-drive system. Com a colaboração de Ethan Bier e Valentino Gantz, surgiu esta nova ferramenta que acopla ao mecanismo de clivagem genética uma novidade: o gene-drive. O efeito produzido por este acrescento é uma frequência tão elevada quanto 99,5% do gene híbrido na descendência do cruzamento entre mosquitos transgénicos e mosquitos selvagens. Retiram-se duas conclusões fascinantes desta inovação: (1) as regras mendelianas da Genética foram postas em causa e, mais importante, (2) a malária encontra-se a um curtíssimo passo de ser erradicada globalmente com um pequeno número de mosquitos transgénicos e de forma relativamente rápida4. Mais direto que atuar nos vetores é agir justamente na origem das doenças genéticas: as mutações. Uma alteração genética tão simples como uma mutação pontual, a troca de duas bases azotadas em dois


BRINCAR AOS DEUSES: QUANDO O GENOMA É FEITO À MEDIDA

nucleótidos, parece ser um bom ponto de partida para dirigir os esforços da edição genómica para uso terapêutico. Foi nesta linha de pensamento que o trabalho conjunto de David R. Liu, Alexis C. Komor e Nicole Gaudelli, com as suas equipas, desenvolveram uma nova ferramenta, os Base Editors. Adaptando a técnica do CRISPR-Cas9, retirou-se-lhe a capacidade de corte, mas conservando-se a capacidade de localização da sequência de ADN pretendida. Ao complexo, acrescentaram-se três domínios: um que converte a base alterada para a base correta, outro que protege a base editada e, por fim, um que sinaliza o par da base editada na outra cadeia, de modo a que os mecanismos autorreguladores do ADN a reparem, formando um par correto (Adenina com Timina ou Guanina com Citosina). E assim temos uma nova tecnologia reformadora da maneira como abordamos as doenças genéticas desde que elas começaram a ser estudadas, cujo potencial colossal está atualmente a ser testado em modelos animais5. Falta encarar o elefante na sala. Depois de se conhecer os processos através dos quais estas técnicas produzem os benefícios, torna-se claro que podem facilmente ser apoderadas para tudo, desde usos eticamente questionáveis a atitudes criminosas. Neste último caso, inclui-se tornar patógenos mais contagiosos, mais sintomáticos e/ou letais, com consequências desastrosas, o que, por conseguinte, pode originar armas biológicas, tanto por indivíduos como por governos. Por outro lado, a edição dos genes humanos (somática e germinativa) entra na vertente do limbo ético. Não parece haver muita discórdia quando

se trata de aplicá-la em doenças altamente limitantes e degenerativas. A dúvida assenta na legitimidade de efetuar alterações genéticas em embriões no sentido da imunização contra um leque de doenças, mesmo sem saber se as iam desenvolver no futuro ou não. A linha entre ser usada para uso terapêutico e para forma de enhancing humano é muito ténue. Não só iria acentuar desigualdades consoante quem teria acesso a esta tecnologia ou não, como poderia ser catastrófico no caso de ocorrerem erros, já que efetuar alterações na linha germinativa significa que estas são permanentes. Uma agravante aos perigos já mencionados é a facilidade de uso do CRISPR-Cas9. Qualquer laboratório é capaz de produzi-lo e utilizá-lo, dificultando a monitorização das suas aplicações. Os investigadores responsáveis por estas tecnologias reconhecem e pedem, desde a sua publicação, precaução a toda a comunidade científica, incentivando o debate na mesma, de braço dado com comissões de ética e representantes políticos. Neste sentido, há duas questões que permanecem sem resposta e representam a discussão que impera ser continuada: Considerando todas as contrariedades, será que se deve prosseguir? Considerando todo o bem que produz, será que se tem o direito de não prosseguir?

(1) Mojica FJ, Juez G, Rodríguez-Valera F. Transcription at different salinities of Haloferax mediterranei sequences adjacent to partially modified PstI sites. Mol Microbiol. 1993 Aug;9(3):61321. doi: 10.1111/j.1365-2958.1993.tb01721.x. PMID: 8412707. (2) Jinek M, Chylinski K, Fonfara I, Hauer M, Doudna JA, Charpentier E. A programmable dual-RNA-guided DNA endonuclease in adaptive bacterial immunity. Science. 2012 Aug 17;337(6096):816-21. doi: 10.1126/science.1225829. Epub 2012 Jun 28. PMID: 22745249; PMCID: PMC6286148. (3) Fact sheet about Malaria. (2020). Consultado a 29 de Março de 2021, em https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/malaria (4) Anthony A. James. (2020). Consultado a 29 de Março de 2021, em https://www.faculty.uci.edu/profile.cfm?faculty_id=2154 (5) Gao P, Lyu Q, Ghanam AR, Lazzarotto CR, Newby GA, Zhang W, Choi M, Slivano OJ, Holden K, Walker JA 2nd, Kadina AP, Munroe RJ, Abratte CM, Schimenti JC, Liu DR, Tsai SQ, Long X, Miano JM. Prime editing in mice reveals the essentiality of a single base in driving tissue-specific gene expression. Genome Biol. 2021 Mar 16;22(1):83. doi: 10.1186/s13059-021-02304-3. PMID: 33722289; PMCID: PMC7962346.

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MEDICINA E CIÊNCIA

André Vares

Progresso da abordagem às doenças psiquiátricas N

os dias de hoje, as doenças psiquiátricas continuam a ser um tema de grande controvérsia, pois há opiniões divergentes quanto às entidades, critérios de diagnóstico, classificação e tratamento das mesmas. Sabe-se que ao longo da história houve relevantes progressos na abordagem destas doenças, mas também, que ainda há muitos aspetos que precisam de ser melhorados.

O progresso relativo a estas patologias teve início no final do século XVIII, onde Philippe Pinel, considerado por muitos o pai da psiquiatria, tentou descrever as primeiras perturbações mentais. Para além disso, defendeu que as pessoas portadoras de patologia psiquiátrica mereciam tratamento dirigido para a mesma. Foi nessa altura que surgiram os primeiros hospitais psiquiátricos, onde os doentes mentais eram tratados com mais humanidade e já não eram considerados alienados como anteriormente1. Apesar disto, os tratamentos nessa época, não respeitavam os atuais direitos humanos, pois muitas vezes tentavam tratar condições para as quais muito pouco ou nada sabiam, das quais, muitas ainda não eram consideradas patologia. Temos como exemplo a epilepsia, em que os doentes eram aprisionados numa espécie de jaula, de forma a que os seus movimentos convulsionantes fossem impedidos, pois acreditavam que estes eram resultado de possessões demoníacas.

No século XX, surgem as grandes evoluções no tratamento de doentes psiquiátricos. Na sua primeira metade, Egas Moniz cria a primeira técnica da psicocirurgia, a lobotomia. Esta intervenção tinha como objetivo curar os doentes que sofriam de doenças como a esquizofrenia grave, através da secção de vias cerebrais2. Apesar de apresentar alguma eficácia, os efeitos secundários, como a alteração marcada de personalidade nalguns doentes ou mesmo a morte, fizeram com que este procedimento esteja fora de uso hoje em dia. A partir deste ponto, rapidamente começaram a desenvolver-se as técnicas e condições que conhecemos no presente para tratamento das patologias psiquiátricas. Por um lado, a criação e melhoria dos espaços físicos foi essencial para que ocorresse a desinstitucionalização e surgissem tratamentos na comunidade3. Antes destes progressos, os doentes ao ir para os hospitais psiquiátricos eram afastados dos seus familiares e do ambiente a que estavam habituados, o que por si só contribuía para piorar o seu estado. Atualmente, os doentes deixaram de estar isolados do resto do mundo envolvente e são tratados num ambiente social e familiar, tendo a possibilidade, muitas vezes, de viver com as pessoas que sempre fizeram parte da sua vida e de participar em programas de integração social quando ainda não são autónomos. Por outro


P R OGR E S S O DA A B OR DAGEM ÀS DOENÇAS P SIQUI ÁT R ICAS

lado, houve a evolução de conhecimento de base sobre as patologias psiquiátricas, desde a definição das mesmas aos seus mecanismos subjacentes, assim como, de toda a ciência relacionada com a medicina. Desta forma, os doentes já não são sujeitos a procedimentos sem suporte científico, sendo o tratamento baseado na farmacologia e a psicoterapia associadas. É importante referir que, com base no conhecimento, os ideais de doença foram evoluindo nesses séculos, o que contribuiu para que os doentes sejam vistos e tratados de forma cada vez mais equiparada com as patologias de outras especialidades. Esta evolução foca-se não só nos profissionais de saúde, mas também, na sociedade em geral, que está cada vez mais alerta para os sinais destas patologias e das opções de tratamento disponíveis. Apesar do que observámos no passado, a Organização Mundial da Saúde diz-nos que ainda vivemos num mundo em que há medo de revelar que se tem uma doença psiquiátrica devido ao estigma e discriminação4. Sabemos, também, que mais de 3% da população mundial tem depressão, o que corresponde a cerca de 264 milhões de pessoas5. Isto para não falar dos casos não notificados e de outras patologias deste foro que se escondem por detrás de caras sorridentes, devido a sociedades e ideais que não permitem aos doentes serem eles próprios. Estes dados indicam-nos que ainda temos muito caminho para desbravar na jornada do progresso. Temos de investir, principalmente, na criação de uma mentalidade coletiva de

integração e aceitação. Como seres humanos temos esse dever e como profissionais de saúde temos meios para chegar a mais pessoas. Eis que entra o médico, não só o médico do presente, mas o médico do futuro. Estudantes de medicina, tenham noção que nós também nunca iremos acordar numa manhã totalmente livres de algumas ideias que nos assombram ou que tomamos como certas. Cabe-nos ir além desse instinto que nos é tão intrínseco. Quando todo o nosso corpo “souber” que uma pessoa tem determinadas caraterísticas só porque tem uma determinada doença, a nossa mente tem de ir mais além, atravessar essas barreiras. Temos de ser um médico, mais que isso, um humano, que se disponibiliza de forma igual, para toda a pessoa que precise de ajuda. Muitas vezes, acabaremos por surpreender as nossas ideias erradas. Quantas mais vezes elas forem surpreendidas, mais inexistentes elas serão. Não o façam por serem intitulados médicos, façam-no porque são pessoas e usem o vosso título para que mais corpos sejam pessoas, para que mais sociedades sejam formadas por pessoas, com e sem doenças. Ao avaliar os progressos ao longo da história e onde estamos hoje, vemos que muita coisa mudou, mas a melhor parte é que há cada vez um maior número de mentes a defender que precisamos de mais, devemos pegar no que temos e aperfeiçoar. Assim, mesmo que lentamente, distanciamo-nos de assumir que minorias (doentes psiquiátricos) são desprezíveis e que a igualdade só se aplica à maioria!

da população mundial tem depressão

(1) PennNursing: History of Psychiatric Hospitals. Consultado a 10 março 2021 https://www.nursing.upenn.edu/nhhc/nurses-institutions-caring/history-of-psychiatric-hospitals/ (2) 'My Lobotomy': Howard Dully's Journey. Consultado a 13 de abril de 2021 https://www.npr.org/2005/11/16/5014080/my-lobotomy-howard-dullys journey?t=1618394570383 (3) The Balance: What Was Deinstitulationalization. Consultado a 12 de março 2021 https://www.thebalance.com/deinstitutionalization-3306067 (4) WHO: Mental health. Consultado a 10 março 2021 https://www.who.int/health-topics/mental-health#tab=tab_1 (5) WHO (2020) Depression. Consultado a 18 março 2021 https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/depression

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GRANDE ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA


GR ANDE ENTR E VIS TA

Rita Bernardo

Médico do Futuro: Que Perspetivas? Entrevista – Dr. Nuno Gaibino No âmbito da XXXIII edição da Revista Ressonância, entrevistamos o Dr. Nuno Gaibino. Para além de ser Assistente Hospitalar de Medicina Interna, encontra-se a fazer titulação em Medicina Intensiva no Hospital de Santa Maria, é assistente convidado de Anatomia na nossa Faculdade e desempenha cargos na Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos e no Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. No seu currículo, constam ainda a prestação de cuidados de saúde no Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), a lecionação na Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa e na Ocean Medical. Conhecendo este currículo tão vasto, diversificado e abrangente, quisemos saber a opinião do Dr. Nuno Gaibino quanto ao que podemos esperar da Medicina do futuro, nas diversas áreas. Q1: Como vê o médico do futuro? Que mudanças major sofrerá a medicina e a forma de a praticar? Os estudantes de Medicina de hoje serão Médicos diferentes amanhã? A arte milenar que aprendemos nas Faculdades de Medicina há muito que sofreu profundas alterações. Vivemos numa era tecnológica, onde a inovação em saúde é imensurável: novos fármacos, novos softwares, a robótica ao serviço da ciência, uma Medicina sem fronteiras, e toda uma panóplia de investimentos no futuro fazem da Medicina uma área única na sociedade e no Mundo. Apesar disso, temos ainda um longo caminho a percorrer, especialmente naquele que é o cerne da questão: o Médico e a sua formação enquanto

profissional e como Ser Humano. O Médico do Futuro terá de ser obrigatoriamente preocupado com a ciência e sua inovação, mas terá de ser um comunicador nato, um elemento ativo na sua sociedade e, especialmente, um elemento de referência entre os pares e a restante comunidade. Uma missão particularmente difícil, que se encontra não apenas nas mãos das Escolas Médicas e Instituições que regem a formação médica, mas nas mãos de cada um de nós. Todos os Estudantes de Medicina de hoje serão Médicos diferentes amanhã. Sempre foi assim e sempre será. O mundo continua a mudar, e nós temos a obrigação de o acompanhar, focados na nossa arte e especialmente nos nossos princípios éticos e morais.

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MÉ DIC O DO F U T UR O: QUE P E R S P E T I VAS ?

Q2: Quais os maiores desafios éticos enfrentados atualmente na Medicina? E que outros virão a ser enfrentados com a evolução tecnológica dos cuidados de saúde? Uma piada que vulgarmente é contada num ambiente médico é a da diferença entre um Neurocirurgião e Deus: Deus sabe que não é Neurocirurgião… Considero que o grande desafio da Medicina atual é continuar a manter a humanidade no acto Médico. Com a panóplia de técnicas e capacidade de suporte de órgão diferenciado que conseguimos praticar hoje em dia, é fundamental definir claramente os limites da nossa atuação. Temos de conseguir manter os princípios que nos regem e que tornam a nossa profissão a melhor do Mundo! Q3: Quais os principais avanços tecnológicos dos cuidados hospitalares nos últimos anos? Os avanços tecnológicos são absolutamente inquestionáveis para a evolução da Medicina que praticamos. Devemos olhar para o exemplo da Pandemia. Em primeiro lugar, esta tornou notório o problema do número escasso de camas de Medicina Intensiva em Portugal, cujo aumento permitiu a aproximação do nosso país aos rácios internacionais. Por outro lado, a Medicina Intensiva passou a ser reconhecida na sua plenitude, como área do conhecimento absolutamente fundamental na prática de uma Medicina inovadora. Fico muito satisfeito pelo reconhecimento da especialidade, nomeadamente pela entrega, resiliência e dedicação inquestionável que todos os colegas demonstraram na resposta à mais difícil situação do nosso SNS. Para além disso, a pneumonia grave a SARS-CoV-2 veio demonstrar que determinadas técnicas que têm sido desenvolvidas na área da Medicina Intensiva, como a técnica de ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal), mudaram verdadeiramente o paradigma, possibilitando o aumento da sobrevivência destes doentes. De uma forma genérica, diria que os avanços tecnológicos, quando aliados a uma prática clínica holística, centrada no doente, permitem que o Médico atue de uma forma vanguardista, em prol dos cuidados prestados ao seu mais próximo.

Q4: Para além de estar em formação em Medicina Intensiva, é também médico no INEM. Na Medicina de Emergência têm havido progressos tecnológicos? E quais são as perspectivas de modernização destes cuidados? A Emergência Médica poderá ser uma área de grande desenvolvimento nos próximos anos. A tipologia VMER, que praticamos em Portugal – e que devemos manter – permite que exista Médicos e Enfermeiros treinados a trabalhar no meio pré-hospitalar. Esta será sempre uma mais valia do sistema de emergência português. A amplificação dos cuidados, bem como a articulação entre o Pré-Hospitalar, Departamentos de Emergência e Medicina Intensiva, permitirá evoluir e melhorar a prestação de cuidados diferenciados, desde a casa do doente ou da via pública, até à cama mais diferenciada. Acredito que o aprofundar desta relação representará sempre um enorme ganho em saúde, fazendo cada vez mais a diferença na vida dos nossos doentes. Q5: Quais têm sido os maiores avanços tecnológicos na Educação Médica nos últimos anos? Quais os maiores desafios na educação médica do futuro? A inovação não pode ser apenas tecnológica. Temos de compreender o mundo em que vivemos, que se encontra em plena mudança. Infelizmente, nem todas as Escolas Médicas têm pautado a sua actuação de acordo com a modernização exigida, tendo em conta a excelência de formação que desejamos para os Médicos Portugueses. Desde que me sentei pela primeira vez nos bancos da Faculdade, enfrentei diversas lutas e tentei combater um conjunto de pré-conceitos quase centenários. Vi serem rejeitados diversos processos de avaliação de competências pedagógicas, avaliação de docentes e das suas aulas. O recurso à videoconferência era absolutamente impensável há uns anos. A simulação não era recurso válido. O ensino com base em problemas e casos clínicos era uma autêntica miragem. Nunca será possível dizer que uma Pandemia nos trouxe algo de bom, mas certamente podemos afirmar que em tempos de grande exigência, em que muitas portas se fecharam, algumas janelas foram abertas para nos permitir continuar a querer voar mais alto.


GR ANDE ENTR E VIS TA

Q6: A Educação Médica foi afetada pela pandemia do SARS-CoV-2. Considera que as aulas teóricas online vieram para ficar? E em relação ao ensino clínico? Na minha opinião, vamos enfrentar graves problemas num futuro próximo. Parte da formação médica foi drasticamente comprometida, nomeadamente no que toca ao ensino clínico. Não compreendo como reduzimos tanto a exposição dos nossos alunos: apenas numa segunda fase desta crise pandémica permitimos que os alunos voltassem a ter presença física ou contactar até com doentes com COVID-19. Por melhor que tenha sido o ensino à distância, numa era que tenderá cada vez mais para o digital, o contacto com o doente e a exposição clínica serão sempre fundamentais. Teremos lacunas formativas graves, que terão de ser corrigidas a muito curto prazo. Por outro lado, colocome na posição dos alunos de Medicina. Imagino-me como estudante, a viver à distância uma Pandemia, numa altura de plena ruptura do SNS. Provavelmente quereria ter participado activamente neste processo. Admito que poderia não ser o profissional mais qualificado, mas provavelmente um par de mãos a mais poderia fazer a diferença. Tenho muito orgulho de todos aqueles que, de forma voluntária ou integrados já no programa do 6º ano de curso, assumiram a responsabilidade de nos vir ajudar na Medicina Intensiva. Foi das maiores provas de humanidade a que pude assistir na minha vida profissional. É um grande desejo meu que o ensino online possa crescer e proliferar. Devemos continuar a avaliar os potenciais e os ganhos evidentes que tivemos com esta inovação. Muitas aulas decorriam presencialmente de forma desnecessária, consumindo recursos e tempo de alunos e docentes, que de uma forma repetida e antiquada enalteciam um ensino de outros tempos. Sou um fervoroso adepto do ensino online, nomeadamente da componente teórica. Por outro lado, mantenho a minha opinião em relação

ao ensino presencial: a prática da medicina clínica tem de ser presencial: não temos formas de simular a semiologia, não temos dispositivos técnicos que possam substituir a observação dos nossos doentes. Com a devida proteção, o ensino clínico tem de voltar ao seu “normal”. É imperativo para a qualidade do ensino que preconizamos. Q7: Estão os jovens médicos preparados para os desafios do futuro? Como podem as escolas médicas auxiliar na adaptação a uma realidade nova e em permanente mudança? Quero acreditar que, em certa medida, nunca tivemos uma geração tão preparada: nunca antes em Portugal assistimos a um nível de diferenciação tão grande dos nossos jovens. Os meus avós não foram além da 4ª classe, numa altura em que muitos não tinham oportunidade de aprender a ler ou escrever. Os meus pais licenciaram-se. Hoje em dia, o ensino superior está ao alcance de quase todos. Um dos maiores ganhos da nossa democracia foi a abertura das portas do Ensino Superior. Apesar de tudo, não creio que a falta de formação seja um problema. Questiono-me apenas se não teremos de responder a alguns desafios para os quais os jovens de hoje não estão preparados ou sensibilizados. Temo que os mais jovens tenham uma visão muito diferente do seu futuro e da forma como tencionam lidar com os desafios que se avizinham. Mais que uma questão anímica, preocupa-me alguma falta de motivação para quererem continuar a mudança de que todos precisamos. As Escolas Médicas, e permitam-me particularizar a FMUL, têm a tradição de, mais que formar Médicos, formar grandes Portuguesas e grandes Portugueses. Estes homens e mulheres tornam-se dignos de liderar processos não só nos campos médico e académico, mas também na sociedade civil. A minha esperança é que não percamos a nossa tradição e possamos construir um futuro a partir do nosso presente, honrando o nosso passado.

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MEDIC SOCIE


CINA & EDADE


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MEDICINA E SOCIEDADE

Antonio Lopez

Diz-me quem és, dir-te-ei do que sofres O

acesso a cuidados de saúde adequados e competentes é um direito f unda menta l de todas as pessoas. A Orga nização Mundia l da Saúde declara na sua Constituição que “o usufr uto do ma is a lto nível possível de saúde é um dos direitos f unda menta is de todos os seres huma nos”. Em Por tuga l, a Constituição da República é ta mbém clara ao a f ir mar, no seu ar tigo 64º, que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e a promover”.

Ter mos capacidade de aceder a a lgo tão natura l mas tão necessário como são os cuidados de saúde é f unda menta l para mel horar a nossa saúde, o nosso bem‑estar e, por conseguinte, a nossa espera nça média de v ida. No enta nto, muitas vezes parece que a concretização deste requisito f unda menta l continua a ser limitada pelos ma is diversos fatores, seja m eles a idade, cor da pele e et nia, género, orientação sex ua l, patologias associadas, idiomas, entre outros. E todos estes compor ta mentos assenta m num conceito – estigma. Este representa, no seu mel hor e pior, uma for ma de desva lorização (e até reba i xa mento) socia l do próx imo. A pa lav ra estigma vem do latim stigmat, que signif ica marca, tendo sido primeira vez usada no língua inglesa qua ndo se queria referir ao ato de marcar a lguém na pele com um ferro em brasa. A discriminação está associada à estigmatização, ou seja, à criação de estereótipos negativos, e esta assume muitas caras. O estigma contribui para as disparidades nos cuidados de saúde por meio de dois processos.

Um é o estigma encenado, que envolve sentimentos, pensa mentos e ações negativas que v isa m os membros do gr upo a lvo. Inclui atitudes negativas em relação aos pacientes de cer tos gr upos, assim como crenças sobre as caracter ísticas dos indiv íduos com base no gr upo a que per tencem. A discriminação inter pessoa l pode envolver compor ta mentos verba is e não verba is subtis de prof issiona is de saúde dura nte a interação ou decisões sobre qua l trata mento o paciente receberá ou não. Um segundo processo que pode levar a disparidades nos cuidados de saúde é o estigma sentido. Este envolve indiv íduos estigmatizados que toma m consciência dos preconceitos e da discriminação l he são dirigidos por causa da sua condição de estigmatização. Essa consciência pode levar a que indiv íduos estigmatizados ev item interações com os médicos ou a lterem o seu compor ta mento dura nte as mesmas de for ma a reduzir a ef icácia dos cuidados de saúde que recebem. Por exemplo, pacientes negros que suspeita m muito de cuidados médicos podem estar menos dispostos a cooperar com o seu médico no trata mento da sua doença. Se fa lar mos da idade, estima-se que a cada segundo, uma pessoa no mundo sof ra preconceito “moderado ou a lto” por se encontrar na terceira idade. A esta descriminação


DI Z- M E Q U E M É S , DIR-T E- E I D O Q U E S O F R E S

denomina mos muitas vezes pelo ter mo em inglês “ageism”, e é tida por muitos como o terceiro “ ismo”, logo após o racismo e o sex ismo. Parece ser a idade (ou a lgo que a ela poderá ser associado) o fator mais releva nte de discriminação em ter mos socia is. É como se na nossa cu ltura o ava nço da idade “apagasse”, de a lguma ma neira, o próprio género (não há homens idosos ou mu l heres idosas, apenas idosos) e os eventua is benef ícios da escolaridade (não há pessoas idosas com ma is ou menos escolaridade, há apenas idosos). Este reducionismo centrado na idade (na vel hice) desva loriza a indiv idua lidade, o que é huma na mente empobrecedor e cu ltura lmente perigoso. A for ma como muitos prof issiona is de saúde e outras pessoas supõem a priori que por ser idoso já não se ouve bem ou não se compreende bem, é sugestiva de como, não obsta nte a sua for mação cient íf ica, os prof issiona is de saúde podem estereotipar o mesmo ou ma is que as pessoas comuns.

é assustadora, porque a obesidade aumenta signif icativa mente o risco de desenvolver diabetes tipo 2, hiper tensão, dislipidemia. A obesidade tra z ta mbém consigo um estigma e um preconceito. Atua lmente, a ta xa de discriminação pelo excesso de peso é comparável às ta xas de discriminação pela cor da pele e pela idade, especia lmente entre as mu l heres. Em 1995-1996, a discriminação por excesso de peso foi relatada por 7% dos adu ltos dos EUA. Em 20 04-20 06, essa percentagem subiu para 12%.

O racismo é outro gra nde problema no que toca à equidade de acesso aos cuidados de saúde. As disparidades no acesso a ser v iços de saúde ex perimentadas por pacientes mela nodér micos são nor ma lmente as ma iores e ma is consistentes de qua lquer gr upo racia lizado ou et nia em pa íses como os Estados Unidos. Um estudo de 2016 comparou a qua lidade dos cuidados de saúde recebidos por diferentes gr upos racia is ou ét nicos minoritários com a qua lidade dos cuidados de saúde recebidos por pessoas leucodér micas. A ma ior disparidade foi encontrada na comparação dos cuidados de saúde prestados pelos mesmos. As pessoas mela nodér micas recebera m cuidados de saúde piores em aprox imada mente 41% das vezes. Um estudo feito em 2015 refere que a espera nça média de v ida em pessoas mela nodér micas era basta nte menor relativa mente a pessoas leucodér micas.

O preconceito humano é de facto uma ferramenta muito poderosa e que tem vindo a limitar o pensamento e a nossa evolução desde os primórdios da Humanidade. São incontáveis as guerras, as v idas perdidas, destr uídas, em nome de um ju lga mento que nós nos atrevemos a fa zer sem conhecer mesmo quem está à nossa frente. É inefável o facto de que cientif ica mente o nosso cérebro tem “uma irresist ível tendência” para orga nizar o mundo em categorias porque é uma for ma que o mesmo arra nja para tentar compreender mel hor a complex idade do Mundo. Contudo, há que nunca esquecer que uma pessoa é muito ma is que uma categoria, que uma ca i xa, uma pessoa é toda uma mir íade, é um cor po, uma mente, um espírito, que a lberga uma imensidão de v ivências e ex periências que l he atribui um carácter único e muito especia l. E é isto no f undo que nos fa z v iver e a mar intensa mente cada dia que habita mos a Terra. Só assim, deita ndo os se’s, os mas e os pois para fora da ja nela, tri l haremos um mel hor ca minho, um ca minho onde nos aceita mos e aprendemos ma is uns com os outros.

Patologias como a obesidade representa m uma sobrecarga cada vez ma ior para os sistemas de saúde, dado que a feta ma is de 20% das popu lações ocidenta is. Em Por tuga l, na ú ltima década, a sua preva lência passou de cerca de 14% para 28%. Esta duplicação

Pessoas homossex ua is e/ou tra ns ta mbém são ta mbém elas a lvos de descriminação no acesso aos cuidados da saúde, sendo que 1 em cada 4 pessoas já ressa lvou este facto em seguimento de v isitas que f izera m por exemplo ao seu médico de fa mília. Muitas vezes ele pode traduzir-se apenas numa fa lta de tato no que toca ao paciente, o que cu lmina simplesmente num desencoraja mento de cer tos procedimentos ou o ignorar a lgumas quei xas.

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MEDICINA E SOCIEDADE

João Abrantes

Medicina e Política Juramento de Hipócritas?

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a Antiguidade Clássica, as dissecações anatómicas no ser humano não eram permitidas. Séculos depois, grandes avanços foram feitos no conhecimento médico quando se começou a olhar para dentro de nós1. Esta é a minha proposta na política: dissecação profunda e atenta dos sistemas organizacionais e seus valores, base que tão prontamente adotámos.

Segundo, na doutrina. Nesta fragmentação da sociedade discernível na Assembleia, há discórdia sobre leis, regulamentação, decisões jurídicas e outras ações governamentais que assentam em princípios fundamentais sobre a natureza humana, responsabilidade individual e o papel da compaixão em assuntos públicos.

Num mundo que se defronta com problemas cada vez mais complexos, a medicina não escapa, colocando-se novas questões em cima da mesa que exigem respostas imediatas e inovadoras.

Terceiro, na ciência e suas instituições. Frequentemente colocada em causa pelo público, na política existe tendência de se seguir o regime social, em vez do método baseado na evidência.

Uma questão frequente:

Quarto, pelo grau da sua solidariedade. O compromisso assente nesta mutualidade descreve bem que o direito à saúde deve ser equitativo, pois a pobreza e a doença estão correlacionadas.

PORQUE NÃO RETIRAR A POLÍTICA DOS CUIDADOS DE SAÚDE? Isso seria excelente, mas quixotesco. Atualmente, o governo português apresenta para o Orçamento de Estado (OE) de 2021 um financiamento público na ordem dos 12 564,8 Milhões de euros para o setor da saúde, representando ≈12,47% do OE total2. Seria, pois, inconcebível – e até irresponsável – que tamanho investimento público não tenha uma supervisão governamental e, estando em regime democrático, que de tal autoridade supervisora não advenham pressões políticas. Colocando o governo em big picture, destacam-se quatro pilares em que observamos a relação políticamedicina3: Primeiro, no financiamento, reiterando que mais dinheiro não significa, necessariamente, melhor gestão.

Assim, acabamos por assumir uma falsa ilusão da certeza, todos os dias, e esquecemo-nos que estamos ao serviço dos doentes e não do sistema do qual fazemos parte. Atualmente, não percebemos o papel social da medicina neste mundo diferente. Continuamos a guiar-nos por princípios destoantes do único pensamento fundador da medicina: o altruísmo4. A preocupação com a saúde pública tem alterado não só a perspetiva de políticos adicionando o elemento médico, como tem complicado e colocado algo confuso sobre qual o papel dum médico.


MEDICINA E POLÍTICA JUR A MENTO DE HIP ÓCR ITAS ?

A História não deve ser menosprezada mas constantemente encarada como inspiração a perceber que como Bob Dylan dizia “The Times They’re A-Changin’” e que, se os tempos mudam, porque é que teimamos em colocar as mesmas porcas em parafusos diferentes?

Se a saúde da nação é importante, torna-se pouco claro se a primeira responsabilidade do médico é para com o doente individualmente ou para com a sociedade como um todo. A “Declaração de Helsínquia”5 mantém esta ambiguidade afirmando que “É dever do médico promover e proteger a saúde, o bem-estar e os direitos dos doentes”, procedendo com uma referência à “Declaração de Genebra”6 que faz parte do juramento médico “A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação”. Ora, se os médicos têm como função tratar doenças da sociedade como se5 implica, então, as suas responsabilidades sobrepõem-se às dos políticos? O Estado não é uma estrutura neutra, mas, sim, uma construção sócio-política em estreita relação com a sociedade em que se insere7. Nas demais especialidades médicas, as guidelines baseadas na evidência são continuamente reformuladas e encaradas como a forma correta de praticar medicina8. Esta metodologia é, de facto, uma concretização dum conceito primeiramente formulado há mais de 24 séculos atrás por Aristóteles9 e re-exposto pelo Professor Cochrane em 197210.

A pobreza emocional que enraizamos na experiência mais solitária possível, da dor, é demonstrativa da cegueira com que vemos o outro. Nesta ode triunfal que almejamos da cura da “doença”, acabamos por não tratar o doente irrompendo-se as inquietações da ética, dada a crescente categorização da medicina e saúde pública como nicho despojado de humanismo. Torna-se frequente esta usurpação do dito cujo empreendedorismo médico em prioritizar a quantidade de publicações científicas que faz, o número de horas no privado que tem no bolso e a procura de reconhecimento inter pares (em vez de o ver como consequência de seus atos) do que efetivamente o trabalho clínico que pode proporcionar. “Política é medicina em grande escala.”11 Assim, antes de se falar em política devemos ser maestros nesta Arte da Medicina. Deixem de usar espelhos para reflexões sérias e questionem primeiro: “Como posso ajudar?” Sejam médicos, no sentido lato e não figurado.

(1) Ghosh S. K. (2015). Human cadaveric dissection: a historical account from ancient Greece to the modern era. Anatomy & cell biology, 48(3), 153–169. https://doi.org/10.5115/ acb.2015.48.3.153 (2) Relatório do Orçamento do Estado 2021, https://oe2021.gov.pt/orcamento-do-estado-2021/ (3) Berwick DM. (2018). Politics and Health Care. JAMA ;320(14):14371438. doi: 10.1001/jama.2018.12566. PMID: 30193348. (4) Sessão de apresentação do livro “A Nova Medicina” de João Lobo Antunes (2012), Fundação Francisco Manuel dos Santos (5) “Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial” (2013), https://ispup.up.pt/docs/declaracao-de-helsinquia.pdf (6) “Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial” (2006), https://www.wma.net/what-we-do/medical-ethics/declaration-of-geneva/ (7) Carapinheiro G., Pinto M.G., (1987). Políticas de saúde num país em mudança: Portugal nos anos 70 e 80. Editora Mundos Sociais CIES-RN (8) Eddy DM. (1990) “Practice policies: where do they come from?” JAMA.;263:1265-72. (9) Sallam H. N. (2010). Aristotle, godfather of evidence-based medicine. Facts, views & vision in ObGyn, 2(1), 11–19. (10) Winkelstein W Jr. (2009). The remarkable archie: origins of the Cochrane Collaboration. Epidemiology; 20:779 (11) (adaptado) Mackenbach JP. (2009). Politics is nothing but medicine at a larger scale: reflections on public health's biggest idea. J Epidemiol Community Health.; 63(3):181-4. doi: 10.1136/jech.2008.077032. Epub 2008 Dec 3. PMID: 19052033.

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MEDICINA E SOCIEDADE

Catarina Machado

Pode a defesa da igualdade ser extremista? O

feminismo1 advoga pela igualdade social, económica, política e mais que venha, entre os sexos (penso que em pleno 2021 faz sentido ajustar para entre todos os seres humanos independentemente da cor, cultura, credo, orientação sexual, identidade de género, expressão de género e sexo). Porém, numa história repleta de ódio e discriminação que ainda hoje subsistem na oratória social, a mulher é e foi sempre o alvo mais constante da crueldade da sua própria espécie. Subjugada à hierarquização da figura masculina, condicionada pelos valores que sustentam o patriarcado, privada dos banais prazeres humanos, ostracizada pelo seu corpo e pela sua fisiologia.

No século III a.C., na Roma Antiga, as mulheres invadiram o Capitólio em protesto contra leis que limitavam o uso de bens dispendiosos, ao que Marcus Cato1 argumentou com um “assim que elas começarem a ser iguais tornar-se-ão nossas superiores”. Após este episódio, foi preciso esperar uns quantos séculos para que se cunhasse a palavra feminismo no dicionário. No século XIX viria a surgir a primeira onda feminista na luta pelo sufrágio das mulheres. Outras duas manifestaram-se no século XX até à que pode ser, atualmente, uma quarta onda com génese nos casos de assédio sexual, body shaming, violência sexual... Os meios de comunicação social e movimentos associativos criados deram exposição a realidades repugnantes antigas menosprezadas pelas autoridades judiciais ou a sociedade em si, obrigando a mulher a viver num sufocante “quem cala consente” sob medo de ser julgada ou insultada ou até pôr em risco a sua vida.

Ainda assim, mesmo numa luta ideológica, podem surgir vozes mais radicais e descontentes. Aqui surge o efeito “paga o justo pelo pecador” e focando-se o grito de revolta apenas no lado desfavorecido pode-se criar uma oposição extrema que lança farpas ao outro extremo. O feminismo mais radical2 que “trata mal” a figura masculina passa uma imagem nada igualitária e inclusiva, abafando o objetivo do movimento feminista - igualdade. Considerando, por exemplo, termos como mansplaining3 ou manterrupting4 que entraram no vocabulário anglo-saxónico (o português é mais simpático) para enfatizar, respetivamente, o papel do homem em tentar explicar algo a uma mulher, assumindo que ela nada sabe do assunto ou em interromper o seu diálogo, impedindo-a de concluir o seu raciocínio frásico. Mas será isto um ataque geral aos homens ou só aos condescendentes? Mesmo assim, é estar a atribuir uma característica a alguém pelo facto de ser homem apenas. É isto uma discriminação reversa? Homens acusados de mansplaining ou manterrupting realçam, em parte, o comportamento misógino a eles inerente que circula em via pública. No entanto, marketing revolucionário ou não, está iniciada a discussão acerca do tratamento misândrico! What about the men? Vítimas da mudança dos tempos? Não se pode negar, contudo, que, mais termo menos termo, o homem abona de poder e privilégio, bem como do legado histórico que lhe providenciou esse domínio. Qual o impacto danificador de alguma impaciência e exaltação feminista na vida de um


P ODE A DEF E SA DA IGUAL DADE SER E X TR EMIS TA?

homem, afinal, comparativamente aos inúmeros casos de violência, discriminação, opressão e diálogo misógino com que as mulheres têm de lidar todos os dias, muitas vezes em silêncio e banalizando o sucedido. Este deficitário feminismo em perfusão subconsciente traz consigo consequências, por exemplo, na qualidade da saúde da mulher. Nos cuidados de saúde, onde a empatia e o respeito são imprescindíveis para o sucesso comunicativo entre doente e médico, o termo health care gaslighting5 destaca o perigo da banalização dos valores patriarcais com relatos de desvalorização dos sintomas apresentados pela mulher com diagnósticos incorretos ou apressados. A título de exemplo, na abordagem a um quadro de dor as queixas da mulher ainda são percecionadas como excessivas e dramáticas, normalizando a génese psicológica e emocional, culpando a fisionomia feminina que é tida como frágil, ansiogénica e hormonal5. The Journal of Law, Medicine & Ethics6 publicou, inclusive, um artigo que dava conta que, apesar das mulheres apresentarem uma maior prevalência de queixas dolorosas, estas recebem uma resposta terapêutica menos séria, interessada e eficaz em relação aos homens. Ter em atenção, também, que a grande parte dos ensaios clínicos são realizados com uma amostra

maioritariamente masculina cujas razões assentam no ciclo hormonal flutuante5 que poderá comprometer o sucesso estatístico dos fármacos. Ou seja, há o risco da prescrição médica padrão não ser a posologia mais adequada ao controlo dos sintomas reportados pela mulher. Um caso mediático do impacto na saúde feminina do estereótipo misógino é o de Serena Williams5 cuja preocupação acerca de uma embolia pulmonar, depois de uma cesariana, foi desvalorizada, sendo mais tarde descoberto, de facto, um coágulo para o qual recebeu o tratamento adequado. Cresci a ouvir recomendações para ter cuidado quando saísse à noite, que não desse conversa a provocações, que não fosse por aqui ou por ali... Se eu tivesse um irmão ele não ouviria tal coisa, simplesmente por ser homem! Neste debate sobre o exagero da causa feminista prefiro direcionarme para o que considero prioritário – desconstruir a mentalidade patriarcal, prevenir e punir os casos de violação, violência doméstica (e não só) e assédio contra a mulher porque se nós aguentámos 300 mil anos de desrespeito, eles também conseguem aguentar algumas expressões e ações mais precipitadas (mas desculpem aí qualquer coisinha).

(1) Burkett, E. (2021). feminism | Definition, History, Types, Waves, Examples, & Facts. Available in https://www.britannica.com/topic/feminism (2) Young, C. (2016). Feminists treat men badly. It’s bad for feminism. Available in https://www.washingtonpost.com/posteverything/wp/2016/06/30/feminists-treat-men-badly-its-bad-for-feminism/ (3) Brook, E. (2018). Is the term ‘mansplaining’ sexist? You asked Google – here’s the answer. Available in https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jun/06/is-the-term-mansplaining-sexist-googleautocomplete (4) Lutzky, U., & Lawson, R. (2019). Gender Politics and Discourses of #mansplaining, #manspreading, and #manterruption on Twitter. Social Media + Society, 5(3). Available in https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/2056305119861807 (5) Albanowski, M. Medicine's Misogyny Problem — The Pitt Pulse. Available in http://www.thepittpulse.org/medicinemisogyny-problem (6) Nabel E. G. (2000). Coronary heart disease in women--an ounce of prevention. The New England Journal of Medicine, 343(8), 572–574. https://doi.org/10.1056/ NEJM200008243430809

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CULTUR A

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Anamélia Almeida

Utopia ou Distopia? E

m novembro de 2018, pesquisadores de todo o mundo depararam-se com a notícia onde um cientista chinês e sua equipa anunciaram o nascimento de duas gémeas com o DNA editado. Através da técnica de edição genética CRISPR, o cientista declarou ter conseguido modificar o gene CCR5 permitindo tornar as duas crianças resistentes à infecção pelo HIV. Recentemente estudos mostraram que essas mutações realizadas no gene podem ter impacto na função cognitiva dessas crianças, contudo ainda não é possível prever quais os efeitos secundários que poderão afetar as gémeas durante a vida.

Mesmo com toda a repercussão negativa por parte da comunidade científica, não podemos ignorar o facto de que a técnica existe e continua a ser utilizada em laboratórios, mesmo sem regulamentações específicas para o seu uso. Mas afinal devemos mesmo alterar o DNA humano? Essa técnica é segura? O que exatamente a edição genética pode acarretar às futuras gerações? Quais os seus benefícios e malefícios? Seria esta uma técnica acessível a todos? Poderíamos conceber seres humanos “superiores”, alastrando ainda mais a desigualdade no mundo? Ou seria um retrocesso científico abdicar de tais ferramentas? Todas essas questões são legítimas e devem ser debatidas, ainda que não tenhamos respostas para todas essas perguntas seguimos à beira de uma distopia que nos foge ao controlo. O filme GATTACA, lançado em 1997, permite-nos uma profunda reflexão sobre a edição genética, onde uma elite social, modificada geneticamente,


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UTOPIA OU DISTOPIA?

se destaca pelas suas grandes aptidões enquanto outra parte da sociedade é constituída por indivíduos, concebidos biologicamente, que carregam um DNA gerado pelo acaso. No filme, para garantir o futuro e sucesso dos filhos, os pais escolhem os embriões com as melhores características, como altura, cor dos cabelos e dos olhos, porte físico, sendo esses indivíduos designados como “válidos” e os demais como “inválidos”. Como consequência desta seleção genética o enredo traz à tona o velho e grande fantasma da eugenia, em que a sociedade passa a ser dividida em indivíduos “evoluídos” e “inferiores”. Na trama, um jovem que não teve seus genes selecionados se vê impedido de realizar seu sonho de se tornar um astronauta por não atender aos requisitos genéticos. Apesar das mais altas competências requisitadas pelos pais, antes do nascimento dos filhos, algo que estes indivíduos não podem controlar é o tão implacável destino. Ainda que não tenha alcançado o sucesso esperado nas bilheterias, o filme foi descrito pela NASA, agência aeroespacial norte-americana, como a ficção científica mais plausível já realizada.

De facto os primeiros bebés geneticamente editados já nasceram e o enhancement humano deixou de ser uma ficção científica, apesar de sabermos que dificilmente encontraremos um mecanismo de evolução mais infalível e soberano do que a seleção natural, que determina através de uma variação genética os indivíduos mais aptos à sobrevivência, a utilização de técnicas como CRISPR pode trapacear a teoria da evolução, permitindo a seleção e modificação de genes num organismo com a garantia de seu aprimoramento e das gerações seguintes.

GATTACA Realização e Roteiro: Andrew Niccol Ano: 1997 Duração: 106 minutos Drama, Sci-Fi, Thriller

7,8/10


CULTUR A Ilustração: Ana Isabel Pacheco


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CRÓNICA 2

António Velha

Press Play to Continue Our revels are now ended. These our actors, As I foretold you, were all spirits, and Are melted into air, into thin air. Wi l lia m Sha kespeare From The Tempest – Act 4 Scene 1 As a lmas desva necera m-se pelo ar rarefeito. Em seu lugar ouve-se o si lêncio va zio – quebrado apenas por um par de sapatos a bater contra o chão, uma por ta a abrir, um ca fé a ser tirado. São três da tarde, terça-feira. Foi tirado o ca fé e metido nova mente o si lêncio. Costuma mos pensar nele como a ausência de som, frequências que não são audíveis pelo ouv ido huma no – naquele momento era o som ma is ensurdecedor de toda a sema na. Espa l ha-se e infeta todo o arredor, porque tem por onde se espa l har – um corredor va zio, ladeado de v idros envoltos em escuridão, sem nada que o bloqueie ou uma v ibração sonora que o cor te – como o sa l que se espa l ha pela terra e a impede de brotar fr uto, como o sa l que Roma espa l hou pelas r uínas de Car tago, para que nada a li voltasse a crescer. Aquele que era a ntes um coração taquicárdico de uma facu ldade v iva não é agora senão um doente assistólico e apneico, ressuscitado dia sim, dia não, pelas ma nobras de rea nimação que são as au las práticas da ma nhã. Temos au las, temos exa mes, temos matéria para estudar – mas não é o mesmo. Ser estudante não é só isto, seguramente? Não temos o que nos prenda à facu ldade qua ndo toca o sino do ca mpa nário ao meio-dia e

todos os espíritos se fogem para casa. É a ú ltima ronda do bar, em que nos dizem que não precisas de ir para casa, mas não podes ficar aqui – então e se eu já estiver em casa? O que é a facu ldade senão a nossa segunda casa? Comía mos, traba l háva mos, celebráva mos, conversáva mos e até dor mía mos aqui todos os dias de todas as sema nas de todos os a nos que cá estivemos. Agora não esta mos a f ugir para nos ref ugiar mos em casa, somos ref ugiados da nossa própria casa – a causa é uma guerra inv isível, não só pelo combatente, mas ta mbém pelo seu impacto, e a nossa facu ldade é uma pequena a ldeia espa lmada entre as linhas de trincheiras inimigas, em pleno ca mpo de bata l ha. Ao f im da ma nhã sa ímos da facu ldade na mesma direção que entra mos, mas lá no f undo sabemos que o sentido deveria estar inver tido – a v ida está pausada desde há um a no e o f i lme recusa-se a continuar. Ansia mos o dia em que poderemos voltar a casa, voltar a tomar ca fé numa pausa de cinco minutos que se tra nsfor ma em trinta, voltar a jogar matraqui l hos e a rir a lto com os nossos a migos no meio do corredor, voltar a ador mecer num a nf iteatro – voltar a ser estuda ntes de medicina. Car tago ardeu, as suas terras feitas estéreis pelo sa l roma no. Sa ímos das r uínas de cabeça erguida, os pi lares da cidade a inda intactos. A nossa espera nça agora será que um dia tor naremos a reconstr uir as suas paredes de már more.

Nota: a lenda de Roma a espa l ha r sa l pelas ter ras de Ca r tago é apócr i fa e su rge nas fontes histór icas apenas no sécu lo X I X, sem fontes pr i má r ias que o apoiem – é mu ito provavel mente u ma lenda, a i nda que dê u ma histór ia fasci na nte.

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MAIO 2021


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