Anais 2013-2014

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ANAIS Ano IV Brasília, março de 2014



ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA 2013 – 2014

ANAIS Ano IV

Brasília, março de 2014


Anais: Ano IV / Academia de Medicina de Brasília (2013-2014) – Brasília: Ed. do Autor, 2014 205p. Coletânea de escritos apresentados em palestras. Medicina. I. Academia de Medicina de Brasília (2013-2014) CDU 61

Revisão: Simônides Bacelar Diagramação: Marcos Aurélio Pereira Capa: Marcos Aurélio Pereira

Academia de Medicina de Brasília SGAS 607 – Ediİcio Metrópolis – Cobertura 1 Asa Sul – Brasília – DF – CEP: 70.200-670 Internet: acadmedbr@yahoo.com.br Site: hƩp://www.academiamedicinadebrasilia.org.br/ Tel.: 61 3346-3655


ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA DIRETORIA AMeB Biênio 2012-2014

Presidente Acad. Janice Magalhães Lamas 1.º Vice-Presidente Acad. Luiz Fernando Galvão Salinas Secretario Geral Acad. Iphis Tenfuss Campbell 1.º Secretario Acad. Izelda Maria Carvalho Costa 2.º Secretário Acad. José Ullisses Manzinni Calegaro Diretor Financeiro Acad. Jair Evangelista da Rocha Diretor Financeiro Adjunto Diretor de Patrimônio

Acad. Marcos Gutemberg Fialho da Costa Acad. Regina Cândido Ribeiro dos Santos

Diretor de Tecnologia de Informação e

Acad. José Paranaguá de Santana

Comunicação Diretor Científico Acad. Lucimar Rodrigues Coser Cannon Comissão Científica

Acad. Maria Mouranilda Tavares Schleicher Acad. Álvaro Valentim Lima Sarabanda Acad. Roberto Ronald de A. Cardoso


Comissão de Acad. Francisco Floripe Ginani Avaliação das Credenciais dos Acad. José Paranaguá de Santana Candidatos à

Academia Acad. Jair Evangelista da Rocha Membros Acad. Luiz Fernando Galvão Salinas

Comissão de Acad. Procópio Miguel dos Santos Ética e Bioética Acad. Regina Cândido Ribeiro dos Santos Comissão de Eventos

Acad. Lucimar Rodrigues Coser Cannon Acad. Antonio Márcio J. Lisboa Acad. Ely Toscano Barbosa Acad. Elias Tavares de Araújo Acad. Laércio Moreira Valença

Conselho Acad. José A. Ribeiro Filho Consultivo Acad. Renault Mattos Ribeiro Acad. Francisco Floripe Ginani Acad. Manoel Ximenes Netto Acad. Sérgio da Cunha Camões Acad. José Leite Saraiva Acad. Renato Maia Guimarães Conselho Fiscal Acad. Edno Magalhães Acad. João Eugênio G. de Medeiros Conselho Fiscal – Suplentes

Acad. Iphis Tenfuss Campbell Acad. Izelda Maria Carvalho Costa Acad. José Ulisses M. Calegaro


ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA – AMeB ACADÊMICOS TITULARES Cadeira n.º 01 Cadeira n.º 02

Acadêmico Marcus Vinicius Ramos

Cadeira n.º 03

Acadêmico Augusto Cesar de Farias da Costa

Cadeira n.° 04

Acadêmica Izelda Maria Carvalho Costa

Cadeira n.º 05

Acadêmico Laércio Moreira Valença

Cadeira n.º 06

Acadêmico Pedro Luiz Tauil

Cadeira n.º 07

Acadêmica Janice Magalhães Lamas

Cadeira n.º 08

Acadêmico Luiz Augusto Casulari Roxo Mota

Cadeira n.º 09

Acadêmico Hélcio Luiz Miziara

Cadeira n.º 10

Acadêmico Edno Magalhães

Cadeira n.º 11

Acadêmica Rosely Cerqueira de Oliveira

Cadeira n.º 12

Acadêmico José João Ferraroni

Cadeira n.º 13

Acadêmico Antonio Geraldo da Silva

Cadeira n.º 14

Acadêmica Maria Mouranilda Tavares Schleicher

Cadeira n.º 15

Acadêmico Marcos Gutemberg Fialho da Costa

Cadeira n.º 16

Acadêmico Eraldo Pinheiro Pinto

Cadeira n.º 17

Acadêmico Procópio Miguel dos Santos

Cadeira n.º 18

Acadêmico Iphis Tenfuss Campbell

Cadeira n.º 19

Acadêmico Jair Evangelista da Rocha


Cadeira n.º 20

Acadêmico Leonardo Esteves Lima

Cadeira n.º 21

Acadêmica Lucimar Rodrigues Coser Cannon

Cadeira n.º 22

Acadêmico Renato Maia Guimarães

Cadeira n.º 23

Acadêmico Simônides da Silva Bacelar

Cadeira n.º 24

Acadêmica Regina Cândido Ribeiro dos Santos

Cadeira n.º 25

Acadêmico Oscar Mendes Moren

Cadeira n.º 26

Acadêmico José Ulisses Manzzini Calegaro

Cadeira n.º 27

Acadêmico Etelvino de Souza Trindade

Cadeira n.º 28

Acadêmico Osório Luís Rangel de Almeida

Cadeira n.º 29

Acadêmica Cleire Paniago Gomes Pereira

Cadeira n.º 30

Acadêmico Francisco Floripe Ginani

Cadeira n.º 31

Acadêmico Paulo Andrade de Mello

Cadeira n.º 32

Acadêmico Francisco de Assis Rocha Neves

Cadeira n.º 33

Acadêmico Roberto Ronald de A. Cardoso

Cadeira n.º 34

Acadêmico Maurício Gomes Pereira

Cadeira n.º 35

Acadêmico Luiz Fernando Galvão Salinas

Cadeira n.º 36

Acadêmico José Paranaguá de Santana

Cadeira n.º 37 Cadeira n.º 38

Acadêmico Armando José China Bezerra

Cadeira n.º 39

Acadêmico José Leite Saraiva

Cadeira n.º 40

Acadêmico Álvaro Valentim Lima Sarabanda

ACADÊMICOS EMÉRITOS Acadêmico Antônio Márcio Junqueira Lisboa Acadêmico Célio Rodrigues Pereira Acadêmico Francisco Pinheiro Rocha


Acadêmico Sérgio da Cunha Camões Acadêmico Elias Tavares de Araújo Acadêmico Ruy Bayma Archer da Silva Acadêmico João Eugênio G. de Medeiros Acadêmico André Esteves de Lima Acadêmico Ely Toscano Barbosa Acadêmico Fábio Lage Correa Rabello Acadêmico José Antônio Ribeiro Filho Acadêmico Leopoldo Pacini Neto Acadêmico Manoel Ximenes Netto Acadêmico Odílio Luiz da Silva Acadêmico Renato Ângelo Saraiva Acadêmico Renault Mattos Ribeiro Acadêmico Wilson Eliseu Sesana

ACADÊMICOS HONORÁRIOS Acadêmico Jofran Frejat Acadêmico Rômulo Marocolo

ACADÊMICOS BENEMÉRITOS Acadêmico Newton Lins Teixeira de Carvalho Acadêmica Luiza de Paula

ACADÊMICO CORRESPONDENTE Acadêmico Joaquim Roberto Costa Lopes



SUMÁRIO

Apresentação ..............................................................11 Janice Magalhães Lamas Políticas Públicas para a Saúde Pública e Suplementar ..13 Palestrante .................................................................13 Marcos Gutemberg Fialho da Costa Debatedor ..................................................................24 Fausto Pereira dos Santos Participação do Auditório ..............................................32 Luiz Augusto Casulari, Leonardo Esteves Lima, Rui Nogueira, Antonio José dos Santos, Emmanuel Cícero, Cid Carvalhaes, Maria Sucupira Terminologia Médica....................................................47 Palestrante .................................................................47 Simônides Bacelar Participação do Auditório ..............................................74 Luiz Augusto Casulari, Pedro Tauil, Lucimar Coser Cannon, Sérgio Camões, Maurício Gomes Pereira, José Ulisses Calegaro, Francisco Ginani, Janice Magalhães Lamas O Modelo Holístico do Ensino da Medicina ....................89 Palestrante .................................................................89 Antônio Márcio Junqueira Lisbôa


O Princípio da Solidariedade e Cooperação na Perspectiva da Bioética ...............................................99 Palestrante .................................................................99 Volnei Garrafa Humanidade e Prática Médica .................................... 133 Palestrante ............................................................... 133 Roberto Luiz D’ Ávila Cirurgia em Isquiópagas ............................................ 151 Palestrante ............................................................... 151 Ruy Bayma Archer da Silva Participação do Auditório ............................................ 156 Glória Archer, Luís Augusto Casulari Dogmas em Relação à Prolactina ............................... 159 Palestrante ............................................................... 159 Luiz Augusto Casulari Roxo da Mota Participação do Auditório ............................................ 168 João Eugênio de Medeiros, Paulo Mello, Wanderley Girão Os Caminhos de Van Gogh ......................................... 173 Palestrante ............................................................... 173 Armando José Bezerra Participação do Auditório ............................................ 177 Janice Magalhães Lamas, Augusto Cesar de Farias Costa Direito e Ética ............................................................ 179 Palestrante ............................................................... 179 Ministro Carlos Ayres Britto


APRESENTAÇÃO

As publicações das palestras e dos debates ocorridos em 2013 constituem acervo da Academia de Medicina de Brasília, disponibilizadas também on-line para download dos leitores. Têm a finalidade de preservar a memória do pensamento crítico sobre os fatos que foram objetos de discussão. Entregamos ao leitor o registro das atividades desenvolvidas em 2013, com a certeza do dever cumprido. O conteúdo dos textos publicados é de responsabilidade dos autores e não expressa necessariamente a posição da Academia de Medicina de Brasília, exceto quando explicitamente indicada por esta. Permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para fins lucrativos quaisquer que sejam. Para reeditoração e republicação de qualquer material, solicitar autorização dos editores. Brasília, março de 2014 Janice Magalhães Lamas Presidente da Academia de Medicina de Brasília



PALESTRA POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A SAÚDE PÚBLICA E SUPLEMENTAR Sessão Plenária ocorrida em 26-3-2013

PALESTRANTE ACAD. DR. MARCOS GUTEMBERG FIALHO DA COSTA – Presidente do Sindicato dos Médicos de Brasília e Membro Titular da Academia de Medicina de Brasília.

B

oa noite a todos. Quando solicitei este espaço, queria debater com a Academia a política das áreas pública e

suplementar. Não há proposta do Governo, mas a realidade é sentida pelo sindicalista, que vive o drama do médico, que sofre todo dia nos prontos-socorros dos hospitais públicos, bem como nos consultórios dos hospitais que dão assistência à Medicina Suplementar. Queria falar do usuário do plano de saúde que, ao invés de receber assistência, recebe desassistência. Inicio com um resumo do que ocorreu no Sistema de Saúde Pública do País até a criação do SUS. Em 1979, na Conferência Internacional de Cuidados em Saúde de Alma-Ata, na Rússia, província do Cazaquistão, chegou-se à seguinte conclusão: as necessidades de saúde da população, 13


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em sua maioria, são de natureza simples, cujo atendimento adequado requer apenas recursos e técnicas em nível primário em saúde. A conferência concluiu que basta uma medicina primária de saúde, contando-se com a prevenção, e se evita chegar a um nível de complexidade que se vê hoje. Mas o que vemos hoje? Uma medicina focada em prontos-socorros e hospitais lotados. Temos um modelo hospitalocêntrico. O movimento de Reforma Sanitária Brasileira, em 1978, questionou o modelo hospitalocêntrico, voltado para doença, para medicina curativa, assistencialista, em detrimento da formação de saúde e prevenção de doença. Dez anos depois da conferência, o Movimento de Reforma Sanitária Brasileira chegou à mesma conclusão. Isso culminou em 1988, na criação do SUS, Sistema Único de Saúde. Hoje temos o SUS, mais de vinte anos depois, que não foi implementado em sua totalidade, em sua plenitude, um SUS totalmente sem alma, subfinanciado, sem política de recursos humanos adequada, gestores funcionalmente instáveis, ao bel-prazer do político do momento, mal remunerado, mal qualificado, sem perspectivas futuras, sem nenhuma segurança profissional. Não temos uma carreira médica de Estado. No DF, não atendemos pelo SUS, mas nos estados atendidos pelo SUS, existe o famoso Pico 7, que é uma modalidade de pagamento aos médicos. Estes informam sua conta bancária e o Ministério da Saúde faz o pagamento dos honorários diretamente na conta do médico. A proposta é copiar o Sistema Suplementar. O hospital é o atravessador e repassa honorários ao médico. Há atraso no pagamento, desvios e toda dificuldade que nós, os que atuamos na Medicina Suplementar, sofremos, ou seja, se copia da Medicina Suplementar uma prática nefasta para o Sistema Público de Saúde. 14


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Em alguns estados, onde a atuação sindical é mais forte, tem-se evitado isso. A maioria está extinguindo o Pico 7. Médicos descredenciam o SUS, e hospitais se fecham por falta de política adequada. Em valores atualizados, a consulta básica do SUS custa R$2,50. Consulta com o especialista, R$7,50. Esse é o valor bruto que o Estado Brasileiro paga ao médico de seus quadros. Parto cesariano por R$150,00, parto normal, R$175,00, e a internação, R$49,00. Nessa diária, estão inclusos medicamentos, hotelaria e higiene. A diária de UTI varia de quatrocentos a mil e trezentos reais. Uma diária não sai no mínimo pelo preço de três mil reais. Quem atua nessa área sabe disso. O Professor Adib Jatene, quando foi Ministro da Saúde, fez uma conferência com diretores de hospitais universitários de Salvador e, nessa palestra, ele concluiu: “Oitenta por cento das pessoas que diariamente estão às portas dos hospitais que os senhores dirigem deveriam ter sido atendidas nos Centros de Saúde. Os hospitais que os senhores dirigem são, na realidade, uma cabeça sem corpo”. É o modelo de atendimento hospitalocêntrico, sem atendimento em ambulatórios, consultórios, sem medicina preventiva. O que ocorre com a Medicina Suplementar? Melhorou a qualidade de assistência à população? Não melhorou. Estamos vendo a precarização do atendimento e o nivelamento por baixo. Temos quarenta, sessenta milhões de usuários no Sistema Suplementar. É um número cabalístico. E qual é a importância e a validade desse dado? Quando o Ministro da Saúde, em sua posse, afirmou que o Brasil tem quarenta a sessenta milhões de usuários no Sistema Suplementar, ele quis dizer que o Estado não honrou a 15


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missão de fazer a cotação orçamentária para assistir essa parte da população, quando sabemos que a maioria dos usuários dos planos de saúde pagam suas mensalidades e tem assistência negada. Quando precisam de uma consulta, de uma internação ou de uma cirurgia não as conseguem. Eu li, hoje, no Jornal de Brasília, o caso de uma paciente que fez um plano de saúde, porque tem um filho asmático e, na primeira crise que ele teve, o atendimento foi negado. A Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS) permite a criação de planos de saúde caça-níqueis, que só dão direito à consulta com mensalidade baixa. O paciente chega ao pronto-socorro e precisa de um exame ou de uma internação e o plano não lhe dá esse direito. Ele vai ao pronto-socorro para atendimento ambulatorial porque o plano só cobre urgências e emergências. Como é que se consegue a criação de plano de saúde com atendimento apenas em pronto-socorro? É a realidade do País. Chega-se ao hospital e o pronto-socorro está pior do que hospital público. O porquê disso? Temos uma regulamentação deficiente do setor pela ANS. Não temos regra para contratualização. Se vou à concessionária, compro meu carro, tenho índice de reajuste. Se financio minha casa, há um índice de reajuste. Mas o contrato do médico do plano de saúde não tem tal reajuste. Em confronto, todo ano sai o índice de reajuste de salário das empregadas domésticas. Há verticalização do setor. Os grandes planos estão comprando os pequenos. De vez em quando, é suspensa a comercialização de alguns planos de saúde. No ano passado, quatrocentas a quinhentas modalidades de planos de saúdes foram suspensas. Quando esses planos se tornam inviabilizados, os grandes planos de saúde os compram e os incorporam. Os planos de saúde 16


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caça-níqueis não desaparecem, porque os grandes planos absorvem os pequenos, e essas práticas ficam sob o braço da Amil, da SulAmérica e outros planos por aí. Em recente entrevista, Edson Bueno (tenho uma cópia da entrevista se alguém tiver a curiosidade de ler) declarou que existem vários tipos de planos de saúde da Amil. Existe plano que cobra quarenta a sessenta reais de mensalidade, mas há aquele plano pelo qual o doente é atendido nos melhores hospitais do País, que pagam honorários melhores, são dotados dos melhores médicos do País. Na realidade, quando se fecha um plano de saúde caça-níquel, este não desaparece. Passa a fazer parte da carteira do grande plano de saúde. A formação de especialistas focados em especialidades com procedimentos é outra deformidade na formação médica hoje. O que acontece? Como os preços das consultas são muito baixos, os colegas e os estudantes de medicina optam por uma especialidade que tenha procedimentos especiais, em que se usem próteses e medicamentos específicos. Médico clínico e pediatras são especialidades em extinção. Até os ginecologistas estão desaparecendo. No ano passado, durante o Congresso na Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de São Paulo, um colega fez um depoimento, afirmou que foram fechadas 25 maternidades porque não há lucro. Há convênios que pagam R$250,00 por parto normal ou cesariana. Não há incentivo à formação de geriatra no mercado. Por quê? Geriatra vive de consulta. Não instala parafusos para receber 30% de comissão. Na Asa Sul em Brasília, o perfil etário se assemelha ao de Copacabana, porém não temos geriatras no 17


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Centro de Saúde da Asa Sul. Não temos uma política de saúde focada ao perfil etário idoso da população. O custo das desconfianças resulta em baixos honorários médicos, em recusa de autorização de procedimentos de internação pelos planos de saúde. Negam porque declaram não haver indicação, que o colega está “conduzindo” o procedimento. Existe o mercado paralelo de próteses e medicamentos e cobrança de percentual sobre procedimentos. A máfia da OPME (órteses, próteses e materiais especiais) conquista os médicos para conduzir procedimentos e ganhar percentual por isso. Qual a dificuldade que as entidades médicas enfrentam para melhorar a Medicina Suplementar? Determinadas especialidades não estão preocupadas com a consulta. Eles até atendem de graça, porque vão ganhar dinheiro com o procedimento. Tivemos recentemente em Santa Catarina, cinco colegas médicos cardiologistas processados por instalar stents sem necessidade em paciente do SUS. Eles atendem de graça, mas recebem a comissão. Outra realidade é a enfermagem despreparada e insuficiente, o que leva a erros. Tivemos em Brasília uma enfermeira que administrou vaselina em lugar de soro fisiológico na veia de um paciente e este morreu, no Hospital Santa Maria. No Rio de Janeiro, houve o caso de uma paciente em que foi administrado leite com café na veia. Aplicou-se feijão no cateter, porque a enfermeira se confundiu com a sonda. Trabalho em pronto-socorro da saúde privada. Coordenei a Clínica Médica do hospital (qual hospital?) durante vinte anos. Alí, há pouca enfermagem para muita gente. O paciente chega com dor, sofrendo, é medicado e duas horas depois, passa pelos 18


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corredores, gemendo “Não doutor, não fui atendido ainda!”. Havia duas assistentes de enfermagem para atender aquela quantidade de gente. Isso é humanamente impossível e está ocorrendo também em relação aos médicos. O empresário aloca duas auxiliares de enfermagem. Elas se viram para atender e aí os erros ocorrem. Por que será que se administra vaselina em vez de soro fisiológico? Observa-se o frasquinho e a diferença é o tamanho. Nós, médicos, reconhecemos as normas de segurança. Há cores para diferenciar os vidros. No entanto, a fiscalização não atua e deixa a embalagem com a mesma cor, dando margem a que, se depender da sobrecarga de trabalho, se cometam erros. Está entrando no mercado de Brasília o Grupo D’Or, um grande conglomerado médico que tem como acionista o Grupo Pactual, que atua fortemente no mercado de ações. O Grupo D´Or já entrou no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Recife e agora em Brasília. Comprou o Santa Luzia e o Hospital do Coração. Está querendo comprar a Rede Acreditar, que se compõe de clínicas de oncologia, e o Grupo Medgold, que inclui o Santa Lúcia, o Prontonorte e mais três ou quatro hospitais. O Sindicato dos Médicos, convocado pelos médicos da cidade, fez uma assembleia e decidiu pela impugnação da compra do Medgold. Não houve ainda a incorporação. No Hospital Santa Luzia e no Hospital do Coração, já se efetivou a operação. Fortalece-se, então, o modelo hospitalocêntrico, em que os hospitais só trabalham com atendimento em pronto-socorro, não há medicina preventiva. O presidente da Rede D’Or, em entrevista ao Correio Braziliense, disse que iria trazer qualidade ao implantar nos hospitais 19


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de Brasília o modelo smart treck, que consiste em check-up no pronto-socorro. Chega-se ao pronto-socorro, o médico examina e pede uma série de exames, avaliados todos na mesma hora, entre eles, tomografia e ressonância magnética. Aumenta-se o custo dos gastos dos planos de saúde e consequentemente, a mensalidade. O atendimento tem metas. Atendem-se duzentos pacientes por semana, internam-se 5% deles. Interna-se paciente sadio? O Grupo D’Or trabalha com isso. O economista Cesar Márcio, fundamentou a ação do Sindicato baseado nas expressões Modus Medicus e Modus Business. O que é Modus Medicus? O paciente chega com enxaqueca ao consultório, com história de dor de cabeça há dez anos, fotofobia. Eu sei que ele tem enxaqueca, prescrevo Dramin e Tylenol e o mando para casa. Isso é o Modus Medicus, quando eu sei que o doente não precisa de tomografia. No Modo Business, a saúde passa a ser um capital. Sendo um bem capital, eu não prescrevo exame porque é preciso. Prescrevo porque quero fazer dinheiro. Para o cidadão com enxaqueca crônica, em uma clínica exuberante, em vez de medicar, passar um analgésico e deixá-lo ir para casa, peço uma tomografia sem necessidade. É isso que é a prática do Grupo D’Or. Então, se são solicitadas trinta tomografias por mês, a meta do próximo mês será de quarenta e se o médico não alcançar a meta, vai ser substituído. Essa é a prática que estão querendo trazer para Brasília. Resulta disso a criminalização do ato médico, em que o médico é compelido a solicitar procedimentos desnecessários. Caso contrário, há complicação e vai parar na Justiça. O médico se depara com um judiciário extremamente despreparado, não 20


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só aquele que vai denunciar o médico, como quem vai fazer sua defesa. Agora existem especialistas na área de Responsabilidade Civil Médica, sendo poucos os escritórios de Brasília com experiência. O Sindicato dos Médicos hoje tem grande experiência porque é o que a gente faz praticamente todo dia. O Judiciário tem mania de indicar o médico perito não pela formação periciosa, mas pela especialidade, o que é um tremendo erro. Está se tentando corrigir agora, com a fusão da Sociedade de Medicina Legal e Perícia Médica pelo Conselho Federal de Medicina. A especialidade agora é Medicina Legal e Perícia Médica. Já houve duas provas de títulos de especialistas em Medicina Legal e Perícia Médica. A última ocorreu em setembro de 2012, em Fortaleza, no Congresso de Medicina Legal e Perícia Médica, em que fui aprovado por atuar na área há mais de quinze anos. O perito deve entender não só de Medicina, como também de processos e saber o que juiz quer. Não adianta um processo com laudo pericial como se fosse um trabalho científico. É um desserviço ao judiciário. Então temos que ter médicos peritos preparados. Há uma corrente a qual acha que o perito tem que ser ginecologista, um obstetra, porque houve um problema no parto ou um neurocirurgião, porque houve um problema na cirurgia encefálica. Esse laudo, uma bela peça cientifica, não serve para nada no processo e, às vezes, complica a vida do médico. Se não há assistente técnico ou se o laudo do perito for mal feito, o juiz vai julgar o único elemento que ele tem para julgar, que é o laudo do perito, até porque ele não tem conhecimento médico. Quando toda essa confusão surge na imprensa, se o 21


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médico não tiver uma defesa bem feita, na área pericial, vai haver a condenação antecipada pela imprensa. Quando a imprensa entra no caso, a Justiça sai pela janela. Ocorre hoje a americanização da Saúde Suplementar no Brasil. O filme SICKO – com Michael Moore – S.O.S Saúde retrata o que ocorre na medicina suplementar nos Estados Unidos. Colegas médicos são contratados exclusivamente para verificar o contrato que o usuário faz com o plano de saúde para ver onde a vírgula foi colocada erradamente e, assim, negar o procedimento, negar a autorização, negar o benefício que ele está comprando. Há uns três anos, escrevi para a revista do Sindicato dos Médicos, um artigo “O paciente tem culpa”. Nele cobro também que o cidadão tem de exercer sua cidadania. Não basta receber benefícios do Governo. Não é só receber Bolsa Escola, Bolsa Família. É preciso saber cobrar seus direitos. Tratamos o paciente como coitadinho. O paciente não cobra do Governo a regulamentação decente dos planos de saúde ou caso o plano de saúde não lhe dá assistência. Deixa o problema no colo do médico: “Se meu plano de saúde negou a autorização da cirurgia e o caso é grave, o doutor vai ter que resolver”. O hospital terá que fazer o procedimento sem receber nada? Onde está o cidadão que exerce sua cidadania? Ser cidadão não é só receber favor, como grande parte da nossa população entende, e ficar cada vez mais dependente do clientelismo do Governo. Cunhamos também esta frase: “Paciente abandonado pelo SUS, desprezado pela Medicina Suplementar”, que é o que está acontecendo. Na carta de Belém, do último encontro do Conselho Regional de Medicina, que circulou pela internet, na Academia de 22


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Medicina de Brasília, com alguns dos itens que compõem a carta, revela a intenção do Governo de reduzir impostos, dar subsídios, em vez de dar recursos públicos para a Saúde Pública, para as operadoras de planos de saúde, conforme anunciado após encontros de representantes do Governo e empresários do setor. Isso demonstra, de forma contraditória, o favorecimento da esfera privada em detrimento da assistência à saúde pública, cujo subfinanciamento é o principal responsável pelo desestruturamento do SUS. No site do Conselho Federal de Medicina, há um link, da Comissão de Saúde Suplementar, que faz referência à reunião que a presidente Dilma teve com quatro grandes grupos de operadoras de saúde do País. No dia 27 de fevereiro deste ano, a Folha de São Paulo publicou uma matéria intitulada “União quer ampliar o acesso a planos de saúde” segundo a qual, a presidente Dilma estaria negociando com empresas do setor privado de saúde “Qualicorp, Bradesco e Amil” medidas de redução de impostos para estimular as operadoras de planos de saúde a oferecerem planos de baixo custo para ampliação da assistência da Saúde Suplementar. O paciente está sendo abandonado pelo Governo. Edson Bueno, na revista Veja, disse que a Amil, como a seguradora norte-americana irá criar plano de saúde para pobre. A matéria está aí para quem quiser ver. Ele declarou que o plano de saúde dele paga muito bem, paga setenta reais a consulta, mas existe plano de saúde que paga trinta ou quarenta reais. Se ele vai criar plano de saúde para pobre, quanto ele vai pagar pela consulta? Dez, cinco reais? Quem vai atender esses pacientes? São os estrangeiros que a Dilma quer importar? São os cubanos? É o pessoal da Andaluzia da Espanha, que o Governo quer que venha sem validação do diploma? A entrada irresponsável de médicos 23


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estrangeiros e brasileiros com diplomas de Medicina obtidos no exterior sem sua validação ferem a norma legal e expõe a qualidade de assistência à população a situação de risco. “Gutemberg, você é contra plano de saúde para pobre?” Eu sou a favor que pobre seja bem atendido no Sistema Público de Saúde. Pobre não tem dinheiro para pagar trezentos, duzentos, cem ou cinquenta reais por uma mensalidade de plano de saúde para ter assistência. Eu gostaria de que Dr. Fausto, em seus comentários, fizesse suas digressões sobre isso. Infelizmente é o que nosso Governo está querendo – destruir integralmente o SUS. Devemos viver segundo o princípio de que saúde é um direito de todos. É constitucional, e o próprio Governo está desrespeitando esse preceito. Então, senhores, essas considerações eu trouxe à Academia para que possamos refletir por meio dessas conversas e, assim, possam surgir ações eficazes. Agora, vamos passar um vídeo de atendimento em hospital, em pronto-socorro de hospital. Âncora vídeo. Com espera de até seis horas por atendimento médico, pacientes de planos de saúde reclamam que estão pagando para enfrentar filas. Eles se queixam da falta de médicos e dizem que muitos hospitais não têm equipamentos suficientes para fazer atendimento adequado.

DEBATEDOR DR. FAUSTO PEREIRA DOS SANTOS – ex-Presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar, por dois mandatos e atual diretor do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle do Ministério da Saúde. 24


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oa noite a todos. Gostaria de inicialmente agradecer pela oportunidade de comparecer a este debate, cumpri-

mentar Dr. Gutemberg por sua exposição e tentar, nestes vinte minutos, contextualizar um pouco as questões que ele levantou. Dr. Gutemberg fez um diagnóstico da situação do setor público e privado no Brasil, bastante extensa, que reflete um pouco da realidade na qual ele milita. O que ficou faltando é termos uma perspectiva histórica desse processo de organização da saúde, tanto público quanto privado no Brasil. Trouxe um pouco da discussão de modelo, extremamente pertinente. Essa discussão da atenção primária na saúde é definitivamente, apesar de todos os esforços e todas as discussões que foram feitas no País até agora, ainda uma discussão contra-hegemônica. É claro que o sistema brasileiro tem forte inspiração de organização no modelo norte-americano de prestação de serviços, baseado em procedimentos, nos pagamentos de procedimentos, no qual quanto mais faço, mais ganho. No caso das empresas, quanto menos autoriza, mais economiza e maior é o lucro. No meio disso, como que prensado em um sanduíche, está o beneficiário ou usuário do plano de saúde. No setor público, apesar dos grandes avanços na organização da atenção primária no Brasil, ainda temos um modelo fortemente centrado na alta complexidade e nos hospitais. O diagnóstico que podemos fazer do setor hoje no Brasil, tanto no privado quanto no público, é que ainda é um modelo baseado na produção de procedimentos. É como se a saúde das pessoas fosse um somatório dos procedimentos que foram realizados. Isso provoca uma distorção. Na prática médica, ocorrem distorção na organização de sistemas, custos exponenciais e 25


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distorção na linha de cuidados ao paciente. Hoje, o doente hipertenso não é tratado do ponto de vista do que poderia tê-lo levado à hipertensão e os cuidados que ele precisa cumprir, ou uma opção secundária ou eventualmente uma intervenção. Ele é fruto de uma sequência de procedimentos que teria feito a qual, no fim, pode culminar com qualquer uma das consequências do processo da hipertensão arterial crônica. Ao lado desse modelo de organização de sistema, temos ainda, no Brasil, um mercado de produtos médico-hospitalares extremamente forte. Talvez sejamos o segundo maior mercado do mundo em consumo de produtos médico-hospitalares, com expressiva presença da indústria de equipamentos, de fármacos e de produção de materiais. Isso influencia o processo da produção e a organização dos serviços de saúde em que a consulta é um troco. Conto o caso da Unimed de Fortaleza, em que um colega ortopedista parou de apresentar faturas à Unimed e ao hospital. A Unimed pagava o hospital, mas nunca tinha as faturas do médico. Mas ele continuou apresentando faturas dos materiais utilizados na sala cirúrgica. Chamaram-no para conversar. Ele disse que preencher formulários dava trabalho. Ele ganhava mais com a prescrição das próteses. Assim, 56% do faturamento dos hospitais privados não é feito pela produção de internações e taxas. É pela comercialização de material e medicamentos. Então, esse sistema é muito mais um intermediário de comercialização do que um prestador de serviço hospitalar. Nessa cadeia, há um conjunto de vantagens que passa desde o prescritor até quem compra no fim da cadeia. 26


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A atenção, hoje, da saúde passa por um processo de urgência que norteia o funcionamento dos prontos-socorros, UPAs, hospitais. Os consultórios, a organização da atenção em níveis de atenção, primário, secundário, terciário – perdem espaço gradativamente para o pronto-socorro ou a unidade de urgência que assume o papel central. É uma prova de desestruturação do tipo de atendimento influenciado pelo próprio modelo de sociedade, em que as pessoas não têm “tempo” de percorrer processos: ir ao médico, pedir exame, fazer exame em outro lugar. Ele é capturado por uma lógica de que ele vai ao pronto-socorro e que ali ele vai resolver o conjunto de seus problemas no menor espaço de tempo, com menor deslocamento, fruto típico das grandes cidades e da organização da própria sociedade em que vivemos. Os serviços de saúde, nem o público nem o privado, não tiveram, até o momento, capacidade de se reorganizarem e oferecer opções a esses processos, que é o funcionamento de unidades em outros momentos, fora do horário comercial. O sistema, além de pouco resolutivo, é muito mais caro, porque ali o paciente vai fazer um conjunto de exames, alguns deles desnecessários. Se voltar dali a três dias, irá fazer todos os exames de novo, porque não registrou no prontuário, não teve acompanhamento. Vai fazer toda a bateria outra vez e possivelmente vai continuar com seu problema não resolvido. Esse tipo de cuidado acaba sendo pouco resolutivo e muito dispendioso para qualquer tipo de sistema. O funcionamento de unidades em prontos-socorros durante 24 horas tem um impacto de custo extremamente elevado para o sistema. Outra questão é a do financiamento do setor. O setor de saúde no Brasil, do ponto de vista do gasto total com saúde, não 27


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é distante de outros países. O Brasil gasta em torno de 9% do seu PIB com a saúde. Agora, como é que esse gasto com saúde é distribuídos no Brasil? Primeiro, é um gasto fortemente privado. O setor público é responsável por 4,6% desse PIB, e quase todo esse recurso é de origem privada. Uma parte importante dos planos de saúde, em torno de 28% do total, e outra parte do imposto direto das pessoas, principalmente com a questão de medicamentos. Na verdade, apesar de se gastar, do ponto de vista de volume, uma quantidade de recursos relativamente grande, temos um sistema pulverizado, com forte desperdiço de recursos e com baixa regulação por parte do Estado, diferentemente da Inglaterra, que tem um sistema organizado. O Estado não consegue, com o conjunto de recursos de que dispõe, responder às principais dificuldades e aos principais problemas da população e da organização dos serviços de saúde no Brasil. Na perspectiva histórica, temos sinais evidentes de melhoras do sistema de saúde brasileiro, porém ainda muito aquém do que gostaríamos e muito distante de um sistema mais organizado. Mas temos, do ponto de vista dos indicadores de saúde do Brasil, uma melhora extremamente importante, na mortalidade infantil, na expectativa de vida, uma queda importante da mortalidade materna, redução de mortes por doenças crônicas evitáveis e uma intervenção importante na identificação precoce do câncer. Temos um conjunto de indicadores os quais mostram que o serviço de saúde brasileiro passou por um processo relevante da atenção primária, apesar de ser ainda insuficiente, com um sistema de transplantes relativamente organizado, que consegue fazer um conjunto de intervenções importantes. Temos uma atenção peculiar às pessoas com HIV. 28


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Temos alguns exemplos importantes de avanços no sistema e do ponto de vista geral, indicadores muito positivos no sistema de saúde brasileiro no campo da atenção e do sistema mais geral. No campo da Saúde Suplementar, também existem avanços relevantes durante o período de quatorze anos da regulamentação e de doze anos da Agência Reguladora. É claro que é uma agência reguladora insuficiente para o tamanho da sua tarefa, do ponto de vista da sua capacidade, do número de servidores, da sua estrutura, mas que tem avanços significativos. Quero destacar a questão que nos diferencia fortemente dos Estados Unidos e praticamente de quase todos os outros mercados regulares de planos de saúde no mundo –, é o rol mínimo de procedimentos. O sistema norte-americano vende o plano com limitação de procedimentos, com limitação de dias e com exclusão de doenças. Há hoje no Brasil uma lei que proíbe a dose ou limitação quantitativa, que não permite a exclusão de qualquer doença que seja prevista na CID-10. Isso é um avanço muito importante e constitui um dos pilares da reforma do Obama. Significa talvez a diferença que o Edson informou na revista Veja e seja a grande aspiração de operação da United no Brasil. A grande aspiração da United no Brasil é fazer aqui o que faz com os mais de oitenta milhões de beneficiários nos Estados Unidos. A United sozinha tem mais beneficiários do que todos os planos de saúde no Brasil e essa é a grande expectativa e a grande visão. Já apresentei parte de um conjunto de propostas para a Presidente com reação da sociedade, das entidades médicas, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, do conjunto de organizações sociais. Essas manifestações são absolutamente legitimas e devidas. Penso que todas as medidas em defesa do SUS, do Sis29


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tema que construímos, ou estamos construindo, que tem muitas mazelas e muitos problemas, mas que sem dúvida nenhuma, é um fator de inclusão social extremamente importante no Brasil. Quero dizer aos senhores que não existem medidas, não existe redução de imposto, não existem subsídios adicionais ao mercado de planos, além do que já temos, que é a tal da renúncia fiscal em que todos podem abater do imposto de renda sem nenhum tipo de limite seus gastos com o plano de saúde. Além dessas medidas que já existem no Brasil, não existe nenhuma outra medida que o Governo esteja implementando para fomentar o setor de saúde suplementar. É verdade que as reuniões existiram, não foram reuniões escondidas, todas constavam na agenda oficial da Presidente. Não existe nenhuma atitude do Governo no sentido de favorecer a expansão dos chamados planos de baixo custo ou autorizar subsegmentação, que é a formatação dos planos com exclusão. Posso garantir aos senhores que isso não está em estudo no Governo. O setor empresarial vai continuar em sua luta de pressionar desde a época da regulamentação dos planos, na década de 90, em que os setores de saúde suplementar se mobilizaram fortemente para que não existisse um valor mínimo de procedimentos na Lei. O CFM, as entidades médicas na época e os órgãos de defesa ao consumidor se mobilizaram para que existisse um valor mínimo de procedimentos. Então, isso significa que eles não abandonaram essa luta. Por outro lado, não vai existir nenhum tipo de flexibilização de regras para permitir o chamado plano segmentado, plano desenhado ou plano formatado para a necessidade da população, que é um pouco da expressão do filme SICKO, que mostra muito isso, pessoas que tem um limite de renda anual de até 30


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trinta mil dólares são aceitas. Com trinta mil e dez centavos de renda, a pessoa está fora. Essa é a lógica. Passados dez dias de UTI a que tem direito, no décimo primeiro estará fora, qualquer seja a situação em que esse paciente esteja. Mas a legislação brasileira não permite essa atitude em nosso país. Continuamos a ter problemas com empresas que oferecem produtos de baixa qualidade. Existe um conjunto de Unimeds no Brasil muito pequenas, com baixa capacidade de operação, e muitas medicinas de grupo também nessa situação, e isso é um trabalho que vem progredindo Não se pode retirar todas elas do mercado ao mesmo tempo, sob pena de se criar problemas na assistência desse conjunto de credenciados. Mas elas vêm sendo sistematicamente monitoradas, com exigência de melhor desempenho, com suspensão de planos quando não cumprem os prazos estabelecidos pela Agência Reguladora. Ainda estamos longe de termos um sistema, tanto público quanto privado, como gostaríamos de ter. Os senhores podem ter certeza de que os técnicos da Agência Reguladora e especialistas concursados são em número absolutamente insuficiente para o tamanho da sua responsabilidade, mas estão lutando cotidianamente para inverter esse quadro. Sabemos que não será de forma muito rápida, nem imediata. Precisamos de mais recursos para a saúde, precisamos de mais recursos públicos, que são claramente insuficientes. Na parte da assistência, a Saúde Suplementar tem três vezes mais per capita do que o SUS tem hoje, no Brasil, para fazer essa assistência. Há uma diferença grande e muita coisa sido feita, mas ainda temos um caminho muito longo para percorrer. Essas eram as questões que gostaria de trazer a debate. Obrigado. 31


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PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. Eu queria cumprimentar os membros da nossa Academia, mais uma vez propiciando uma excelente discussão sobre um assunto muito importante com pessoas que entendem de saúde no Brasil, Dr. Gutemberg, com toda a capacitação dele e Dr. Fausto, que falou agora. Já se discutiu muito a respeito da Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas os dois últimos médicos que foram admitidos lá, um deles Dr. Leandro Reis Tavares, foi chefe médico da Amil de Niterói. O outro, Dr. Mauricio, era um preposto do pessoal da Amil. Ele trabalhou no Qualicorp e na Medial Saúde. Isso foi colhido no site da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Esses dois médicos são profissionais que estão defendendo interesses escusos de amigos. Isso passou pelo Congresso Nacional e nossos colegas médicos não fizeram absolutamente nada e os dois foram nomeados pelo Presidente da República. É hora de nós, médicos, exigirmos ou o Conselho Federal de Medicina, ou algum deputado ou líder comprometido com a medicina – exigir que esses profissionais nomeados para Agência Nacional tivessem de responder a acusações de conflitos de interesses.

Acad. Dr. Leonardo E. Lima. Gostei da palestra de Dr. Gutemberg e concordo plenamente com a maior parte do que foi falado. É a realidade que se vive em Brasília. Gostei dos comentários de Dr. Fausto, mas gostaria de fazer comentários. O Brasil não aplica 9% do PIB de maneira alguma. O setor público aplica muito pouco. 32


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Vivenciei experiências na França e nos Estados Unidos. O comentado United, equivale a pelo menos 20% do PIB norte-americano em gasto com a saúde. O conhecimento da realidade estrangeira não permite esse tipo de afirmação. A realidade é que lá fora, se somarmos plano de saúde e Governo, facilmente resultarão 15%, 20% ou 30% do PIB aplicados em saúde no mundo moderno. Essa é a realidade. Em resposta a Dr. Fausto, digo que precisamos de mais dinheiro para a saúde, para sanar parte dos problemas evidenciados. A resposta está aí, o básico. Copiem os países que conseguem uma saúde melhor. Não há jeito de gerenciar melhor a saúde com pouco investimento na mesa. Eu gostaria que fosse reconsiderado o exposto por Dr. Fausto porque precisamos realmente de saúde de melhor qualidade e isso implica mais dinheiro e mais controle. A ANS está de parabéns, em parte porque venho acompanhando esses avanços, mas é evidente que nosso controle está muito aquém da necessidade real e é isso que nós acadêmicos debatemos e tentamos – trazer soluções.

Dr. Rui Nogueira. Toda a minha vida está centrada em trabalhar como médico de família. O SUS é uma luta extraordinária que não é do Governo e nem de partidos políticos. É uma luta de idealistas, uma luta de associações, uma luta de sindicatos, e o SUS está sendo devorado pelas beiradas. Fui trabalhar um período no interior. É uma tristeza o que estão fazendo com os médicos no interior. Médico de família é a chave politicamente correta para partidos políticos conseguirem votos. Trabalha-se oito horas por dia e existem filas e mais filas 33


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de doentes para serem atendidos. Querem que o médico as atenda. Mas não querem resolubilidade, querem números. A UPA é usada para o proselitismo do Governador do Estado atuar no município se o município tem um partido que não é o dele. O Ministério da Saúde deveria indicar como deveria ser pago o médico do PSF e do SUS, porque eles falam uma coisa, mas, em realidade, fazem outra. Os prefeitos não assinam contratos, se assinam, não cumprem e, se não gostam da cara do doutor, ele não atingirá o número de atendimento necessário. Em relação ao salário é uma mentira o que a mídia anuncia ser de vinte a trinta mil reais. Recebemos entre oito e nove mil reais. Para fazer plantão eles são muito camaradas. O médico assina um contrato de quarenta horas e só trabalha vinte. Mas terá que completar com plantões. É o negócio da urgencialização. É aquele sistema norte-americano: interessa o número de atendimentos. O resto não interessa. O médico tem que dar plantão. Se recusar, ele vai embora na mesma hora, como fizeram comigo! Porque eu examinava, instituía o tratamento e acompanhava. Secretário de Saúde no Brasil afora é mulher do prefeito, cunhada do prefeito, amante de um Secretário. Secretário de Saúde hoje é o elemento mais incapaz que existe dentro dos pequenos municípios. O remédio vem, e a Prefeitura declara que não tem o remédio, mas o vereador X tem. O remédio, em lugar de ir para o consultório, em vez de ir para a Prefeitura para ser entregue aos doentes que estão precisando, vai para a casa do vereador. Encaminhamento é uma indústria terrível entre os municípios. R$1,20, R$1,30 R$1,50 por quilômetro – e é uma beleza! “Prefeito, minha mãe está passando mal!” “Meu companheiro, não se preocupe. Mário, pegue a mãe aqui do nosso correligionário 34


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e leve ao hospital Distrital e só sai de lá quando ela for vista.” Ganha-se, assim, gratidão e voto. É algo para refletir. Acho que nós deveríamos dar um prêmio a quem bolou o marketing da obtenção da pressão sanguínea de 12 por 8. Hoje, em conversa com um colega cardiologista, fiz um convite – “Você vai vir ao lugar onde estou trabalhando e almoçar comigo. O cardápio será formidável – arroz, feijão, depois furosemida...” Anteontem eu vi uma receita de dezesseis medicamentos. Há pouco tempo, atendi uma paciente que tomava dez medicamentos. Cinco deles eram anti-hipertensivos. A medicalização está violenta. Em todo o sistema, há o empenho dos grandes laboratórios que dominam os meios de comunicação para multiplicar as pessoas capazes de receitar. Eles querem aumentar o número dessas pessoas. O médico faz a receita e diz ao cliente o que ele vai consumir. Todos são aprendizes de feiticeiro, querendo receitar. E o tal do remédio contínuo? Receitas de medicamentos para usar por quatro, cinco, seis meses. Isso é uma situação terrível, porque não há promoção da saúde. Eu gostaria de que o nobre Ministério da Saúde desse uma olhadinha nos municípios que têm metas de vacinação de 134, de 120 – porque se anotam duas vezes. Anotam na rotina e anotam na campanha. Deem uma olhadinha no problema, precisamos ter uma comissão de alto nível para discutir programa de vacina. Há vinte e dois anos não há pólio no Brasil. Mas, para aqui, trazem vacina velha, importada, norte-americana, para espetar nas nádegas dos meninos, contra pólio. Isso é um grande negócio para os laboratórios, mas não para os doentes. Obrigado e nos desculpem pelo desabafo. 35


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Dr. Antônio José dos Santos. Sou Diretor de Formação Profissional e Residência Médica e diretor do nosso sindicato. O financiamento da saúde pública do Brasil é pífio. O Governo quebrou lanças para impedir a aplicação da taxa de 10% da receita corrente bruta, o que está levando à perda de setenta bilhões de reais em médio e longo prazo. Pior do que isso, não tem coragem de investir em uma carreira nacional, com segurança profissional e condições de trabalho, com piso salarial decente. Está investindo em um programa que leva médicos jovens e despreparados para o interior do Brasil, que lá não vão ficar, vão permanecer no máximo dois anos. Recebem 10% de bônus ao fazer provas de residência médica. Já é certeza absoluta que a pessoa vai, mas sem fazer vínculo, porque ela vai receber 10% de bônus para fazer sua prova de residência para cada ano do programa, até dois anos. Também, estatisticamente, já está aprovado que esses bônus modificam qualquer concurso de residência no Brasil. Esse programa não resolve e ainda destrói nossa esperança de haver uma carreira nacional. Estamos com o movimento Saúde Mais 10, que foi lançado pela Associação Médica Brasileira e acolhido por outras entidades médicas. É preciso obter mais de doze milhões de assinaturas para mudar esse panorama. Se os Estados têm que usar 12% e os Municípios 15%, nada mais justo que o Governo Federal aplique sua cota proporcionalmente de 10% para fazer saúde pública de boa qualidade. Não se fez a saúde suplementar para substituir a responsabilidade do Governo. Há que se fazer um sistema único exemplar, copiado no mundo inteiro pela sua qualidade de concepção em que a saúde é direito de todos e garantida pelo Governo. 36


ANAIS • Ano IV

Nosso PIB não tem crescimento. Estagnamos a verba da saúde. Se, por acaso, for verdade a afirmação de que temos 9% do PIB investidos na saúde brasileira, certamente esse dinheiro não sai dos cofres públicos. Eu quero chamar a todos aqui presentes para fazer uma cruzada: defender uma carreira nacional para o Sistema Único de Saúde, com concurso público, estabilidade, segurança profissional e qualidade para que se possa trabalhar aos moldes de outras carreiras como a dos militares e as da Justiça. Qualquer médico que se forme em qualquer lugar do mundo e queira trabalhar no Brasil será muito bem-vindo, desde que se submeta a um processo de qualificação, mostre conhecimentos e conheça a língua brasileira e o Sistema Único de Saúde.

Dr. Emmanuel Cícero. Boa noite a todos. Trabalho com tecnologia, e a tecnologia é importante, não só no diagnóstico precoce das doenças, como no tratamento, desde que usada com bom senso. Mas o que temos visto como médicos do Sindicato, nas visitas semanais a diversas unidades de saúde no Distrito Federal, é uma fila imensa de pacientes desassistidos, médicos trabalhando em condições insalubres, com falta de material, de segurança, de equipamentos e pacientes reclamando. Existe um grande paradoxo: de um lado, temos uma medicina sofisticada e, do outro, filas imensas nos prontos-socorros e nas UPAs. Na verdade, não se precisa de tanto recurso para atender esses pacientes. Precisa-se de médicos bem formados, com tempo suficiente para ouvir o doente, examiná-lo e explicar a ele o resultado do exame médico. Mas, o que está acontecendo? Está se perdendo a relação médico-paciente. Consequências disso: processos judiciais e medicina defensiva. O que se faz? 37


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Tome exames complementares, exames e mais exames. Então, a medicina se torna inviável.

Dr. Cid Carvalhaes. Eu peço ordens para poder falar. Gostaria de cumprimentar Dra. Janice, Dr. Gutemberg, saudar Dr. Fausto, cumprimentar os acadêmicos do Brasil e trazer o respeito da Academia de São Paulo. Quero fazer algumas considerações. Sem dúvida nenhuma, o estado da saúde no Brasil é caótico, é extremamente complexo. Partimos do ponto essencial de que nos falta uma política de Estado para a saúde. Faltando tal política, todas as outras posições acabam sendo atropelos decorrentes do vício de origem essencial de nascimento. Vamos enfrentar algumas dificuldades em relação ao financiamento. O argumento do Sr. Ministro da Saúde, quando encaminhou favoravelmente a votação da regulamentação de venda de títulos ao Congresso Nacional relatou que o orçamento de 2010 com prática para 2011 havia déficit orçamentário de 45 bilhões de reais dentro do Ministério da Saúde. Outro aspecto de relevância é que a capacidade instalada é extremamente complexa, difícil, e está sucateada de norte a sul no País. Não temos um processo devidamente direcionado em um planejamento das ações. É verdade que sobressaem a medicina preventiva e a saúde coletiva. Mas a saúde individual peca por falta de planejamento. Criamos uma dificuldade enorme no atendimento básico da saúde, que é precário e tentamos conseguir minimizar, criando unidades de pronto atendimento que, em realidade, representam o que eu chamo de antessala do IML com luz acesa. Realmente terrível. 38


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Temos uma política de recursos humanos deplorável. Vou falar da minha cidade. Eu me sinto muito mais à vontade para falar sobre seus problemas. O salário base de admissão à Prefeitura de São Paulo – que tem hoje o orçamento da saúde na casa de oito bilhões de reais, orçamento maior do que alguns estados da federação – é de R$1.273,00 por uma jornada de vinte horas de trabalho. O Governo do Estado lançou um projeto de carreira de Estado para o médico, e o Hospital das Clínicas de São Paulo publicou um edital abrindo as inscrições para concurso médico. O salário inicial no Hospital das Clinicas, da Universidade de São Paulo, para vinte horas semanais é de R$1.900,00. Diante de uma situação caótica dessa ordem, ou enfrentamos o problema sem arremedos de solução ou vamos aprofundar o caos. Quando falamos em número de médicos no País, não focamos que, segundo alguns dados da enfermagem, faltam cerca de trezentos mil enfermeiros e técnicos de enfermagem no País. Como se médico fosse panaceia, retirado bem do centro do Olimpo, onde os deuses vão benzer os médicos e teremos a condição de resolver tudo, como se fôssemos partes potentes, que resolvêssemos tudo, de todas as formas, de todas as maneiras. As políticas de recursos humanos devem incluir desde o agente da segurança na porta da unidade de atendimento até o médico, que é um líder e, naturalmente, o coordenador da equipe de saúde. Para finalizar, as academias representam indiscutivelmente o peso essencial de fomentar ideias. Lanço aqui, para provocação, que as academias brasileiras, com nosso querido Presidente Dr. Saraiva, comecem a despertar para esse aspecto essencial que é uma política pública, de estado para a saúde, que de fato coordene todos esses aspectos. Muito obrigado pela oportunidade. 39


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Dra. Maria Sucupira. Doutor, posso só dizer uma frase? É o seguinte, eu não gosto de futebol, mas a maioria aqui gosta. Se estabelecêssemos uma prioridade neste país para educação, eu garanto que não se iria gastar bilhões para se construir elefantes brancos como o de 1,5 bilhão gasto neste estádio de futebol de Brasília. Cada vez que passo por lá tenho raiva. O dinheiro foi retirado da saúde, da educação e da segurança, para escalar vinte e dois jogadores de futebol, dos mais bem pagos do Brasil, para o pessoal ficar na plateia, em casa, enfartando de raiva porque seu time não ganhou. Precisa-se estabelecer prioridades neste país. Não podemos continuar ganhando mil e poucos reais por mês. Eu sou aposentada do Ministério da Saúde, fiz estudo de carreira universitária. Por meu salário, se eu o mostrar aos colegas com quem trabalhei, vão dizer que sou débil mental. Eu não ganho cinco mil reais por mês. Isso é uma vergonha.

Dr. Fausto Pereira. Volto a comungar com um conjunto de diagnósticos que estão sendo feitos a respeito do Sistema de Saúde Brasileiro. Só que não se pode perder a perspectiva histórica sob pena de irmos para a questão do desalento. Tivemos diminuição no orçamento. Temos uma grande polêmica na Câmara, alusiva ao que é gasto com serviços de saúde. O que a Câmara acabou entendendo, com a Assessoria Legislativa da Câmara, com o apoio do Tribunal de Contas, é que um conjunto de gastos que foram realizados o ano passado, como gasto de saúde, esse ano não contabilizou. Mas, o orçamento do Ministério da Saúde este ano é maior, corrigido pelo PIB e corrigido pela inflação. 40


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O Brasil gasta 9% do PIB com saúde, mas a menor quantidade desse gasto é público, despendido na organização do sistema. O grande dispêndio do setor de saúde no Brasil é privado, ou seja, metade é gasta com planos de saúde e a outra metade é com desembolso direto das famílias, do que resulta um sistema extremamente desorganizado. É um gasto relativamente alto, se formos pensar no tamanho do PIB brasileiro, mas altamente desorganizado e com baixo impacto no sistema. Diferentemente da Inglaterra, que gasta 11%, quase 12% do PIB, mas 86% do gasto é público. Então é muito diferente. Isso dá um impacto para os ingleses certamente muito diferente. Quando se fala de 6,5 a 8% do PIB, fala-se de gasto público, porque se for gasto geral, vai criar um sistema com forte iniquidade. Quem tem dinheiro será mais bem atendido e terá acesso a uma boa qualidade de sistema de saúde. Isso acarreta um sistema muito iniquo e contraditório com os princípios constitucionais brasileiros. Agradeço a Dr. Casulari, quando se referiu aos diretores da ANS, quanto a eventual conflito de interesses – nem me citou e nem ao André, que é o atual presidente. Eu me salvei. Realmente, eu concordo com o senhor. Não quer dizer que quem já trabalhou em setor privado tenha arcado com uma demonização, mas sem dúvida, ocorre um conjunto de indefinições sobre quem está regulando o setor. Dr. André, que é o atual presidente, é de origem do movimento médico, foi do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco, estava no colegiado do Conselho Nacional de Medicina como suplente, tem uma longa trajetória de militância médica e foi recém-empossado como Presidente Efetivo da ANS. Nós temos muitas expectativas do trabalho que Dr. André vai fazer à frente da ANS. 41


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O que fazer para solucionar? Temos muitas discussões em andamento, de organização de serviços, das redes de assistência, para desenvolver maior funcionamento do sistema. Mas temos um conjunto de problemas, que os senhores mesmos relataram, entre eles, essa questão das mazelas da política local, na sucessão de prefeitos. Tivemos problemas gravíssimos, de demissão de equipes inteiras, uma renovação absurda, interrupção de projetos. É preciso se construir, no Brasil, uma lei de responsabilidade sanitária. É fundamental que tenhamos um modelo de responsabilidade sanitária, e que essas pessoas se tornem inelegíveis, que elas tenham punições exemplares para esse tipo de política ou dessa falta de política. Eu acho que uma lei de Responsabilidade Sanitária seria extremamente importante para que houvesse maior continuidade das ações e dos serviços de saúde no Brasil e fugir dessa descontinuidade administrativa. No Brasil, as descontinuidades administrativas ocorrem de dois em dois anos; de quatro em quatro entre os prefeitos; de dois em dois anos, a de Governador; depois a de Presidente. É claro que a questão da Democracia, da participação do voto e do direcionamento das políticas é extremamente importante, mas é preciso que as políticas tenham um mínimo de estabilidade para que possam ter repercussão na saúde da população. Além do déficit do financiamento do sistema, aqueles números que o Ministro apresentou na discussão de R$45 bilhões é para aproximarmos um pouco do que é o gasto chileno e, proporcionalmente, do que é o gasto argentino com a questão da saúde. Estamos, do ponto de vista público, ainda muito distantes, reflexo do desfinanciamento, como também reflexo de planejamento de muito curto prazo. 42


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Estamos sem mapeamento da capacidade instalada no Brasil, público e privado. As operadoras de planos de saúde vendem muito plano e não têm capacidade instalada para entregar o produto que vendeu. Não têm capacidade própria nem mesmo para contratar, e isso tem causado um conjunto de problemas no setor público, com a questão do desfinanciamento, da dificuldade de pagamento das instituições filantrópicas e empresas privadas que eram contratadas ao SUS. Tivemos um processo de segmentação muito importante. Hoje, o setor privado contratado é responsável por menos de 13% das internações no País e já foi responsável por mais de 40%. O setor filantrópico, com isso, cresceu sua participação. O setor público também cresceu e o setor privado fez um giro para a saúde suplementar. O setor privado é também chamado setor privado lucrativo. Mas hoje temos problemas graves de capacidade instalada no conjunto do sistema e poucos investimentos, poucos projetos importantes em andamento, neste momento no Brasil, do ponto de vista de capacidade instalada. A não ser alguns grandes hospitais, há pouco investimento público, assim como privado, do ponto de vista de melhorias da capacidade instalada e de reposta. Do ponto de vista da atenção básica, como última questão que vou abordar, estamos fazendo um investimento grande com o Governo Federal, seja na construção de novas unidades, seja na adequação de novas unidades básicas, as UBS, com a resolução 150 da Anvisa, que define um padrão mínimo, seja de reforma, seja de ampliação. A determinação da Presidente é que tenhamos uma reformulação completa até o término de 2014, uma reformulação extremamente importante na capacidade instalada das unidades básicas precárias e improvisadas que ainda temos espalhadas pelo País. 43


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É o prefeito que tem o recurso, mas não o usa. Ele o toma e não faz. Ele atrasa e não licita. Ele fica com o recurso, vai para o Tribunal de Contas. Quer dizer, ele faz um ritual burocrático e ao fim, o usuário não tem acesso àquele, e o profissional tem que trabalhar em condições inadequadas. A questão do trabalho médico e das iniciativas para ampliar o acesso à população à atenção, especialmente a atenção primária do Brasil, ninguém tem a expectativa de que nós vamos resolver o problema com uma solução mágica. Seja o Programa de Valorização do Profissional de Assistência Básica – Provab, seja a possibilidade de médicos estrangeiros, de Portugal ou Espanha, poderem vir trabalhar no Brasil. Ninguém tem expectativas de que elas sejam, por si, salvadoras da pátria. Também não é possível assistirmos sem iniciativas parte da população brasileira não ter acesso a serviços de saúde. Sabemos que nenhuma delas é definidora, mas o conjunto delas pode ter impacto positivo. Temos propostas, muitas vezes, controversas. Temos feito numerosas rodadas de discussão com as entidades médicas. Estamos dispostos a fazer todas as discussões que forem necessárias no sentido de aprimorar esse conjunto de políticas, de corrigir eventuais distorções que esses processos possam trazer. Precisa-se buscar opções para construir o Sistema de Saúde no Brasil que passou pelo financiamento, mas também passou pela questão da gestão. Não é a discussão do ovo e da galinha. Ninguém faz boa gestão sem dinheiro. Nós temos ainda uma tarefa importante para a melhoria de gestão. As questões que os senhores relataram aqui mostram isso. Isso no setor privado também, não só no setor público. O setor privado brasileiro também é ineficiente e faz política de curto prazo. Como uma operadora paga um hospital, quando 56% 44


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do ganho do hospital é taxa? Por que ela, que é grande pagadora, faz isso? Ela não sabe? Todo o mundo sabe disso. E por que ela o faz? Ela o faz por uma série de motivos. Por ineficiência, porque de outra forma é muito mais difícil, porque ela tem que sair da sua área de comodidade, ela tem que sair desse papel de intermediadora econômica para o papel de gestão muito mais apurado. Então acho que o setor privado também tem grande espaço para melhorias e é dever nosso, tanto regular, do ponto de vista do Estado, como é dever das entidades e de todos nós, que militamos na área da saúde, exigir mais qualidade e melhor desempenho nesse setor, que eu volto a dizer, tem um per capita só para assistência três vezes maior do que o per capita do SUS. Em relação à pólio, sou um dos últimos casos da pólio, eu sou da década de 60. O Ministério não tomou essa atitude sem haver nenhuma base científica. Há um conjunto de estudos, mas também há muita controvérsia. Não foi uma decisão simples. Mas há vários estudos que demonstram que a vacina injetável é muito mais eficaz que a vacina oral. Mas eu mesmo tenho dúvidas e confesso, como sanitarista, se esse é o momento de fazer esse tipo de inflexão, sabendo que existem casos de pólio no mundo. Fiquei muito preocupado com essa mudança. Acho que talvez tenha sido um pouco precipitada, diante, principalmente do processo de globalização do mundo. Uma coisa é discutir epidemia de pólio há vinte anos, quando o mundo já se locomovia de avião, mas em velocidade muito menor. Hoje, com a interação e com o trânsito das pessoas em todo o mundo, confesso que fiquei um pouco preocupado com essa mudança de forma de vacinação. Mais uma vez, obrigado pela oportunidade e me coloco à disposição da Academia. 45


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Dr. Gutemberg Fialho. Só queria fazer um comentário a respeito da gestão anterior da ANS, mencionada por Dr. Fausto. Tivemos, no ano passado, uma audiência pública no Senado em que Maurício fez apologia da medicina suplementar como alternativa ao SUS. O presidente da Agência Nacional de Saúde discursa em audiência pública no Senado e teve a audácia de afirmar que a medicina suplementar é uma alternativa ao SUS. O segundo aspecto é a questão das rentabilidades médicas. Não bastam pessoas interessadas, é preciso haver compromisso e nós não vimos isso até agora. A entrevista que o Dr. André Longo deu ao jornal do Sindicato da Bahia, em momento algum, indicou compromisso em implantar na ANS as demandas do movimento sindical. Pelo contrário, ele fez apologia à política de governo da ANS. Uma questão da contratualização de hospitais e plano de saúde com criação de pacotes. Ele foi favorável à criação desses pacotes, incluindo-se os honorários médicos entre hospitais e operadoras de saúde, sem a participação do movimento médico. Quando descobriu esse fato, resolveu suspender o processo e chamar os representantes das entidades médicas para discutir a questão dos honorários médicos. Então, mais uma vez, não é uma questão de pessoa, é uma questão de compromisso. Muito obrigado.

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PALESTRA TERMINOLOGIA MÉDICA Sessão Plenária ocorrida em 30-4-2013

PALESTRANTE DR. SIMÔNIDES BACELAR – Médico, editor adjunto e revisor de redação científica da revista Brasília Médica, Associação Médica de Brasília ACAD. JANICE MAGALHÃES. Dr. Simônides Bacelar – eu tenho sempre o prazer de ler a revista Boletim do Colégio Brasileiro de Radiologia, na qual ele sempre publica artigos sobre terminologia médica – aceitou o convite para hoje apresentar esse tema, pelo que muito o agradecemos por essa iniciativa. Dr. Simônides Bacelar. Boa noite a todos aqui presentes. Eu não poderia deixar de ser muito grato a Dra. Janice e a Dr. Saraiva, que têm ouvido minhas preces e, com isso, estou com a possibilidade de trazer aqui um assunto que necessita de ser mais cultivado por nós, médicos – o estudo linguístico metódico do nosso jargão, bem como do linguajar médico científico. Essa parte da Medicina é um pouco carente, talvez porque haja poucos autores que publiquem trabalhos a respeito e que quadrem como referência. Assim sendo, seria interessante que 47


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houvesse mais médicos que se dedicassem a essa tarefa. Meu principal propósito é apregoar esse tipo de trabalho para que outros também se dediquem ao tema e o divulguem. Tenho visto, lido e ouvido que muitos bons profissionais levam para o túmulo preciosas experiências que poderiam ter publicado. Infelizmente, talvez por questão de receio de escrever um artigo e serem questionados deixam de publicar valiosas experiências e saberes. Por interesse nessa parte da medicina, eu e mais alguns colegas começamos a fazer um trabalho como projeto de linguagem médica melhor. Iniciamos essa jornada com o professor Paulo Tubino, Titular de Pediatria Cirúrgica da UnB. Durante as apresentações de seus alunos sobre temas de cirurgia pediátrica, ele indicava as devidas correções de português quando diziam algo fora da linha gramatical. Durante todo o meu curso médico em outra faculdade, jamais alguém me apontou ou corrigiu erros de português. Eu achei útil e oportuna a atitude do Professor Tubino. Assim, comecei a fazer uma lista daqueles deslizes que ele tanto retificava dos alunos – questões de português e de linguagem médica – e um dia apresentei-lhe a lista, que ele achou interessante e solicitou-me que, durante as reuniões científicas da Unidade, eu apresentasse três questões para discussão. De vinte questões iniciais daquela lista, hoje temos cerca nove a dez mil entradas em um projeto de dicionário de questões e dificuldades em linguagem médica. O número ainda é pequeno, mas estamos fazendo crescer quase diariamente. Em linguagem médica formal, quase sempre imaginamos aquela linguagem espetacular, difícil, que impressiona os pacientes. É verdade que isso existe, mas muitos colegas, às vezes 48


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por desconhecimento de determinados tipos de estudo, julgam que certas palavras estão corretíssimas quando, de fato, não estão. Nosso objetivo não é emendar nem corrigir colegas. Não se pensa nisso, mas mostrar que existe um enfoque médico dentro da linguagem em que o profissional pode escolher ou não possibilidades menos questionáveis. É esse o principal ponto a esclarecer. Começo com Machado de Assis e, claro, os senhores sabem que ele foi um dos principais fundadores da Academia Brasileira de Letras. Graças a esta, com participação de linguistas, houve curso uma padronização da língua portuguesa que, naquela ocasião, era apinhada de ph com som de f, ch com som de k e outros casos que não mais existem. Com a Academia houve aplicação de estudos em língua portuguesa com base não apenas em Machado de Assis e outros escritores que tantos gramáticos citaram, mas em linguistas, brasileiros e portugueses, que fizeram livros sobre a padronização da nossa língua, o que culminou com um Vocabulário Ortográfico padrão que vou mostrar adiante. É bem sabido que se criou uma linguagem, que é usada no círculo da Academia Brasileira de Letras, onde se fala o português culto, uma língua padrão que, de fato, não é tão conhecida de todos os brasileiros. Bons linguistas afirmam que tal língua gramatical é artificial, o gramatiquês, que normalmente não se fala. Só em casos específicos, de formalidade. É considerada uma metalinguagem, com o sentido de língua criada para falar da nossa própria língua natural. Claro que, num ambiente acadêmico, há que se falar, fazer discursos como o nosso aqui, de maneira que sejam, pelo menos o mínimo possível questionáveis. Mas seria essa a nossa verdadeira língua? Bom, uma parte importantíssima de nosso idioma é a falada pelo Zé. O Zé, ao 49


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contrário de Machado de Assis, não é famoso, ele quer só vender o peixe dele na feira, ir para casa e conviver com a família. Mas a língua com que ele se articula é a mais famosa e usada de todas, a mais falada e conhecida – a língua do povo. Essa língua popular está no ambiente das ruas, da feira livre onde o Zé tem sua banca de peixes. Não há aquele ambiente dos círculos cultos, mas o que se fala na feira é a língua que é a verdadeira mãe da língua portuguesa. É dela que vêm, por filtragem, todas as outras formas, por exemplo, as chamadas variantes cultas. É a língua popular procedente do latim vulgar que formou o português vulgar e, desse português, alguns grandes gramáticos começaram a fazer padronizações de usos. Assim, a nossa língua real, a base, é essa que está aí nas ruas. Essa que é a verdadeira língua brasileira, língua portuguesa, é a que se ouve entre pessoas do povo. Eu trouxe exemplos de como essa língua é pitoresca. Eles dizem: “Eu amo, tu ama, ela ama, nóis ama, eles ama”. Estaria errado? Não está. Segundo os linguistas, todas essas formas fazem parte da riqueza de nossa língua e merecem todo o respeito. Veja-se, por exemplo, uma comparação com o inglês: “I love, you love, she loves, we love, they love”. A fórmula verbal é quase a mesma – love. Pouca coisa se muda. Veja-se, por exemplo, que eles dizem: “Eu ia, tu ia, nós ia, eles ia”. Como poderia o Zé do Peixe dizer – eu ia, tu ias, ele ia, nós íamos, vós íeis, eles iam? Se aprendeu no curso básico, não sabe agora como usar esse padrão. Mas eles falam fluentemente a língua verdadeira, a língua nossa popular, tão exaltada pelos linguistas. Nesse sentido, é axial que reconhecer como legítima a variante popular e não acreditar que suas expressões sejam erros. Não são erros, mas preconceitos. Elas existem e funcionam. Como 50


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analogia, uma pessoa não poderia ser errada por existir, assim como alguém que existe em região pobre não estaria errada por isso e quem nasce e vive em ambiente privilegiado não estaria correta por esse motivo. Se a língua popular existe, funciona e ainda é mãe, merece respeito e, por isso, teremos que reformular os tipos de classificação linguística como melhor ou pior. Outro tipo de linguagem é o chamado internetês. Existe e, então, temos que fazer uma boa apreciação de suas utilidades. E a língua das crianças, também existe, o tatibitate dos lactentes e das criançinhas mais jovens, que aprendem a dizer xixi, mimir, dodói e nós o usamos como médicos, mesmo entre adultos, quando perguntamos à mãe de uma criança doente: “A senhora sabe se ela está fazendo xixi direitinho?” Algo semelhante também se diz em lugar de evacuação fecal. Isso não é linguagem médica e técnica em si. É parte da linguagem geral, rica de variações, a linguagem completa, que merece atenção. Repetimos – bons linguistas afirmam com razão que todas as formas existentes na língua são patrimônio do idioma. Desse modo, vamos reconhecer que certo e errado são conceitos rejeitáveis. Adequado e inadequado são apreciações mais dentro da realidade. Assim sendo, cada tipo de linguagem tem sua adequação ou desadequação às circunstâncias de uso. Na linguagem médica, além da língua popular, usamos a língua culta. Assim como valorizamos a língua popular, é preciso valorizar igualmente sem preconceitos a língua gramaticalizada em suas aplicações. Nos artigos médicos, nas redações científicas, nos documentos, usamos essa modalidade da língua – a constante da Gramática Normativa. Essa é a língua organizada, disciplinada, é a língua cuidadosamente elaborada por notórios cuidadores da gramática portuguesa durante o decorrer de séculos. Também merece respeito e atenção. 51


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A Gramática Normativa ocupa-se então da língua padronizada, que vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada há séculos. Também tem tradição. Alguns autores disseram, por essa razão, que é a mais indicada entre outras variedades da língua para expressar formalmente as ciências. Onde se posicionaria a língua médica nesse contexto? A língua médica tem a variedade popular e a vertente culta. Existem professores médicos que fizeram estudos sobre nomes populares de doenças – como Fernando São Paulo, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, o qual elaborou um livro sobre linguagem médica popular no Brasil (1970) –, trabalhos úteis à prática médica, para compreensão do doente iletrado e com ele fluir comunicação. Do ponto de vista do relato de um trabalho científico, o panorama difere. É necessário fazer publicações em revistas especializadas. É preciso usar termos que sejam o menos questionáveis possível. Mas se encontram, infelizmente, mesmo em periódicos de alta indexação, em média cerca de dez a vinte ou mais imperfeições redacionais por página. O mesmo ocorre em quase todos os textos médicos publicados. Isso decorre em parte porque os revisores médicos não são propriamente gramáticos e os profissionais de letras, por sua vez, não são médicos. Algumas frases presentes em livros a respeito da linguagem médica com imperfeições são expostas a seguir. O professor Arnaldo Niskier, que foi presidente da Academia Brasileira de Letras, escreveu: “A língua portuguesa tem sofrido agressões vergonhosas. Não é o povo que fala do seu jeito peculiar, mas profissionais liberais, formados em nível superior, que não sabem se expressar, escrevem mal e são pouco afeiçoados à leitura.” Outro texto, este do professor Mangabeira Albernaz, professor de Otorrinolaringologia da Faculdade Federal do Rio de 52


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Janeiro, já falecido, em seu livro Questões de Linguagem Médica: “É doloroso dizer, mas os erros da linguagem dos médicos estão, em grande parte, na dependência direta do pouco conhecimento que têm da língua portuguesa. Falta-lhes simplesmente ginásio, pessoas de instrução de nível superior denotam deficiência evidente da instrução secundária.” Esta outra citação é mais recente, de maio de 2009, do professor Marcos Boulos, Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias, diretor da Faculdade de Medicina da USP. Ele escreveu: “Temos cada vez mais médicos que cometem erros graves de português ao aviar uma receita médica. Não possuem uma base cultural adequada.” Desse modo, a terminologia médica torna-se causa de interessantes debates, ao menos nessa parte formal de relatos científicos, que lamentavelmente tem insuficiente fluxo editorial. Lemos em alguns livros, numa página ou noutra, a respeito de redação científica, sobretudo em livros de Metodologia Científica. Registram que a falta de precisão da linguagem: – dificulta a delimitação dos conceitos (não se sabe exatamente do que se fala); – conduz a baixo poder de discriminação (porquanto os termos não são exatos, o sentido se torna mais generalizado); – impossibilita diálogo crítico (há dúvidas com o que se refere); – faz os interlocutores desconhecer se estão se referindo ao mesmo objeto ou não; – mantém isolamento subjetivo. 53


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Estou certo de que todos nós aqui conhecemos os pilares básicos da redação científica. São estas fórmulas simples, dadas em poucas palavras: clareza, objetividade e concisão. A clareza implica precisão. Vamos ver o que significam. Dentre os preceitos básicos, deve haver: um nome para cada elemento. Preferir significações denotativas. Muito se usa um nome de doença que traz vários sentidos, como trasorelho, caxumba, papeira, parotidite, parotidite epidêmica, PE, parotidite infecciosa e orelhão; doença de Parkinson, paralisia agitans, paralisia trêmula. Com vários nomes, pensamos que se trata de doenças diferentes. Seria ideal cada afecção ter um nome e cada nome significar uma doença. Posto isso, se devem preferir as significações denotativas, ou seja, a significação principal de cada nome. Como saber qual seja esta? É simples. Geralmente a denotativa, aquela que é exata, é o primeiro significado em registro no verbete correspondente nos dicionários. É o significado número um, que os dicionaristas assim consignam por ser o mais usado. As outras significações são figurativas ou por extensão, regionalismos e até gírias. É oportuno acrescentar um detalhe. Os dicionaristas dão nota de todas as possibilidades de sentido existentes na língua. Comumente, quem compra um dicionário, não o quer para saber se uma palavra é boa ou má. Busca a significação das palavras. O dicionarista não é um polícia da linguagem. Ele vai escrever ali o que o povo usa. O dicionário não é, assim, a fonte ideal para procurarmos os termos corretos. Teremos que verificar em outros tipos de estudo, em artigos ou livros filológicos, gramaticais, semânticos, etimológicos, linguísticos, lexicográficos. Consultar apenas um dicionário é insuficiente. Frequentemente é necessário compulsar vários e em várias línguas. 54


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Para um autor em busca de termos adequados existem várias fontes padrão que se podem usar para consultas. Eu trouxe alguns exemplos. Muitos autores não conhecem o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, organizado sobretudo por profissionais de Letras da Academia Brasileira de Letras. Tem baixo custo, cerca de duzentos reais, e é ali que está o padrão legal da ortografia da língua portuguesa. O livro dá uma série de vocábulos, conforme os senhores estão vendo, em quatro colunas por página, em que aparece como se escreve cada palavra, se é do gênero masculino ou feminino e até, às vezes, indicam o som da palavra. Por exemplo, se diz obêso ou obéso? Segundo esse livro, se diz obéso, não obêso, embora isso seja questionável, porquanto muitos pronunciam obêso e essa prosódia faz parte da língua. Mas obéso se torna a pronúncia oficial. Essa ortografia passou a ser adotada, nos documentos oficiais, em razão da Circular de 5-7-1946 e foi instituída em caráter obrigatório pela Lei n.º 2.623/55, assinada pelo presidente João Café Filho e promulgada pelo Congresso Nacional. Portanto, o que está escrito no VOLP é oficial, é a ortografia de lei. Outra forma de padronização de linguagem que usamos é a Terminologia Anatômica. Esse livro traz os nomes das estruturas anatômicas com o norte de unificação dos termos anatômicos. Os autores omitem os epônimos. Por exemplo, tendão de Aquiles não existe nesse livro. O nome anatômico é tendão calcâneo. É uma obra elaborada pela Sociedade Brasileira de Anatomia, fundamentada no livro chamado Nomina Anatomica, que é periodicamente renovado, escrito em latim e é de âmbito internacional. Um colégio internacional de anatomistas, atualmente o Federative Committee on Anatomical Terminology, elabora a Nomina Anatomica em língua latina e, em cada país, se faz a 55


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tradução para a língua pátria. No Brasil, edita-se como Terminologia Anatômica. Um dos estudiosos mais aplicados à linguagem médica, atualmente em atividade, é o professor emérito da Universidade Federal de Goiânia Joffre Marcondes de Rezende. Durante trinta anos, foi editor da Revista Goiana de Medicina quando estudou detidamente termos médicos. Publicou um livro temático, Linguagem Médica, já na quarta edição, em que expõe como fazer estudo metódico desses termos, desde seu conteúdo histórico com seus primórdios até nossos dias. Esse tipo de estudo é pouco divulgado. Alguns autores médicos aplicaram-se a esse tipo de pesquisa, sobretudo no começo do século passado, como Pedro Augusto Pinto, Pedro Antônio Basílio, Paulo Mello, Plácido Barbosa, Mangabeira Albernaz. Geralmente, os linguistas profissionais verificam se e como a palavra é usada e tendem a adotá-la conforme o uso atual. Nesse contexto, reitero que o professor Joffre Rezende reuniu em seu livro estudos sobre termos que muitos pensam estar corretos, mas quando se debruçam em estudos mais profundos verificam que há muitos questionamentos, que existem formas mais adequadas. O professor Maurício Gomes Pereira, aqui presente, é um estudioso de editoração científica. Professor, somos muito gratos pela existência do seu livro Artigos Científicos Como Redigir, Publicar e Avaliar, recentemente editado, uma maravilha de conteúdo, sobre como editar trabalhos científicos. Eu tenho esse livro como uma espécie de marco temático. Não conheço outro melhor, que nos norteie como escrever e publicar, tomando-se a visão do editor. Existem milhares de livros sobre metodologia de pesquisa. Sabe-se bem como fazer um trabalho científico. Mas, ao enviar para publicação, muitos relatos voltam ao autor para reformulação. Alguns são rejeitados. 56


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Numa revista de alta indexação e impacto, como o New England Journal of Medicine, recebem-se centenas de artigos por mês para publicar menos de cem. Não seria prático que seus editores lessem todos detidamente. Por essa razão, a editoria escolhe artigos que são mais claramente escritos ou pelo nome de autores mais conhecidos e por aí além. Ocorre que, às vezes, excelentes trabalhos, por estarem mal redigidos podem ser devolvidos sem explicações. Apenas relatam que o artigo não é da área da revista ou dizeres semelhantes. Muitos trabalhos são referenciais, mas às vezes são publicados em revistas de menor impacto porque os autores, diante das dificuldades, ficam desestimulados a insistir junto aos periódicos de grande impacto. Assim, surgem alguns problemas com foco em editoração científica, quando os editores se veem verdadeiramente às turras com os autores. É preciso explicar editoração. Daí, creio que um livro sobre editoração científica vem em auxílio quanto aos conhecimentos sobre a visão do editor. É preciso conhecer essa visão, assim como a visão do pesquisador ao elaborar um relato de investigação científica. É oportuno dizer que um autor muito ganharia em participar de uma editoria de periódico científico e conhecer bem como se publica uma revista desse teor, ou seja, a editoração científica. O editor tem interesses justíssimos. Ele anseia que haja leitores satisfeitos ao ler suas edições. Não há avanços em publicar sem leitores interessados. Observa-se, nesse contexto, que são raros os livros sobre editoração científica. É uma área carente de editores que escrevam e publiquem sobre suas questões como editores, para que os autores conheçam as questões conexas à atividade e produzam artigos com novidades interessantes, concisos, claros, objetivos, que atraiam leitores. 57


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Observa-se que o item de instrução para autores, constante de diferentes revistas, é basicamente semelhante, mas entre elas há muitas variações de exigências necessárias, o que pode constituir intensa atribulação para autores submeterem seus manuscritos a distintas editorias. Este livro sobre artigos científicos é praticamente um guia completo. Trago algumas observações práticas sobre terminologia médica. Herniorrafia ou herniotomia? Mostro nesta projeção uma criança com hérnia inguinal bilateral, que foi depois operada. Muitos se referem a herniorrafia, herniotomia ou inguinoplastia. Qual seria o melhor nome técnico? Todos estes parecem bons à primeira vista que, pelo seu uso generalizado, merecem seriedade e estão corretos do ponto de vista linguístico. Mas existem problemas a considerar. Herniorrafia, ante a definição de hérnia como “protrusão de elementos internos através de um orifício anômalo dentro do organismo”, é nome questionável. Rafia significa sutura. Se fizermos literalmente uma herniorrafia, o paciente estará em maus lençóis. Sutura-se a estrutura que está ali, o contrário do que o cirurgião quer realizar. Herniotomia é, literalmente, procedimento pior ainda. Corta-se a hérnia – o que seria absurdo. Vamos cortar o intestino que forma a hérnia inguinal. É isso que herniotomia significa em rigor semântico. Do grego tomé, cortar. Contudo, todos esses nomes são usáveis, pois não se vai confundir herniorrafia com sutura da hérnia e nem herniotomia com corte da hérnia. Mas, do ponto de vista etimológico e literal, esses nomes são questionáveis, imperfeitos. 58


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No entanto, inguinoplastia pode ser melhor nome. Do grego plastein, modelar, em verdade, é o que o cirurgião faz, isto é, remodela as estruturas da região. Diante disso, inguinoplastia é o termo mais adequado. Raio x, radiografia, actinografia ou roentgenografia? Comumente se diz raio-X. O povo fala “rao-X”. Qual o melhor nome? Não encontrei ainda em nenhum dicionário raio-X como sinônimo de radiografia. Pode ser que exista, mas não encontrei. Muitas vezes usamos o termo radiografia. É um nome híbrido por ser composto de duas línguas diferentes radio (de radium, latim) e grafia (do grego graphein, escrever, gravar). Não é, então, o nome ideal, mas é melhor do que raio-X. Pelo menos em termos de linguagem formal. Actinografia é o melhor nome. Todos os seus elementos são de origem grega. Aktis significa raio em grego e grapho significa escrever, ou seja, gravação com raios. Mas é de uso raro. Se perguntarmos no hospital: “A senhora tem a actinografia do garoto?” Ela não vai saber o que é. Mas se perguntarmos se tem o “rao-X”, ela saberá logo do que se trata. Essa é a vantagem da comunicação em linguística. Mas, em relatos científicos formais, se pode usar actinografia ou mesmo roentgenografia, um nome de homenagem, embora pouco usado entre nós. Menos usado, mas merece tal homenagem Wilhelm Conrad Roentgen, quem descobriu esses raios em seu laboratório. O CT ou a TC? Vemos aqui, numa tomografia computadorizada, uma lesão hepática, imagem sugestiva de hemorragia, e ouvimos dizer: “o CT”, “ fazer um CT do paciente”. Seria essa uma boa referência? O CT do abdome ou o TC do abdome são termos amplamente presentes no meio médico, mas são 59


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questionáveis. Evidentemente, se podem usar esses termos que todos entenderão, o que é importante como comunicação. Mas, do ponto de vista da Gramática Normativa, diríamos tomografia computadorizada, nome feminino, cuja sigla é TC. Em inglês, computorized tomography tem a sigla CT, mas, em português, se diz “a TC”. Observe-se que é nome do gênero feminino. Eis aqui uma questão semântica que desafia a lógica. Balão, torpedo? Já ouvi dizerem torpedo de oxigênio. É contrário ao que ele serve. Torpedo é próprio para destruir e matar. O oxigênio serve para salvar vidas. E o de dimensões menores chamam de balão de oxigênio talvez porque pareça com uma bala em grande dimensão – um balão. Balão de oxigênio. Mas o nome técnico recomendável é cilindro de oxigênio ou fonte móvel de oxigênio. Seu tamanho é referenciado em metros cúbicos. Os maiores são 10 m3, 7m3 ou 6,20m3 em padrão da White Martins. Também ouvimos dizer “bala de CO2”, “torpedo de gasogênio”. Isso é a linguagem comum, popular, compreensível, mas seria problemático escrever assim em relatos científicos formais. O CID ou a CID? Outra observação temática é a respeito da sigla CID. A maioria dos médicos que tenho ouvido diz “o CID”. Mas CID significa – Classificação Internacional de Doenças. Logo não é “o CID”, diz-se a CID. Mostro nesta projeção uma placa em um mural de importante hospital da cidade, em que consta: “Prezados colegas, favor colocar o Cid nas fichas GAE. A chefia.”. Também se diz “número do CID”. Mas, como se trata de um código com letras e algarismos, podemos citar código da CID, o que está correto. Por exemplo, A-46 é o código da CID para erisipela. Mas não “o CID da erisipela”, pois não se diz “o classificação”. Isso poderia ser precário em relatos oficiais. Pode-se 60


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dizer que “o CID” quer dizer abreviadamente o livro ou o código da CID. Mas isso traz ambiguidade, um vício de linguagem, um evento impróprio aos textos médicos formais. Quando se diz “o CID” pode significar implicitamente o (código da) CID, mas em registros formais, em lugar dessa suposição, opta-se pela clareza: a CID ou o código da CID. Penrose ou Pen rose? O cirurgião conhece bem o que seja um dreno de Penrose. Mas encontram-se na literatura esses tipos de escrita: Pen Rose, penrose, pen-rose. Como exemplo prático, aqui mostramos uma criança que operamos, vítima de queda de um tanque de concreto sobre o tórax. Houve explosão do esôfago com ruptura extensa do órgão. Suturamos a lesão e instalamos esses drenos de Penrose para drenagem de secreções. A criança, infelizmente, não sobreviveu à mediastinite grave consequente à lesão. O nome provém de Charles Penrose, ginecologista norte-americano. Então, o correto é escrever dreno de Penrose ou, quem não preferir homenagear, pode usar dreno laminar de borracha – um nome raro. Papa ou concentrado de hemácias? Dizemos frequentemente papa de hemácia. Isso é comum porque papa é nome popular muito usado, logo, não é errado. Mas não vale como componente de redação científica documental. O nome técnico é concentrado de hemácias, com hemácias no plural. Não é “concentrado de hemácia” porque seria apenas uma hemácia concentrada, o que não constituiria realidade. Igualmente se dizem concentrado de plaquetas, concentrado de leucócitos e similares, não papa de plaquetas ou papa de leucócitos em regime formal. A acepção própria de papa é alimento em forma de mingau, porque parece mingau. Em rigor, equivale a mingau 61


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de hemácias. É antigo esse termo papa. Vem do latim pappa, alimento na linguagem infantil. Hemáceas ou hemácias? Esta fotografia em projeção nos mostra um formulário para pedidos de hemotransfusão em que está escrito “hemáceas”, com “e”. Um pedido de sangue muito comum em Brasília. Já observei em prontuários a forma hemáceas, talvez por influência da erronia contida no formulário. Deve-se escrever hemácias, como está nos dicionários. Respirador mecânico ou ventilador mecânico? É outro problema de uso que contemplamos. Muitos dizem respirador mecânico. Seria o nome certo em termos técnicos científicos? Bons dicionários, como o Aurélio, registram como respirador. Ventilador mecânico e ventilação mecânica são expressões mais adequadas. Respirar é função orgânica. O aparelho de fato não respira, mas ventila. Logo, o nome adequado, do ponto de vista do padrão culto ou técnico, é ventilação mecânica. Podem ser: ventilação mecânica (auxiliada) ou respiração assistida (regulada), isso faz parte da língua médica. Ostomia ou estomia? Este cartaz eu vi em um hospital com os dizeres: “Ostomia, viver e não ter vergonha de ser feliz”. Penso que todos compreendem o que seja “ostomia”. Em ortografia, no entanto, se escreve estoma ou estomia, nomes científicos adequados. Estoma vem do grego stoma. Significa boca. Forma-se então com a adição do “e” prostético – estoma, não ostoma. Não se diz “ostomatite”, mas estomatite. Não há “ostomódio”, mas estomodeu. Nem “ostomatologista”, escreve-se estomatologista. Não se diz ostomatoterapeuta e sim estomatoterapeuta. Dessa maneira, por que ocorre a grafia “ostoma”? 62


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Bom, ostoma ocorre porque se escreve ileostomia, ureterostomia. Assim sendo, o não conhecedor de composição vocabular infere que “ostoma” é correto. Mas ileostomia vem de ileo mais estomia. O “e” de estomia é artificial ou prostético (de prótese). Poderia ser íleo-estomia ou ileoestomia, mas ileostomia, com subtração do “e” artificial, é o nome dicionarizado. Dicionários de referência dão registro de estomia, estoma, mas não há “ostoma”. O termo ostomia é irregular por conter o “o” prostético, próprio dos elementos de composição de origem grega, e este usurpa o lugar do “e” prostético próprio de estomia, o que é desconforme à norma de formação vocabular. Analogamente, quando desmembrado, ureterostomia vai dar uretero e estomia. Patologia ou doença? Conhecemos o que patologia significa exatamente – estudo de doenças. É uma palavra muito divulgada entre nós, médicos. Não é errôneo seu uso como sinônimo de doença, já que essa significação está muito espalhada e tornou-se um fato da língua. É preciso observar que livros norte-americanos, ingleses, franceses, portugueses, brasileiros dão registro de patologia como sinônimo de doença. Não verifico, entanto, nos dicionários médicos, patologia como sinônimo de doença, exceto em um dicionário médico catalão, que consultei em Sitges, Espanha. Encontrei ali patologia como sinônimo de doença, um caso raro. No entanto, é necessário acrescentar que há questionamentos a respeito dessa sinonímia. No dicionário médico de Garnier Delamare, está escrito sobre patologia que “este termo é frequentemente empregado incorretamente no sentido de doença ou mesmo de anatomopatologia”. Naturalmente esses termos são formados como se fossem nomes técnicos, e o profissional supõe que seja mais adequado patologia como 63


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nome técnico. Podemos dizer qual o nome médico e científico mais adequado de acordo com a praxe de formação vocabular científica. Doença pode não ser realmente doença. O professor Joffre M. Rezende anotou, em seu livro, que doença é aquilo que dói. Enfermidade, anotou que vem de infirmus que, em latim, significa fraco, que não é firme. Então, se o paciente não tem fraqueza não poderia ser enfermidade. Morbidade é qualidade do que é mórbido. Qual seria o termo mais adequado? O que eu tenho visto, lido e ouvido é morbidez, que vem do latim morbus, doença, mal-estar. Mas quase ninguém usa. Seria difícil sua aceitação como nome preferencial. Visto isso, ficamos com doença, enfermidade, morbidade, afecção ou nomes mais específicos como neuropatia, pneumopatia, dermopatia e outros. Patologia tem sido muito questionável como nome técnico. Vamos a outros problemas que vemos em relatos médicos, como são as ambiguidades. Por exemplos, vemos nos prontuários e outros documentos de medicina frases como: Paciente refere queda da própria altura. Parece que foi a altura do paciente que caiu ou diminuiu. O que é um dizer ambíguo, objetável, impreciso. Em verdade, o paciente refere ter caído da própria altura. Aí, então, a queixa fica muito lógica. Os pacientes diminuíram no ambulatório. Parece que quando eles foram ao ambulatório, diminuíram de tamanho, o que é contrassenso. Diminui-se o número de doentes, mas não os próprios pacientes. Foram utilizados cadáveres com idades entre quarenta e sessenta anos. Não é bem assim. Na realidade, a pessoa ao morrer torna-se um corpo, um cadáver. O que se quer dizer é 64


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que certa pessoa morreu com idade de 40 a 60 anos, não é bem o cadáver que tem tais idades, o que ocorreria com as múmias. No dia 24 de novembro, uma das nossas funcionárias, por motivo de saúde, ausentou-se do trabalho, deixando sobrecarregadas duas outras atendentes. Fica a parecer que, nesse serviço, só trabalharia pessoa doente. Com saúde teria que ter atestado. Pode-se dizer ausentou-se por motivo de doença ou por agravo à saúde. É desnecessário mencionar motivo de saúde. Sintomatologia dolorosa. Aprendemos no livro sobre semiologia médica, do professor Celmo Porto, por exemplo, que sintoma é aquilo que o paciente sente. Dor, náusea são sintomas. Quando o médico faz exames físicos, encontra sinais. O que existe como desambiguação é sinal e sintoma, eventos distintos, termos que vão tornar mais claro o relato médico. Mas cita-se sintomatologia como conjunto de sinais e sintomas. Não é errôneo, porque todos entendem o significado. Usa-se muito, mas é questionável por ser termo ambíguo. Pode-se dizer simplesmente dor, que o paciente está com dor. Sintomatologia dolorosa é expressão pomposa e imprecisa. Sintomatologia traz o termo grego logos que significa estudo. Literalmente a expressão significa que o estudo dos sintomas é doloroso, dói, o que não é correto. Dor na topografia do rim direito. Topografia significa aquilo que se escreve sobre determinada região. Vem do grego gráphein, escrever. Logo, melhor dizer: “Dor na área ou na região do rim direito”. Dizer dor na topografia do rim direito, literalmente significa que existe dor no lugar onde está descrita a região, suas delineações em anatomia. O que não é verdade, pois um caderno ou um livro não sentem dor. 65


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Evoluir o paciente. Está cada vez mais amplamente usada essa expressão entre nós. Mas, em nenhum dicionário da Língua Portuguesa, encontrei evoluir no sentido de anotar, descrever. Nem nos dicionários médicos. Então, quando se diz: “evoluir o doente” significa fazer as anotações no prontuário sobre a evolução do quadro clínico do paciente, o que configura gíria. Pode-se mudar: “Foram feitas as anotações no prontuário do paciente”. Evoluir significa passar por transformações, seja para pior, seja para melhor, embora seja muito usado no sentido de melhorar. O médico não pode, assim, “evoluir” o paciente. É a doença que evolui para pior ou para melhor, não o próprio doente ou o médico. Trata-se de inferência vocabular tendo em vista as expressões “Folha de Evolução” ou “Evolução Médica” existentes no cabeçalho dos formulários próprios para anotações médicas, que se referem à evolução da doença, não às próprias anotações. Colher gasometria. Dito coloquial, impróprio para constar em documentos formais. Seria como, ao se fazer uma punção venosa, viesse o laudo, visto que gasometria é um laudo com os resultados dos exames. Em realidade, o que se quer dizer é colher sangue para gasometria. Mas se compreende que isso é um modo de se expressar. No entanto, não se pode escrever algo semelhante numa redação formal, como é tudo aquilo que se deve escreve nos prontuários, pois se trata de redação documental destinada a comprovações médicas, administrativas, judiciais, policiais ou a qualquer pessoa que o doente desejar. O que se escreve nos prontuários pode um dia ser lido, avaliado, comentado, transcrito e citado por profissionais letrados, médicos, administradores, juízes, advogados, promotores, delegados, inclusos pacientes cultos. 66


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Anemia severa ou grave? Anglicismos se veem com frequência. São bem-vindos e muito acrescentam ao patrimônio do idioma. É preciso consubstanciar a liberdade linguística. Mas é axial evitar que substituam os nomes de casa desnecessariamente, sobretudo como forma preferencial de termo técnico ou científico. Anemia severa é questionável. Em inglês, é correto dizer severe anemia, mas em português severo significa sisudo, austero, sério. Não se diz anemia sisuda ou austera. Pode-se dizer anemia grave ou intensa. Há procedimento padrão para traduzir procedimento standard. Por obtenção do gold standard, podemos dizer padrão-ouro. Borda mesenterial é inglês. Em português, se diz borda mesentérica. Isso existe talvez por influência de tradutores e assim o aceitamos. É também questionável o termo “borda” em referência a uma estrutura cilíndrica com é o intestino. Naturalmente, os internacionalismos são bem-vindos. Mas se existem termos de casa utilizáveis, estes poderiam ser os preferenciais, mormente em textos formais. Expressões questionáveis Diagnóstico através do exame. Parece, com isso, que alguém atravessou o exame para fazer o diagnóstico. Não é bem assim. É mais adequado dizer por intermédio, por meio de, mediante. Através significa atravessar. Poderemos usar, mas há muitos críticos a respeito desse uso. É recomendável evitar essas objeções. Metástase envolvendo o fígado. Isso é bem problemático. É o contrário, pois o fígado verdadeiramente envolve a metástase, de modo que dizer atingindo, afetando, acometendo é bem mais adequado. 67


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Duzentas gramas. É muito comum o uso de grama, unidade de massa no sistema cgs, com gênero feminino, mas as palavras gregas findadas em -ema ou -ama como, grama, cinema, telefonema e semelhantes – são masculinas. Então, em registro padrão, dizem-se duzentos gramas, dois grama, um grama. A grama se refere às gramíneas. Haviam pacientes. O verbo haver, no sentido de existir, não tem plural. Então vai ser – havia pacientes, haverá pacientes, houve muitos doentes. Bolsa escrotal. É um pleonasmo muito usado. Muitos desconhecem esse detalhe, mas escrotum era uma espécie de peça de couro que os latinos usavam para carregar alimentos. Visto isso, mencionando-se bolsa escrotal é como se disséssemos “bolsa bolsal”. É de bom senso cultural pesquisar o significado de termos estrangeiros para evitar desconcertos. A Terminologia Anatômica traz escroto, o que faz esse nome ser preferencial. Gírias Bexigoma. Não conheço nenhum dicionário que dê registro de bexigoma. Não se caracteriza como um tumor da bexiga. Em verdade, a bexiga apresenta repleção ou distensão vesical. Não é errado esse termo, pelo seu amplo uso, mas configura gíria. Laparotomia branca. Não é boa expressão. Melhor laparatomia não terapêutica. Branco vem do germânico antigo blank, que significa brilhante. Não seria uma laparotomia brilhante, pois não se encontrou nada à laparotomia. O médico não diria que a laparotomia fora brilhante. Em cunho popular, branco indica 68


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nada, como na expressão “em branco”, mas é uso figurativo. O sentido próprio de branco se refere à cor. Paciente babando. É possível que os senhores desconheçam esse termo se não forem cirurgiões. Já ouvi “pacientes babando” como termo expresso em discurso formal de congresso médico. É o paciente com pequena hemorragia mas constante, no ato operatório, que parece estar babando. É uma metáfora. Pode-se pensar que o paciente é neuropata com sialorreia. Se não for explicado o sentido, muitos não iriam entender. Uso do H nas palavras. Palavras como adenohipófise com “h” intermédio veem-se muito em nossos periódicos. O nome se escreve com hifenização – adeno-hipótese. Em português, o “h” não vocalizado (“h” mudo é questionável, pois mudo é quem não fala) no interior da palavra não constitui ortografia. Configura cópia do castelhano ou do inglês, mas não é português de lei. Escrevem-se imuno-histoquímica, onco-hematologia, neuro-hipófise, não imunohistoquímica, oncohematologia, neurohipófise. Em rehidratação se pode suprimir o “h” e escrever reidratação. Portanto, é preciso ver nos dicionários como se escreve o nome em dúvida para evitar questionamentos pelo uso de grafias fora do nosso padrão gramatical. Pleonasmos São comuns. Copiei de artigos publicados os seguintes dizeres: Contusão traumática. Inexiste existe contusão que não seja traumática. Não se precisa dizer dessa forma, embora seja 69


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muito usada. Pode-se dizer apenas trauma. Traumatismo é uma condição em que há trauma. Há anos atrás é termo muito criticado em gramática. Muita gente usa essa expressão. Não é errado esse uso como fato linguístico. Mas, quando se diz “há anos” indica-se que é passado. Pode-se também dizer apenas “anos atrás”. Tecido celular subcutâneo. Na Terminologia Anatômica, não se usa esse termo. Usa-se tela subcutânea. Todo tecido é celular. É um termo bem usado, mas não passa senão por pleonasmo. Pausa para o coffee break. Observe-se que break em inglês significa pausa. Não é preciso dizer senão que vai haver um coffee break. Pequenos detalhes. Não é bem correto. Tudo quanto é detalhe é pequeno. Não existe o grande detalhe, a menos que se deseje enaltecer um determinado pormenor. Mas não configura bom português. Assim sendo, basta dizer detalhes ou então todos os detalhes. Dizer “mínimos detalhes” também é usar de pleonasmo. Cacófatos Observem-se estes exemplos: Como as mamas na gestação. É preciso ler duas vezes o que se escreve. O autor escreveu e não deve ter lido. Encontrar um achado na operação. Soa de modo muito estranho, como “um machado”. 70


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Taxa achada. Parece algo malfeito ou semelhante. Alta taxa. O “tá-tá” é uma colisão, um vício de linguagem. Por essa razão, se pode dizer taxa elevada. Pagar por cada médico. Parece que existe algo relacionado a “porcada”. Se diz mais adequadamente “pagar cada médico” ou “pagar por médico”. A taxa foi de 10% dos pacientes. “Foi de” sugere um nome muito obsceno, muito incômodo. Pode-se dizer: foi 10%. É comum essa expressão, mas quando se lê com rapidez se nota o cacófato obsceno. Termos risíveis Via de regra. Imagina-se outra conotação, em duplo sentido, como via vaginal. Retroalimentação. Infere-se alimentar por trás, algo bem impróprio. Solecismos Vemos muito tais expressões mesmo em termos formais, o que constitui solecismo. Observem-se as expressões a seguir. Feito radiografia. Melhor: Feita radiografia ou foi feita a radiografia. O verbo tem que concordar com o sujeito. Diagnosticada hipospadia, não: diagnosticado hipospádia. 71


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Realizada biopsia, e não: realizado biopsia. Operada a tireoide, e não: operado a tireoide. Iniciada a quimioterapia, e não: iniciado a quimioterapia. Iniciada infusão venosa, e não: iniciado a infusão venosa. Essa é uma questão muito presente em relatos médicos, e que é necessário cuidar para evitar justos questionamentos. É preciso observar a harmonização entre verbo e sujeito. Os tempos verbais compostos formados com os verbos ser e estar variam de acordo com o sujeito: Foram vistos exames. Foi operada paciente em estado grave. Foi feito trabalho correto. Estivemos ocupadas ontem. Está operada a doente. Com os verbos ter e haver, não ocorre flexão de gênero ou número com os particípios usados: Tenho visto muitos doentes. Tínhamos operado doentes em estado grave. Temos feito várias radiografias. Havíamos feito operações difíceis. Tem havido confusões. Quando se muda a posição do sujeito, nota-se claramente a impropriedade: Foi feito as radiografias. “As radiografias foi feito” (As radiografias foram feitas). Foi utilizado compressas. “Compressas foi utilizado” (Compressas foram utilizadas). Gregarismo É uma razão pela qual os autores, mesmo sabendo que certo nome não é o melhor, ele é induzido a usar. Sabe-se que isso é um efeito do sentido inato de autoproteção, herdado de nossos ancestrais, pois precisamos de auxílio mútuo para sobreviver. É uma sociedade solidária. De fato, aquele que usa termos fora do 72


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comum, pode sofrer discriminação, e há receio de isolamentos. Para se sentir integrado, protegido, o indivíduo usa termos comuns a todos. É comportamento bem justificável e correto. Mas é preciso que, pelo menos de vez em quando, sejam usados os nomes mais apropriados, que se faça uma seleção cuidadosa, que gradativamente possa esta ser implantada dentro do meio social e da classe profissional até que seja comumente aceita. Diante desses fatos, é bem habitual ouvir dizer: “Está errado, mas todo mundo usa assim”. “É assim que está na literatura”. “É assim que eles dizem”. “É assim que sempre vejo por aí”. Mas é preciso atentar para outros aspectos talvez mais interessantes, como os que seguem. Um termo imperfeito não se torna perfeito se amplamente usado. Torna-se uma imperfeição amplamente usada. Procurar aperfeiçoamento não poderia ser atitude imperfeita. Não pode ser errado procurar se aperfeiçoar. É mais vantajoso escolher termos sobre os quais não haja questionamentos. Em quase todos os casos, isso é possível. Podemos escolher, após consultar dicionários ou procurar um linguista ou profissional de letras que se dedique à terminologia técnica e científica. O contrário pode ser motivo de descontentamentos. Em ciência, é importante não expressar uma coisa que significa outra, fato comum no uso geral do idioma. Quando se diz: “Pois não”, sabemos que significa sim. O contrário significa não. Mas não se pode ter imprecisões como termos técnicos ou científicos. É muito questionável. 73


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Em face dessas observações, como forma de melhorar a linguagem médica, seria oportuna a inclusão sistemática do item terminologia como parte dos textos sobre doenças em livros e artigos médicos publicados, ao lado de conceito, epidemiologia, fisiopatologia, quadro clínico, tratamento, prognóstico. Creio que cabe aqui uma frase. Eu trouxe este dizer do professor Paulo Tubino, que tantas coisas nos ensinou sobre esses temas: “Se um médico é judicioso em seus procedimentos, diagnósticos, tratamentos e elegante em seu desempenho profissional, é congruente que se expresse em português de primeiro time.” Com essas observações eu queria mostrar ser preciso que falemos por meio da linguagem normal, comum, com o que se evitam atitudes discriminatórias. Mas é importante que, por motivo cultural, procuremos a perfeição ao saber o que significa de fato os termos que usamos, se estamos aplicando este ou aquele termo de maneira adequada ou não, qual o melhor termo que possa nos garantir ao menos quase total aceitação e compreensão, para assim, em última análise, alçarmos ao plano de realizadores em terminologia médica. Era isso que eu queria expor. Muitíssimo obrigado.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. O Simônides é uma pessoa muito querida por nós. Eu trouxe até a revista Brasília Médica porque nós temos até um concurso a respeito. Se alguém encontrar algum erro de português na Brasília Médica ganha uma viagem com tudo pago, porque não tem erro. Você não encontra 74


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erro porque ele tem zelo, muita atenção em nossas revisões. Quando ele manda para publicar, está tranquilo. Mas eu acho que também queria louvar o convite para trazer o Simônides aqui que é mais um modo de engrandecer a nossa Academia. Todos têm que aprender a se expressar muito bem e eu queria só dizer isso. Eu tenho muito orgulho de ter o Simônides cooperando com a gente, com a Brasília Médica.

Acad. Dr. Pedro Tauil. Eu queria aproveitar para pedir sua opinião sobre um termo que o senhor usou e que hoje algumas pessoas têm chamado de anglicismo. É o seguinte. O Cespe, que elabora questões de provas, é muito judicioso na escolha de palavras. E a palavra “sobre”, sobre este assunto, sobre essas palavras, na verdade, tem a conotação semelhante a “através de”. Deveria se dizer: “A respeito desse assunto, em virtude desse assunto” em lugar de “sobre”. Mas é anglicismo muito comum. Existe um livro famoso na área de saúde pública e epidemiologia, de John Snow, On Transmission of Cholera e esse título foi traduzido como “Sobre a Transmissão da Cólera”. Em Inglês, se usa muito on. Qual a sua opinião?

Dr. Simônides Bacelar. Conforme tanto falamos a respeito dessas ocorrências, cada vez mais testemunhamos as possibilidades da língua como eventos que não podemos dizer que sejam erros ou acertos. Os linguistas, desde o século passado, como Chomsky e outros, acharam que os gramáticos tinham métodos de ensino muito restrito à gramática e que a língua real é mais ampla. Compulsamos muitos livros e verificamos que certas coações de bons gramáticos, embora edificantes, não andaram muito bem-vindas entre os linguistas. Estudamos, quase todos nós, 75


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português gramatical de nível médio, fundamental, outrora de nível ginasial. Não temos aquele estudo de nível universitário que aborda, por exemplo, linguística aplicada, gramática comparada entre línguas, transmudações linguísticas, filologia. Seria um relevante problema fazer atualizações gramaticais frequentes. Mas o profissional médico não tem, de fato, muito tempo para estudar gramática e linguística de nível superior, porque temos atividades extenuantes para nos mantermos. Mas é preciso que haja certa orientação disponível entre nós para que possamos nos aperfeiçoar. Nesse sentido de aperfeiçoamento da língua, estou com os linguistas gramáticos. “Sobre” realmente é muito usado. Não é errônea essa utilização por causa da lei do uso, mas não é perfeição. Realmente, em vez de dizermos: “Falar sobre um assunto”, o que parece que se está sentado nele, pode-se dizer: “A respeito de um assunto”. Ninguém vai achar essa frase errônea. Está na perspectiva de aperfeiçoamento não usar sobre sempre que for possível e preferir o termo “a respeito disso” e equivalentes.

Acad. Dra Lucimar Coser Cannon. Sou acadêmica. Eu queria agradecer pessoalmente. Recentemente escrevi um editorial e o senhor fez a revisão. Eu queria lhe agradecer. Primeiro porque aprendi muito com a sua correção e tenho certeza de que ficou muito melhor o texto após a revisão. Segundo, eu queria lhe dizer que existem na área de saúde, e eu já vivi várias relações de atividades na saúde, com vários momentos na saúde, especialmente na saúde pública, e consigo identificar alguns jargões que entraram em moda. Então, quando as pessoas parece que aprenderam durante determinado tempo, vão depois repetindo, repetindo certos termos. É muito interessante e vemos isso em níveis muito altos da hierarquia de saúde ou 76


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do conhecimento em saúde. Outro dia, eu observei que iria ser publicado um documento com no mínimo vinte vezes o termo “nesse sentido”. Igualmente se repete muito “o eixo”. Esse é um jargão mais atual, mas existem vários outros dos quais não me lembro no momento. Não sei se o senhor, doutor, percebe isso no seu dia a dia. Obrigada, então, pela correção. Aprendi muito. Espero poder escrever mais e lhe encaminhar para revisão.

Dr. Simônides Bacelar. Muito obrigado pelo seu comentário. Eu me lembro bem do artigo. Foi um grande prazer ajudar pela importância da publicação. Nosso sentido de atuação na revista Brasília Médica não é, de fato, fazer correções contundentes. Nosso principal objetivo é divulgar entre os autores o que poderia ser feito para poupá-los de questionamentos dos leitores exigentes. As repetições, por exemplo, se dão muito em casos como devido a, utilizar, utilização, apresentar, paciente e outros. Temos que mudar os termos como forma de aperfeiçoamento, não como correção. Nossa atuação tem base no diletantismo que se faz de coração, não por obrigatoriedade. Mas vale o seu comentário a respeito e quero pedir que nos mande mais outros artigos para que possamos fornecer aos leitores ideias e fatos de valor com os artigos publicados.

Acad. Dr. Sérgio Camões. Eu queria me congratular com o senhor porque sua palestra foi realmente magnífica. Agora, o mais interessante é o seguinte. Nós temos dois aspectos. Temos o português do Brasil e o português de Portugal, que são diferentes. São verdadeiros descalabros que se ouvem durante um simpósio médico em Portugal. Em usos de injeções, nas regiões que são aplicadas, ouvimos verdadeiros absurdos para a língua 77


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portuguesa do Brasil. Para Portugal é realmente contumaz determinado uso, mas para nós os sentidos são diferentes. A gente agradece ao senhor. Só queria citar isto. Como é que o senhor vê isso? Esse aspecto? Obrigado.

Dr. Simônides Bacelar. Eu tenho uma ótima notícia a respeito desses eventos. O Doutor Roberto D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina, no mês passado, criou no CFM uma Câmara Técnica de Terminologia Médica. Claro que eu fui me alistar. O objetivo é elaborar um glossário para promover harmonização dos termos técnicos médicos entre os países lusófonos. E isso é de interesse comum. Em um congresso no mês retrasado em Cabo Verde, foi feita uma reunião para debates sobre unificação de termos médicos. Participaram representantes dos conselhos e das ordens da comunidade médica lusófona, tendo em vista nas publicações médicas, às vezes, referências em que não se sabe bem o que está se mencionando. Concordam em elaborar um glossário de terminologia médica para procurar a unificação dos termos em medicina. É um excelente passo. Existem alguns obstáculos. Por exemplo, o nome abscesso é usado em Portugal sem o “s“ antes do “c”, e não creio ser fácil que adotem essa grafia. Abscesso com “s” eles pronunciariam “abxesso”, assim como dizem “naximento”, “pixina”, por exemplos, nomes com o dígrafo “sc”. O dicionarista português Cândido Figueiredo, defendeu a grafia abcesso sem o “sc”, que está presente nos grandes dicionários lusos como o da Academia das Ciências de Lisboa. É preciso respeitar essa escolha.

Acad. Dr. Sérgio Camões. Houve uma situação, em minha casa, quando uma senhora da Embaixada da Alemanha, casada 78


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com um alemão, mas era portuguesa. Numa reunião familiar, ela usou um termo que eu não poderia dizer aqui. Se todos aqui presentes me permitirem eu gostaria de relatar. Estavam várias senhoras presentes quando ela comentou sobre a preferência de injeções no braço entre os brasileiros, enquanto em Portugal se aplicam picadas em uma região cujo termo de referência que ela usou é obsceno no Brasil. As senhoras ficaram vermelhas sem saber o porquê daquele termo, mas em Portugal é normalmente usado. O nome popular comum no Brasil é de origem afro e inexiste em Portugal. E, com isso, a outra palavra não é dita no Brasil em roda social.

Acad. Dr. Maurício Gomes Pereira. Eu tenho usado muito o discurso do Simônides e o agradeço muito pela cooperação. Ele me fez ver formas mais elegantes de dizer o que eu queria dizer. Mas, Simônides, eu gosto muito de Metodologia Científica. E uma pessoa uma vez me disse o seguinte: “Não existe sinônimo”. Você quer comentar isso?

Dr. Simônides Bacelar. Notórios gramáticos dizem que não existe sinonímia perfeita. Cada palavra tem sua origem, suas significações precisas. Eu queria relatar como os linguistas fazem esses estudos. Em referência a uma palavra, por exemplo, para saber o que realmente existe em termos de seu significado, fazem um estudo etimológico, ou seja, desde sua origem, inclusive do indo-europeu. Depois da etimologia, seguem com um estudo que chamam de semântico diacrônico, isto é, os significados através do tempo até as significações sincrônicas, as que existem no momento atual. Para isso, é preciso que se recorra a dicionários antiquíssimos, inclusive de outras línguas. Essa tarefa é muito 79


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trabalhosa. Pode-se tomar semanas e se precisam consultar dicionários raros, por exemplo, o dicionário de Francisco Fonseca, de 1771, que tive a felicidade de conhecer e adquirir em Lisboa. Mostram que muitas palavras têm um sentido original e depois se vão fazendo modificações, como a palavra bizarro, que significa em castelhano, elegante. No Brasil, significa esquisito, e esquisito (exquisite) em inglês significa excelente que, atualmente, significa estranho em português. Essas modificações temos de considerar ao usar sinônimos. O estudo da sinonímia é uma tarefa importante para os tradutores. Como já mencionado, vemos casos de traduções questionáveis, por exemplo, “anemia severa”. Severo é sinônimo de seriedade, austeridade em português. Não se diz anemia austera ou sisuda. Tanto se usa “anemia severa”, que acabamos por aceitar essa expressão como normal. Mas importa procurar sinônimos melhores e isso se pode fazer para falarmos de maneira que ninguém nos critique em nossas comunicações formais, o que seria mais inteligente, e não usarmos sinônimos imperfeitos, inadequados. Ao produzir e publicar textos cheios de problemas, os leitores, como o senhor já nos disse várias vezes, pensam: “Bom, se ele não sabe o que significam essas palavras, será que ele está sabendo fazer o artigo?” Creio ser de alta importância um autor conhecer a sinonímia dos nomes que usa, seus sinônimos sem fazer improvisações. Para pesquisar um bom sinônimo, é melhor saber o significado próprio dos nomes que tivermos em vista. O método melhor é saber o significado denotativo, que é o primeiro de cada cabeça de verbete nos dicionários e, na maioria dos casos, encontraremos a mesma coisa em diversos dicionários. Assim, poderemos constatar que proporcionar não é bom sinônimo de propiciar. Que eficaz é diferente de efetivo, mas muito próximo a efetivo. É preciso cuidado com os arcaísmos, regionalismos, 80


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neologismos, internacionalismos quando se procura um sinônimo. É muito arriscado usar sinônimos conhecidos como regionalismos e gírias, como bexigoma no sentido de repleção vesical, evoluir no sentido de anotar, entre outras possibilidades. Não sei se em Portugal ou em São Tomé entenderiam esses termos mesmo se compulsassem os dicionários, pois estes frequentemente não dão modismos, gírias, neologismos. Recomendável, em publicações científicas, usar sinonímias com palavras mais conhecidas, seja no Rio Grande do Sul, seja em Roraima.

Acad. Dr. José Ulisses Calegaro. Muito obrigado pela palestra de hoje. Confesso que só tenho 25% das referências que o senhor mencionou como básicas, como o livro de Metodologia Científica do doutor Maurício. Mas anotei aquele de linguagem médica, do doutor Joffre M. Rezende. Também a Terminologia Anatômica. Eu queria o título daquele livro da Academia Brasileira de Letras, por favor. Porque talvez assim eu consiga melhorar um pouquinho quanto ao vernáculo.

Dr. Simônides Bacelar. É o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Há muito tempo, gramáticos portugueses e brasileiros vêm estudando a maneira mais uniforme de escrever. Como já mencionei e penso ser útil repetir, se lêssemos as primeiras edições dos livros de Camilo Castelo Branco, veríamos os mesmos nomes escritos de formas diferentes do que escreveu Herculano, porque os escritores mais antigos, usavam “ph”, outros “f”, um usava termos com hífen, outro sem hífen. Era, de fato, uma mixórdia. Começaram os linguistas a estudar uma forma de ortografia harmoniosa, principalmente um estudioso expressivo, também médico, José Leite de Vasconcelos. Aban81


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donou sua profissão para se dedicar como linguista, à língua portuguesa. Peregrinou por Portugal, estudou as línguas regionais e começou a fazer trabalhos sobre linguística. Dedicou-se ao objetivo de unificar os termos. Suas divulgações estimularam muitos gramáticos a se empenhar pela padronização da língua portuguesa, sobretudo no âmbito das academias de letras. Com essas preocupações, várias tentativas de padronização vieram desde então. Uma delas preconizou a eliminação de ph, ll, ch com som de qu, e mesmo as letras Y, K, W, que recentemente voltaram à nossa língua escrita. Em 1940, houve comunhão das grafias usadas em Portugal e no Brasil. Então, a Academia das Ciências de Lisboa editou um Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa com muitas modificações gráficas. Em 1943, a Academia Brasileira de Letras editou o Pequeno Vocabulário da Língua Portuguesa (PVOLP) com quase todas as modificações constantes na obra similar editada em Portugal. Depois, foi vindo certa queda de consultas ao PVOLP. Mas, como era ortografia respaldada pela Academia Brasileira de Letras, finalmente, em 1971, surgiu o segundo volume que eles chamam de Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o VOLP, que foi, por lei federal, editado sob a chancela da Academia. Este até hoje é usado entre nós. Já existe a quinta edição com as modificações que ocorreram com a reforma ortográfica de 2008. Assim sendo, é ali que veremos se a palavra tem hífen ou não tem hífen, se é masculina ou feminina, condições adotadas oficialmente em norma padrão, esta seguida por dicionaristas, gramáticos normativos e linguistas, constante em dicionários como o Houaiss, o Aurélio, o Aulete em suas últimas edições. O Volp é facilmente encontrado nas livrarias. Existe também na Internet, acesso em www.academia.org.br., item “Nossa Língua”, depois “Busca no Vocabulário” e, em se82


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guida, digita-se em “Pesquisar” o nome em questão ou em “ABL Responde” a dúvida em questão. A resposta, embora às vezes seja demorada, sempre nos é enviada. Um de seus membros, o professor Evanildo Bechara, nos escreveu em resposta a uma pergunta, a respeito de uma dúvida que tivemos sobre termos médicos, ou científicos, Afirmou que, frequentemente esses tipos de nomes não estarão nessa obra, porque se fossem lá registrados o volume do livro seria imenso, com nome de besouros, de plantas e outros casos. Recomendou que cabe a nós, médicos, formar e registrar em dicionários especiais, tais nomes de áreas especializadas, que o Volp é dirigido à língua comum. Mas no Volp existem muitas palavras médicas e ali poderíamos desfazer dúvidas de ortografia. Temos enviado algumas sugestões à ABL.

Acad. Dr. Francisco Ginani. Eu queria congratular o palestrante por suas palavras. Gostaríamos de fazer alguns comentários. Eu acho que um problema muito básico – queria que depois o senhor pudesse comentar isso – é que nós temos vários problemas, na área médica, do ponto de vista linguístico. O primeiro seria essa falta de leitura quase absoluta que hoje verificamos. Temos oportunidade de verificar vários deslizes da língua portuguesa. Em vários aspectos. O segundo é que toda a nossa formação foi baseada em literatura estrangeira. Quer dizer, nós aprendemos e usamos muito esse linguajar técnico, às vezes, numa tradução livre, numa tradução espontânea ou numa tradução feita de forma imprópria. Temos esses dois aspectos que colaboram muito com isso aí. A linguagem, como o senhor referiu no início, que é a base da linguagem é exatamente como o povo fala. Seria importante comentar se esses deslizes 83


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muitas vezes não ocorrem só por falta de leitura, que são erros crassos em língua portuguesa, principalmente, essa utilização imprópria, às vezes de frases ou de conceitos. Se a literatura à qual a gente sempre se refere, ou sempre busca como referência não tem uma importância. E, por último, eu acho que o senhor tocou num aspecto de importância acadêmica. Eu acho que a academia fez muito bem em trazê-lo aqui para comentar essas coisas e alertar-nos sobre essas possibilidades que temos de modificar, de emitir conceitos no sentido de correção da língua portuguesa. Então, talvez fosse oportuno que a própria academia utilizasse o senhor como fonte permanente de recurso para levar não só aos acadêmicos, mas ao meio em que a academia tem influência para trazer o que o senhor trouxe de forma tão brilhante. Obrigado.

Acad. Dra. Janice Magalhães. Eu gostaria de agradecer ao senhor diante da plateia. Dr. Simônides Bacelar fez um trabalho muito importante para a Academia de Medicina. Ele fez a revisão de todas as sessões plenárias que foram degravadas, que ocorreram no ano passado. Esse trabalho foi intenso, grande, cheio de explicações. Em cada um dos textos, ele anotou porque estava modificando aquele termo e acrescentava outro de forma elegante e tudo isso sem custo nenhum para a Academia. Então, queremos agradecê-lo por esse trabalho maravilhoso que o senhor fez. Inclusive, não só das degravações de todas as palestras, todos os debates que ocorreram no ano passado, como também até dos pequenos resumos que eu fiz para os Anais e o publicado em revista, como recentemente foi publicado na Revista Médica da AMBr sobre a Terminalidade da Vida. Quero agradecer, diante de todos, porque esse é o sentimento de todos, 84


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essa grande contribuição que o senhor fez para a Academia de Medicina de Brasília. Gostaria de ouvir o senhor mais uma vez.

Dr. Simônides Bacelar. Há muito tempo venho estudando e praticando cirurgia pediátrica, que é minha especialidade como médico, que me dá o pão de cada dia. Mas, com o tempo, fui verificando que várias áreas importantes da Medicina são um pouco carentes. Como o Doutor Ginani comentou, a falta de leitura de obras literárias concorre para esvaziar as referências em padrão culto da língua portuguesa e fomentar produções de erros crassos em relação à gramática. Comumente a leitura não profissional se dá em jornais e revistas noticiosas, e as profissionais nos textos médicos em inglês e notas práticas na internet, recursos pobres para que se adquira o conhecimento da riqueza de possibilidades do idioma português. A formação médica teórica com base em leituras diárias de relatos anglo-americanos durante quase toda a vida médica é muito importante. Contudo, traz insensibilidade crítica contra as formas defeituosas de traduções, que ficam a parecer corretas. Os nomes portugueses aos poucos vão desaparecendo e mesmo tidos como erronias, com evidência em lugar de comprovação, emergência em lugar de urgência ou pronto-socorro, chance em vez de possibilidade, “risco para” em lugar de risco de. Mas, além de terminologia médica e gramática, há outros conhecimentos também pouco cultivados. As pessoas se dedicam muito à Medicina em si como uma profissão. Isso realmente é válido, sem dúvida. Mas eu notei que é relevante conhecer alguns saberes subsidiários da Medicina e decidi procurar voluntariamente me dedicar a alguns deles. Dentre estes, estão conhecimentos a respeito do prontuário, sobre o qual eu tive a oportunidade de 85


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elaborar um livrinho sobre o tema, distribuído, com a chancela do CRMDF, a três mil médicos além de estudantes de medicina. Houve outro sobre atestados médicos entregues a cerca de dez mil médicos, sobretudo do Distrito Federal. Outros ramos, como a editoração científica, que venho aprendendo principalmente com o professor Maurício e com o orientador e editor Dr. Luiz Casulari, com atividades quase diárias há anos dedicadas à revista Brasília Médica, da AMBr, e como membro conselheiro editorial em outros periódicos médicos no Pais, em que estimulamos autores a dar registro público de seus trabalhos e de suas experiência profissionais. É imprescindível conhecer editoração quando estamos na condição de autor. É igualmente basilar, e mesmo como tema propedêutico, conhecer história da medicina, parte a que também nos dedicamos há anos com publicações de artigos elaborados pelo Professor Armando Bezerra. Quanto à parte de comportamento humano, é essencial que o médico se dedique a esse ramo do saber em suas relações com os doentes e as instituições médicas, e a Bioética e a Ética Médica nos trazem bons subsídios para o aperfeiçoamento das condutas que envolvem médico e doente, atividade à qual nos dedicamos há muitos anos como docente na Faciplac e que apliquei como membro da comissão regional pelo CRMDF e Comissão Nacional de Reformulação do Código de Ética Médica pelo CFM. Conhecer terminologia médica é de alta importância ao publicar e ler trabalhos de pesquisas, para estimular os profissionais a socializar seus conhecimentos em lugar de individualizar suas experiências. Juntando-se todos esses saberes, creio que as pessoas poderiam escrever e publicar mais em razão do que eles aprendem não só na Medicina como fora dela. Pode-se comentar um bom livro médico, ou um artigo sobre outras áreas interessantes à medicina, como antropologia, psicanálise, psicologia, economia. Eu 86


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creio que com esses tipos de atividade a gente passa a conhecer a Medicina não só como meio de fazer diagnóstico e tratamento, mas como modus vivendi e estilo de vida cultural. Muitas vezes a pessoa dedicada ao curso universitário não é ensinada a respeito desses assuntos. E às vezes vamos aprender com enfrentamento de processos nos âmbitos administrativos, judiciais e éticos. Isso é muito doloroso. É relevante que os profissionais de medicina, além de estudar diagnóstico e tratamento, também estudem as leis que regem a medicina. É algo poderíamos dizer em cursos de graduação e pós-graduação. Temos dito em palestras para estudantes de medicina e médicos residentes que é importante participar de núcleos de processos administrativos disciplinares, de sindicância, para constatar que médicos fazem alguns deslizes que os submetem a três, quatro anos ou mais a responder processos, o que poderia ser evitado se houvesse ensino a respeito. Mesmo turismo pode ser considerado uma atividade médica cultural. Quando viajamos, podemos visitar livrarias de sebo, museus médicos, faculdades de medicina famosas, bibliotecas de faculdades de medicina e até deixar ali como doação livros de colegas de valor reconhecido. É preciso fazer esse trabalho, até de cunho preventivo, de praticar, pesquisar, escrever, publicar e ensinar temas subsidiários da Medicina e, para isso, é preciso estímulo e aceitação dos colegas. Então, são essas as coisas que eu gostaria de acrescentar no âmbito dos conhecimentos médicos, além de terminologia médica. São coisas espetaculares, em termos de informações. Muito obrigado.

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PALESTRA O MODELO HOLÍSTICO DO ENSINO DA MEDICINA Sessão Solene de entrega de Título de Emérito ocorrida em 18-6-2013

PALESTRANTE ACAD. DR. ANTÔNIO MÁRCIO J. LISBÔA – Pediatra, Fundador da Academia de Medicina de Brasília, exerceu docência como Professor Titular de Pediatria, atual Professor Emérito, da Universidade de Brasília, UnB. Membro honorário da Academia Nacional de Medicina.

S

ou filho, sobrinho e neto de médicos. Fui testemunha de quanto os médicos eram queridos pela população.

Hoje, com 86 anos, preocupa-me a queda do prestígio dos médicos. O distanciamento crescente da comunidade. O escasso tempo dedicado às consultas. A relação médico-paciente, fria. A burocracia, as filas, o paciente se tornar um número ou uma guia. O ato médico chegou a ser definido como “o encontro de uma necessidade com uma burocracia”. Na medicina liberal, como “o encontro de uma confiança com uma consciência”. O médico culpa a instituição pela situação, que, por sua vez, culpa o médico. O usuário se queixa de ambos e se sente prejudicado, inseguro, desprotegido. Um clima de desconfiança 89


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permeia nosso relacionamento com os pacientes. Médicos são agredidos e até assassinados. Mas, não foi sempre assim. Como eram vistos os médicos do século passado pela população? Xavier Lisboa, meu avô, não dispunha de exames complementares. Irineu Lisboa, meu pai, e Gaspar Lisboa, meu tio, já contavam com alguns recursos, porém, infinitamente menores que os atuais. Apesar disso, foram pessoas queridas pela comunidade, notáveis como médicos e como cidadãos. Foram exemplos comuns do como eram os médicos naquela época. Parece paradoxal, mas, inversamente aos crescentes progressos tecnológicos, nosso prestígio vem caindo progressivamente. POR QUÊ? • A sociedade tem produzido, cada vez mais, indivíduos com personalidades doentias, falta de caráter, de princípios, de moral. • Os médicos estão sendo produzidos em massa, por escolas pouco qualificadas. • Os docentes para serem admitidos e promovidos são avaliados pelo seu conhecimento e produção científica e, quase nunca, pelo seu comportamento humano, ético e moral. • As escolas médicas, em geral, priorizam o ensino e a pesquisa e quase nunca a responsabilidade social para com a comunidade. • Não faz parte do ensino médico disciplinas que melhorariam o comportamento social do médico, como psicologia, antropologia, sociologia, etologia, ética. • O aprendizado da relação médico-paciente, a arte da medicina, é pouco valorizado. 90


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Para tentarmos melhorar o prestígio do médico torna-se necessário atuar: • Na formação dos cidadãos • Na formação dos médicos. FORMAÇÃO DO CIDADÃO Educar significa transformar bebês em bons cidadãos. Não é só ensinar a ler, a escrever, a ter boas maneiras, a conviver socialmente. É construir uma pessoa com disciplina, limites, personalidade firme, bom caráter bons princípios e valores, elevada autoestima, autossuficiente, com capacidade de expressão, espírito de iniciativa, corajosa, responsável, de fácil convivência, elevado compromisso social e espírito público. É a maior arma que se tem para se conseguir a formação de bons cidadãos. Os valores são aprendidos em casa, com os pais, a família, e com os professores, principalmente antes dos seis anos.. FORMAÇÃO DO MÉDICO Um bom médico deve: • ter nobreza de caráter, elevação de propósitos, consciência do bem e do mal, do certo e do errado; • desejar servir ao próximo e à comunidade; • não assimilar a frieza das profissões técnicas; • sobrepor o interesse coletivo ao seu próprio; • buscar incessantemente seu aperfeiçoamento do ponto de vista técnico e moral. 91


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Os que pensam em sucesso material, os negligentes, os acomodados, os egoístas, os irresponsáveis, os imaturos, jamais deveriam ser médicos. POR QUE O PRESTÍGIO DOS MÉDICOS TEM DECRESCIDO? PORQUE: • os médicos estão sendo produzidos em massa, por escolas pouco qualificadas; • os docentes, ao serem admitidos e promovidos, são avaliados pelo seu conhecimento e, quase nunca, pelo seu comportamento humano, ético; • as escolas médicas, em geral, priorizam o ensino e a pesquisa, quase nunca a responsabilidade social para com a comunidade; • os currículos utilizam o modelo cartesiano-newtoniano, quase nunca o holístico, que considera o ser humano como uma unidade biopsicossocial. Não contemplam disciplinas que melhorariam o comportamento social do médico, como psicologia, antropologia, sociologia, etologia, ética; • os alunos não são educados para servir à população; • as avaliações não levam em consideração o comportamento docente e discente. O médico do século passado fazia uso de recursos pessoais como simpatia, calor humano, dedicação. Embora os recursos materiais fossem parcos e os resultados também, sobravam muita fé e confiança. O médico era visto pela população com um semideus. As transformações sociais e o progresso científico foram os principais responsáveis pela perda do prestígio dos médicos. 92


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Os avanços tecnológicos tornaram os médicos eficientes, mas despersonalizados. Fez com que considerassem destituídos de valor os métodos clássicos da medicina hipocrática, que permitiam que eles aprimorassem seus sentidos, seu raciocínio e bom senso. A forma de atendimento em massa da população pelo SUS despersonalizou ainda mais a relação médico-paciente. Dificilmente uma pessoa atendida no serviço público lembra o nome do médico que a atendeu, e vice-versa. Fala-se até em se generalizar o uso de computadores para acelerar o atendimento. Se tal acontecer, a angústia da população será ainda maior. Precisamos humanizar a formação dos médicos e a prática da Medicina. Só assim poderemos voltar a ouvir a frase: “Abaixo de Deus, o senhor, doutor”. O MODELO HOLÍSTICO Para que consigamos formar um médico que considere o ser humano em sua integralidade, como uma unidade biopsicossocial, e a saúde como uma situação de bem estar físico, psíquico, emocional e social, precisamos que as Escolas Médicas: • definam, com clareza, sua política educacional e o tipo de médico que pretendem formar: generalista, e não um especialista, cientista, professor, ou seja, os objetivos institucionais; • escolham como modelo pedagógico a ser seguido: o holístico – que considera a pessoa como um ser unitário, indivisível, que interage continuamente com seu meio ambiente, e não o newtoniano-cartesiano, que considera fundamental o estudo dos diferentes órgãos e aparelhos, deixando para um segundo plano os aspectos ecológicos e sociais. Para que este item seja atendido o ensino no ciclo clínico será constituído por programas e módulos de ensino. Por exemplo, 93


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programas de medicina integral de crianças, assistência materno-infantil, medicina de adultos, interanato rotativo integrado. Em cada um dos programas seriam atendidas as necessidades de saúde da criança, da grávida e dos adultos, quer sejam clínicas quer sejam cirúrgicas. DIFERENÇAS ENTRE OS MODELOS CARTESIANO E HOLÍSTICO CARTESIANO

HOLÍSTICO

Visão fragmentada e especializada Visão unitária, com sistemas do corpo humano Separação corpo-espírito

Unidade corpo-espírito

Independência do meio ambiente Interação constante com o meio ambiente e com sistemas sociais Separação médico-paciente

Interação médico-paciente

Médico responsável pela cura

Cura depende do médico e do paciente

Medicina fundamentada na doença Medicina fundamentada na saúde Ênfase nos mecanismos das do- Ênfase nas causas das doenças enças Os fatores biológicos são os mais Os fatores sociais e ambientais são importantes na etiologia das do- os mais importantes enças A assistência médica é para quem É para todos a solicita Independente dos Serviços de Integração docente-assistencial Saúde Ensino concentrado no hospital

Ensino regionalizado e hierarquizado

O médico é o responsável pela A equipe de saúde é a responsável atenção à saúde Assistência médica individual, oca- Coletiva, integral, contínua, persional, episódica, fragmentada manente A comunidade não participa

A comunidade participa

Paciente, cliente

Pessoa

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No modelo holístico: • são selecionados métodos e técnicas de ensino que reduzam as horas dedicadas às aulas expositivas em favor das atividades de aprendizagem, principalmente àquelas realizadas sob a forma de treinamento em serviço; • o processo ensino-aprendizagem centrado no aluno torna-o o principal responsável pelo próprio aprendizado, deixando ao professor as funções de orientação, supervisão e, principalmente, às de avaliação. Esse tipo de ensino, voltado para a aprendizagem independente, é: ativo, o aluno é o agente do aprendizado; autoconduzido, o aluno é o centro do processo, portanto o maior responsável pelo próprio aprendizado; estimulante, incentiva o aluno a indagar, a pesquisar, a preparar, a debater, a solucionar problemas, o que aumenta sua iniciativa; progressivo, o aluno assume responsabilidades crescentes nas atividades, de acordo com o seu nível de aprendizado; divergente, permite ao aluno a escolha de opções para resolver os problemas, reconhecendo o direito ao erro, tolerando as imperfeições, permitindo a livre confrontação de ideias; prático e personalizado. O aluno aprende estudando, fazendo, participando; • são definidos os objetivos institucionais, os departamentais, e os terminais ou comportamentais, de cada módulo ou área de treinamento, que nortearão o trabalho docente e que permitirão avaliar se os alunos adquiriram os conhecimentos, as habilidades, as atitudes e as competências esperadas. Os objetivos terminais são definidos por áreas assistenciais usadas para estágio (ambulatório, enfermaria, centro de saúde, sala de partos, centro 95


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cirúrgico, centro de saúde, etc.) e em função da importância e da frequência das situações identificadas por inquéritos epidemiológicos. O ideal seria que, no primeiro dia de atividades, fosse entregue e discutida com os alunos a programação, onde constaria: 1) nome dos módulos ou setores assistenciais; 2) metodologia do ensino – como será desenvolvido o programa de ensino-aprendizagem; 3) objetivos gerais do módulo ou programa e os objetivos terminais de cada área de treinamento, bem detalhados; 4) atividades teóricas e práticas a serem desenvolvidas; 5) carga horária total e por atividade; 6) métodos de avaliação dos objetivos educacionais; 7) critérios para aprovação; 8) bibliografia indicada e existente para consulta. Programação entregue, discutida e aceita; supervisão e auxílio dos professores sempre ao alcance; áreas de treinamento disponíveis; recursos materiais e biblioteca, acessíveis; caberá ao aluno utilizar todos esses recursos para aprender, o que será avaliado pelo cumprimento dos objetivos bem definidos na programação. Não serão aceitos questionamentos do tipo “essa aula não foi dada”, “eu não vi isso”, “eu não sabia que esse assunto cairia na prova”. A preocupação no ensino médico deve ser com a aquisição de conhecimentos e competências, e não em saber se o conteúdo do programa “foi dado”; • o ensino feito por programas ou módulos facilita a coordenação e promove a integração multidisciplinar e multiprofissional. O ensino nas áreas básicas deve contar com a participação de docentes das áreas clinicas, para que os alunos tenham a oportunidade de aprender a importância de conceitos básicos na prática médica. Para isso, serão 96


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utilizados blocos ou módulos integrados de ensino. Por exemplo, a criança deveria ter um lugar assegurado no ensino da Anatomia, Histologia, Farmacologia, Semiologia, Relação Médico-Paciente, disciplinas que, geralmente, utilizam como modelos, adultos; • os alunos treinam em distintos níveis de saúde – promoção, prevenção, recuperação, reabilitação, e de atenção – níveis primário, secundário e terciário, utilizando, para isso, a integração das funções educacionais, docência e pesquisa, com o serviço – programas de integração docente-assistencial em parceria com unidades de serviços de saúde; • além da competência profissional dos professores, deve ser levada em conta seu comportamento humano, ético e moral, e seu compromisso social; • os professores, além da formação profissional dos alunos, deverão se preocupar com sua formação ética e moral, e com seu compromisso para com o bem-estar das pessoas, das famílias e da população em geral; • as avaliações dos alunos (formativas, somatórias), dos professores, dos objetivos institucionais e terminais, da metodologia utilizada, das atividades desenvolvidas e das técnicas utilizadas nos processos de avaliação, serão periódicas. Serão avaliados os conhecimentos, as habilidades e as atitudes, dos alunos. A Declaração de Edimburgo atribuiu às escolas médicas a responsabilidade exclusiva pela “organização dos programas de ensino e dos sistemas de avaliação de modo a garantir a 97


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aquisição de competências profissionais e dos valores sociais e não somente a memorização da informação”. Em outras palavras, ela é a única responsável pela existência de médicos incompetentes no mercado de trabalho, pois ela é a única que tem poder para impedir que isso aconteça.

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O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E COOPERAÇÃO NA PERSPECTIVA BIOÉTICA Artigo publicado na revista Bioethikòs, Centro Universitário São Camilo, São Paulo – 2013;7(3):247-258 Apresentado pelo autor em palestra realizada em Sessão Plenária da Academia de Medicina de Brasília, ocorrida em 27-8-2013 Os autores declaram não haver conflitos de interesses.

PALESTRANTE DR. VOLNEI GARRAFA – Professor titular da UnB. Coordenador da Cátedra Unesco e do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília-DF, Brasil. Membro do International Bioethics Committee da Unesco. Enf.a Sheila Pereira Soares – Enfermeira da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Mestre, especialista e doutoranda em Bioética pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília-DF, Brasil. Resumo Este texto traz uma análise do princípio da solidariedade e cooperação incluído na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco. Apresenta, também, um relato histórico 99


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da origem da palavra solidariedade, suas classificações e associações, incluindo-se uma visão latino-americana atual sobre o tema e perpassando por sua racionalização como direito social. Discutem-se criticamente termos como caridade, compaixão, fraternidade e filantropia, usualmente confundidos com solidariedade. Procurando uma visão mais abrangente e dialética, o estudo apresenta três formas contemporâneas de interpretação do princípio da solidariedade: solidariedade assistencial, solidariedade crítica e solidariedade radical. Conclui-se que as ações éticas verdadeiramente solidárias são aquelas em que o agente doador interage com o outro (o receptor) de modo horizontal, dinâmico e bilateral, com responsabilidades compartidas. Palavras-chave. Bioética. Princípios morais. Direitos humanos. Abstract This paper brings an analysis on the principle of solidarity and cooperation included in the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights of UNESCO. It also presents a history of the origin of the word solidarity, their classifications and associations, including a contemporary Latin-American vision on the subject and passing through the rationalization as a social right. There is a critical discussion on terms like charity, compassion, fraternity and philanthropy, usually confused with solidarity. It also presents three ways of interpreting actually the principle of solidarity, seeking to provide a more comprehensive and dialectic view on the subject: solidarity assistance, critical solidarity and radical solidarity. The study concludes that ethical actions truly supportive are those where the agent interacts with the other donor (receiver) horizontally, dynamic and bilateral, with responsibilities shared. Key words. Bioethics. Moral. Human rights. 100


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INTRODUÇÃO

O

presente estudo se propõe refletir sobre o conceito de solidariedade e cooperação incluído no artigo 13 da De-

claração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (DUBDH), no tópico que trata dos “Princípios”: A solidariedade entre os seres humanos e cooperação internacional para esse fim devem ser estimuladas1. Inicialmente, será apresentado uma breve história da origem da palavra solidariedade, suas classificações e associações, incluindo-se uma visão latino-americana contemporânea sobre o tema e perpassando-se pela sua racionalização como direito social, por meio de uma visão multi e interdisciplinar. Uma vez que existem várias palavras utilizadas com significado semelhante ao de solidariedade – como caridade, misericórdia, fraternidade –, é indispensável que seja feita uma análise mais pormenorizada dessas diferentes expressões, pois são frequentes as situações e exemplos em que ações solidárias que se mostram aparentemente de boa índole, estão assentadas na virtude unilateral da compaixão ou mesmo na exclusiva iniciativa piedosa de substituir o Estado. Nessas situações, o resultado é que, se por um lado tais ações prestam algum auxílio pontual e episódico para melhorar a vida de pessoas, por outro contribuem para a manutenção de profundas diferenças sociais. A inclusão da solidariedade entre os quinze princípios contidos na DUBDH – conjugada à expressão “cooperação” – não foi facilmente aceita no contexto da construção da mesma, pelo contrário. Assim como o artigo 14, que trata da “Responsabilidade Social e Saúde”, o artigo 13 foi um dos que mais motivou discussões nas reuniões decisivas de elaboração da Declaração 101


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levadas a efeito em Paris, França, em 2005.2 Sua defesa foi especialmente reforçada pelos países pobres e em desenvolvimento que, ao formular a inclusão do binômio solidariedade e cooperação, de certa forma estavam se contrapondo ao que vem ocorrendo com frequência em diferentes partes do mundo, onde propostas de solidariedade internacional são secundadas por diferentes formas de exploração, exatamente daquelas pessoas e povos que deveriam ser os beneficiários dessas propostas. A partir da reflexão bioética, portanto, o presente texto tem o propósito de servir de apoio a países, organismos, instituições ou grupos de pessoas que pretendam desenvolver algum tipo de reflexão ou trabalho relacionado com o tema da solidariedade exercido de modo crítico, construtivo e cooperativo, no sentido de diminuir as agudas disparidades socioeconômicas registradas no mundo de hoje. Origem e breve histórico da solidariedade Ao analisar a origem da palavra solidariedade, dois termos derivados do latim são encontrados, solidum (totalidade, segurança, total) e solidus (sólido, maciço, inteiro). Entre outras interpretações registradas sobre a solidariedade, podem ser citadas as seguintes, que podem servir de objeto de discussão neste trabalho: estado ou condição de duas ou mais pessoas que repartem entre si igualmente as responsabilidades de uma ação, empresa ou negócio, respondendo todas por uma e cada uma por todas; laço ou ligação mútua entre duas ou muitas coisas dependentes umas das outras; compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas pelas outras e cada uma delas por todas; condição grupal resultante da comunhão de atitudes e 102


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sentimentos, de modo a constituir uma unidade sólida de grupo capaz de resistir às forças exteriores e mesmo de tornar-se ainda mais firme em face da oposição vinda de fora;3 dependência mútua entre as pessoas; sentimento que leva as pessoas a se auxiliarem mutuamente; relação mútua entre coisas dependentes; compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas pelas outras4; termo de origem jurídica que, na linguagem comum e na filosófica, significa: 1.º inter-relação ou interdependência; 2.º assistência recíproca entre os membros de um mesmo grupo.5 Uma visão mais diferenciada e crítica da solidariedade e que se aproxima às ideias defendidas mais adiante no presente artigo, no entanto, é defendida no Dicionário de Ética e Filosofia Moral: A doutrina da solidariedade desenvolve uma formulação nova da velha reivindicação de uma melhor distribuição das riquezas; ela é incapaz, como tal, de fundar um direito. Para isso, efetivamente seria necessário que estivéssemos em condições de precisar o montante da dívida e do crédito de cada um.6 Todas essas classificações da solidariedade, portanto, apresentam-na a partir de ações mútuas que acontecem exclusivamente entre pessoas de um mesmo meio e que têm interesses compartidos; uma espécie de corporativismo social no qual todos os envolvidos têm relação de interdependência. Tais interpretações provavelmente derivam das palavras de Aristóteles, apud Avelino,7 que coloca os fundamentos da solidariedade em posição antagônica ao individualismo, embora usasse outros termos na sua época. De acordo com essa concepção, a solidariedade se refere ao conjunto para que a vida em grupo se torne melhor, enquanto no individualismo o indivíduo preza o próprio eu,8 enxergando a sociedade com olhar diverso: as sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes 103


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da cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade (p. 228).7 Nesse contexto, por mais que o ser humano busque a autonomia e o respeito às diversidades, sempre existe a necessidade de partilhar do coletivo denominado sociedade, que se fragmenta em conjuntos organizados como família, esfera trabalhista, Estado, os quais são interdependentes no que diz respeito à proteção, sobrevivência e à manutenção da espécie. Viver na sociedade aristotélica significava, então, respeitar o outro e aceitar que o conjunto é mais forte que a unidade, tornando necessária a adoção de regras de convivência para alcançar o equilíbrio social satisfatório, pois sem elas não existiria vida coletiva. Sob variados enfoques, a história da solidariedade vem recebendo atenção desde a Antiguidade, sendo tema de diversos relatos.8 No Egito, existiam códigos morais baseados na justiça social por meio dos quais os indivíduos eram estimulados a ajudar o próximo sem nenhuma cobrança. O processo era denominado de trabalho voluntário. Facilita a compreensão desse tipo de atividade o exemplo dos proprietários de barcos, que deveriam transportar gratuitamente para o outro lado do rio todos os pobres que necessitassem. Desde tempos remotos, também existem relatos de membros de famílias responsáveis pelo cuidado dos familiares doentes, 104


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bem como dos órfãos, viúvos, idosos e deficientes, ou seja, o próprio âmbito familiar previa em sua estrutura mecanismos para cuidar dos desamparados. Embora esse exemplo específico possa ser denominado com outras palavras ou expressões, como se verá adiante, é comum encontrá-lo na literatura como referência à ideia de solidariedade. Com desenvolvimento histórico das cidades através dos tempos, propiciado pelo êxodo rural em especial nos períodos de secas e fome, os indivíduos começaram a afastar-se das famílias extensas, se aproximando de novas formas de vida em coletividade. Nas grandes metrópoles acabava sendo importante o auxílio mútuo no intuito de possibilitar um melhor convívio em sociedade, evitando-se o isolamento. Dessa necessidade surgiu a instituição denominada auxílio social, pautada em parâmetros de convivência social além da dimensão familiar. Ainda no contexto medieval e, especialmente, a partir do Renascimento, as igrejas cristãs, guildas e confrarias ajudavam os pobres, doentes e desamparados criando fundos de apoio mantidos por meio de doações dos seus membros. Essas pessoas também ajudavam os outros por meio de donativos e trabalho ou serviço voluntário; hospitais filantrópicos (denominados de santas casas) foram criados e mantidos pelas doações em nome da “misericórdia” e da “caridade”, consideradas então sinônimos daquilo que atualmente se compreende por solidariedade: Até hoje se interpreta o serviço voluntário como atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade9. 105


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Em 1893, Durkheim analisou a sociedade com base no processo de urbanização e industrialização, demonstrando inquietude quando observou a transformação do indivíduo em um ser autônomo10 e individualista. Questionou, então, como poderia, nesse contexto, manter-se a chamada “coesão social”, entendida como um modelo em que se adotam normas que garantem a interação entre os indivíduos, facilitando a convivência na tentativa de minimizar os riscos sociais de forma a não anular o outro, não negar a cidadania do outro, respeitar as diversidades culturais e motivar a solidariedade coletiva. A resposta veio por meio da diferenciação com outros aspectos – econômico, cultural, jurídico, científico e religioso – nos quais a divisão do trabalho fez com que os indivíduos se tornassem interdependentes, solidificando a coesão social cada vez mais a partir da criação de laços sociais. Com essa análise Durkheim diferenciou dois tipos de solidariedade. A solidariedade mecânica, a partir da sociedade tradicional que propiciava estilos de vida semelhantes às pessoas (físicos, sociais e culturais), motivo pelo qual estas se uniam em prol de um objetivo, para manter a igualdade, preservação e perpetuação do grupo.10 A segunda foi classificada pelo autor como solidariedade orgânica e baseava-se na observação da sociedade moderna que se tornava, cada vez mais, diferente e interdependente em razão da divisão do trabalho. Acreditava que esse tipo de solidariedade exigiria maior interrelação e cooperação entre os indivíduos, fazendo que a consciência coletiva fosse colocada acima da consciência individual. Em sua obra, Durkheim afirma que a solidariedade orgânica pode ser responsável por problemas e patologias diante da divisão do trabalho, quando não houver coordenação e não imperar a justiça nas relações laborais, o que pode levar mesmo a revoltas 106


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e rompimento dos laços sociais anteriormente construídos. Embora pautada em uma perspectiva que afirmava a importância da manutenção do status quo vigente e reiterava a hierarquia na sociedade de classes a análise durkheimniana introduz a ideia de solidariedade como princípio organizador da vida social, que viria posteriormente ser explorada por outros pensadores no âmago da luta de classes. Na realidade hodierna, no entanto, apesar das relações societárias se desenvolverem basicamente na linha de reflexão até aqui apontada e guardarem certa interface histórica com as definições precedentes do conceito de solidariedade, não são estas características que interessam ao presente estudo. Pelo contrário, a ideia de solidariedade que se procura enfatizar é aquela expressa na concepção de direitos humanos e manifesta na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos1 da Unesco, que requer outro olhar – bilateral e recíproco – entre pessoas, grupos ou setores que estão em situações histórico-sociais diferentes. Por essa perspectiva uns se capacitam a apoiar os outros de modo desinteressado, sem preocupação com o retorno material ou de qualquer outra natureza. É indispensável registrar, contudo, que mais recentemente começaram a surgir vozes discordantes do sentido preferencialmente horizontal e acrítico com base no qual o conceito de solidariedade vinha sendo construído e implementado.11 Tais críticas se baseiam principalmente no fato de que o desenfreado processo contemporâneo e unilateral de globalização econômica das últimas décadas, além de desconsiderar as peculiaridades culturais e políticas dos variados países e das regiões do mundo, agudizou ainda mais as diferenças sociais existentes entre ricos e pobres, requerendo, assim, uma nova epistemologia solidária, mais crítica e comprometida com as sociedades mais necessitadas. 107


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Termos usualmente confundidos com a solidariedade Existem vários termos frequentemente confundidos com solidariedade, tornando pertinente sua compreensão adequada para evitar más interpretações e confusões. A seguir é feita uma breve exposição conceitual e crítica sobre alguns deles – caridade, compaixão, fraternidade e filantropia – para facilitar ao leitor diferenciá-los entre si e especialmente da solidariedade em suas concepções atuais, reais e aplicáveis. Caridade Tendo sua origem no latim, a palavra caritas significa amor ao próximo. A caridade é geralmente vista pela sociedade como um ato nobre, honroso, virtuoso, acolhedor, que fortalecem as ações solidárias de um grupo. A palavra caridade, com o passar do tempo, foi adquirindo certa conotação religiosa no sentido estrito de auxilio material às pessoas mais necessitadas. A igreja católica e seus seguidores baseiam a prática da caridade na ideia de amor fraterno, prestando assistência imediatista aos pobres e necessitados, preocupados apenas em servir ao próximo sem interesse em recompensas materiais.12 Segundo o Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja Católica,13 publicado em 1966 como resultado das discussões do Concílio Vaticano II, a caridade deve ser entendida como um ato de amor ao próximo. O referido documento reforça que a caridade deve ser estendida a todas as pessoas sem discriminação de etnia, condição social ou religião, não esperando em retribuição nenhum lucro ou agradecimento. Para o cristianismo o ato caritativo é mais amplo do que dar esmola a uma pessoa necessitada. Tal ato incorpora todas 108


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as pessoas, independentemente de posição social ou econômica, estejam elas em posição inferior, igual ou mesmo superior àquela que pratica a ação.14 O cristianismo, por meio da caridade, orienta seus seguidores a serem indulgentes, proibindo a humilhação aos desafortunados, ao contrário do que muitas vezes acontece no mundo real. Muitas pessoas com preocupações religiosas, no entanto, acabam praticando atos caridosos condicionados, primordialmente, a “aliviar o peso da própria consciência”, agindo com generosidade exclusivamente na contingência de tentar reparar alguma má ação cometida no passado e imaginando com esse ato compensatório feito em vida alcançar o perdão divino e a salvação eterna. Bruckner vai ainda mais longe em suas críticas ao afirmar que o escândalo ontológico da caridade (e da filantropia) é a desigualdade entre o doador e o beneficiário, quem por ser incapaz de socorrer-se a si mesmo, só pode receber e agradecer, sem responder. Amá-lo por essa única razão significa exercer sobre ele, não nossa nobreza de alma, mas sim nossa vontade de poder (p. 261).15 O conceito de caridade, contudo, é central no comportamento social dos religiosos que seguem a doutrina kardecista, resumido na palavra generosidade, que representa crescimento constante ou “evolução do ser em busca de viver bem, sem se desgastar com sentimentos de egoísmo, infelicidade e ódio”.16 Nesse contexto, a generosidade passa a ser o resultado do amadurecimento espiritual daquele que pratica o ato caritativo, adquirindo um significado de amor que não é inerte, não tem regras impostas, mas que engloba a conotação de vivência, aceitação e compreensão; trata-se, em outras palavras, de um ato do equilíbrio psíquico, de compreensão do exterior a partir do interior de cada um. Para os espíritas a caridade é universal.17 109


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A caridade é também algumas vezes confundida com o chamado trabalho social, o qual não está ligado obrigatoriamente a significados religiosos, mas à reparação de injustiças sociais, praticado geralmente no âmbito coletivo e que não deixa de ter um fundo sociopolítico. Há autores, como Nietzsche, que, no entanto, são duros com relação ao tema, ao expor com aguda lucidez que a ética da caridade – bem como a da compaixão – nada mais é que estratégia de poder que, no preciso momento em que promete auxílio e assistência, multiplica os mecanismos de coerção e submissão. Segundo ele, as pessoas que doam algo pensam muito mais nelas próprias do que naqueles que estão querendo ajudar.18 Compaixão A palavra compaixão provém do latim compassio que quer dizer compreensão do estado emocional do outro ou desejo de aliviar o sofrimento do outro. Ter compaixão não significa sentir piedade, mas, sim colocar-se ao lado do outro sem julgamentos, na intenção de apenas propiciar alívio à situação turbulenta e sofrida em que o outro se encontra. Com relação à compaixão, Hume19 afirma em sua obra Tratado da natureza humana que ninguém é insensível ao ponto de não perceber a felicidade ou infelicidade do outro. Há quem pense, todavia, que, enquanto a solidariedade põe em evidência a existência de algo que está errado, pois significa a impossibilidade de aceitar ou tolerar ações que diminuem ou violentam as pessoas, a compaixão corre o risco de banalizá-la, restringindo-se apenas a estimular a tolerância até o limite do intolerável.20 O Dalai Lama,21 por sua vez, conceitua compaixão como sendo a preocupação com o outro, pois todos os seres humanos 110


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têm direito à felicidade. Segundo ele, partindo dessa compreensão é que se chega ao sentimento de compaixão, diferentemente do sentimento de pena que se torna uma barreira para perceber o outro em sua essência. A compaixão não pode ser exercida apenas entre parentes e amigos, pois isto não se trata de compaixão, mas de apego. A verdadeira compaixão ocorre quando pensamos em aliviar voluntariamente o problema dos outros. Segundo Caponi,20 contudo, podemos assistir cotidianamente atitudes pessoais piedosas, mas imorais, que respondendo à força da compaixão reproduzem a mais ilegítima – ainda que legalizada – coerção sobre os desafortunados. Para a autora, com isso se legitima, por exemplo, que doentes mentais sejam internados e isolados em locais que jamais poderiam ser chamados de centros de recuperação, ou pessoas sem morada fixa e que vivem pelas ruas sejam deslocadas contra sua vontade para abrigos públicos muitas vezes perigosos e insalubres. Sua reflexão completa, no entanto, se sustenta na hipótese de que não existe ruptura absoluta entre as políticas assistenciais baseadas na ética compassiva e aquelas propostas pelo utilitarismo clássico, mas sim continuidade, solidariedade e complementaridade; para ela é indispensável repensar as políticas assistenciais desde uma perspectiva divergente tanto de um utilitarismo difuso, quanto da compaixão piedosa que sustenta e pereniza a caridade. De modo geral, a compaixão está muito próxima da misericórdia, outra palavra algumas vezes confundida com solidariedade. A misericórdia, no entanto, pela própria raiz etimológica da palavra (miser) tem relação direta com a miséria, o que não obrigatoriamente ocorre com a compaixão, que pode ser direcionada também a pessoas que sofrem de outros tipos de necessidades, por exemplo, físicas ou emocionais. 111


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Fraternidade A palavra deriva do latim fraternitas, irmandade, conjunto de irmãos, afeição entre irmãos. Quando se fala em fraternidade tem-se a ideia de laços familiares, próximos, parentais, consanguíneos, de uma mesma genealogia. Com o tempo a expressão passou a ser utilizada para descrever relações de pessoas que têm as mesmas convicções, sejam estas religiosas, políticas, econômicas, culturais ou mesmo que desempenham funções semelhantes. Aristóteles assegurava que os cidadãos se uniam em grupos para criar comunidades políticas, fato que denominava de amizade política. Na Ética a Nicômaco afirmava que a amizade estava acima da justiça, pois onde existe amizade a justiça está presente. Para ele, a equidade entre as pessoas somente se consolida quando existe confiança mútua, isto é, quando um depende do outro, o que os torna iguais.22 Durante a Revolução Francesa, foi adotado o lema constituído do tripé liberdade, igualdade e fraternidade, palavras com raízes na maçonaria e no cristianismo, que buscavam a dimensão fraternal, isto é, a vida em comunidade, sem preconceitos, em condições semelhantes, estabelecendo uma espécie de cidadania entre homens que devem viver de forma livre e digna.23 Das três, a fraternidade foi a que ganhou menor expressão na vida civil, sendo ofuscada pelas duas primeiras. Destaque-se, inclusive, que a ideia de “liberdade” foi impulsionada na dimensão econômica pelas noções associadas ao livre mercado, que surgiram quase concomitantemente. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 resgatou em grande parte a ideia de fraternidade, reconhecendo em seu preâmbulo que todos os homens são membros de uma 112


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mesma família: a família humana.24 É nesse contexto de família humana que se objetiva a presente reflexão sobre fraternidade, configurando-a a partir da relação verificada entre as pessoas e a difusão do conceito de igualdade entre os seres humanos, considerando-se todos como iguais em direitos, afastando-se essa interpretação do conceito proposto por Aristóteles. Segundo Aquino: A Fraternidade está na origem de um comportamento, de uma relação que deve ser instaurada com os outros seres humanos, agindo ‘uns em relação aos outros’, o que implica também a dimensão de reciprocidade. Nesse sentido, a fraternidade, mais do que um princípio ao lado da liberdade e da igualdade, aparece como aquele que é capaz de tornar esses princípios efetivos (p. 137).25 Com base nessas ideias entende-se que fraternidade parte do princípio de que todos os seres humanos têm certos deveres em relação a seus semelhantes, mantendo um sentimento de reciprocidade, isto é, de serem solidários uns com os outros. Sendo assim, a fraternidade seria a base para o alcance da igualdade e liberdade entre os homens, fechando o trígono proposto pelos revolucionários franceses. Diversamente das interpretações acima, no entanto, Mill apud Simões26 afirma que a fraternidade somente pode ser alcançada por meio do diálogo, sendo esse considerado ferramenta de aproximação entre os homens, pois assim uns são forçados a ouvirem os outros. Filantropia A palavra grega filantropia significa amor à humanidade.27 Em seu sentido amplo, é compreendida no contexto societário 113


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atual como a organização humanitária de comunidades, empresas, organismos públicos e privados ou mesmo de grupos de pessoas com o objetivo de ajudar outras pessoas por meio de doações sem fins lucrativos. São entendidas como instituições filantrópicas aquelas organizações que têm o propósito específico de ajudar os seres humanos e demais seres vivos a melhorar suas vidas. Trata-se de uma ação relacionada com apoio, doação financeira ou de outra natureza, em benefício de instituições ou pessoas que desenvolvam quaisquer atividades consideradas meritórias e que produzam estímulo social. É entendida por muitos como forma privada, particular, de apoio ao desenvolvimento de atividades que possam causar transformações na estrutura de vida de grupos necessitados, sem recorrer à intervenção do Estado. A filantropia é considerada atualmente, em muitos países, significativa fonte de financiamento, principalmente para as questões humanitárias e culturais. Em alguns lugares, as ações filantrópicas chegam a assumir papel relevante no apoio à pesquisa científica e no financiamento de universidades e instituições acadêmicas. Embora existam críticas também às práticas filantrópicas, igualmente à caridade e compaixão, seu significado original tem sentido e relação histórica com a disponibilidade de pessoas e ou famílias com sólida situação financeira que resolvem dispor de parte dos seus recursos para apoiar entidades ou causas capacitadas a melhorar a estrutura social ou a vida de pessoas, a estimular as artes, melhorar bibliotecas ou mesmo apoiar pesquisas científicas universitárias entre outras iniciativas. O exercício filantrópico tem sido apontado também como estímulo ao desenvolvimento da chamada responsabilidade social 114


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desenvolvida especialmente por empresas privadas, conceito que vem ganhando visibilidade crescente nos últimos anos. Assim como as demais expressões analisadas no presente tópico, a filantropia também não pode ser confundida com a solidariedade por não expressar na prática ações dialéticas e dinâmicas que se proponham ao indispensável intercâmbio, bilateralidade ou troca de benefícios e experiências. Gomberg28 chega a afirmar que as ações filantrópicas promovem uma espécie de silêncio político, que esconde a atenção das causas institucionais da pobreza – especialmente o capitalismo – desviando a responsabilidade das instituições que as promovem no sentido da busca de alternativas radicais para a solução dos problemas. Para outros autores, como Peter Singer,29 a filantropia solapa a verdadeira mudança política. Formas contemporâneas de solidariedade As interpretações teóricas sobre solidariedade variam entre diferentes autores. De qualquer modo é importante diferenciá-la principalmente dos termos acima abordados: caridade, compaixão e misericórdia, fraternidade e da própria filantropia. Alguns autores são até mais condescendentes, interpretando a solidariedade como ação ligada sempre e intestinamente a uma ação virtuosa ou mesmo à chamada ética das virtudes. Outros, contudo, mais agudos, aprofundam o conceito politizando-o e proporcionando-lhe mais concreção e visibilidade transformadora. O Diccionario Latinoamericano de Bioética define solidariedade como valor social, criado a partir da consciência de uma comunidade de interesses e, portanto, humanitário em si mesmo. Em consequência, incorpora a necessidade moral de ajudar, assistir, apoiar outras pessoas, como parte da responsabilidade pessoal.30 115


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A seguir, são apresentadas três formas contemporâneas de interpretação da solidariedade, procurando-se propiciar uma visão mais abrangente e dialética sobre o tema: solidariedade assistencial, solidariedade crítica e solidariedade radical. Solidariedade assistencial Trata-se do viés mais tradicional e muitas vezes distorcido do conceito de solidariedade. Esse tipo de ação solidária, cunhado criticamente de assistencialismo, tem como base o próprio voluntário ou doador e não o outro, que necessita – além da ajuda – sair da situação de desigualdade em que se encontra. A antítese do assistencialismo é o compromisso para com o outro.31 O modelo assistencialista, portanto, é uma ação que apenas mantém o status quo, não contribui para mudanças efetivas e transformadoras na vida dos beneficiários que, no caso, ao invés de sujeitos do processo assistencial passam a serem meros assistentes passivos do ato solidário, que pode até resolver uma situação transitória de inequidade ou necessidade, mas que não os tira efetivamente da situação anteriormente encontrada. Pelo contrário, apenas contribui para mantê-la e perpetuá-la, pela inexistência de qualquer elemento novo e transformador que venha a alterar a estrutura das relações existentes entre quem ajuda e quem é ajudado.32 Assim, a solidariedade assistencial pode apresentar várias conotações. Uma das mais conhecidas são as ações voluntárias assistencialistas, unilaterais e passivas, propiciadas, por exemplo, pelos chamados clubes de serviço, muitas vezes organizados em países periféricos com base em referenciais de fundo não muito claro e estabelecidos a partir dos países chamados centrais, do tipo clubes 116


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de leões ou outras formas de associações de origem semelhantes. Tais grupos promovem periodicamente, geralmente com o apoio de empresas privadas interessadas em determinado ramo de negócios, dias especiais de ajuda a grupos de pessoas necessitadas – usualmente portadoras de determinadas doenças – buscando visibilidade e reconhecimento público, o que naturalmente resulta em dividendos políticos e de outras naturezas para o grupo doador e seus parceiros. Atualmente as próprias empresas vêm articulando esse tipo de iniciativa, com o mesmo objetivo, informando a seus consumidores que parte da arrecadação em determinado dia será destinada a subsidiar ações de cunho assistencialista. Nesse contexto, é comum a criação de falsas expectativas nas comunidades receptoras, uma vez que as atividades propostas são implementadas episodicamente a partir de alguma urgência específica detectada ou mesmo estabelecidas em calendários artificialmente estabelecidos, as quais se pautam pela temporalidade e descontinuidade programática.31,32 A palavra assistencialismo é erroneamente considerada como sinônimo de assistência, o que causa indisposição entre aqueles que são a favor da verdadeira e genuína assistência, desinteressada e isenta de segundas intenções. A assistência como política social e de direito é de grande importância quando exercida de forma emergencial e responsável diante, por exemplo, de catástrofes naturais. É importante salientar, todavia, que tal iniciativa é diferente do assistencialismo exercido por alguns governos populistas como forma de manipular os cidadãos, impedindo a emancipação dos indivíduos e levando-os a depender de ações públicas para sua subsistência.33 Alguns países já têm definido, em suas cartas constitucionais, que é compromisso do Estado prover certos direitos básicos 117


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a seus cidadãos, tais como: morada, saúde, programas especiais de acesso de crianças à escola e de subsistência familiar entre outros. Se por um lado esses programas, quando comprometidos com verdadeiras mudanças sociais podem realmente trazer benefícios em médio e longo prazo, por outro, a depender da forma como são propostos e executados, criam um processo permanente de submissão dos presumíveis beneficiários. O assistencialismo nada mais é que um paternalismo velado com o objetivo de controle social, executado de forma a manter um falso equilíbrio entre os vulneráveis e a elite.34 Como chegam a afirmar alguns autores35 a violência e a criminalidade, no máximo, são abrandadas pelo assistencialismo público e privado. Solidariedade crítica Tal como definido por Selli e Garrafa, entende-se por solidariedade crítica a capacidade do agente de discernir, ou seja, de ter critérios capazes de ajudá-lo a discriminar as dimensões sociais e políticas indissociavelmente presentes na relação solidária. Assim, a solidariedade não se esgota enquanto relação típica da sociedade civil. Ao contrário, é dotada de um elemento político que tem como referência o Estado.36 A capacidade de entender essa dimensão ampliada, que se refere à cidadania e à possibilidade de intervir de forma ativa na definição de políticas públicas, também caracteriza tal dimensão crítica da solidariedade.37 Selli e Garrafa afirmam ainda que a identidade da solidariedade crítica está centrada no comprometimento do sujeito em suas intervenções e ações orgânicas, visando a proporcionar ao “outro” a conquista da autonomia, livre de paternalismos ou de qualquer outra forma de assistencialismo e autoritarismo, cuja 118


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expressão histórica concretiza-se no exercício da liberdade individual consagrada na Carta dos Direitos Humanos e da Constituição Brasileira.38 Considera-se, assim, que essas ações e intervenções devem privilegiar – fundamentalmente – o respeito ao pluralismo moral e a construção de transformações sociais includentes. Essa proposta epistemológica inclusive propõe a substituição da palavra autonomia por empoderamento e por libertação, termos que dão mais força à ideia de sujeitos livres de quaisquer amarras para tomar suas próprias decisões.39 Nesse sentido, o enfrentamento dos problemas sociais supõe articular as disposições governamentais com as iniciativas sociais, os recursos institucionais com as dinâmicas comunitárias, a competência técnica com a habilidade humana. A proposta da solidariedade como valor que guia as associações nas práticas voluntárias compreende tal fator agregador das forças civis, políticas e sociais.40 Os estudos sobre a solidariedade crítica têm como base a participação democrática das pessoas em sociedade, não preocupadas com benefício próprio ou simplesmente em ajudar o semelhante, mas em propiciar ao outro ferramentas concretas para que este consiga efetivamente sair da situação de vulnerabilidade que lhe coloca – nas interpretações tradicionais da solidariedade – como receptor e beneficiário passivo e unilateral de um ato solidário.38 Em outras palavras, ela sugere ações voluntárias relacionadas principalmente com políticas públicas direcionadas à organização social e que objetivem a minimização das desigualdades sociais. O processo participativo entre sociedade e Estado e construído de modo cooperativo pode ajudar na formação científica e educativa da sociedade, proporcionando o descobrimento e reforço de valores morais e éticos. Esse tipo de cooperação 119


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promove o desenvolvimento social e econômico, pois estimula a autoconfiança dos participantes, traz dignidade às pessoas envolvidas e mobiliza grupos sociais. Em essência, na epistemologia da solidariedade crítica, a palavra doação é substituída por cooperação. A solidariedade que se busca compreender e propor como motivação central para a atuação voluntária em organizações da sociedade civil é um valor ligado à própria organização da sociedade moderna. Essa organização, por definição, não deriva de doutrinas políticas ou religiosas, que por sua natureza são parciais. Contudo, é um valor central e serve de motivador para associações voluntárias que tenham como objetivo principal propiciar benefícios reais aos necessitados.41 Em sua dimensão ética, designa um valor imanente à condição humana, que decorre do fato de os seres humanos viverem em comunidade, portanto, em relações interdependentes. O interesse pela proposta da solidariedade crítica como valor a orientar o serviço voluntário orgânico tem, entre outras justificativas, motivações provenientes da realidade social além de outras referências alicerçadas em vivências pessoais. A adjetivação crítica diz respeito à capacidade do agente em constatar as dimensões sociais – mas também políticas – da relação solidária. A capacidade de entender essa dimensão, que se refere à cidadania e à possibilidade de intervir de forma ativa na definição de políticas públicas, também caracteriza tal dimensão crítica. O conceito correlato à fundamentação da solidariedade crítica e denominado de voluntariado orgânico, por sua vez, foi construído em analogia ao conceito de intelectual orgânico desenvolvido por Gramsci,42 sendo entendido como a participação ativa das pessoas que desenvolvem atividade voluntária na construção 120


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de condições necessárias à democratização efetiva do Estado em todas as suas dimensões. O exercício da solidariedade crítica proposto, quando realizado de forma democrática e bilateral, promove a cidadania sendo, portanto, diferente da solidariedade assistencialista que sufoca a autonomia e causa dependência e baixa autoestima. Pelo contrário, ela intervém de forma a minimizar as desigualdades sociais por meio do voluntariado orgânico, com participação politizada e comprometida da sociedade, com ampliação dos direitos individuais e coletivos já conquistados. Solidariedade radical Para o desenvolvimento desse tópico serão utilizados como referência estudos do filósofo australiano Peter Singer o qual, apesar de usar com frequência a palavra radical, não menciona a expressão solidariedade, preferindo empregar expressões como ajuda humanitária, doação ou mesmo caridade. Contudo, o conceito de solidariedade, formulado no presente capítulo, no sentido crítico do exercício de uma solidariedade responsável, tem consonância com parte das ideias de Singer. Suas reflexões levam o assunto aqui estudado preferencialmente para a seara das obrigações pessoais e individuais, trabalham de modo duro e direto o tema e responsabilizam pela pobreza existente no mundo todos aqueles que possuem recursos em excesso para a manutenção de suas vidas e que não se dispõem a ajudar os que precisam.43 Para Singer, “ajudar não é, como se costuma pensar, um ato caridoso, digno de ser praticado, mas do qual não é errado eximir-se; é uma coisa que deve ser feita por todos” (p. 241-2).44 121


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Para ele a riqueza dos habitantes dos países ricos permite que estes disponham de uma renda da qual possam abrir mão sem com isso se privar das necessidades básicas da vida, podendo usá-las para diminuir a pobreza absoluta no mundo: “Quanto nos sentimos obrigados a dar, vai depender daquilo que julgamos ser de importância moral comparável à pobreza que podemos evitar: roupas e jantares caros, um segundo carro, férias no exterior...” (p. 243).44 Singer defende ainda que o fato de uma pessoa estar próxima a nós não significa que devamos preocupar-nos mais com ela do que com outras pessoas que por acaso estão distantes dos nossos olhos e de nossas vidas. Para ele o dever moral deve ser sempre imparcial; nesse sentido, defende que, caso estejamos de acordo com os princípios de universalidade, igualdade ou imparcialidade, não podemos menosprezar uma pessoa apenas porque ela está distante de nós ou nós distantes dela. Para ele, um dos problemas das sociedades modernas é que sempre nos sentimos menos culpados se pudermos apontar outras pessoas que na mesma situação também nada fizeram, pois, nesse contexto, somos influenciados pelo que as pessoas à nossa volta fazem e esperam que façamos. Na leitura da obra de Singer, se pode perceber que suas afirmações não dizem respeito à responsabilidade pública dos governos, mas especialmente a cada indivíduo que tem possibilidade econômica de fazer alguma coisa para melhorar a situação de pobreza constatada pelo mundo e não o faz. Nesses casos, embora a individualidade vertical da proposta, seu radicalismo é contundente: “Se o fato de permitir que alguém morra não é intrinsecamente diferente de matar alguém, fica a impressão de que somos todos assassinos” (p. 234).44 Segundo ele, a falta de 122


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uma vítima identificável não tem importância moral, ainda que possa ter um papel importante quanto à explicação de nossas atitudes: “A ideia de que somos diretamente responsáveis por aqueles que matamos, mas não pelos que deixamos de ajudar, decorre de uma noção muito questionável de responsabilidade...” (p. 239).44 Para o autor aqui referido, se estiver ao nosso alcance impedir que algo de ruim aconteça sem que com isso sacrifiquemos nada de importância moral comparável, é o que devemos fazer. Em um contexto que chama de princípios indiscutíveis, chega a propor uma versão radical, assim denominada por ele, para impedir as más ocorrências. Tal versão radical exige das pessoas que impeçam a ocorrência de maus acontecimentos, a não ser que ao fazê-lo estejam sacrificando algo de significado moral comparável, reduzindo-as a um nível que chama de utilidade marginal.44 Ele confessa que chegou a defender uma versão mais moderada que recomenda impedirmos más ocorrências a não ser que, para fazê-lo, tenhamos que sacrificar alguma coisa moralmente significativa, mas conclui que a versão radical lhe parece a mais correta. Reforça ainda que concebemos a ideia de caridade como parte de respostas individuais de pessoas, enquanto a ideia mais ampla de justiça parece ser a mais adequada, pois não engloba simplesmente aquilo que os indivíduos fazem uns aos outros, mas também as estruturas e relações gerais que existem, ou devem existir, em sociedade. Considerações finais O presente estudo teve como objetivo discutir o princípio da solidariedade e cooperação, incluído na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco, uma vez que tal 123


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princípio até então não estava presente – pelo menos diretamente – no contexto da bioética internacional. Como termo relativamente novo na agenda bioética, sua análise e interpretação passam a ser importantes para melhor compreensão e sedimentação de seu conceito nos meios acadêmicos que passam a utilizá-lo em suas pesquisas. Para tanto, fundamentou-se o texto em três partes distintas e complementares. Na primeira delas foi feito um breve histórico sobre a origem e evolução do conceito de solidariedade. Na segunda, foram analisados alguns termos que, com frequência, são equivocadamente confundidos como solidariedade: caridade, compaixão, fraternidade e filantropia. No terceiro, finalmente, são apresentadas e discutidas três formas distintas de interpretação de ações solidárias que vem sendo implementadas no mundo contemporâneo: a solidariedade assistencial, a solidariedade crítica e a solidariedade radical. Como pode ser visto pela explanação acima, existe clara diferença entre as vertentes de solidariedade propostas e expostas. Enquanto a solidariedade assistencial, com base em ações unilaterais centradas nos próprios promotores da ajuda, não tem compromisso permanente com aqueles que são ajudados, a solidariedade radical avança no sentido de ajudas humanitárias reais e concretas a pessoas e comunidades necessitadas. Todavia, embora esta última chegue a evocar o princípio da justiça em contraponto às ajudas individuais, também não alcança oferecer a indivíduos e grupos carentes e marginais os mecanismos efetivos de empoderamento e libertação para tomadas de decisões futuras realmente livres e isentas de pressões em suas vidas. Já a solidariedade crítica significa mais do que uma doação, ajuda ou ato caridoso: é um ato programático orgânico 124


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e coletivo, executado com base no compromisso sociopolítico bilateral dos atores envolvidos no processo de doação e recepção. Diferentemente das outras duas (assistencial e radical), propõe ações transformadoras do status quo daquelas pessoas que estão do lado mais frágil da equação, que possam contribuir concretamente para a melhora de suas vidas e ajudá-las efetivamente a libertar-se das amarras que as mantém marginalizadas do desenvolvimento societário mundial. Ações solidárias e críticas, implementadas com rigor e justiça, com base no sentido político que se configura por meio da cooperação, são capazes de transformar pessoas, sociedades e até mesmo países. A construção de plantas industriais de medicamentos antirretrovirais em países africanos e patrocinadas por nações industrializadas, por exemplo, sem o objetivo único do lucro, mas centradas no apoio sincero instrumentalizado pela transferência de conhecimento e tecnologia, pode se transformar em vetor concreto de independência, empoderamento e libertação nas nações receptoras. Para Paulo Freire,45 o exercício da solidariedade exige um mínimo de autenticidade dos seus agentes, passando necessariamente pela conquista da democracia e do respeito à pluralidade de ideias e culturas. Para o autor, a solidariedade, mais do que um ato ou ação isolada, é um compromisso inalienável de cada pessoa, de cada ser humano e dos próprios Estados para com as pessoas mais necessitadas, objetivando-se que saiam da situação de exclusão e marginalidade em que se encontram. A solidariedade é hoje, um tema crescentemente lembrado seja por organismos internacionais, pela mídia e mesmo por governos. Muitos países já chegaram a incluí-la em suas Cartas Constitucionais, entendendo-a como um princípio social relacionado 125


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com a construção de sociedades mais livres e justas. Alguns textos constitucionais, como o brasileiro, sugerem mudanças sociais a partir de formas solidárias de participação, com o Estado trabalhando em conjunto com a sociedade no objetivo de criar novos valores voltados aos próprios cidadãos e à cidadania.46 A construção de uma ética solidária pode partir de diferentes motivações – com destaque especial no presente estudo para a solidariedade crítica – para aquelas iniciativas de preferência públicas, mas também individuais e privadas, que tenham o real intuito de diminuir as diferenças e melhorar a qualidade de vida entre os diversos segmentos sociais, além de instrumentalizar os atores menos aquinhoados no sentido de sua emancipação cidadã. Nesse caso, é indispensável para sua interpretação adequada, que se tenha uma visão crítica diferencial entre a compaixão e o utilitarismo como comportamentos sociais distintos e ao mesmo tempo complementares, que fortalecem a luta pela emancipação das classes vulneráveis por meio de ações caritativas ou filantrópicas, mas que – igualmente – podem estar determinando a dominação dos mais favorecidos tendo a mesma solidariedade como estratégia.

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Volnei Garrafa – Professor titular da UnB. Coordenador da Cátedra Unesco e do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília-DF, Brasil. Membro do International Bioethics Committee da Unesco.

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Sheila Pereira Soares – Enfermeira da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Mestre, especialista e doutoranda em Bioética pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília-DF, Brasil.

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PALESTRA HUMANIDADE E PRÁTICA CLÍNICA Sessão Solene de Posse de Novos Membros Titulares ocorrida em 17-9-2013

PALESTRANTE ACAD. DR. ROBERTO LUIZ d’ÁVILA – Presidente do Conselho Federal de Medicina, Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Neurociências e Comportamento.

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oa noite a todos. Quero inicialmente agradecer a gentileza deste convite, que muito me honra – como acadêmico

da Academia Catarinense de Medicina, como orador inclusive daquela Academia a que tenho o orgulho e a honra de pertencer – ser convidado para fazer uma fala em uma festa como esta em que seis novos integrantes da Academia de Medicina de Brasília passam a fazer parte desse grupo de imortais, seletamente imortais. Quero deixar registrada, já desde o início, a gentileza de Dra. Janice Magalhães Lamas. O que eu trago não é nenhuma novidade. Tentei e penso que pude melhorar alguma coisa de uma apresentação que fiz pela primeira vez a respeito deste tema em um fórum nosso de ensino médico do Conselho Federal de Medicina, baseado em 133


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outra experiência sobre a questão das Artes, especialmente as Artes Liberais, a prática médica e o exercício da medicina. Mas não esperem muita coisa. Não deixem que a expectativa lhes absorva, porque sou um médico clínico comum, de uma província do Sul do Brasil, um ilhéu. Portanto, com a alma de um ilhéu é que faço esta apresentação. Temos uma resolução do Conselho Federal que orienta todos os expositores no início da sua palestra a apresentar uma declaração de conflitos de interesses. Existem muitos colegas, e isso não é feio, isso não é pecado, que são patrocinados pela indústria farmacêutica, pela indústria de equipamentos médicos e como não é pecado, como não é feio e como devemos ser remunerados pelo trabalho que fazemos, o que importa é a transparência, é a declaração de ausência de conflito de interesses. Se não é feio, nada temos a esconder. Todos necessitam saber qual é minha relação com quem me patrocina numa apresentação. Não há nenhum segredo. Estou aqui patrocinado pelo Conselho Federal, que faz isso praticamente toda semana, para Brasília ou para outro Estado do País no desenvolvimento da minha atividade como Presidente desta casa. Portanto, não há nenhum problema em declarar. São os potenciais conflitos de interesses que, principalmente nós, médicos, apresentamos. Precisamos dizer a quem nos escuta se há e qual é o tipo de conflito existente, desde o patrocínio, algum tipo de patrocínio, a ações na indústria, por exemplo. Existem colegas que têm ações em uma indústria e vão falar sobre um medicamento daquela indústria sem revelar o vínculo com a qual ele tem. Ele pode falar como professor de uma universidade famosa, de preferência do eixo Rio–São Paulo, mas poderia muito bem ser daqui de Brasília, mas sem revelar o conflito. Declarar os conflitos de interesses quando houver é 134


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fundamental em toda apresentação, e espero que nós, médicos, façamos isso com mais frequência. Apenas para relembrar, a medicina sempre foi conhecida como ciência e arte. Entramos na escola de medicina ouvindo isto: medicina é ciência e arte. Como essa frase nos acompanha há muito, ela teve uma conotação no passado e tem uma conotação diferente nos dias de hoje. No passado, a ciência era o máximo aonde poderíamos chegar. Era um conhecimento sistemático, mas pautado em evidências. Se baseados na experiência, eram conhecimentos perfeitamente refutáveis. O autor desse conceito de ciência no passado é Karl Popper, todos devem conhecê-lo, e ele apresenta isso muito claramente, diferenciando esses conceitos nos dias atuais. A arte era uma tecnê, mas só dada àqueles que pertenciam a uma corporação, e sabemos todos que, até o século X, era ensinada de pai para filho sem haver uma escola formal. A primeira escola de medicina apareceu em fins do século X. Formava, então, apenas práticos qualificados. A partir, praticamente, do meado do século XIX, a partir de Claude Bernard, a escola nos ensinou a considerar com metodologia científica tudo aquilo que constituísse um objetivo. Está claro que, nos últimos cinquenta ou sessenta anos, esse cientifismo aumentou em alguns lugares e passou a ser um opressor do conhecimento. Não se reconhece como conhecimento científico aquilo que não se submete a um método científico, que não possa ser comprovado e reproduzido. É muito interessante esse novo conceito de ciência. No entanto, é muito interessante o conceito de arte especialmente aplicada à medicina. Principalmente a arte médica que tem caráter relacional mediador de desejos, de paixões e 135


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principalmente de afetos. Essa é a grande diferença que nos coloca em uma situação muito especial, embora estejamos vivendo um momento em que, nos cursos de medicina, essa não é a parte mais abordada. Exigimos dos nossos alunos o conhecimento técnico. Somos rigorosos nas provas, exigimos que eles decorem a etiologia patogênica, a fisiopatologia, a clínica e as opções terapêuticas, mas falamos muito pouco da parte relacional, dessa ação intermediadora que move o mundo e move as pessoas, que são suas paixões, seus desejos e seus afetos. Continuamos, desde o início do século passado, até chegar a Edmundo Pelegrino, um dos maiores eticistas do mundo, recentemente falecido. A medicina é a mais humana das ciências – este é um diferencial –, e a mais científica das humanidades. Vamos trabalhar um pouquinho no que são essas humanidades, contempladas do ponto de vista do mundo de hoje. Willian Osler já havia consagrado: “A medicina é a ciência das incertezas e a arte da probabilidade”. Vou expor alguns conceitos provindos de bons pensadores porque esses conceitos são fundamentais. Qual é o médico que desejamos? Um médico que seja bom tecnicamente, mas não consegue se relacionar com seu paciente ou aquele que consegue se relacionar muito bem, é envolvente, é carinhoso, é um bom relacionador de desejos, de afetos, de paixão, mas tecnicamente é despreparado? Qual o médico que eu quero ter à beira do meu leito, que me trata diante de uma dúvida de diagnóstico? A gente escuta com muita frequência as pessoas se queixarem: “Aquele médico é um cavalo”. Já ouviram isso? Pode ser muito bom tecnicamente, mas ele é um cavalo na maneira de agir. 136


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Quantos médicos bons conhecemos que não sabem fazer uma aproximação, uma chegada à beira do leito de modo bem educado, de maneira humilde, que respeite a figura do outro, do enfermo, aquele que sofre? Parece que o médico ideal é aquele que consegue associar uma boa formação técnica a um comportamento esperado, desejado. Estou completando trinta anos de Conselho Regional de Medicina em Santa Catarina. Sou aquilo que chamam de jurássico. Esse ano, pela primeira vez em trinta anos, não me candidatei ao Conselho Regional. Entendi que trinta anos de doação, de trabalho dedicado ao Conselho de Santa Catarina foram suficientes. Minha experiência mostra que muitas vezes médicos tecnicamente perfeitos, com todo o conhecimento científico foram denunciados ao Conselho de Medicina. As pessoas reclamaram. Ele sequer errou o diagnóstico, mas a maneira com que atendeu foi o suficiente para motivar uma denúncia, uma demanda contra ele no Conselho de Medicina. Há também o contrário: médicos que erraram grosseiramente, mas a família não o denunciou e, quando perguntamos à família por que não houve denúncia, eles disseram: “Ele estava do nosso lado, sempre que ligávamos ele nos atendia, sempre que chamávamos ele vinha”. Dizíamos: “Mas ele errou”. Acrescentavam: “Mas ele foi humano, ele esteve conosco nos momentos difíceis. Ele não nos abandonou”. É interessantíssimo como as pessoas agem em sua subjetividade – e essa é uma questão muito interessante. O que leva uma pessoa a denunciar um médico é a percepção de cuidado. Se ela não se sentir cuidada, ficará muito predisposta a denunciar, mesmo que o médico não tenha cometido nenhum erro técnico. Essa competência para interagir com as expectativas, com aquilo que o paciente espera de nós é o grande segredo na formação dos nossos médicos. 137


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Parece que falhamos, parece que continuamos falhando, parece que nossos jovens estão se afastando dessa competência de interagir, essa competência de ser um mediador de desejos, de paixões, de afetos. Porque não sabemos, temos que bater no peito, fazer mea culpa e perguntarmos em que erramos, porque deixamos de ser exemplos como nossos mestres foram para nós e, por isso, procuramos atender bem, atender adequadamente. A grande reclamação hoje é do distanciamento, do médico que não olha, que não toca, que não pergunta pela vida em volta, pelo entorno da pessoa, pelas suas relações, pelos seus desejos, pelos seus afetos, pelas suas paixões. Essa é a grande ausência que as pessoas estão sentindo de nós. O charlatão consegue fazer isso com enorme facilidade. Eles têm grande clientela. Pode-se mesmo observar que todo charlatão tem numerosa clientela. Qual o critério que nós, médicos, utilizamos para procurar um colega? Quando procuro um colega ou encaminho meus pais, meus filhos ou meus netos a um colega, esse é o meu reconhecimento de que ele é competente. Sua competência não é só científica, mas humanística para cuidar dos meus próximos. Este é o pedestal, é o reconhecimento da sua competência. Entretanto, o charlatão não é reconhecido pelos seus pares, mas por sua clientela, já que ele consegue tocar seus clientes de maneira muito especial. Lembremos um pouco de Fernando Pessoa, que continua sempre atual, um dos maiores poetas da língua portuguesa, ao menos é assim reconhecido. Ele nos expõe claramente: “Como é fácil trocar palavras, mas difícil é interpretar os silêncios. É fácil caminhar lado a lado, difícil é saber como se encontrar. É fácil beijar o rosto, difícil é chegar ao coração”. Parece que 138


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perdemos, esquecemos esses caminhos no exercício da profissão e precisamos resgatá-los. Qual seria nosso papel? Vamos, antes de entrar nas humanidades, entrar nas artes de um modo geral. Qual seria o papel no regaste dessa condição, no retorno à possibilidade de ir até o coração das pessoas? As artes. Vamos citar as artes literárias. O artista atinge o público a distância, no tempo e no espaço. A mensagem não mais se modifica e, então, depende da interpretação, da mentalização, da criação que construímos em nossa mente. Às vezes, o filme daquele livro acaba destruindo toda a imagem que construí naquela leitura, destroça a própria construção que fiz na interpretação que me servia, que me era útil. Os pintores dizem isso. Paul Valéry disse: ”Eu não pinto o que vejo, não pinto o que quero, eu pinto o que eu sou.” É muito interessante essa forma de ver o mundo, de interpretar o mundo. Vemos o mundo como somos, não como realmente ele é. Nas artes cênicas, o artista atinge sua plateia do local da sua cena, não é no tempo ou na distância, não é de longe, mas naquela hora, naquele momento, na cena que se passa. A mensagem não sofre modificações, depende da interpretação. Por isso, nos entusiasmamos tanto quando achamos que o interprete foi mais real, mais sincero, mais verdadeiro na expressão da sua arte. Isso modifica substancialmente nossa interpretação também. Impressionante como o intérprete, ao agir, ao representar, interfere em nossa interpretação daquele momento cênico. O que existe de médicos que tocam instrumentos... Em um grupo de colegas da Bahia, nos intervalos de um evento que fizemos sobre direito médico, apresentaram-se alguns médicos músicos. No Congresso Brasileiro de Humanidades que vamos 139


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fazer em outubro em Salvador, na Bahia, já estamos também com a participação de alguns grupos de colegas que cantam, que tocam, que pintam, que fazem esculturas maravilhosas. Um amigo de Santa Catarina, cirurgião plástico, o Rodrigo D’ Eça, foi meu vice-presidente na época em que fui presidente no Conselho de Santa Catarina. Ele usa muito vértebras de baleia, o que nós temos muito em Santa Catarina, pois com alguma frequência alguns esqueletos são achados ali nas praias. Lá, nós tínhamos grandes armações, tanto que, em vários lugares, como Armação da Piedade, Armação do Pântano do Sul, que eram locais onde se caçavam baleias com aqueles barcos baleeiros. Então, ele usa aquelas vértebras de baleia e faz esculturas com uma precisão, com uma técnica impressionante. O que temos de colegas com talentos musicais, artísticos, escritores é impressionante. Penso fazer uma pesquisa para saber se em outras profissões existem também tantos artistas como ocorre no âmbito da medicina. É impressionante o número de artistas. Realizamos três congressos de medicina e arte. Um em São Paulo, um em Curitiba e um na Bahia. Houve enorme sucesso, porque nos intervalos tínhamos apresentações dessas habilidades. Escutei pela primeira vez o Hino Nacional da maneira especial como foi tocado por Artur Moreira Lima. Que diferente, que emoção diferente! Aonde esse hino levou cada um de nós na interpretação de cada nota musical! Algumas passagens pareciam mesmo não ser o próprio hino, mas outra música que me levava a algum lugar, guiado pela interpretação do artista. Não há dúvida que a musicoterapia, nessa condição, tem um papel também de alta relevância. As artes ambientais, em que a interação com o público é direta, alcança a própria vida desse público, tanto no aspecto individual 140


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como no coletivo. Em Pernambuco, por exemplo, há uma experiência muito boa de trabalho com artes, que chamam de arteterapia. É possível dedicar-se a essas atividades. Contemplo aqui os três pontos que quero explorar do médico como artista. Não o artista músico, pintor ou escritor, mas o artista médico. Se nós, médicos, soubéssemos o quanto temos de artista, cada ato médico nosso poderia ser considerado como obra de arte a depender de como eu coloco minha alma nesse trabalho. O médico atinge o público à distância, igual à arte literária ou figurativa. Atinge o público um a um como um artista cênico, atinge ao longo da vida como artista ambiental. O artista interpreta a obra ou extrai dos fatos mensagens abstratas. O médico interpreta o paciente por meio de suas histórias, narrações ou sinais objetivos e subjetivos, que ele pode revelar e quantificar. Parece ninguém se dar conta de que cada ato médico é também um trabalho de arte. Talvez houvesse mais essa percepção se resgatássemos essas habilidades, ensinando aos nossos alunos que isso é possível, que isso é uma arte, que medicina é ciência e arte. Damos muita importância à ciência e negligenciamos a parte artística da nossa atividade. A gente talvez possa transformar a sociedade. Como médicos que somos, temos competência para isso. Em qualquer pessoa, vive um artista e, seja qual for sua arte, esta é a beleza de sua atividade. Vejam que se pode enquadrar todos nós, médicos, nessa definição de artista. Torna-se, o médico, uma pessoa mais inventiva, penetrante, ousada, comunicativa, mais interessante aos olhos dos outros porque agita, desconcerta, ilumina, cria, tem o poder criativo que todo artista encerra dentro de si. Um colega publicou um artigo em 1988 do qual retirei: “Cada vez que um médico escreve um poema, pega um pincel para pintar um quadro, faz uma escultura, produz 141


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uma fotografia artística, toca um instrumento musical, canta uma peça de coral ou escreve um texto literário, esse médico, ao participar de um ato criativo, reafirma, sustenta, embeleza alguns dos princípios básicos da medicina”. É esse trabalho com medicina e arte que nos faz diferentes. Como exemplos, existem muitos nomes famosos, mas há uma série de anônimos competentes, extremamente competentes, que entraram no ramo da arte. São escritores, pintores, alguns brasileiros, a relação é enorme. A Sociedade Brasileira de Médicos Escritores tem milhares de excelentes autores por todo o Brasil. Há médicos pintores, médicos escultores, mágicos como Bill Félix, que já foi convidado uma vez em um evento nosso para dar uma palestra sobre mágicas. É um ortopedista em Belo Horizonte, trabalha em uma Clínica de Ortopedia e, à noite, ele se transforma em Bill Félix, fazendo mágicas, encantando a todos. É interessantíssimo como essas pessoas são diferentes. Aí aparece a arte clínica, para a qual eu vou chegando, afunilando, porque se eu não tenho nenhum dom, se eu não sei pintar, não sei escrever, não sei cantar, posso não ter ainda descoberto dentro de mim, essa variz, que não é nem uma veia artística, essa variz ainda adormecida dentro de mim, que me coloca na posição de um artista conceitual e reconhecido. Mas todos nós temos competência, até porque trabalhamos com aquilo que há de mais puro, embora mais difícil de lidar, que é o Ser Humano. Então, temos que contracenar com nosso público, temos que ter essa dupla atuação em que o ator paciente é aquele que não se percebe como ator. Na arte clínica, o principal papel do ator, que é o médico, é fazer seu público participar, individualmente, e se revelar em cada paciente. E aí saímos daquela mesmice, daquela coisa pequena, menor que, por 142


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incrível que pareça, é apenas fazer o diagnóstico e a terapêutica. Passamos então, como disse um autor, a “abrir as asas sobre a própria pessoa, o próprio médico e o paciente que se apresenta.” Este seria o segredo. Em como conseguir isso é que está o grande desafio. Como fazer isso em um mundo globalizado, de prazeres rápidos, de busca de coisas fúteis sem muito valor, com preço, mas sem valor importante, definido. Uma juventude rápida, em que está um ao lado do outro, mas mandam MSM, uma mensagem para quem está ali ao lado. Como romper isso seria um segredo. E aí, um pouquinho de Quintana, gaúcho, que morava em um hotel em Porto Alegre. Eu sempre o menciono quando falo de terminalidade da vida. Uma quadrinha dele da qual gosto muito: “A vida é uma estranha hospedaria De onde se parte quase sempre às tontas, Por isso nossa conta nunca está em dia E nossas malas nunca estão prontas.” Quer dizer, em poucas palavras ele amarra o conceito de partida a estar preparado ou não para a partida. Ele observou isso, que somos donos dos nossos atos, mas não somos donos dos nossos sentimentos, somos culpados pelo que fazemos, mas não somos culpados pelo que sentimos. Podemos prometer atos, mas não podemos prometer sentimentos. Atos são pássaros engaiolados, sentimentos são pássaros em voo. Observem esta metáfora: Passarinho tem asas do lado de fora, a gente tem asas do lado de dentro. E ela volta, também com Quintana: “Atos são passarinhos engaiolados, sentimentos são passarinhos em voo”. São muito interessantes as maneiras de escrever. De um grande médico, também um dos maiores humanistas, um filósofo 143


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espanhol, Gregório Marañon, citamos: “Um grande médico é aquele que tem amor invariável ao que sofre e generosidade na prestação da ciência com a ideia cravada no coração de que trabalhamos com instrumentos imperfeitos e meios de idade insegura, porém com a consciência certa de que aonde não pode chegar o saber o amor chega”. Isso é o que faz diferença entre sermos médicos melhores ou não. Penso, e aqui vou fazer um parêntese rapidamente, já me caminhando para o comentário final, a respeito do papel das academias. Não tenho tido tempo para me dedicar à nossa Academia de Medicina Catarinense, mas, assim que deixar o Conselho Federal, penso em me dedicar a esse trabalho belíssimo das Academias. Já deixei o Regional e, ano que vem, a partir de outubro, deixarei o Federal, para o qual não mais irei concorrer. Como já estou aposentado na Universidade Federal de Santa Catarina e no Ministério da Saúde, penso que temos uma tarefa importantíssima, de voltarmos voluntariamente para a sala de aula. Pensamos em elaborar alguns cursos, algumas coisas sobre a questão do desenvolvimento desse potencial artístico a que me referi, de resgatar a chamada Humanidades com seu retorno ao ensino médico. Penso que esse retorno é de competência nossa, visto que os professores mais jovens estão sempre a correr de um lado para outro, já não vão mais à beira do leito. Aquela visita à beira do leito agora é substituída por reuniões de estudos em volta de uma mesa, cada um com seu computador aberto, com muitas radiografias, e o caso clínico é discutido longe do doente. O paciente está lá na enfermaria. Porque tudo mudou, as coisas mudaram. Mas precisamos voltar à beira do leito e levar conosco os alunos. Precisamos ter humildade. Não somos deuses, temos defeitos, erramos. Quando é que vamos assumir essa possibilidade 144


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de sermos humanos iguais aos humanos que atendemos? A grande diferença é que eles estão em um momento de vulnerabilidade, de fragilidade e sofrem por isso. Nós estamos ainda em um momento de higidez, detemos o conhecimento, sabemos um pouco mais do que eles porque tivemos essa oportunidade. Aqui entra o regaste das Humanidades. Por meio destas é que se pode chegar a conhecimentos mais abrangentes e precisos da realidade humana. É imprescindível internar-se no próximo pelo conhecimento da antropologia, da sociologia, da filosofia, da psicologia. Isto se perdeu, deixou de ter importância na formação médica. Com esses elementos vou conhecer mais a realidade humana, a vida pessoal de cada um. Artes e Humanidades são como janelas ou então como bisturis que possibilitam entrar no interior da alma humana, no âmago da vida pessoal do próximo, o que afinal é o princípio básico para a obtenção do saber médico. Que se conheçam todas as teorias, que se dominem todas as técnicas. Mas, para tocar uma alma humana, que seja apenas outra alma. Assim, vamos dizer: “Eu o toco, eu sei que você sofre porque eu também sofro, porque eu também já senti dor, porque eu também já passei pela doença”. Parece que os médicos, depois que adoecem, se tornam melhores médicos, mais humanos. É interessante porque com a evolução da medicina o que ganhamos em técnica perdemos em cuidados, em aproximação, em toque. Tocar uma pessoa é mágico. Não existe nada mais mágico do que o médico tocar uma pessoa, examinar uma pessoa. É impressionante. Se nós sempre pensássemos nisso, no poder que as pessoas nos conferem, estaríamos conscientes de que as pessoas só se despem e só se deixam ser tocadas por quem elas amam. A quem não nos ama 145


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ou a quem não conhecemos ou confiamos não permitimos nem mesmo que esbarrem em nosso corpo, como se contrai ou se retrai num esbarrão na rua. Mas as pessoas se despem e permitem que a toquemos. Se dizemos que se trata de um abdômen agudo, que é preciso ir agora para o centro cirúrgico, que vamos operar, as pessoas dizem sim, confiam. Mas estamos jogando tudo isso fora, porque não mais tocamos, não mais nos aproximamos, sequer perguntamos quem são os seus, onde o doente vive, o que ele tem, o que não tem, o que ele espera da vida, quais são seus sonhos, seu planos. Quem é que pergunta tudo isso hoje? Talvez nós, cabeças brancas de uma geração que viveu e aprendeu isso dos velhos mestres, mas nem sempre os jovens médicos. Até porque, volto a dizer, seus professores estão correndo de um lado para outro, também não estão abordando seus pacientes com essa visão, com esse toque. E aí, então, entramos para encerrar a palestra com as Humanidades. De onde vem, e que história é essa de Humanidades em medicina, de Humanidades médicas? Vou então buscar o século XV, na Renascença, com o movimento filosófico e cultural chamado de Humanismo, que “umanisti” sem H eram os eruditos professores das Humanidades. Nessa época, eram quatro disciplinas que faziam parte da matéria, isso na Itália, berço do humanismo: gramática, retórica, história e filosofia. Poderíamos hoje dar um conceito mais aceitável do ponto de vista científico, como um conjunto de disciplinas que contribuem para a formação do ser humano, independentemente de qualquer finalidade utilitária e imediata, como se nós fôssemos humanistas, porque temos objetivos utilitários. Mas tudo começou com Carlos Magno, no século IX, já a partir da criação das Universidades com as sete artes liberais. 146


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O trívio, gramática, retórica e lógica e o quadrívio: aritmética, geometria, astronomia e música. Isso mudou ao longo do tempo, da Renascença para cá. Quem é um pouco mais antigo, como eu, sabe que havia o Científico, o Clássico e ainda o curso Normal. O Clássico era exatamente aquele conjunto das artes liberais com uma formação humanística. Nós, que fomos para Medicina, fomos cursar o Científico, em que tínhamos de ser bons em Biologia, em Química, em Física. Talvez se tivéssemos cursado o Clássico naquela época, talvez fôssemos melhores médicos ainda, porque teríamos aprendido as artes liberais naquela época e seríamos, então, melhores. Mas vejam como tudo mudou: no século IX, poesia, retórica, música, literatura; no século XX, os estudos clássicos: filosofia, sociologia, antropologia; no século XXI, antropologia, sociologia, filosofia, história, literatura, cinema, pintura. Estas são as artes. Mas voltamos novamente ao paciente. O que a escola nos ensina hoje, é que o paciente é biologia pura, e eu tenho de aprender etiologia, etiopatogenia, fisiopatologia, quadro clínico. Não damos muita importância à biografia do paciente e ao seu simbolismo, ou seja, as pessoas são carregadas de valores, os gestos são simbólicos, a postura, a maneira de sentar, a maneira de falar, o tom da voz, o timbre da voz, são todos eles indicativos do seu simbolismo. Há quem diga – e não sou eu quem disse e, se disserem que fui eu, vou negar –, que as pessoas adoecem por alguém, para alguém, com alguém, que toda doença tem um destinatário. Olha que coisa impressionante. Contudo, não valorizamos isso, porque temos sempre na cabeça a questão do vetor, a questão do agente bacteriano, do vírus. Nós sempre temos uma 147


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etiopatogenia, uma causa a buscar, mas as pessoas são carregadas de simbolismo. Existem livros e livros escritos, citando a doença como metáfora. Se voltarmos a Mário Quintana, olha só o que ele escreve em sua simplicidade: “Se eu pudesse eu pegava essa dor e colocava em um envelope e devolvia para o remetente.” Ele está dizendo o que eu disse, que toda doença tem um destinatário ou, então, sempre algo ruim que me fizerem vou devolver para parar de sofrer. Bom, então não há dúvida que, além do caráter científico, técnico, eu preciso ter um componente ético, e ética é a conduta, a conduta que esperam de nós, essa é a grande diferença e não é mais possível, nos dias de hoje, ocorrer relações entre um médico e um paciente absolutamente assimétricas com o opressor que sabe e o oprimido que espera, que necessita de uma ajuda, não é isso? Então voltamos a esse tipo de relacionamento, uma coisa mais próxima. Vejam que a relação médico-paciente pode caminhar de grave, solene, inatingível, distante até à rápida e insensível, passando por uma compreensiva e genuína relação. Precisamos recuperar a valorização do enfermo como a razão de ser do encontro, da consulta, do ato profissional – como o ato mais fundamental. Ortega y Gasset, também espanhol, fala sobre isso: “Eu sou eu e o meu entorno, as minhas circunstâncias.” Se eu não conhecer essas circunstâncias eu não vou atingi-lo. Como se ensinam essas coisas? “O saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria se aprende com a vida e com os humildes” – ensina Cora Coralina. Aqui há uma constatação muito interessante. Adoramos contar e ouvir histórias e isso é curioso. Nós, os seres humanos, 148


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nós os homens, as mulheres, as crianças – viemos do colo da mãe e do pai, e felizes aqueles que cresceram no colo de mãe e pai ouvindo histórias, mesmo que fossem contos de fadas, mesmo que tivesse um lobo mau no meio do caminho, uma bruxa malvada. Hoje, com muito mais tempo, embora estando aqui durante a semana, aos 60 anos de idade, tendo seis netos, com dezessete anos a mais velha, hoje vestibulanda de medicina, e o mais novinho com 3 meses, eu acompanho as histórias que eles pedem para o avô contar. Até a de dezessete anos adora ouvir as histórias que eu tenho para contar. Inclusive a do programa Mais Médicos, as histórias que eu conheço do Programa Mais Médicos, do Brasil. Vejam que coisa impressionante. As novelas dão Ibope, a gente nunca assiste, sempre está passando pela sala e a televisão está ligada e por coincidência acompanhamos alguns capítulos, não é assim? É difícil ter a confissão de alguém que diz assistir a novelas ou acompanhar novelas, mas elas nos atraem porque são estórias. Quando não havia televisão, eram rádio-novelas que meu pai e minha mãe ouviam, porque são estórias. Adoramos fofocas, ouvir a história de alguém que casou, separou, fez isso ou aquilo. É da nossa índole, somos humanos e, por isso, precisamos saber estórias e contar estórias. Mas estamos perdendo isso na medicina. Uma das coisas mais fortes em medicina é ouvir e contar estórias também. A história é tão importante que os japoneses, quando quebram uma louça eles a consertam com ouro e a rachadura ou fratura é preenchida com ouro, pois acreditam que, quando algo já sofreu danos e tem uma estória se torna mais bonito e mais valioso. Vejam a diferença de cultura. 149


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Penso que devemos regatar isso definitivamente. Precisamos usar nosso conhecimento para ir na direção do outro. A reflexão é que liberta, pois o conhecimento oprime, não o conhecimento que é para oprimir aquele que me procura, mas é um conhecimento que precisa ir na direção do outro. Nada adianta um conhecimento que aprisiona, que não expande. Essa é a diferença em nossa responsabilidade. Eu sonho ainda, eu sonho poder, durante o exercício de um ato profissional médico, seja uma consulta, seja uma cirurgia, ainda ter a sensibilidade da violinista que chora ao tocar seu instrumento. Não importa o motivo de seu choro, pode ser até que esteja vivendo um problema relacional, existencial, pode até ser que ela esteja chorando de felicidade pelo ato que realiza, pode ser que ela esteja chorando pela música que toca seu coração. Não importa a interpretação, o importante é que ela sente e chora, não fazendo isso mecanicamente. Se nós pudéssemos – em cada ato profissional, em uma consulta ou uma cirurgia –, chorar também, seria maravilhoso. A última lembrança, que me agrada muito, que usei durante os 35 anos de professor na Federal de Santa Catarina, é um alerta para meus alunos, e que vai nos levar diretamente às Humanidades para resgatar uma medicina que pode parecer saudosista: é que sejamos também românticos e não esquecer que toda ação romântica é aquela que já traz embutida na própria ação a sua recompensa. Obrigado!

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PALESTRA CIRURGIA EM ISQUIÓPAGAS Sessão Plenária ocorrida em 22-10-2013

PALESTRANTE ACAD. PROF. DR. RUY ARCHER – Cirurgião pediatra, Chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Jesus, Rio de Janeiro (1960–1990), Professor da Universidade de Brasília e Diretor do Hospital Universitário de Brasília, UnB (1990–1993).

A

gradeço pela honra do convite para participar das sessões da Academia de Medicina de Brasília.

Tudo começou no dia 8 de maio 1980. Cheguei ao Hospital Jesus para cumprir meu horário de trabalho e fui procurado por um homem que carregava um embrulho feito com um cobertor, um volume grande. Queria falar comigo. Entrei em uma sala de exames, mandei que ele pusesse o embrulho em cima da mesa. Eram as gêmeas isquiópagas. Tinha dito à mulher, que havia tido parto cesáreo em um hospital do subúrbio, que as filhas tinham nascido mortas e que ele já tinha providenciado o enterro delas para a mulher não ver esse triste espetáculo. Em seguida, me perguntou: – O que o senhor pode fazer? 151


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Respondi: – Eu não sei o que posso fazer, mais vou estudar profundamente esse caso com todo cuidado, com todos os elementos de informação que eu puder obter para depois dar ao senhor minha opinião. Então, ele me disse: – Não, o senhor não vai me dar opinião nenhuma porque o senhor nunca mais vai me ver. Virou as costas e foi embora. Deixou as duas crianças em cima da mesa de exames no Hospital Jesus e foi embora, sumiu. Não tenho a menor critica à atitude desse sujeito. Acho que deve ter sido um choque muito grande para um casal de jovens que sonharam ter um filho como coisa maravilhosa e encontraram esse quadro. É realmente de tirar o juízo de qualquer pessoa. Ele foi embora e nunca mais o vi, nunca mais tive notícias dele. As crianças foram internadas no Hospital Jesus onde eu chefiava a Cirurgia Geral. O Hospital tinha apenas dois serviços: um de ortopedia, dirigido pelo Dr. Osvaldo Pinheiro Campos, que tratava pacientes com sequelas de pieliomielite, e outro serviço, o de Pediatria, dirigido pelo Dr. Ataíde Fonseca, um pediatra extraordinário, radicado também no Rio de Janeiro. O Hospital tinha, então, um serviço de ortopedia e um serviço de clínica pediátrica. Se alguma criança necessitava de trabalho cirúrgico, era removida para o Hospital onde havia cirurgiões gerais, que faziam as operações. Para este Hospital eu fiz concurso e fui designado chefe do serviço de cirurgia pediátrica a ser ainda criado. Daí, enfrentei de saída esse problema. As gêmeas isquiópagas passaram a ser o assunto do Instituto, meu e de toda a minha equipe de cirurgia. Soubemos, pela literatura da época, que tinha havido apenas dois casos em que uma das crianças sobreviveu. Um caso em Londres e outro em Singapura. 152


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Fomos estudar profundamente esse tipo de anomalia, que são as isquiópagas, e que nasceram com duas pernas fundidas e atrofiadas. Foram internadas e cuidadas pelas enfermeiras e pelos médicos do Hospital, que se apaixonaram por essas crianças, que foram batizadas por médicos. As enfermeiras se dedicaram extraordinariamente a elas. Foi uma luta muito grande mantê-las sob reserva para não ficarem expostas à visitação pública. Ficaram em um quarto particular do Hospital. O primeiro tempo cirúrgico que adotamos no tratamento foi a retirada daquelas pernas atrofiadas e grudadas e deixamos para posterior fechamento da cicatriz abdominal um retalho musculocutâneo das próprias pernas. A genitália estava praticamente normal nas duas crianças. Com o plano de trabalho de assistência a elas apuramos estes fatos curiosos: vê-se que do lado direito o rim de uma das pacientes desaguava na bexiga da outra no lado esquerdo. Essas duas tiveram que ter alterados o destino de dois ureteres para que cada um desaguasse em bexiga própria. Essa bexiga foi designada por meio de radiografias feitas com especialista em radiografia em crianças, Dr. Armando Amoedo, um médico radiologista excepcional, que me prestou grande auxílio diante das dificuldades que tive para solucionar os problemas. Não foi uma simples separação de crianças. Tiveram também que ser feitos reparos internos. Os órgãos genitais eram completos com útero e ovários. Um dos ureteres foi implantado na bexiga, mas houve dificuldades. Um dos rins desaguava na bexiga correta. Um dos ureteres foi transferido da inserção de uma das bexigas, posicionada superiormente, para a outra bexiga posicionada inferiormente. Esse foi o primeiro quebra-cabeça que encontramos, em que houve reinserção de dois ureteres em uma 153


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das bexiga e a transposição de outro ureter para outra bexiga. No ureter mais curto, fiz uma anastomose ureteroureteral para permitir o preenchimento vesical. Com relação ao aparelho digestivo encontramos um intestino delgado que se ligava a outro e desaguavam em um reto comum. Tivemos que separar certos trechos intestinais, fizemos colostomias, e o íleo teve de ser ligado a um segmento do reto e foi assim, com essa divisão do aparelho digestivo entre as duas pacientes, que pudemos corrigir a anomalia. Tivemos, no fim das contas, um segmento único de reto e as colostomias. Essas crianças mantêm até hoje as colostomias e se dão muito bem. Tivemos recentemente, há dois ou três meses, a visita delas em Brasília. Vieram aqui para me ver e estavam muito bem. São fagueiras, são pessoas felizes. Mostro, aqui, a todos as fotografias das crianças durante o tratamento. Se repararem, não há nas fotografias nenhuma criança chorando. Tudo foi feito no sentido de acarinhá-las, de dar conforto e segurança a elas no período da permanência hospitalar. Para usar os dois retalhos musculocutâneos que fecharam os dois lados da ferida nos membros inferiores, de uma e da outra criança, tivemos que expor os ossos de uma das pernas e construir os retalhos e, assim, a ferida foi fechada. Mostro aqui fotografias feitas durante o período pós-operatório imediato, uma no dia seguinte e outra três dias depois da cirurgia – e observem as caras. Aqui, em outra foto, já estão separadas, cada uma em sua cadeirinha, na festa junina do Hospital, a festa de São João. Outra fotografia delas também, mostra que tiveram um problema sério com as pernas artificiais. Foram inicialmente 154


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colocadas pernas rígidas, pernas duras. Quando tinham de sentar ficavam com perna esticada para cima. Conversei em Brasília com o Campos da Paz, do Sarah, e ele me disse: – Traga essas meninas, que eu vou colocar nelas pernas mecânicas com todas as articulações. Então, eu trouxe as crianças a Brasília. Vieram e mostro uma fotografia feita durante a viagem delas para cá. Nessa viagem, encontraram um cantor moderno, e eram fãs do cantor. Ficaram internadas no Sarah e receberam, cada uma, as pernas mecânicas. No mês passado, vieram me visitar, mas com muletas e sem as pernas mecânicas. Queixaram-se de que aquelas pernas eram muito boas, mas a fixação tinha que ser feita abaixo da cintura delas, o que trazia incômodos. Preferiram andar com as muletas. Inclusive, há um mês mais ou menos, compraram um automóvel, e as duas têm carteira de habilitação para dirigir automóveis. Uma está mais gorda do que a outra. Vieram com uma senhora, uma companheira de viagem, que se encantou com as moças, pois não são mais crianças, já que hoje estão com 32 anos e vieram a Brasília para me fazer uma visita. Passaram um fim de semana comigo, em minha casa. Quando terminei a cirurgia da separação delas, fui procurado por uma senhora que se declarou como avó materna das crianças. Como boa avó andou pesquisando na Casa de Saúde onde a nora se submeteu à cesariana. Começou a conversar com as enfermeiras para saber para onde foram depois levadas pelo o genro. A informação que ele deu à família foi que elas estavam mortas e que tinha providenciado o sepultamento. Ao término da operação, apareceu uma senhora que me disse ser avó das crianças, que já havia algum tempo ela vinha 155


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visitar as crianças como visita formal. Visitava e ia embora, mas estava pronta para receber as crianças em sua casa. Pelo que eu sei, agora recentemente essa senhora está muito mal, muito velhinha e incapaz de se levantar, bem como falar. Nesta fotografia, podemos ver esta senhora, a avó delas.

Dra. Glória Archer. Eu gostaria de complementar, dizer que as meninas foram criadas por essa avó, mas que teve um derrame. Até os 19 anos, elas ficaram na casa da avó, conforme elas mesmas me contaram quando estiveram lá em casa. Depois disso, com a avó de cama, sem poder fazer muito, alguém disse que ela não poderia mais cuidar delas, mas receberam uma pequena ajuda em dinheiro. Nessa ocasião, estavam com 19 anos de idade. Agora estão com 32 anos, estudaram, fizeram faculdade, já fizeram concurso e trabalham. Realmente conseguiram comprar o carro delas, todo adaptado, bonitinho.

Dr. Ruy Archer. São funcionárias da Embratel.

Dra. Glória Archer. Mudaram de emprego recentemente. Já me disseram que mudaram para outra coisa, mas adoram a nova atividade... Mexem com computador. A cabecinha delas podia estar muito complicada, mas, graças a Deus, me pareceram muito bem. Era o que eu queria completar. Obrigada.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO Pergunta. A mãe está desaparecida? 156


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Dra. Glória Archer. A mãe apareceu. É filha dessa senhora, a avó, mas não quer saber, nunca quis saber dessas meninas. Teve outro filho com outro pai. Esses pais já se separaram, e elas nunca viram o próprio pai. Inclusive, foi esta a primeira pergunta que elas fizeram quando a gente estava em casa, mais confortáveis, mais relaxadas: – Dr. Ruy, conte para a gente como foi a história do meu pai, porque a gente nunca viu esse pai, não sabemos, nunca ninguém quis ver a gente, só essa avó. Como foi que o senhor recebeu a gente? Então, Ruy contou a história do embrulho, do cobertor. Acabou contando a verdade e elas aceitaram bem, quer dizer, aparentemente bem. Explicamos o que ocorreu. Eles não querem e nunca mais quiseram ver as pacientes. A mãe não quer. Aliás, pelo jeito, ninguém mais da família. Pelo que eu entendi, elas moram no Rio de Janeiro, ali perto do Catupi, e trabalham. Mas estão levando a vida delas, e algumas vizinhas são muito amigas e as ajudam. Enfim, são uma vida...

Pergunta. Elas são independentes?

Dra. Glória Archer. São independentes e são ligadíssimas. As duas pensam de modo muito igual. Quando a gente faz uma pergunta a uma delas, respondem de maneira semelhante. É muito curioso.

Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. No início da apresentação, ao ver o caso, eu não calculava que o resultado poderia ser 157


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tão satisfatório. Inclusive quanto à cabeça das meninas com todos esses problemas, que são hoje pessoas úteis para a sociedade.

Acad. Dr. Ruy Archer. É produto do excesso de carinho que elas receberam.

Presidente da Academia Acad. Dra. Janice Magalhães. Foi uma experiência profissional extremamente corajosa, além de demonstrar técnica e conhecimento. Ficamos realmente admirados com esse caso de sua prática médica que é uma marca da sua vida, mas realmente é representativa para todos nós, que ficamos honrados de vê-lo nesta Academia e como acadêmico. Alguma pergunta que gostariam de fazer ao Dr. Ruy a respeito do procedimento cirúrgico propriamente dito? Então, muito obrigada pela presença e atenção de todos.

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PALESTRA DOGMAS EM RELAÇÃO À PROLACTINA Sessão Plenária ocorrida em 22-10-2013

PALESTRANTE ACAD. DR. LUIZ AUGUSTO CASULARI – Médico, especialista em endocrinologia e metabologia, doutor pela Universidade de Milão, Itália, orientador de mestrado profissional da Fepecs e do curso pós-graduação strictu sensu da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, UnB, Editor Geral da revista Brasília Médica, Associação Médica de Brasília.

O

termo dogma, o qual se origina do latim, dogma, do grego dógma, decisão, é um ponto fundamental e in-

discutível de uma doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema (1). A prolactina é um hormônio produzido na hipófise e tem como ação principal a produção de leite pela mama na época da lactação. O controle da sua secreção é realizado, principalmente, pela inibição exercida pela dopamina produzida nos neurônios dopaminérgicos tuberoinfundibulares do hipotálamo. Quando o aporte de dopamina nas células da hipófise diminui, há aumento na produção e secreção de prolactina pelos lactótrofos A sucção dos mamilos no momento da amamentação é um dos maiores 159


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estímulos naturais para a secreção de prolactina. O hormônio liberador do hormônio estimulante da tiroide (TRH) tem efeito de estímulo nas secreções do hormônio estimulante da tiroide (TSH) e da prolactina. Àqueles interessados em se aprofundar no conhecimento desses mecanismos do controle exercido pelo hipotálamo sobre a secreção da prolactina, recomendamos as revisões que fizemos (2-4). O objetivo desta apresentação é mostrar à Academia de Medicina de Brasília as pesquisas que realizamos sobre a prolactina e muitas delas tiveram o mérito de dar novos paradigmas sobre esse hormônio. Vamos mostrar os artigos que publicamos e somente utilizaremos aqueles de outros autores para dar base à discussão do argumento. Não vamos dar uma aula abrangente sobre a prolactina, mas recomendamos textos suficientemente abrangentes para que os interessados possam consultar (5). Hiperprolactinemia Define-se hiperprolactinemia quando a concentração da prolactina no sangue se encontra acima de 17 ng/mL no homem e 27 ng/mL na mulher. Porém, esses valores podem variar de acordo com o método de dosagem adotado pelo laboratório (2,3). A manifestação mais frequente nas mulheres é a amenorreia, que quase invariavelmente está presente quando as concentrações sanguíneas de prolactina estão acima de 80 ng/mL. Mas, outras alterações menstruais podem estar presentes, como oligomenorreia, polimenorreia e ciclos anovulatórios. A galactorreia ocorre em mais de 80% das mulheres. A osteoporose pode estar presente por ação própria da prolactina bem como pelo hipogonadismo decorrente da concentração elevada da prolactina. No homem, pode ocorrer diminuição da libido com sinais e sintomas 160


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devidos à compressão tumoral – cefaleia e déficit visual. A galactorreia é rara e patognomônica de prolactinoma (3) Causas de hiperprolactinemia O aumento da prolactina pode ter origem no hipotálamo, na hipófise ou no uso de medicamentos (2-4). Três causas foram objetos de estudos por nós realizados: síndrome dos ovários policísticos, estrogênios e hipotireoidismo. Dogma 1 A síndrome dos ovários policísticos é uma causa de hiperprolactinemia. Numerosas publicações mostram que mulheres com ovários policísticos têm teor de prolactina elevada. Para usar somente revisões como ilustração, foi encontrada essa associação em 17% a 50% (6), 3 a 67% (7) e 7 a 43% (8) dos casos. Contudo, nosso estudo mostrou, pela primeira vez, que essa associação deve ser revista (9). Foram avaliadas as concentrações de prolactina em 82 mulheres com história compatível com a síndrome dos ovários policísticos, isto é, alteração menstrual desde a menarca, hirsutismo e acne. Treze tinham prolactina maior que 27 ng/mL. Na investigação das causas, constatou-se que nove tinham tumor de hipófise e houve melhora do quadro com uso de cabergolina; duas usaram anticoncepcional hormonal oral e uma usou antidepressivos, mas a prolactina se normalizou com a retirada do estímulo estrogênico ou do antidepressivo. A outra paciente tinha macroprolactina. As 69 pacientes restantes tinham prolactina de 12,1 ± 5,5 ng/mL, concentrações 161


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semelhantes às de 42 mulheres de controle com resistência à insulina sem ovários policísticos (11,8 ± 4,9 ng/mL). Em artigo de revisão, em 1989, já havíamos constatado que a bromocriptina, um agonista da dopamina, só tinha ação nas pacientes com ovários policísticos que apresentaram prolactina elevada, mas não naquelas com prolactina em teor normal (10). A explicação mais provável para a alta frequência da associação de ovários policísticos com hiperprolactinemia é que os investigadores antigos não tinham os aparelhos de imagem de que nós dispomos, e pequenos tumores não eram diagnosticados. Em função dessas nossas pioneiras observações, no estudo multicêntrico brasileiro do qual participamos, sugerimos que fossem feitas revisões da causa da hiperprolactinemia em todos os casos de associação de ovários policísticos e prolactina elevada. Com isso, o estudo multicêntrico não mostrou caso de ovários policísticos como causa de hiperprolactinemia (11). Assim, esse dogma tem que ser revisto. Toda portadora da síndrome dos ovários policísticos e hiperprolactinemia tem que ser investigada quanto a outras causas, porque essa não faz parte da síndrome. Dogma 2 Hiperprolactinemia pelo uso de anticoncepcionais hormonais é sempre transitória. Estudamos uma mulher de 35 anos, com amenorreia, galactorreia e cefaleia frontal havia um ano (12). Fazia uso de anticoncepcional hormonal oral, sem interrupção, nos últimos treze anos contados à época do nosso exame. A prolactina era de 243 ng/mL e 226 ng/mL (VN < 25). Tinha, também, hipotireoidismo 162


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primário com TSH 827 U/mL (VN = 0,3 a 4,5), T4 livre 0,5 ng/ dL (VN = 0,9 a 1,9) e anticorpo antimicrossômico 1/25.600. A tomografia computadorizada da sela turca mostrou hiperplasia da hipófise, que se estendia até o quiasma óptico, com captação homogênea do meio de contraste. No acompanhamento, o TSH somente se normalizou (2,6 U/mL) após um ano do uso contínuo de L-tiroxina (150 g/dia). A prolactina normalizou-se com o uso de bromocriptina (5,0 mg/ dia), mas manteve-se elevada (33,9 a 82 ng/mL) após três anos da sua suspensão e só melhorou com a bromocriptina ou, mais recentemente, com a cabergolina. Os exames com ressonância magnética da sela turca com contraste jamais mostraram a presença de tumor (12). Em conclusão, é possível que a persistência da hiperprolactinemia ocorra por lesão dos neurônios dopaminérgicos tuberoinfundibulares provocada pelo uso prolongado de altas doses de estrogênio, como foi descrita em animais de experimentação, associada ao hipotiroidismo primário. Assim, podemos sugerir que muitos dos casos de hiperprolactinemia dita idiopática sejam devidos ao uso de anticoncepcional hormonal por tempo muito prolongado. Dogma 3 Avaliação por imagem da sela turca só deve ser feita com a concentração de prolactina superior a 100 ng/mL. No estudo multicêntrico brasileiro (11), mostramos que 82% dos pacientes com tumor não funcionante, 69% de acromegálicos e 25% daqueles com microprolactinoma tinham prolactina abaixo de 99 ng/dL. Assim, deve-se indicar exame com 163


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ressonância magnética da região da sela turca em todo paciente com prolactina acima do valor de referência, desde que outras causas tenham sido afastadas, como o uso de medicamentos e hipotireoidismo primário. Dogma 4 Concentração de prolactina maior que 250 ng/mL ocorre somente em prolactinomas. No mesmo estudo multicêntrico (11), observamos que existem pessoas com concentrações acima de 250 ng/mL e eram portadores de hiperprolactinemia idiopática (11%), macroprolactinemia (6%), uso de drogas (5%), tumores de hipófise não funcionantes (2%), acromegalia (1,4%) e hipotireoidismo primário (1,4%). Em conclusão, a prolactina acima de 250 ng/mL pode ocorrer por outras causas que não o prolactinoma. Dogma 5 A presença de macroprolactinemia não necessita de investigação de outras causas ou a macroprolactinemia só deve ser investigada quando não se encontra uma causa para a hiperprolactinemia (13,14). A prolactina circula no sangue em três formas principais: monômero com 199 aminoácidos prolactina, um dímero e uma forma de alto peso molecular também denominada macroprolactina. Essa última tem biodisponibilidade e bioatividade baixas (15). Constatamos a frequência de 16,6% de macroprolactina em estudo com 115 doentes hiperprolactinêmicos (16). 164


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Comparamos as avaliações de 64 indivíduos com macroprolactina e 75 com hiperprolactinemia monomérica. Observamos que 12,5% tinham tumor de hipófise e 7,8%, síndrome da sela vazia (17). Assim, a presença de macroprolactinemia deve ser investigada porque pode estar associada a afecções da hipófise. Dogma 6 Macroprolactinemia não causa sinais e sintomas e, por isso, não necessita de tratamento (13,14). Avaliamos 64 pacientes com macroprolactinemia (17). Em mulheres com macroprolactinemia, oligoamenorreia ou amenorreia esteve presente em 24,1%, galactorreia em 12,9% e oligoamenorreia ou amenorreia e galactorreia em 1,8%. Em homens com macroprolactinemia, a disfunção da ereção esteve presente em 50% e a infertilidade em 2%. Ao compararmos as frequências dos sinais e sintomas entre esses pacientes e aqueles com hiperprolactinemia monomérica, não encontramos diferença significativa. Em conclusão, os sintomas relacionados à hiperprolactinemia são comuns em pacientes com macroprolactinemia. Nenhum fator clínico ou laboratorial pode diferenciar pacientes macroprolactinemicos daqueles com hiperprolactinemia monomérica. Assim, o rastreamento da macroprolactina não deverá se restringir a pacientes assintomáticos. CONCLUSÃO Médicos e investigadores são, de forma compreensível, relutantes em aceitar novos conhecimentos que colocam em discussão alguns dos paradigmas médicos estabelecidos. Contudo, os dogmas devem ser constantemente contestados. 165


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10. Motta LDC, Motta LACR, Gagliardi ART. Bromocriptina na síndrome dos ovários policísticos. Uma revisão. J bras Ginec. 1989;99(5):177-81. 11. Vilar L, Naves LA, Casulari LA, Freitas MC, Montenegro R, Barros AI, et al. Diagnosis and management of hyperprolactinemia: results of a Brazilian Multicenter Study with 1234 patients. J Endocrinol Invest. 2008;31(5):436-44. 12. Casulari LA, Celotti F, Naves LA, Domingues L, Papadia C. Persistence of hyperprolactinemia after treatment of primary hypothyroidism and withdrawal of the long term use of estrogen. Are the tuberoinfundibular dopaminergic neurons permanently lesioned? Arq Bras Endocrinol Metab. 2005;49:468-72. 13. Suliman AM, Smith TP, Gibney J, McKenna TJ. Frequent misdiagnosis and mismanagement of hyperprolactinemic patients before the introduction of macroprolactin screening: application of a new strict laboratory definition of macroprolactinemia. Clin Chem. 2003;49:1504-9. 14. Gibney J, Smith TP, McKenna TJ. Clinical relevance of macroprolactin. Clin Endocrinol (Oxf). 2005;62:633-43. 15. Vieira JGH. Macroprolactinemia. Arq Bras Endocrinol Metab. 2002;46:45-50. 16. Vilar L, Moura E, Canadas V, Gusmão A, Campos R, Leal E, et al. Prevalência da macroprolactinemia entre 115 pacientes com hiperprolactinemia. Arq Bras Endocrinol Metab. 2007;51(1):86-91. 17. Vilar L, Naves LA, Freitas MC, Moura E, Canadas V, Campos R, et al. Clinical and laboratorial features greatly overlap in patients with macroprolactinemia and monomeric hyperprolactinemia. Minerva Endocrinol. 2007;32(2):79-86. 167


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Acad. Dra. Janice. Muito obrigada Dr. Casulari. Hoje fomos premiados: um cirurgião mostrou um caso raríssimo de gêmeas isquiópagas, e um pesquisador mostrou a importância de contestar dogmas.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO Acad. Dr. João Eugênio. Parabenizo o Casulari pelo trabalho dele. Eu queria falar só sobre um detalhe. Na realidade, o galactinoma não produz déficit visual, produz alteração do campo visual. Há uma imagem de ressonância magnética que você apresentou que mostra muito bem a hipófise e você vê de cada lado os tratos oculares. Então é compressão do tumor quando muito grande, o que é raro, produzindo então hemianopsia bitemporal que é característica da evolução hipofisária.

Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. É verdade. Agora, o tumor na hipófise é muito frequente e essa compressão é também muito frequente, principalmente com pacientes com tumor não funcional, em 20% se bem me lembro, não Dr. Paulo?

Acad. Dr. Paulo Mello. Existe diferença entre bitemporal e isquemia nasal. Quando é bitemporal por lesão de tumor, o que é muito raro, na minha experiência, como eu atuo em neuro-oftalmologia e sou responsável nesse campo no Hospital Sarah, confirmo que vemos muito pouco essa alteração. Eu queria dizer que me sinto realmente lisonjeado por pertencer a sua aldeia. É uma grande honra. Eu acho que é importante 168


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seu estudo sobre prolactina e prolactinomas. Realmente marca muito bem esse aspecto da evolução das técnicas cirúrgicas, do acesso cirúrgico, enfim. Nos anos setenta, eu realmente fui surpreendido com uma paciente que tinha sido operada no Canadá. Ela mostrou pelos exames que tinha microprolactinoma e lactorreia realmente relevante. Foi operada e se conseguiu manter a integridade da hipófise. Hoje, a paciente está normal. Isso despertou nosso interesse e nós desenvolvemos, no Hospital de Base, em regime ambulatorial, esse envolvimento com a biotecnologia. Mas, então, segundo nos parece, o que só depois ficou mais claro, que talvez seja um último dogma que você possa acrescentar em seu estudo. É que nenhum paciente com tumor de hipófise deve ser operado sem avaliação endocrinológica, sem haver um grupo de tecnologia de preferência que observe múltiplos aspectos. Isso nós só conseguimos com o Hospital Universitário, não que não tivesse grupos competentes no Hospital de Base, até você também fazia parte do Hospital de Base. O fato é que não havia realmente uma integração como houve no Hospital Universitário. Pacientes do Brasil inteiro, pois chegamos a ter duzentos e tantos pacientes com prolactinomas não funcionais, pacientes de idade avançada que nos chega com diagnóstico e às vezes cegos porque não tinham mais trato óptico por enorme acomentimento causado por esses esses tumores. Naquela época, em alguns desses exames, observou-se que novas células foram se acumulando, mas vale a pena esse procedimento cirúrgico. Você vê como a medicina é cheia de idas e voltas. Puchkin que adentrou e a operou, realmente chegou ao fim de da vida dele a dizer: “Realmente é uma técnica que eu não acesso, deve avançar muito, porque no momento não oferece condições”. Realmente ele desencorajou a neurocirurgia por muitos anos de perseguir abordagem que ele fazia de tumor de hipófise. Esse 169


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conhecimento avançou de tal forma com a neuroimagem que hoje já se faz realmente a operação, quando esta é necessária. Temos sempre um ponto polêmico, às vezes em casos de prolactinoma há uma distorção. Quando nos chega uma paciente com alopecia e prolactinoma bem declarado, nós queríamos operar. Mas o grupo insistia – não, vamos iniciar o tratamento medicamentoso. Com isso, como nós vimos, perderam-se casos de prolactinomas. Embora raramente, ainda há lugar para cirurgia, é importante dizer isso, porque paciente que não tolera medicações ou simplesmente que não querem mais usar medicação às vezes tem que ser respeitado e nós já tivemos de operar e ver outros colegas operarem nessa situação. Então, há lugar para intervenções cirúrgicas, mas é indicação muito restrita hoje. Se vocês conseguiram realmente reduzir com medicamentos o volume do tumor, nós, então, ficamos atônitos quando chegava a paciente para ser operada e esta já estava enxergando. Foi uma grande oportunidade que tivemos de partilhar com você e aprender com o grupo de endocrinologia e acho que nenhum cirurgião deve se atrever a manipular a hipófise se esta não tiver realmente sido examinada em todos os aspectos.

Dr. Wanderley. Atletas mulheres que têm amenorreia de longo período, se esta é devido a prolactinoma, se é caso endócrino, não sei o que é, mas elas reclamam muito e hoje parece que pesquisam muito sobre essa questão. Há alguma relação?

Acad. Dr. Luiz Augusto Casulari. Com a prolactina não, mais há relação com a endocrinologia. O problema da atleta ocorre tanto na mulher quanto no atleta homem também. Acho que 170


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o atleta profissional não é um bom exemplo de vida saudável. Quando chegam, como se vê, aos 34 anos de idade, estão todos seriamente lesados. Acho que a gente deve falar com nossos pacientes a não querer chegar aos seus limites todos os dias. Quanto à atleta mulher, ocorre uma questão peculiar. Ouvimos dizer que, quando uma pessoa faz muito exercício, entra em um estado de nirvana, que é causado pela betaendorfina. O exercício aumenta muito a betaendorfina e esta é secretada com o hormônio cortisol. Então, quando se entra em estresse ou se faz exercício físico todo dia, a beta endorfina fica com muito alta, e esta, ou a endorfina, bloqueia o LSH e o LH, o que leva à amenorreia. Quanto a homens atletas, se todo dia chegarem a seus limites, vão ficar com baixa de testosterona e por causa disso muito eles passam a usar testosterona para tentar compensar a falta hormonal Voltando à atleta mulher, enquanto ela estiver fazendo sua avaliação de alto nível, vai continuar com amenorreia. Só quando ela faz uma parada é que volta a menstruar. Esse quadro leva à osteoporose. Muitas meninas com 16, 17 anos de idade têm fraturas em locais que não deveriam ocorrer, mas deixam de fazer exames para detecção de osteoporose. O estrógeno fica baixo. A betaendorfina bloqueia o LSH na hipófise. A betaendorfina, que é fabricada no hipotálamo, bloqueia o LSH. Eu poderia ter falado mais a respeito dessas questões, mas esses trabalhos estão sendo muito citados na literatura. O que fizemos sobre ovário policístico, na última verificação que realizamos sobre o impacto, já havia ultrapassado cinquenta citações.

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PALESTRA OS CAMINHOS DE VAN GOGH Sessão Plenária ocorrida em 19-11-2013

PALESTRANTE ACAD. PROF. DR. ARMANDO BEZERRA – Professor Emérito da Universidade Católica de Brasília e membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de História da Medicina.

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ara Vincent van Gogh (1853–1890), residir em Paris não estava sendo nada fácil, apesar do afeto e do apoio finan-

ceiro que recebia do seu irmão Theodorus, ou Theo (1857–1891), como o chamava carinhosamente. A correria da vida na cidade grande mexia com seus nervos. Seu sonho era mudar-se para alguma pequena cidade do interior da França onde pudesse pintar suas telas e ter paz de espírito. Viajou então para Arles, no sul da França, onde foi morar em um aconchegante sobrado amarelo. Esta casa, situada em uma esquina da charmosa Praça Lamartine, lhe servia simultaneamente como moradia e ateliê. Atendendo a um convite de Van Gogh, o artista impressionista Paul Gauguin (1848–1903) também ficou residindo e pintando em sua companhia. 173


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A Casa Amarela (1888) tornou-se uma das famosas telas de Van Gogh. Lamentavelmente tal residência não mais existe, haja vista ter sido destruída pelos alemães durante um bombardeio aéreo quando da Segunda Grande Guerra. Van Gogh e Gauguin desentenderam-se várias vezes no convívio diário, o que contribuiu para que Van Gogh tentasse se matar decepando parte de sua orelha com uma navalha (Auto-Retrato com Curativo na Orelha. 1889). Transtornado, correu até o prostíbulo de Arles onde entregou à amiga Rachel sua orelha envolta em um lenço. Em seguida, foi até a casa amarela e, no seu quarto de dormir, jogou-se sangrando no leito (O Quarto de Van Gogh em Arles. 1889) de onde foi resgatado pela polícia já quase sem vida e levado de urgência ao hospital municipal (O Pátio do Hospital de Arles. 1889 e Enfermaria do Hospital de Arles. 1889). Atendido pelo jovem médico Dr. Félix Rey (1867–1932) teve então sua orelha tratada e enfaixada (Auto-Retrato com Curativo na Orelha e Cachimbo. 1889). Posteriormente, por gratidão, Van Gogh imortalizou Dr. Félix Rey pintando seu retrato em um óleo sobre tela (Retrato do Dr. Félix Rey. 1889), que hoje enriquece o acervo do museu Pushkin em Moscou. Van Gogh soube que, na cidade de Saint-Rémy-de-Provence, próxima de Arles, havia um hospital que tratava alienados. Espontaneamente procurou o Hospital Saint-Paul-de-Mausole onde obteve internação. Durante o tempo em que ficou sob tratamento em Saint-Rémy, pintou muitas telas, retratando o interior da casa de saúde, seus jardins e vistas da cidade (Hospital de Saint-Rémy. 1889; Banco de Pedra no Jardim do Hospital Saint-Paul. 1889). 174


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Talvez A Noite Estrelada (1889), que integra o acervo do Museu de Arte Moderna – MoMA, de Nova Iorque, seja um dos mais belos quadros da sua passagem por Saint-Rémy. Van Gogh alternava momentos de tranquilidade mental com períodos de agitação e irritabilidade. Quando estava agitado, pintava quase sem parar. Quando se deprimia, nada produzia do ponto de vista artístico. Durante sua internação em Saint-Rémy, ouviu falar de um Dr. Paul-Ferdinand Gachet (1828–1909), que tratava insanos sem que fosse necessária a internação. Gachet, além de médico, era pintor nas horas vagas e amigo de muitos pintores famosos, como Monet, Pissaro e Cézane, este último considerado o mestre das naturezas mortas. Van Gogh viajou então, de trem, de Saint-Rémy para a distante cidade de Auvers-sur-Oise no norte da França. Hospedou-se na pensão Ravoux e tratou de procurar Gachet, que atendia em sua própria residência. Van Gogh e Gachet tornaram-se amigos. Como retribuição pelas numerosas consultas Van Gogh pintou e o presenteou com duas telas intituladas Retrato do Dr. Gachet (1889). Uma pode ser vista no Museu d’Orsay, em Paris. A outra pertence à coleção de um empresário japonês que a arrematou em um leilão realizado na Christie, de Nova Iorque, por 86,5 milhões de dólares. Durante muitos anos, foi a tela mais cara já leiloada no mundo. Nesses retratos, podemos ver sobre a mesa um copo contendo no seu interior um ramo de Digitalis purpúrea. Tal vegetal, do qual é feito o cardiotônico chamado digitalina, foi equivocadamente usado no passado como medicamento psiquiátrico. Em dose elevada, pode causar alterações cardíacas, alucinações e xantopsia. 175


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Van Gogh, como os artistas e intelectuais da época, era um grande apreciador de absinto, bebida feita por meio da infusão de Artemisia absinthium em álcool (Natureza Morta com Absinto. 1887). Dentre os sintomas da intoxicação pela bebida está xantopsia, ou seja, a distorção visual que faz o consumidor do absinto ver objetos na cor amarela. A associação de Digitalis com absinto e álcool pode ter agravado o possível distúrbio bipolar do humor que acometia o artista. É interessante observar como o amarelo está intensamente presente nas pinturas do genial Van Gogh. Van Gogh parece ter se apaixonado por Marguérite Gachet, a filha de Dr. Gachet. Foi um amor não correspondido. Marguérite foi por duas vezes pintada por Van Gogh que a presenteou com os quadros (Marguérite no seu Jardim. 1890 e Marguérite ao Piano. 1890). Deprimido por este e outros motivos, Van Gogh adentrou em uma plantação de trigo (Campo de Trigo com Corvos. 1890) e disparou um tiro contra o próprio peito. Cambaleante, foi até seu quarto na pensão Ravoux. Gachet nada pode fazer para evitar sua morte. Na presença de Theo e Gachet, Van Gogh faleceu em 29 de julho de 1890. Antes do enterro, Gachet fez um retrato de Van Gogh pela técnica de carvão sobre papel. Tal documentação pictórica de Van Gogh morto, a única existente, intitula-se Van Gogh no Leito de Morte (1890). O holandês Van Gogh encontra-se sepultado no cemitério de Auvers-sur-Oise. Ao lado de sua sepultura, alguns anos depois, foi construído um túmulo para o qual foram trasladados os restos mortais do seu querido irmão e protetor Theo, falecido em 1891. 176


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Van Gogh e Theo: unidos em vida, unidos na eternidade, como Castor e Pólux da mitologia greco-romana.

PARTICIPAÇÃO DO AUDITÓRIO Acad. Janice Magalhães. Professor Armando. Primeiro, eu o agradeço por essa tarde, por essa noite memorável e maravilhosa que o senhor nos concedeu. Esse caminho árduo na busca incessante da arte que é característica sua. A Academia sente-se muito agradecida por essa plenária, que fechou muito bem o nosso ano de 2013. Muito obrigada. Fica a palavra para todos acadêmicos que queiram homenageá-lo.

Acad. Augusto Cesar. Eu sou psiquiatra. Van Gogh era um personagem da história da arte muito ligado à questão da psiquiatria. Primeiro eu quero parabenizar Dr. Armando Bezerra. Eu já tive oportunidade de ouvir algumas palestras ligadas a História da Arte, e é sempre um prazer escutá-lo. Mas Van Gogh, independentemente do diagnóstico, sempre ocorre aquela discussão – se é transtorno bipolar ou transtorno mental associado a substâncias psicoativas. A grande contribuição do Van Gogh, modernamente, a gente entende como a demonstração da contribuição da pessoa com transtorno mental à sociedade. A gente tem uma noção de que a pessoa com transtorno mental é incapaz, é irresponsável, violenta, uma série de conotações que exclui muito a pessoa, lhe tiram a cidadania, enfim, uma série de consequências que tem a ver com a questão da pessoa com transtorno mental ainda hoje. Van Gogh é um depoimento vivo, é a prova viva da contribuição da pessoa com transtorno mental, no caso aqui nas artes 177


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plásticas, na pintura, com obra tão viva, tão impressionante e com um legado que a humanidade não pode nunca deixar de qualificar. Basicamente era isso que eu queria comentar acerca da palestra. Obrigado.

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PALESTRA DIREITO E ÉTICA Sessão Plenária ocorrida em 18-3-2014

ACAD. DRA. JANICE MAGALHÃES. Boa noite a todos. O Exmo. Ministro Carlos Ayres Britto hoje nos dá a honra e o privilégio de sua presença nesta Academia de Medicina. Não só a presença e a honra que nos foi concedida, mas a generosidade de estar aqui entre nós. Entre os representantes de várias entidades médicas que o admiram em seu trabalho, quero agradecer, em particular, a presença, de Dra. Guiomar Mendes, mulher do Ministro Gilmar Mendes, que, por seu intermédio, foi feito reforço ao nosso convite. Agradeço também ao Sindicato dos Médicos nosso parceiro, que nos abriga em sua sede e nesta nos concede a realização de palestras e de nossas sessões plenárias e assim tivemos oportunidade de aprender muito nesses dois anos, e o senhor Ministro fecha com chave-de-ouro a gestão da atual presidência e diretoria desta Academia. A palestra será sobre um tema altamente necessário à vida de todos – a questão do Direito e da Ética. Muito obrigada. PALESTRANTE Ministro Carlos Ayres Britto, Bacharel em Direito (1966) pela Universidade Federal de Sergipe; Mestre e Doutor pela 179


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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e da Academia Sergipana de Letras; Ministro e Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (2008–2010) e do Superior Tribunal de Justiça (2012). Ministro Ayres Britto. Saúdo todos os presentes com muito carinho e digo com toda sinceridade que me sinto tão à vontade quanto alegre e honrado com essa oportunidade. Quero fazer uma saudação especial a um amigo muito querido da Bahia, Joaci Góes, da Academia de Letras da Bahia. É um pensador, um escritor, um empreendedor econômico, um jornalista especializado – entre tantas outras coisas – em Castro Alves, um coração aberto às essências, às manifestações artísticas, que sobremodo me honra com sua presença aqui neste nosso espaço. É também pessoa da Constituinte, participou da elaboração da Constituição a qual completou seu primeiro quarto de século, legando-nos o maior de todos os patrimônios objetivos ou imateriais em uma sociedade civilizada, que é a democracia, princípio, por excelência, da organização do Estado e da sociedade. Democracia, sob cujos marcos estamos experimentando uma vida institucional pautada por princípios que incluem a ética. Há, na sociedade, exigência cada vez maior de comportamentos éticos. Emblematicamente essa nova ambiência de compromisso maior com a ética tem seu ponto mais representativo marcado nos últimos 25 anos. Foi um símbolo alçado com os movimentos de rua no mês de junho de 2013. Claro que foram movimentos, em parte conspurcados, conturbados por pessoas que neles se infiltraram para desservir a democracia, depredar, pura e simplesmente assaltar, comprometer a pureza democrática daquela tomada, também simbólica, 180


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das ruas, para mostrar que o povo brasileiro já faz, digamos, enlaces e alguns links lógicos absolutamente necessários entre a vida pública, os condutores da vida pública e os anseios mais legítimos da sociedade. A lição que particularmente colho daqueles movimentos – volto a dizer, a despeito das infiltrações deturpadoras ou conspurcadoras – eu resumiria no seguinte contexto: o povo brasileiro começa a tomar consciência – e consciência clara – da imprescindibilidade de certos valores que dão propósito, grandeza, nobreza de inspiração e status civilizatório à nossa trajetória de vida. Valores ou links – como o dinheiro que sai do ralo da corrupção – permitam-me a metáfora – é o mesmo que falta para financiar direitos sociais e outros fundamentais, como saúde e demais serviços públicos igualmente essenciais. Um link da imprescindibilidade entre um elo causal, isto é, o dever que tem o administrador público de agir com honestidade e o direito que tem a população de ser administrada e governada, igualmente, por padrões honestos. Thomas Jefferson, em uma frase muito feliz, afirmou algo de grande atualidade: “A arte de governar consiste unicamente na arte de ser honesto”. O povo se compenetra e se conscientiza com a ideia de que tem o direito de ser governado honestamente. Há também um elo causal – parece-me nítido –, partindo desses movimentos de rua, entre quem governa e como se governa. Para o povo brasileiro – e isso é prova de amadurecimento institucional –, não interessa mais quem governa, quer seja homem, quer seja mulher, se é do Nordeste ou do Rio Grande do Sul, do partido Y ou do partido X, ou qual profissão exerce. O povo quer saber, o que lhe interessa, é como se governa. Quem governa o faz nos marcos da democracia? Mais ainda: nos marcos da legalidade? Aqui entra a moralidade, a impessoalidade. 181


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O como é mais importante do que o quem – o que sinaliza o fim daquela cultura do “sabe com quem está falando”. Aliás, nos Estados Unidos, não há tal cultura do “sabe com quem está falando”. Orgulham-se muito da sua democracia. Entre eles, quando alguém fala de cima para baixo, arrogantemente, prepotentemente, elitisticamente, sempre aparece alguém do povo para dizer: “Quem você pensa que é”? Que diferença cultural entre “Sabe com quem está falando” e “Quem você pensa que é”! A imprescindibilidade de certos valores, quando chega ao plano da consciência coletiva mais clara, nos alenta porque, quando esses valores assim coletivamente conscientizados são necessários e são violados, a reação popular é de escândalo, o povo reage como se um escândalo fora cometido, e isso até entra no limite de uma hecatombe ética e jurídica, e é a democracia que pavimenta esse caminho de conciliação funcional entre o Direito e a Ética. Não vou me alongar muito. Quero falar do modo mais simples que me for possível. Como o meu desafio é falar de Direito e Ética, vou começar pelo Direito dizendo, de modo mais natural possível, o mais elementar. Aristóteles afirmou que o ser humano não vive, ele convive. Porque consideram-se os outros, pois homem nenhum é uma ilha, todo mundo é uma península, todo mundo está ligado a todo mundo. Mesmo quando o ser humano exerce seu direito elementar – o fundamental direito à intimidade, o ser humano consigo mesmo e sua privacidade –, é um ser junto aos seus, os mais próximos, os de confiança, com parentesco. Não o é em contiguidade física. Intimidade é a pessoa sozinha. Enquanto um e-mail é expressão de privacidade, um diário é expressão de intimidade. Cantar no chuveiro é intimidade, é a 182


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pessoa absolutamente consigo mesma. Cantar em público, falar em público já é expressão de privacidade – se for em um ambiente menor – ou de inserção social genérica. Mas o fato é que o ser humano não vive; em rigor, ele convive. Conviver tanto é colaborar quanto é atritar-se. Alguns atritos não desestabilizam temerariamente a vida social, eles são digeridos, absorvidos pela sociedade sem maiores problemas. Outros atritos, não – eles são estabilizadores da vida social como um modo perigoso, sinalizam o esgarçamento do próprio tecido social. Aqui, vêm as instituições, que são verdadeiras locomotivas sociais; elas plasmam a cultura, o caráter coletivo, o modo coletivo de pensar e de fazer. As instituições servem e agem para isso. Então, vêm a família, a Igreja, a escola, o partido, o sindicato, o clube, o condomínio. Cada uma dessas instâncias cuida da convivência humana mediante o quê? Mediante produção de normas e regras de convívio social. A empresa, o sindicato, o partido, o clube, o condomínio, tudo em instância produtora de normas que visam à boa convivência, à harmonia social, à convergência de comportamentos. É verdadeiramente interminável o número de normas brotadas dessas instâncias sociais em torno das quais todos nós gravitamos e existimos. Viver é conviver, e conviver é transitar de instituição para instituição. Mas a vida é exigente de unidade – isso é perceptível também. Heráclito, um filósofo pré-socrático que viveu de 540 a 480 a.C., afirmou perceber que a vida nos é interna e externa –, estrutura-se dicotomicamente ou binariamente – não há nada que não tenha um oposto. Tudo é absolutamente dicotômico: o perto, o longe; o baixo e o alto; o largo e o estreito; o fundo e o raso; o claro e o escuro. Então vêm, já em nosso plano, a depressão, a euforia, a alegria, a tristeza, o otimismo, o pessimismo, o afeto, o desafeto, o amor, o ódio, o medo, a coragem. 183


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Não há nada que não tenha o seu oposto. Mas ele dizia, em um fragmento que nos chegou, sumariamente: “Na contraposição visível, há unidade invisível”, ou seja, na contraposição dos polos contrastantes, latentemente se coloca o equilíbrio, a unidade, o ponto de convergência. Então, na contraposição visível há unidade invisível. A vida anseia pela dança da unidade. Ela suplanta as diversidades, as polaridades e deságua nesse ponto de equilíbrio que chamamos de unidade. É preciso um ponto de unidade nessa produção normativa sem fim, porque senão as normas se perderiam no infinito, resvalariam para o interminável, sem o mínimo, sem um fio condutor, sem um ponto de controle dessa produção. Há controle de conteúdo e controle de finalidade. Surge então o Direito. É a mais importante instância produtora de normas, porque todas as outras instâncias, todas as outras fontes normativas se reconduzem à unidade dessa fonte chamada Direito Positivo, Ordenamento Jurídico ou Ordem Jurídica, tudo como sinônimo de Direito. Se essa recondução se dirige às normas advindas do não direito, da não estância jurídica, elas não valem juridicamente, são inválidas, não operam, não podem produzir efeito. Tudo então se unifica. A vida anseia pela dança da unidade. Toda essa produção normativa sem fim se unifica na normatividade do Direito e, dentro do Direito, a vida continua a exigir unidade, mais e mais unidade, equilíbrio, estabilidade, fixidez, o que não significa imutabilidade. Não se pode confundir estabilidade com estagnação, com estratificação. No estado de direito, por exemplo, se eu estou andando aqui, estou estavelmente caminhando com minhas pernas. 184


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Isso é estabilidade, mas não inércia; eu não estou parado, não é uma estratificação. Assim é a sociedade, ou seja, a estabilidade social é dinâmica, experimenta dinamismo e não inércia. Dentro do Direito, a Constituição é um ponto de unidade. Direito Civil, Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito Processual – tudo se unifica na Constituição, tudo se reconduz e se reduz à unidade da Constituição. Assim, a vida respira feliz e então dizemos: “Olhem, encontrei meu ponto de unidade”. Mas como a Constituição consagra múltiplos valores – pessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, legalidade, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo, soberania, desenvolvimento, justiça, bem-estar, liberdade, igualdade, fraternidade – a pessoa fica atordoada diante de tantos valores, a axiologia, essa pauta de valores. A ciência dos valores se chama axiologia, também significa o estudo dos valores. É preciso que os próprios valores se reconduzam a uma unidade. A democracia é o ponto de unidade de todos os que citei – desenvolvimento, bem-estar, liberdade, igualdade e justiça. A democracia é um valor continente. Todo o demais é conteúdo desse continente chamado democracia. É o valor que mais repassa sua materialidade para os outros valores, que mais se faz presente nos outros valores. Os outros valores só podem ser interpretados de modo válido na medida que eles ampliem as perspectivas de funcionalidade desse valor-teto e desse valor continente que chamamos de democracia. A democracia – como os outros valores – precisa de quem permanentemente vele por ela e por eles, com força até física se for necessário. São criados os Poderes Executivo, Legislativo, 185


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Judiciário. Dentro do Legislativo, temos o Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, as duas Mesas das duas Casas, as Comissões Temáticas, as Comissões Parlamentares de Inquérito. Dentro do Executivo, temos 39 Ministérios. Temos autarquias, empresas públicas, sociedade de economia mista. É preciso buscar de novo o ponto de unidade, e este chama-se Judiciário. O Poder Judiciário é o ponto de afunilamento, a instância terminal. Tudo tem que terminar nesse ponto de unidade que chamamos de Judiciário. É por isso que o Judiciário estabelece o que pode os outros Poderes e, ao fazê-lo, indica o que ele também pode. Assim como não se pode impedir a imprensa de articular primeiramente sobre as coisas, não se pode impedir o Judiciário de falar por último, porque ele é o ponto de unidade, nossa âncora maior de confiabilidade, nosso porto seguro. Tem que ser o Poder Judiciário. É preciso velar cada vez mais pelo Poder Judiciário –, pelo seu desempenho célere, tecnicamente seguro, com toda a acessibilidade da cidadania. É preciso obter do Poder Judiciário trabalho, devoção, competência, acessibilidade, celeridade, sem prejuízo da segurança técnica e da imaculada honestidade. Mas, dentro do Judiciário, temos juízes estaduais e federais, Tribunais Estaduais e Federais, temos os quatro Tribunais Superiores, o Supremo Tribunal Federal. Este último é o ponto de unidade dentro do Poder Judiciário. É impressionante como a vida é realmente exigente de unidade. Dentro de nós, temos sentimento, pensamento, consciência. A consciência é o ponto de unidade do sentimento e do pensamento. Quando conciliamos a funcionalidade do sentimento 186


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e do pensamento, desembocamos ou partejamos esse rebento da consciência. A consciência é nosso ponto mais alto, mais firme e mais sólido, e quem alcança esse patamar da consciência vê as coisas com mais clareza, com mais largueza, mais profundidade e mais altura. A consciência é o ômega do ser humano. O Direito é produzido por instâncias estatais para disciplinar a vida individual e coletiva. O Direito se vale do Estado, institui o Estado, necessariamente com seu mecanismo, por excelência, de coordenação de todas as instâncias normativas e, por consequência, de todos os comportamentos individuais e coletivos. O Direito é o maior engenho que a humanidade concebeu. A humanidade jamais concebeu algo tão filigranado, tão sutil, tão requintado, tão refinado, tão articulado, ao mesmo tempo tão justo e racional – pelo menos em tese – como o Direito. Foi Rudolf von Ihering, notório pensador jurídico alemão, que afirmou: “O Direito é o próprio complexo das condições existenciais da sociedade”. Tudo se afunila para o Direito e, dentro do Direito, para o Poder Judiciário e, dentro do Judiciário, para o Supremo Tribunal Federal. O Direito nos profere o seguinte: “Olha, eu tenho finalidades. A Constituição impõe ao Estado finalidades”. O Estado é a personalização jurídica do Direito, do ordenamento jurídico e este se personaliza ou se personifica juridicamente no Estado. O ordenamento jurídico é a representação do Estado e, mediante essa representação do Estado, o Direito vai alcançar suas três funções, ou seja, as finalidades imediatas do Estado consistem em três funções, a saber, o Estado existe para legislar, executar as leis e julgar quem se comportou ou não de acordo com as leis e, ainda, se a própria lei cumpriu a Constituição. 187


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É o Judiciário que se pronuncia por último. O Estado tem por fim imediato exercer três funções – a legislativa, a executiva e a judiciária – em uma ordem tão lógica quanto cronológica. Primeiro se legisla, porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Não havendo lei, todos têm o direito de não ter dever, mas havendo leis, é preciso cumpri-las. Primeiro se legisla, depois se executa, o que se contém na lei e, por último, tão logicamente como cronologicamente, se verifica se a execução da lei foi feita nos termos da lei e se a própria lei foi produzida nos termos da Constituição. Assim, transitamos na órbita dessa instituição-mor, a maior de todas, que de fato é o Estado, e o implantado pelo Direito é uma criatura de direito constitucional. Depois, o Estado se torna criador do Direito, mas antes de ser criador do Direito, ele é uma criatura da Constituição – e a Constituição é um Direito mais alto, a primeira voz do Direito aos ouvidos da população. Então, o Estado cumpre suas três funções. No entanto, é mediante o cumprimento de suas três funções que o Estado vai, imediatamente, cumprir suas finalidades. Finalidades imediatas do Estado: finalidade imediata do Direito: criar o Estado. Finalidade imediata do Estado: exercer suas três funções. Mediante o exercício das três funções, o Estado cumpre suas finalidades mediatas, que são as finalidades mediatas do Direito com os valores: justiça, liberdade, igualdade, segurança, fraternidade e por aí além. Mas tudo me parece muito simples, não há nada difícil que desfavoreça a compreensão dessa lógica elementar do direito do Estado, dos valores, dessa nossa vida individual e coletiva. Acontece que o indivíduo convive – que é a sua condição –, a condição humana é a da convivência. Como eu disse, ele tanto 188


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colabora, tanto incide em pautas de colaboração comportamental com o indivíduo com que se atrita, discorda e discente, e se boicota. Os indivíduos se boicotam, entram em rota de colisão, em controvérsias o tempo inteiro. Pelo menos geograficamente, a todo instante as pessoas estão se atritando e esses atritos são tão mais graves quanto permeados de falta de caráter. A falta de caráter, por exemplo, a deslealdade, a indecorosidade, a corrupção, a improbidade, a má-fé, a mentira – instabilizam a sociedade sobremodo porque agudizam, agudizam os atritos, as controvérsias, os litígios. É preciso que o Direito se volte para essa dimensão do ser humano que é o caráter. Cuide-se do caráter para que as relações sociais se baseiem na observância da lealdade, da probidade, do decoro, da boa fé – que são traços, não de personalidade, são traços de caráter. O Direito então vai recolhendo da moral, porque a moral se constitui de regras que se voltam para a disciplina do caráter humano. Caráter e moral são umbilicalmente ligados, unha e carne, olho e pálpebra. Moral é isso – um conjunto de regras voltadas para a disciplina do caráter humano, para que nosso caráter seja retilíneo e não sinuoso, torto, para que seja transparente e não opaco, para que seja firme e não bruxuleante, gelatinoso. O Direito vai recolhendo da moral e transformando a moral em Direito, normas que valorizam, que prestigiam o comportamento dos seres humanos denotadores desse caráter nessa tríplice dimensão – transparência, firmeza, retilinearidade. Moral é mais do que Direito. Muito mais que regras. Por exemplo, um homem casado e uma mulher casada que não usam aliança na mão esquerda podem vir até a receber censura. O Direito não se interessa por isso. É como a Igreja, a Igreja tem suas regras, e quem desrespeita as regras da Igreja entra em pecado. 189


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O Direito não quer nem saber o que seja pecado. Pecado é uma categoria que não tem nada a ver com o Direito. Agora, quando certas regras são inobservadas – inclusive as de feição religiosa, por exemplo, a pessoa quer ir à missa, quer ir à igreja, quer ir a uma mesquita, quer ir a um templo e é proibida – nesse caso já existe a percussão jurídica. O Direito vai recolhendo aquelas normas religiosas, morais que, se desrespeitadas, instabilizam temerariamente a vida social e vai transformando essas regras em regras do Direito, em conteúdos de normas propriamente jurídicas. Agora que estou falando de moral, tenho que fazer algumas distinções, inclusive distinções que nos incomodam um pouco porque nos levam à compreensão de que nós não dominamos bem a sutileza das distinções. Por exemplo, ética é uma coisa, moral é outra. Moral é regra, ética é o estudo da regra moral. A ética é uma ordem de conhecimentos. É como o Direito. Vamos trabalhar com os olhos postos nesse documento chamado Constituição. Isto aqui é Direito. As normas aí contidas são normas jurídicas. Primeiramente vem a norma jurídica ou vêm as normas jurídicas produzidas pelo legislador constituinte ou pelo legislador congressual que, no Brasil, no plano federal, trata-se do Congresso Nacional. Primeiro, vem a regra de comportamento, disciplinando nosso comportamento. Depois vem o estudo do significado do conteúdo das finalidades mediatas de cada norma. Quem impõe a norma é a autoridade. É importante observar que quem estuda a norma não é autoridade, é um teórico, um cientista ou é um profissional do Direito. Ele não ordena o comportamento de ninguém, mas apenas descreve um comportamento ordenado juridicamente. 190


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Norma jurídica é regra, é comando, é determinação. Moral é um conjunto de normas, normas de comportamento. Normas são regras, são ordens, são comandos, são determinações para que o comportamento humano tenha esse conteúdo e não aquele, siga aquela finalidade e não outra. As normas morais vêm antes da ética, bem como o Direito. O Direito da Constituição vem antes da teoria do Direito, da ciência do Direito. A ciência do Direito é um conjunto de saberes, é um conhecimento do Direito posto, positivo, do Direito nobre. A ciência do Direito não é uma ordem aleatória de conhecimento, não é um saber vulgar, episódico, sem método, mas um saber específico, metódico, analítico, demonstrável – porque é articulado. A ética é um estudo metódico, articulado, lógico, descritivo, revelador das normas morais. Que vem primeiro? A moral. A linguagem moral é uma linguagem prescritiva e ordenadora de comportamentos. A ética usa de uma sobrelinguagem, é uma linguagem de linguagem, é um segundo grau de linguagem, assim como a ciência de Direito é uma linguagem de linguagem, e, portanto, uma sobrelinguagem. O cientista descreve uma norma, ele não estabelece a norma. O ético, a ética como ordem metódica, lógica, analítica, descritiva, de conhecimentos, vem depois. Moral é um conjunto de regras referidas ao comportamento humano na perspectiva do caráter do ser humano, do caráter reto, firme, transparente. Moralidade é qualidade do que é moral, e moral é regra de comportamento na perspectiva do caráter do destinatário da regra, do endereçado normativo. Há um editor normativo que põe a norma, há um conteúdo da norma, há uma finalidade da norma e há um endereçado normativo, ou seja, cada um de nós. Importa não confundir 191


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ética com moral. Entretanto, na prática, nós chamamos de ética o que, na verdade, é moral. Por exemplo, eu abro o Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina. O Código de Ética, no sentido de moral, é um conjunto de regras morais. Na verdade, quem estuda cada um desses conteúdos do Código de Ética Médica é que está no plano da ética. Agora, quem elaborou esse conjunto de normas, o Conselho Federal de Medicina, foi a instância editora, ou produtora, ou elaboradora ou criadora de normas morais. Eu gosto muito dessas distinções, para sabermos a respeito do que se está falando. Por exemplo, não confundir moral com moralismo. A moralidade é uma coisa, o moralismo é outra. O moralista é um exagerado, é aquele que vê imoralidade em tudo. O oposto do moralista é o permissivo. Este não vê imoralidade em nada. De ordinário, o moralista é de mal com a vida, tem o fígado azedo e, não raro, é um farsante, porque ele não prega o que diz. Com ele é tudo no bico da faca, é pão-pão, queijo-queijo, exagera em tudo e tem o não desfrute da vida muito acentuado, está sempre adiando seu projeto de felicidade, sente-se mal quando está bem e sente-se bem quando está mal. Na Bíblia, há uma passagem alusiva aos fariseus e ao sepulcro caiado. Lembro-me bem disso. O moralista é um sepulcro caiado, isto é, por fora está tudo pintadinho, por dentro está tudo deteriorado. Não confundir também moralidade com moralismo – assim como moral não se confunde com moralismo. Moralidade é uma coisa, é qualidade do que é moral, não é moralismo. Não se confunde também ética com etiqueta. Ética é o estudo da moral, que visa, em última análise, aos bons costumes. Etiqueta é uma ética pequena, que visa às boas maneiras, não aos bons costumes. É como se vestir bem, um talhe de roupa 192


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adequada. Já me chamou a atenção aqui a elegância. Isso é etiqueta. É como saber se sentar ou se sentar à mesa, se servir com os talheres adequadamente sem maiores gafes. A etiqueta tem seu valor, mas não é a ética. Ética é uma ordem de estudos, é um tipo de conhecimento, de saber. Aqui não há nada de episódico, nada de aleatório, de vulgar, de assistemático, nada superficial. Moralidade é qualidade do que é moral, moral é regra de comportamento. O primeiro dos princípios regentes da atividade estatal está no artigo n.o 37 da Constituição, é a legalidade, a saber, ninguém pode fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, e a lei é a expressão – afirmou Jean Jacques Rousseau – da coletividade geral. Mas, logo depois da legalidade, vem a impessoalidade para que as pessoas não se apropriem dos feitos, dos programas, dos projetos, das empreitadas do Poder Público para não confundir o espaço público com o espaço privado, para que ninguém faça marketing pessoal ou autopromoção com os feitos do Estado. Isso é impessoalidade. A impessoalidade postula a nítida distinção entre espaço público e espaço privado. Em terceiro lugar, vem a moralidade. Há muitas regras na Constituição em termos de moral. Por exemplo, no artigo n.o 37, parágrafo 4.o, a Constituição trata, à rédea curta, do modo mais drástico ou severo possível, a improbidade administrativa, que é um valor moral negativo, é uma das mais graves negações desse valor positivo chamado moral ou moralidade. Dispõe a Constituição: “Os atos de improbidade administrativa importarão em suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens, ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação penal cabível”. Assim estatui porque é compreensão – a compreensão histórica de que um dos 193


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pontos de fragilidade estrutural do País, senão o pior deles, é a corrupção, a improbidade. Ulysses Guimarães dizia: “A corrupção é o cupim da República”. Isso tem uma explicação histórica e, o que é mais grave, é cultural. Há uma cultura da imoralidade, da corrupção, da improbidade, e cultura é um hábito coletivo, uma segunda pele, o coletivo. É muito difícil a pessoa se despojar da segunda pele. É que, quando o Brasil foi descoberto, o foi por efeito de uma empreitada oficial, diferentemente da colonização norte-americana – foram particulares, religiosos, tangidos por dissidências com protestantes, uma seita chamada Quackers. Esse grupo migrou para a América do Norte para, ali, fundar uma nova pátria, e foi um grupo privado. As instituições, ali, escola, a Igreja, a família, tudo aquilo era privado. As terras eram privadas, não eram públicas. Aqui, no Brasil, não: a colonização foi bancada pelo Governo português. Quando os representantes da Coroa chegaram, quando aquele marinheiro lá na gávea, no alto, disse: “Terra à vista!”, poderia ter dito “Terra a prazo!”. Foi a Coroa portuguesa, foi o Estado português que chegou aqui e afirmou sua soberania e sua propriedade sobre todas as terras. Tudo era público, tudo era do Governo português. Acontece que não havia como fiscalizar, como controlar um país de oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Então as terras públicas foram, cotidianamente, sem a menor cerimônia, apropriadas a título privado; não havia fiscalização. Imaginamos o quanto, ao longo dos séculos, se foi formando em torno desse hábito de apropriar-se do que é público. O quanto foi se constituindo de cumplicidade, de leniência, de nepotismo, de patrimonialismo tornou-se hábito, e o hábito é uma segunda 194


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natureza, exatamente porque é uma segunda pele, não se rompe assim fácil com a cultura, ela é teimosa, é renitente e insiste. Lembro-me de uma frase de Drummond sobre os maus costumes monárquicos que penetraram a República e as pessoas, a qual anunciava: “Olha, estamos em plena República”, e houve aquele desperdício, a suntuosidade, a lantejoula, a bijuteria, a superficialidade das relações oficiais, os gastos desnecessários. Alguém não disse, mas poderia ter dito assim: O custo-Brasil é muito alto porque não temos um casto-Brasil. Claro que ninguém disse isso, mas poderia ter dito. Explicou Carlos Drummond de Andrade na roda em que se discutia isso: “Olha, muito fácil. Caiu a Corte, não os cortesãos”. Um poeta diz as coisas. Assim, no Brasil, há esse vezo, esse mau-hábito turrão, renitente, teimoso, insistente, da apropriação da coisa pública. Por isso é que a Constituição vai, no regime democrático, mais e mais fazendo exigências de controle das coisas do Poder, das relações com o Poder Público, em torno do patrimônio público, dos valores e bens, de dinheiros públicos, mais e mais para tentar criar uma contracultura da corrupção. Ultimamente vemos lei de acesso à informação, lei de improbidade administrativa, lei da ficha limpa. Outro aspecto curioso. O que é candidato? Candidato é cândido. É puro, limpo eticamente. O que significa candidatura? Candidatura significa candura, pureza, limpeza ética. Como é que uma pessoa, um candidato, desfila pela passarela quase inteira, do Código Penal e se propõe a representar o povo brasileiro? Não é uma desfaçatez? Entretanto, tivemos que ir atrás, batalhar, colher assinaturas, de um milhão e seiscentas mil assinaturas por meio físico. Quatro milhões de assinatura pela internet, para aprovar uma lei óbvia, exigente de ficha limpa do candidato. 195


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Chega a ser até redundância exigir ficha limpa de um candidato. Se é candidato, é cândido, é limpo por definição. Nossa história é ruinzinha, ela não nos favoreceu. Nos Estados Unidos, proclamaram a independência sob a forma de Confederação. As onze primeiras colônias se transformaram em Estados soberanos. Onze anos depois, experimentaram um novo modelo, o modelo Federal. Trocaram a soberania pela autonomia, mas cada província originária, transformada em Estado, era autônoma perante a Coroa, umas perante as outras províncias. No Brasil, não. Quando proclamamos a Independência o fizemos sob a forma de Estado unitário, ou seja, concentração máxima de poder, apenas uma unidade política, geográfica, juridicamente personalizada. Nos Estados Unidos, proclamaram de saída os portais da independência, isto é, a república é coisa do povo, res pública. Aqui foi a Monarquia. Governante coroado, vitalício, não eleito, irresponsável juridicamente. É típico da monarquia; quem responde são os auxiliares, os ministros, não o governante coroado porque ele é vitalício. Nossa Constituição Imperial afirmava: “A figura do Imperador é inviolável, irresponsável – juridicamente – e sagrada”. Sagrada! É por isso que se diz: “Você sabe com quem está falando”? Não foi uma História que nos ajudou. Mas temos compensações, ou seja, temos um povo criativo, um povo empreendedor economicamente, um povo alegre, que rivaliza com os Estados Unidos na qualidade da sua música. A música brasileira é de primeiríssima qualidade e excelência, e muito se deve ao componente negro do nosso sangue. Não é à toa que os Estados Unidos também detêm – rivalizando com o Brasil – a mesma musicalidade. Porque os negros são musicais, são plásticos, são 196


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rítmicos, são dolentes. Eles têm um vozeirão, uma voz privilegiada e são excelentes instrumentistas. Quando digo que o componente negro nos ajudou na música, não estou falando à toa. Pensem em um Djavan, um Gilberto Gil ou Pixinguinha, ou Cartola, como exemplos. O povo brasileiro faz de cada instante de vida o que no plano espiritual é de se fazer em cada instante de vida, ou seja, uma imensidão de possibilidades. Então, essa é a nossa experiência. Enfim, o Direito com a liderança da democracia, mais e mais vem absorvendo normas que chamamos éticas em linguagem coloquial, mas em linguagem técnica seria moral e, por exemplo, o decoro se tornou uma exigência muito maior no Brasil de nossos dias do que de outros tempos, quando os governantes ou os administradores são pilhados em falhas morais e logo dão mil explicações e dizem que vão indenizar o erário. Penso que as coisas estão mudando para melhor. Nosso grande desafio – entendo assim – é persistir no regime democrático, que traz tudo a lume. Em uma democracia, quem quer que seja pode dizer o que quer que seja, quem quer que seja pode se reunir com quem quer que seja, quem quer que seja pode escrever “ideograficamente” sobre quem quer que seja. O próprio Supremo liberou a Marcha da Maconha, lembram-se? Não para liberar o uso de tóxicos, mas para deixar claro que nenhum tema é tabu que se pode blindar contra a discussão no plano da sua valiosidade intrínseca. Tudo é passível de discussão aberta em uma democracia, isto é, o princípio da transparência, da visibilidade do poder, o poder de jugo, o governo do Poder Público – discutem-se em público, perante o público, desnudadamente. Sob esse regime, de excomunhão do bastidor e de exaltação da ribalta iluminada, o povo se dota de uma santa 197


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curiosidade pelas coisas do Poder. O próprio Supremo Tribunal Federal proclamou em alto e bom som que a liberdade de imprensa, no Brasil, é total, é plena, porque meia liberdade de imprensa é contrafação. Isso nos alenta, nos anima a acreditar em um futuro melhor, nessa conciliação de Poder e pudor, que seria o ponto mais avançado da nossa experiência democrática, e passaríamos então a dizer – como certa feita disse Camus: “O céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Muito obrigado.

Acad. Dra. Janice Magalhães. Ministro, muito obrigada. Estamos em estado de graça diante dessa brilhante palestra. O senhor nos trouxe, assim, momentos memoráveis com essas palavras, essa sabedoria, essa filosofia, essa poesia. Nós o agradecemos muito por essa honra de tê-lo conosco. Não sei se o senhor gostaria de deixar alguns minutos para um comentário, algum debate se houver.

Ministro Ayres Britto. Se alguém quiser fazer alguma pergunta, estou atento.

Acad. Dr. Miguel Procópio. Eu não tenho, assim, nenhum questionamento. O que tenho a dizer é que, realmente, é uma honra para nós ter o senhor aqui, falando a esta Academia, porque o senhor, além de poeta, é um grande jurista e nos deu uma contribuição que achei deveras importante. Há outras muitas contribuições públicas suas que todos aqui sabem, com relação ao mensalão, mas o senhor foi relator de um parecer que trouxe elevada contribuição para a pesquisa em Medicina, sobre as 198


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células-tronco. Achei maravilhoso o parecer que o senhor elaborou a respeito, muito bem fundamentado. Eu não poderia deixar de expor esse fato publicamente, e agradecê-lo por esse empenho, de nos ter ajudado no campo da Medicina.

Ministro Ayres Britto. Obrigado. Para mim também do ponto de vista pessoal, cívico, profissional, humano, essa causa foi emblemática. Um grande jornalista, Igor Abreu, muito inteligente, preparado, um amigo pessoal, me possibilitou convocar, pela primeira vez na história do Judiciário brasileiro, uma audiência pública. O que parecia ser uma coisa temerária, revelou-se tão produtiva, tão boa. Logo depois, o Ministro Gilmar Mendes fez também audiência pública, e ela tem até uma previsão em lei, só que não estava implementada. Fiquei emocionado com os que acorreram lá, a convite, para a audiência pública. Foram 29 cientistas: biologistas, geneticistas, pesquisadores da mais alta qualidade, e 27 deles subiram à tribuna para fazer sustentação oral. Achei essa atitude de uma beleza emocionante. É preciso abrir as janelas do Direito para o mundo circundante, e é preciso o Judiciário ter a humildade de reconhecer isso, que sobre certos temas ele precisa do conhecimento de outras instâncias científicas. O Direito é ciência, mas quem só sabe Direito nem direito sabe, dizia Oliver Holmes. E, ali, eu experimentei muita emoção. Uma das cientistas que fizeram sustentação oral subiu à tribuna para dizer – defendendo o uso das células-tronco embrionárias – que cuidava de uma criança de sete ou oito anos, uma menina, praticamente em vão: paraplégica, não havia progresso nenhum, melhora nenhuma mesmo com o uso da terapia conhecida no mundo todo sobre aquele quadro. 199


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Mas o fato é que, em certa manhã, a menina mandou chamar a médica – doutora Mayana Zatz, israelense, muito conhecida, radicada no Brasil e se tornou famosa em nosso país. Disse-nos que a menina chegou perto dela e lhe disse: “Doutora, por que a senhora não abre um buraco nas minhas costas e põe dentro dele, do buraco, uma pilha, uma bateria, para que eu possa andar como as minhas bonecas”? Quando eu ouvi esse depoimento lancinante, eu disse para mim mesmo: “Essa menina de sete anos acabou de fazer o meu voto. É impossível votar contra”. E passei a entender porque Einstein estava certo quando disse: “Nunca soube de uma grande descoberta científica que não partisse de uma intuição”. Assim, são as decisões judiciais também. As mais transformadoras, elas partem de uma intuição, partem do sentimento, que é o que temos de melhor. Pelo menos na investigação inicial das coisas. O sentimento fica do lado direito do cérebro, não é isso? A neurociência mostra isso, a física quântica também. Tudo é binário, tudo é dicotômico. No lado direito, tem-se o sentimento; no lado esquerdo, o pensamento. O pensamento é lógico, racional, é cartesiano, intelectual. O sentimento é emotivo mesmo, é esse jorro coronariano, é esse pulsar do coração, é essa linha direta com a vida. Não por um acaso o lado direito do cérebro é chamado de “lado feminino”. Não é por acaso, também, que Direito é uma palavra masculina, mas justiça é uma palavra feminina. Como tinha que ser. Eu já fiz um poema assim: “Quando Deus criou a mulher, fez o molde da primeira mulher, Ele fez de um fôlego só, eufórico, porque sabia que ali estava o marco da Sua própria superação”. Realmente, é o sentimento que abre os poros da inteligência racional e não a inteligência dita racional que abre os poros do sentimento. Experimentei ali muita emoção. Por exemplo, quando eu passei a estudar a fertilização in vitro – congelado ali no freezer, depois 200


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de obtida a fecundação em uma placa de Petri, comecei a ver que o embrião – artificialmente produzido, por essa fertilização artificial –, não vem do corpo de uma mulher, não saiu do corpo de uma mulher, ele não foi fruto de uma relação sexual, não houve intercurso sexual. O que saiu do corpo da mulher foi o óvulo, geralmente mais de um. Há um estímulo para a produção de óvulos em um só mês, e ali se tenta fertilizar um, dois, três, o que der. Então, aquele embrião ali, congelado, não vai jamais experimentar a metamorfose que se dá no ser humano. Então, fiz um trocadilho em plena sessão, que me pareceu correto: não confundir embrião de pessoa humana com pessoa humana embrionária. Ali há um embrião de pessoa humana, porque, se colocado no endométrio, vai experimentar a metamorfose que pode resultar no ser humano. Mas, enquanto permanece ali, não experimenta metamorfose nenhuma. Então, não é uma pessoa humana embrionária, é apenas um embrião de pessoa humana. Depois, compulsando a Constituição sobre o início da vida, li e estudei longamente, interessado, sobre o início da vida. A Constituição é de um silêncio de morte. A Constituição proclama a dignidade da pessoa humana. O embrião não é uma pessoa humana, no sentido biográfico, com sentimento, pensamento, consciência e – para quem acredita – alma, espírito. Há quem diga que espírito é uma coisa e alma seja outra. As pessoas não nascem com alma, nascem com espírito, a alma vai sendo adquirida. Por isso é que o povo diz: “Fulano de tal é desalmado”. A alma está a serviço do espírito para qualificá-lo, assim como o sentimento está a serviço do pensamento também para qualificá-lo. Percebo que a Constituição afirma: “A segurança aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, os direitos concedentes a.... começa com vida”. Ora, o embrião não é 201


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brasileiro, não é estrangeiro e, muito menos, residente. Não é interessante isso? A Medicina começa a ajudar o Direito. Hoje, há palavras que são tradutoras da civilização contemporânea, por exemplo, conectividade. Todo o mundo está interconectado. Já se chamou de sociedade da informação, depois se percebeu que a informação não é fim, é meio para comunicação. Então, se trata de uma sociedade da comunicação, de comunicabilidade. Todo mundo quer se comunicar. A própria comunicação visa ao conhecimento e hoje se diz sociedade do conhecimento. A sociedade do futuro é a sociedade do conhecimento, e o conhecimento é, evidentemente, transdisciplinar. Então, ocorrem conectividade, transdisciplinaridade e sustentabilidade, por exemplo, quando um povo toma consciência da imprescindibilidade dos valores morais, para dar a cada indivíduo uma sensação de centralidade e conferir ao corpo social uma coesão. Quando essa consciência se forma, ela se torna sustentável, faz uma viagem sem volta. Esse valor moral passa a ser retroalimentado, como um aparelho auto-reverse, é um feedback, não há mais retorno. Então, sustentabilidade é essa impossibilidade de regresso, é proibição de retrocesso. A respeito de conectividade e transdisciplinaridade, a vida gravita em torno dessas duas ações básicas. Como aprendi com os médicos, fui buscar entre eles – como também ocorreu com a questão da homoafetividade – entre psiquiatras, analistas, bem como filósofos, psicólogos. Li muito Jung. Ele afirma que a homoafetividade ou homossexualidade não tem absolutamente nada a ver com o caráter ou com sua deformação, que é um modo de ser, assim como um heterossexual só é feliz heterossexualmente. Ele não se expressa com essas palavras, mas é como se as tivesse dito. 202


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O homossexual só pode ser feliz homossexualmente e é uma pessoa adulta. O sexo não está nos portais da existência. Fui criticado duramente, um pouco por uma parte da imprensa, quando eu disse que “o sexo não é um minus, é um plus”, ou seja, o sexo não é um déficit existencial, é um superávit existencial. Tanto o homossexual quanto o heterossexual, pelo sexo, eles transitam, digamos assim, do prazer meramente físico para a extasia amorosa e, na linguagem de antes, é preciso que a pessoa seja feliz e se equilibre e, equilibrando-se, equilibre a sociedade. Há no mundo inteiro – comprovadamente, estatisticamente – 10% a 12% de homoafetivos, que, no mais das vezes, são pessoas sensibilíssimas, de excelente caráter, se relacionam bem, são pessoas econômicas, responsáveis e têm tolerância para com os preconceituosos que os transportam, muitas vezes, para o plano da santidade, já que eles perdoam os brutamontes que não sabem enterrar ideias mortas e só sabem armazenar, nas prateleiras do seu obscurantismo, formol em grande quantidade. Aquela decisão do Supremo Tribunal Federal foi uma decisão histórica, em prol da dignidade da pessoa humana. O reconhecimento de que a busca da felicidade – ou pelos caminhos heterossexuais ou pelos caminhos da bissexualidade ou da homo-afetividade – pouco importa, isso não nos diz respeito, diz respeito a cada qual das pessoas. Então, a busca da felicidade é um direito fundamental. O Estado não assegura a felicidade a ninguém, não tem felicidade para dar a ninguém, mas assegura, sim, como um dever “inafastável” a busca da felicidade. Desse modo, o Supremo Tribunal Federal tem tomado decisões extraordinárias, verdadeiramente revolucionárias. A Lei Maria da Penha, por exemplo é uma lei espetacular, cuja consti203


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tucionalidade foi reconhecida também em alto e bom som pelo Supremo Tribunal Federal e tudo nos marcos da democracia. E como a democracia tem arejado as nossas mentes. Salto de qualidade do ponto de vista espiritual é que nós temos dado por intermédio da jurisdição constitucional. O Supremo está na linha de frente. Fui fazer uma palestra em San Diego, Califórnia. Falei numa tribuna, em português, e minha filha, que está aqui presente, traduziu para o público, em inglês, de outra tribuna. Uma juíza Federal disse que, de certa forma, o sonho de consumo do Judiciário dela seria ver os Estados Unidos acompanhar a evolução do Brasil no plano do arejamento dos costumes. Quer dizer, estamos avançando no plano do arejamento dos costumes, e essas três causas são emblemáticas. Outra causa também emblemática foi a da anencefalia, a interrupção da gravidez com feto anencéfalo. O Supremo entendeu que a natureza também entra em destrambelhamento, em desvario, não fecha a caixa craniana do feto que está em formação e, não obstante, a gravidez avança, porém com seu produto prometido ao túmulo. O que se faz é – do modo mais cruel possível – obrigar a mulher ao mais doloroso, ao mais lancinante dos estágios, que é se preparar psicologicamente para ver seu filho, ou sua filha, involucrado em uma mortalha. Isso é pior do que surge em uma música de Chico Buarque: “A saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto do filho que já morreu”. Porque no caso da anencefalia não vai haver quarto, não vai haver filho, não vai haver enxoval, não vai haver sonho. Absolutamente nada. É o colapso da luz. É a treva absoluta. Veio o Supremo: “Não! a mulher tem, sim, o direito de, querendo, interromper a gravidez”. Eu até me lembro do que disse aos Ministros: “Senhores Ministros, se 204


ANAIS • Ano IV

nós, homens, engravidássemos, a autorização para interromper a gravidez já existiria desde sempre”. Muito obrigado pela atenção.

Acad. Dra. Janice Magalhães. Se pudéssemos, iríamos querer que o senhor, Ministro, permanecesse aqui conosco a noite inteira. Muito obrigada por essa esplêndida aula de sabedoria. Muito obrigada a todos pela presença.

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A

s palestras e os debates inseridos nestes Anais de 2013 traduzem o pensamento crĂ­tico, em

vĂĄrias ĂĄreas do conhecimento, para o entendimento holĂ­stico da Medicina.


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