ASSOCIAÇÃO MÉDICA DE BRASÍLIA ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
Programa de Educação Continuada Tecnologia e Vida – A Ética dessa Relação
Brasília, DF, 8 e 9 de fevereiro de 2019
ASSOCIAÇÃO MÉDICA DE BRASÍLIA ACADEMIA DE MEDICINA DE BRASÍLIA
Programa de Educação Continuada Tecnologia e Vida – A Ética dessa Relação
2019
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Abertura
Dr. Paulo Nasser: Como o evento é de nossas duas grandes entidades, a Associação Médica e a Academia de Medicina de Brasília, vou convidar seus presidentes para fazer uma saudação a todos, iniciando com o Dr. Ognev Cosac, presidente da primeira e em seguida chamarei o Dr. Marcus Vinícius Ramos, presidente da segunda. Muito obrigado pela atenção e sejam todos muito bem-vindos. Dr. Ognev Cosac: Bom dia a todos, é um prazer muito grande recebê-los, prazer maior ainda é a comemoração dos nossos 60 anos de existência – a Associação Médica de Brasília agradece aos nossos ilustres palestrantes e a todos os presentes. Eu queria chamar o Dr. Marcus Vinícius para que suba ao palco para dar início às apresentações. Dr. Marcus Vinícius Ramos: Bom dia, bom dia a todos. Não é a primeira vez que a Associação Médica de Brasília e a Academia de Medicina se irmanam para promover um evento dessa magnitude: no passado recente estivemos juntos num seminário sobre o SUS, e estamos no momento atual juntos também discutindo com o CFM o tema da telemedicina que, como todos sabemos, impacta diretamente nossa profissão, especialmente agora que estamos avaliando os aspectos éticos dos recursos tecnológicos aplicados à medicina. Antes de chamar os nossos palestrantes eu gostaria de dizer algumas palavras a respeito do que vamos conversar hoje e amanhã. O tema da nossa palestra é ‘Tecnologia e Vida, a Ética dessa Relação’. Morrer era um processo natural, simplesmente sucumbia-se a uma doença ou um acidente. Com o surgimento da medicina que conhecemos hoje a morte passou a ser muitas vezes antecedida pelas mais diversas intervenções tecnológicas, entre elas drogas como quimioterápicos, anticonvulsivantes, antibióticos, analgésicos, cirurgias de todos os tipos, transfusões, manobras de ressuscitação, desfibriladores, respiradores, e uma quantidade enorme de tubos. Um corpo que antes morreria rapidamente passou a poder ser mantido em funcionamento por dias, semanas ou mesmo anos em permanente estado vegetativo.
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Os avanços tecnológicos de radiologia e cardiologia, por exemplo, que ajudaram a prolongar e a melhorar a qualidade de vida para muitos, também ajudaram a transformar o processo de morrer em um pesadelo para outros. A extensão da vida obtida com a ajuda dessa nova medicina fez com que o número crescente de pessoas passasse o resto dos seus dias em ambiente insalubre, muitas vezes em hospital ou lar de idosos sob cuidados constantes com o nível de consciência reduzida e baixa qualidade de vida. Dos mais simples aos mais sofisticados, esses recursos permeiam tanto a nossa arte quando a nossa ciência. A atitude de fazer tudo que é possível, que ainda hoje prevalece, precisa ser urgentemente repensada. Devemos considerar de uma maneira mais filosófica o significado e o valor atribuídos à mera extensão da vida física de uma pessoa incapacitada de se relacionar com o mundo exterior. Mais do que nunca há necessidade de se desenvolver diretrizes racionais que garantam a primazia do melhor para o paciente, que protejam a integridade da relação do médico com essa pessoa, e que reafirmem o nosso dever para com a sociedade como um todo. Qual é a relação ética entre o uso da tecnologia e a vida, e o que dizem as leis de Deus e as leis dos homens sobre a nossa pretensão prolongarmos nossa existência para sempre, quando sabemos não existir droga ou técnica que nos tornem imortais? Para responder a essas e outras perguntas o Programa de Educação Continuada da Associação Médica de Brasília e a Academia de Medicina de Brasília convidam para tomar lugar à mesa o rabino Sérgio Margulies, que serve à Associação Religiosa do Rio de Janeiro, o padre Eduardo Vinícius de Lima Peters, reitor e professor do Seminário Maior Arco Diocesano de Brasília, a psicóloga Carla Fragomeni, especialista em psicologia clínica, com formação em psicologia analítica e sexualidade, e o doutor Celmo Celeno Porto, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, fundador e primeiro presidente da Academia Goiana de Medicina e também membro da Academia Nacional de Medicina. Cada palestrante terá 30 minutos para expor o seu ponto de vista com intervalo de 15 minutos após a exposição do segundo orador, que será o padre Eduardo Vinícius. Sem mais, chamo o rabino Sérgio Margulies para dar início ao nosso seminário falando sobre a visão contemporânea da existência humana. Muito obrigado!
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I – Finitude Biológica e Medicina
Visão Contemporânea da Existência Humana Rabino Sérgio Margulies: Bom dia a todos, muito obrigado, eu agradeço a honra, a oportunidade, o privilégio de estar aqui compartilhando desse momento. Fiquei um pouco intrigado no início porque havia pensado que a minha abordagem seria apenas sobre a visão judaica da existência, já que a contemporânea envolve tudo, envolve a visão cristã, católica e demais concepções. Mas de alguma maneira a palavra contemporânea traz uma boa oportunidade, e eu vou usar o meu bisturi da alma que é a língua hebraica, e mesmo que alguns, e esses alguns podem ser muitos ou talvez todos, não consigam compreender no início, eu vou explicar, e então provavelmente fará sentido. Contemporâneo é compartilhar o tempo, o nosso tempo, e a palavra tempo em hebraico é smar e essa palavra, tempo, está intimamente ligada a um verbo, o verbo convidar. Ou seja, na visão filosófica judaica o tempo é o tempo do convite, o tempo existe e é mensurado qualitativamente através do convite, o convite para compartilhar, o convite para estarmos juntos. E estamos juntos aqui para refletir. Eu trago a visão judaica, e é importante trazer essa singularidade judaica, porque nenhuma singularidade pode se sobrepor a outra singularidade, vivemos num mundo bastante caótico e catastrófico, com muita desavença, com grandes conflitos, com fanatismos, com desentendimentos, e parte desses desentendimentos, claro que não no âmbito total, é a tentativa de impor uma visão de singularidade sobre as demais. O pacto de Deus com todos os seres vivos, tal como narrado no texto bíblico, foi selado através do arco-íris na história de Noé. O arco-íris é múltiplo, e a ideia é que cada um possa trazer a sua cor, a sua percepção, a sua visão, não uma anulando, não uma se contrapondo à outra, mas todas se somando. Então, parte da nossa existência humana é o desafio do compartilhar. Há uma parábola e o judaísmo é rico em parábolas que vem do século XVIII. Um rabino, o nome desse rabino era Hanoar, procurou o seu mestre e lhe disse: eu tenho braços, tenho pernas, tenho olhos, tenho ouvidos, é uma benção. Com os meus braços eu posso usar instrumentos para realizar algo, com as minhas pernas posso me deslocar, com os meus olhos enxergar a amplitude da vida, com os meus ouvidos perceber os sons e os encantos do mundo. Mas mesmo tendo braços, pernas, olhos e ouvidos, disse esse rabino ao seu mestre, não sei, não compreendo porque fui criado. E qual foi a resposta do mestre? O mestre para esclarecer a dúvida simplesmente disse: eu também não sei. Então, eu te convido para jantarmos juntos.
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Qual o propósito da existência? Talvez o propósito da existência seja em muitos aspectos não saber precisamente o propósito da existência. E não sabendo, buscamos, perguntamos, procuramos obter uma resposta definitiva, e não obtendo essa resposta definitiva, continuamos buscando, e essa busca é o compartilhar. Nesse sentido, num pensamento que vai progredindo, o propósito da nossa existência talvez possa ser o de compartilhar. É um propósito aparentemente simples, mas frequentemente esquecido, cada um na sua, no isolamento, e num mundo cada vez mais tecnológico, cada um com a sua telinha e o seu visor. Compartilhar, estar juntos, conviver é um dos propósitos ensejados pela tradição judaica. Um dos temas desse grupo de debates é a extensão da vida. Prossigo com outra parábola: Deus criou vários atributos, entre eles o potencial de imortalidade. Os mensageiros celestiais estavam invejosos dos seres humanos e temerosos que esses, se imortais fossem, pudessem suplantar a sua supremacia. Então, claro, numa linguagem figurativa, sugeriram a Deus esconder a imortalidade do ser humano, e sugeriram escondê-la não nas profundezas do mar porque lá eventualmente a iriam encontrar, não nas alturas celestiais, porque lá eventualmente também a iriam achar, mas num lugar que o ser humano provavelmente nunca a encontraria. E qual seria esse lugar? Entre um ser humano e outro. Este, diz a parábola, será o último lugar em que cada ser humano irá procurar a imortalidade. A mensagem era o vínculo à imortalidade, e esse vínculo é frequentemente esquecido, tanto que, conforme a parábola sugere, o lugar não será nunca buscado. Quantas buscas são realizadas por inércia, comodismo, facilidade? E dentro dessa facilidade há um provérbio na tradição judaica que diz: determinados caminhos longos vão se tornar curtos, e caminhos curtos podem se tornar longos. Quando iniciamos por atalhos, por encurtar os nossos esforços, queremos resultados imediatos, esses caminhos curtos vão se tornar longos. Por outro lado quando buscamos o convívio, o compartilhar, a parceria, tomamos caminhos longos porque isso é desafiante, e esses caminhos longos com relação à efetividade se tornarão curtos. A história da travessia de 40 anos pelo deserto traz esse ensinamento, o caminho geograficamente poderia ser mais curto, mas a ideia é: persiga com tenacidade suas metas, sem desvios e busque nessas metas o compartilhar com a decência humana. Esteja junto. Mas nós nos desviamos do convívio com os outros, desviamos do nosso próprio convívio, do nosso próprio encontro. E emergimos, ou submergimos na solidão, apesar de muitos à nossa volta, e a solidão é muitas vezes grande. Dentro da narrativa simbólica eu trago a narrativa bíblica como elemento simbólico para o nosso propósito desse seminário. Deus criou o ser humano, ora, Deus é onipotente, então para que criaria o ser humano? A ideia é que Deus criou o ser humano para ter um parceiro. E a mensagem é inequívoca, se até Deus precisa romper a sua solidão,
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quanto mais nós, cada um de nós quer romper a sua própria solidão também. O propósito é a existência, é romper a solidão para criar pontes de convívio. Romper a solidão não é uma tarefa fácil, requer romper a autossuficiência, se desvencilhar da arrogância e dizer “não sei.” Mas quantos de nós, incluindo rabinos, sacerdotes, médicos, entre tantos outros, estamos dispostos ou somos capazes de dizer “não sei?” Parte da tarefa religiosa não é buscar a compreensão de determinados aspectos que cabem à ciência, parte da tarefa religiosa vem em complemento a ciência, é ter o senso do mistério, é a reverência que nos permite dizer “não sei.” Há uma história também na Bíblia, a história de Jó, em que ele, uma pessoa aparentemente justa sofre, sofre e julga que sofre de modo injusto. E os amigos tentam explicar o sofrimento dele, tentam dizer que ele teria pecado e portanto era merecedor desse sofrimento. Mas segundo a interpretação desse texto na tradição judaica, o que esses amigos foram instruídos a dizer para Jó foi “não sei o porquê do teu sofrimento.” E ao dizerem “não sei” a tarefa deles era dar apoio e conforto. No entanto, eles abdicam do “não sei” e tentam explicar, traçam uma fórmula através do qual as variáveis possam ser explicadas. O propósito da existência em muitos momentos é aprender, é entender o que não sabemos e com isso reverenciar o mistério da vida. Reverência cria finalidade, e qual é a nossa finalidade? Contribuir, contribuir é o encontro, é o convívio de mim para com o outro, e do outro para cada um de nós. Reverência à vida é olhar além, para poder contribuir, a realização que todos buscamos realizações, mas a realização sem o propósito de contribuir é míope, colapsa, ela atende a uma necessidade, mas carece de finalidade. Animais tem necessidade, somos seres humanos, mas também somos animais, portanto temos necessidades. Mas somos mais do que animais, somos seres que buscam uma finalidade. É através da contribuição que nós nos tornamos seres humanos, somos o que nos tornamos e nos tornamos através do ato, da atitude de contribuir. Contribuindo construímos uma história, quando a gente marca a nossa história, seja individual, seja de um determinado grupo, o relato perpassa pela nossa contribuição. Grande parte da tarefa judaica é lutar contra a idolatria; e o ídolo não é somente um objeto, ídolo é tudo aquilo que responde por nós e tira o potencial de sermos o que podemos ser. Idolatria dessa maneira é o medo de construir a nossa história, de buscar o nosso propósito. Se o potencial é anulado porque o nosso empenho, a nossa capacidade é transmitida, deslocada para um ídolo, não há contribuição possível, não há um encontro, não há propósito. Para encontrar alguém e alguém me encontrar é preciso primeiro que cada um de nós se encontre consigo próprio. Dessa maneira há uma frase, um pensamento que diz: se eu sou eu porque você é você, você é você; se eu sou eu porque você é você, e
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você é você porque eu sou eu, então eu não sou eu e tão pouco você é você; mas se eu sou eu porque eu sou eu, e você é você porque você é você, então eu sou eu e você é você. Falando pode soar um pouco complicado, mas no texto escrito fica mais fácil e a ideia sinteticamente falando é que o encontro é tão necessário para o propósito da vida que devemos ser o que somos não por determinação e imposição externa, não por determinação de um ídolo, mas pelo exercício do nosso potencial. Um encontro genuíno, um encontro de parceria, encontro de não manipulação, encontro de não controle. Parceria. Parceria é encontrar não necessariamente o semelhante, e isso é bom, mas o desafio é encontrar o diferente. Martin Tupper, um filósofo do século 20 que viveu na Europa e depois em Israel fala que na matemática A e menos A são opostos. Mas numa vida espiritualmente compartilhada o A e o menos A se complementam, coexistem. Parceria é o compartilhar e nela os opostos se complementam. Frequentemente aqui eu faço uma pausa no debate entre a ciência e a religião como se fossem opostos – são absolutamente complementares, ainda que um seja A e outro menos A. Se somam, se enriquecem, se aprendem juntos, são parceiros. Dentro dessa parceria estabelecida, do encontro que se torna possível, vemos a relevância do outro. O historiador israelense Yuval Harari, que escreveu alguns livros publicados recentemente, diz que um dos grandes dilemas humanos, sobretudo nessa era tecnológica intensa, de informatização intensa, é a relevância, ser relevante. Isso está ligado a percepção que nós temos da nossa existência de poder contribuir para algo maior. Nós somos, segundo o relato bíblico, a imagem de Deus. Muito bem, mas Deus não tem imagem, então há um paradoxo. Esse paradoxo se resolve da seguinte maneira: nós criamos essa imagem através do que nos tornamos e nos tornamos pelo que contribuímos, e ao contribuirmos estabelecemos vínculos, através desses vínculos percebemos e somos percebidos, criamos a imagem divina ou resgatamos a centelha mais pura da essência humana, o propósito da vida. Dentro das parcerias, o que é fundamental é a não manipulação, já que a manipulação rompe qualquer potencial de vínculo. E é importante estabelecer que manipulação distingue-se de interesse. Posso me relacionar com alguém por algum interesse em função de dadas circunstâncias, isso é projeto conjunto, manipulação é enganação, é uso do outro, é desumanizar o outro. A história da serpente de Adão e Eva é uma história de manipulação. A palavra serpente em hebraico é nahash, e essa mesma palavra nahash também significa manipulação. Então, a serpente não é necessariamente, dentro de uma leitura simbólica interpretativa, o animal, a cobra: é a manipulação, e através dessa manipulação um acusa o outro. A nossa tarefa de propósito humano é construir vínculos onde as diferenças possam ser discutidas e às vezes até brigadas, brigamos
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por elas, mas não com mentiras manipulativas e enganações. E apontar o dedo para a culpa e não nos deixarmos envenenar pelas serpentes da manipulação que acontecem. Dentro da busca de vínculos de um propósito e não de controle, vou citar também um rabino do século 20 que viveu na Europa e depois na América, nos Estados Unidos, que falava: nos exames dos componentes de sangue e urina buscamos o controle, nos laboratórios buscamos o controle, é importante isso. Mas e os componentes da alma? Esses componentes estão além do nosso controle. Olhamos os resultados dos exames de sangue e urina, são fundamentais para a saúde, prevenção, cuidado e cura, quando possível mas, e os componentes da alma? A história da escravidão no Egito tal como a narrativa bíblica é uma história que também simbolicamente rompe o controle. Qual é a ideia das pirâmides do Egito antigo? Controle, construído por escravos. Abrigo de sarcófagos, lugar da riqueza não usufruída, aponta para o céu, sai da terra para o céu. O povo hebreu sai da terra da escravidão do Egito antigo, ruma pelo Deserto, lá recebe o texto bíblico, as tábuas da lei, acompanha a vida; a riqueza é incorporada em qualquer lugar, no deserto sobretudo, um lugar aberto e amplo de controle impossível, mas passível de ser transformado. Deserto, lugar para ser irrigado. E vêm do céu, novamente falando simbolicamente, essas tábuas da lei para a terra. É na terra, no compartilhar que encontramos o propósito. Dentro dos vínculos, do propósito vínculo, eu vou contar uma pequena história. Uma vez estava com um grupo de crianças na faixa de 5, 6, 7 anos e perguntei a essas crianças, logo no início da apresentação, se elas sabiam qual era o meu nome. E uma delas falou assim: claro que eu sei. Eu falei: que bom, qual é o meu nome? Ela falou: rabino. Eu falei assim: ok. Você acha que a minha mãe me chamava de rabino? Chamava porque já é falecida. Aí o garoto ficou sem resposta e falou: é, não sei, acho que não. Aí eu falei: pois é, o meu nome não é rabino. E o garoto falou assim: e agora, o rabino que é rabino não é mais rabino, então como eu chamo o rabino que não é rabino? Eu expliquei que rabino é um título que a gente adquire, que a gente conquista. Como tantos e tantos outros títulos. Mas o que eu sou não é necessariamente o meu título. O título representa parte das minhas conquistas, portanto, parte do meu propósito da vida, mas eu sou mais do que isso. Cada um de nós é mais do que isso, para as minhas filhas eu sou o pai, para a minha esposa eu sou o marido, aliás quando ela briga ela fala: aqui em casa você não é o rabino não, me lembra logo disso. Porque é importante estabelecer o vínculo genuíno, em que os nossos títulos representam, como eu falei, nossas realizações. Eles nos permitem nos colocar num nível que não atinja os relacionamentos bem genuínos. Há um filme sobre o físico Stephen Hawking e nesse filme um professor se apresenta. E quando ele se apresenta ele diz no filme: my name is professor so and so, e dá o seu nome. Eu fiquei pensando o nome dele é professor tal? Não, ele tem um
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nome. Professor não é um nome, é um título, orgulhosamente carregado e valorizado, mas quando o colocamos à frente em todas as instâncias da nossa vida perdemos a chance de vínculos genuínos comprometendo um dos propósitos da vida. O Rei Davi, que também faz parte do texto bíblico, era um homem amado e poderoso, é sempre descrito como Rei Davi, mas no final da sua vida a Bíblia o descreve somente como Davi, sem o título. Um dos temas desses painéis é a morte, quem morre? É o rei ou o Davi? Quem morre são nossos títulos ou somos nós como pessoas? O que fazemos através dos nossos títulos permanece, é a nossa imortalidade, portanto, parte do propósito da vida, o que somos, também igualmente permanece no coração dos outros. Mas para que isso venha a permanecer, é importante também sermos em muitos momentos sentido, pessoas genuínas. O Rei Davi compôs os Salmos bíblicos e um desses Salmos diz: “se eu levanto os meus olhos para as alturas, de onde eu busco a minha ajuda? E a ideia é: precisamos todos de ajuda, precisamos todos tecer vínculos de convívio, isso é milenar, é permanente, muda o tempo, mas permanece a ansiedade e a necessidade humana do compartilhar. Isso é um Salmo bíblico composto pelo Rei Davi e é também na composição mais contemporânea dos Beatles que diz: Help, I need somebody. A gente sempre precisa de alguém, nós necessitamos sempre do vínculo, essa é nossa busca, é o nosso propósito, o nosso propósito de fazer da vida uma jornada, pois nascer é o começo e morrer é o destino, e a vida é uma jornada. Uma jornada da infância ao amadurecimento, da juventude à velhice, da inocência à consciência, da ignorância ao conhecimento, da estupidez à discrição e talvez, à sabedoria, da fraqueza à força ou da força à fraqueza. A vida é uma jornada da ofensa ao perdão, da solidão ao amor, da alegria à gratidão, da dor à compaixão, e da aflição ao entendimento, do temor à fé – e de fracasso a fracasso, olhos voltados para trás, ou olhando para frente, percebemos que a vitória não se conta nas alturas ao longo do caminho, mas sim na realização da vida passo a passo numa sagrada jornada. E essa sagrada jornada é a vida e os vínculos que constitui, vínculos que são elos sagrados, pois deixamos em cada um a nossa marca imortal. Obrigado. Visão Cristã da Existência Humana Padre Eduardo Vinicius de Lima Peters: Bom dia a todos, é uma satisfação poder estar aqui com vocês para apresentar a visão cristã no que diz respeito à existência humana. Para falar desse sentido cristão da existência humana eu gostaria de colocar aos senhores e as senhoras alguns pressupostos, se vocês me permitem. Quando
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pensamos na teologia católica, sobretudo, talvez aqui eu posso falar com mais propriedade, o estudo da teologia tem sempre dois grandes fundamentos, a Sagrada Escritura, base para todo o estudo teológico e a tradição. Quando falamos em tradição não estamos falando simplesmente de costumes, mas falando de tudo aquilo que foi consolidado pela experiência da igreja durante praticamente o primeiro milênio. Consideramos esse período da tradição, chamando inclusive os sacerdotes e os teólogos desse período como padres da igreja, terminamos esse período praticamente no século X, com a figura de Santo Isidoro de Sevilha. Talvez alguns de vocês o conheçam, é o padroeiro da internet, mas deveria talvez ser o padroeiro do Google, porque Isidoro de Sevilha foi um daqueles pensadores que trabalharam na perspectiva enciclopedista, um dos primeiros a recolher as ideias de modo enciclopédico. Por isso Santo Isidoro ficou conhecido como o padroeiro da internet. Também temos no Oriente São João Damasceno que debate a questão iconoclasta. Mas pensando em termos de estudo teológico, nossas fontes fundamentais são sempre a Sagrada Escritura e todo o conhecimento produzido pela experiência da comunidade cristã colocada, sobretudo, nos primeiros séculos, porque são mais próximas também da nossa referência fundamental, que é Jesus Cristo. Mas a teologia também recorre à filosofia, pois desde muito cedo, se olharmos o pensamento cristão no início do segundo século da nossa era, os pensadores cristãos já tratavam a comunidade não cristã em termos filosóficos. Ainda mesmo antes disso: São Paulo quando chegou à cidade de Atenas e se preparava para fazer o anúncio do Evangelho na região do Parthenon, viu ali um lugar dedicado ao Deus desconhecido. Quando ele viu esse lugar, foi ao areópago, lugar dos discursos feitos na cidade de Atenas e disse: “vim falar para vocês desse Deus desconhecido.” E começa o seu discurso apresentando a figura do Deus cristão. Justino de Roma e tantos outros pensadores no início da era cristã já utilizavam termos filosóficos para tentar entrar em comunicação com um mundo para o qual a igreja começava desde os primórdios a se abrir. A filosofia faz parte e é referência fundamental daquilo que é o nosso estudo teológico. E também a teologia é recursiva no sentido de procurar as ciências auxiliares, as ciências que são úteis ao conhecimento e a capacitação da vontade de Deus e também da experiência da nossa vida. É possível ir à sociologia, à psicologia, à medicina e a tantos outros fundamentos auxiliares para a interpretação daquilo que é o nosso caminho, daquilo que é a nossa relação com Deus. Tudo isso encontra sua resposta, a modo de síntese, no magistério da igreja. E é importante que a gente possa compreender a distinção que existe entre o esforço teológico – que é muito mais aberto, onde há uma discussão muito ampla sobre todas as questões relacionadas ao sentido e à orientação da nossa vida em relação a Deus – e o que diz o magistério da igreja. O Magistério da igreja é a missão de ensinar que a
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igreja entende possuir como uma de suas funções. Quando o magistério da igreja se pronuncia, o faz dentro dessas perspectivas – tendo feito uma reflexão teológica, tendo consultado as fontes, tendo olhado as circunstâncias do seu tempo, tendo procurado nas ciências auxiliares aquilo que é necessário à sua compreensão de mundo. O magistério se pronuncia, sobretudo, sobre questões relacionadas com a fé e com a moral. Fidem e moribus são os dois elementos fundamentais do discurso do magistério no sentido de orientar todo o povo de Deus. A teologia católica tem em seu modo de pensar e de se estruturar um fundamento que é aristotélico tomista. O que isso quer dizer? Quer dizer que as bases sobre as quais estruturamos nosso pensamento e conhecimento estão em Aristóteles por um lado e em São Tomás por outro. Por que Aristóteles? Porque apesar de Aristóteles ser discípulo de Platão, Aristóteles via o mundo dentro de uma concepção realista. Ou seja, ele acreditava que o processo de conhecimento consistia sobretudo, em observar de modo agudo aquilo que a realidade nos apresenta. Diferente do pensamento clássico de Platão, que pensava que o nosso mundo é uma representação imperfeita de uma realidade perfeita, que é o mundo das ideias. Quem conhece um pouco da filosofia sabe daquele discurso do mito da caverna, onde o homem conhecia só a sombra da realidade porque amarrado, olhando para a parede que mostrava as sombras, enquanto a realidade passava por trás e era projetada nessa sombra. E para o homem, sua realidade seria a sombra daquilo que é o mundo real, coordenado por um demiurgo, por essa entidade que em certo sentido organizava essa perfeição. Para os gregos platônicos o corpo representava um cárcere. O corpo é o cárcere da alma, por quê? Porque enquanto estamos presos nesse corpo é impossível olhar aquilo que é a realidade numa perspectiva de plenitude, é preciso se desvincular desse corpo para poder olhar a realidade como tal. Então, o pensamento platônico, vamos dizer assim, é o pensamento numa perspectiva ideal. Aristóteles não, Aristóteles considera que na verdade essa ideia que Platão reconhecia no mundo à parte, essa ideia está contida na própria coisa, de modo que essa ideia se comunica conosco porque a coisa se apresenta a nós. Nesse sentido Aristóteles estabelece um discurso completamente diferente que é o discurso da essência, a essência está dentro da perspectiva da realidade existencial. Então, não é uma coisa à parte, mas uma coisa que está dentro das coisas – nós somos capazes de aprender através da nossa possibilidade de conhecer. Da filosofia aristotélica herdamos muito do nosso pensamento teológico, da metafísica e da ética. A Suma Teológica é uma estrutura completamente lógica, quem procura estudá-la vai perceber que São Tomás a escreve de modo simbolística, ou seja, procurando responder de modo lógico, na base das teses, antíteses e sínteses. Todo o discurso teológico de São Tomás procura ser nesse sentido, na Suma Teológica um discurso lógico, o que é admirável se pensarmos nas condições que
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tinha São Tomás para aquisição de conhecimento. Tanto Aristóteles como São Tomás são referências fundamentais para a nossa teologia cristã e por conta disso também da nossa visão de existência humana. Quando olhamos para a metafísica de Aristóteles, precisamos olhar para a dinâmica da ontologia, ou seja, para um discurso sobre o ser. Quando pensamos teologicamente, o ser por excelência é Deus, e nesse sentido ele é completamente distinto de tudo, porque na sua realidade divina ele independe de qualquer coisa, ele subsiste por ele mesmo e ele existe desde sempre e para sempre. Então Deus, dentro da concepção aristotélica, é ato puro, significa que nada em Deus precisa ser modificado, porque a sua existência já é perfeita e acabada. Todas as outras coisas são derivadas, vamos dizer assim, dessa realidade divina e não se confundem com essa, porque nenhuma criatura pode ser criador, e nisso já há a distinção das realidades, existem realidades e características que Aristóteles coloca para nós que são extremamente interessantes. Primeiro a ideia de essência e de existência. Isso é muito interessante. Se nós colocássemos aqui diante de nós 40 cadeiras diferentes e nós perguntássemos a cada um dos senhores e das senhoras, “ – o que é isso?”, vocês responderiam 40 vezes: “ – é uma cadeira.” Por quê? Porque a nossa capacidade cognitiva na visão aristotélica, a nossa gnosiologia corresponde a uma capacidade de absorver a essência das coisas. Ou seja, o ser humano é capaz de absorver a forma das coisas. E porque é capaz de absorvê-las, sabe caracterizá-las não pela matéria, mas por aquilo que é a sua realidade, por aquilo que é a sua existência. A existência é a manifestação concreta da nossa essência. E é interessante porque se formos observar o ser humano, por mais que se modifique nas diversas etapas da sua vida, permanece humano. Porque na sua essência é humano. Portanto, quando entramos no discurso sobre o que é a existência humana, pensamos em nos perguntar sobre qual é a essência humana. Porque é a essência que nos define, e a existência em certo sentido é a expressão dessa essência. De modo que quando falamos de existência, precisamos sempre nos perguntar a respeito da nossa origem e a respeito do nosso fim. E quando eu estou falando em fim eu não estou falando em término cronológico, mas estou falando em finalidade existencial para compreendermos justamente o sentido da nossa vida. Também temos, nesse sentido de progressão, a perspectiva de potência e ato no próprio pensamento aristotélico. E quando falamos de potência e ato estamos falando da condição de sair de uma realidade de menor para uma realidade de maior qualificação. E aqui é interessante pensar que Aristóteles faz um vínculo da metafísica com a ética. Por que? Porque a ética em Aristóteles é uma grande pergunta sobre a felicidade. E a felicidade, senhoras e senhores, não é simplesmente na visão aristotélica e nem na visão dos gregos uma sensação de bem estar, ser feliz não é
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sentir-se bem, ser feliz é levar a bom termo a sua existência. Isso é a felicidade. Quando a gente pensa então no sentido da existência humana, qual é o seu sentido? É levar a bom termo a sua própria existência. Para isso você precisa conhecer qual é a sua essência, saber a sua substância e levar essa sua condição humana, essa sua essência à máxima que essa realidade humana pode alcançar. No caso da experiência humana em que nós somos um composto de corpo e alma, levar o ser humano àquilo que é sua realização plena, consiste por um lado, no cuidado do aspecto material que é o nosso corpo, e por outro, a elevação da nossa alma e da orientação da nossa vida àquilo que é a excelência do ser enquanto ser. Nesse sentido, a igreja permanece vinculada a Aristóteles, e São Tomás praticamente cristianiza Aristóteles nos seus escritos, porque percebe ali uma via em certo sentido razoável para orientar aquilo que é o percurso da nossa progressão em vida. Aristóteles então estabelece dentro da perspectiva da sua metafísica as características gerais de um ser, e aí estão as que chamamos de transcendentais. E é difícil trabalhar dentro da perspectiva de um discurso, de uma construção dentro da visão cristã, sem levar em consideração esses elementos. O primeiro elemento, a verdade objetiva, o verum, está no objeto, na coisa que nós observamos, ela se oferece a nós na nossa subjetividade e a nossa subjetividade é capaz de formular um conhecimento a respeito daquela realidade. É muito difícil estabelecer um discurso ético quando não podemos estabelecer um discurso sobre a verdade. Talvez essa seja a grande aporia do nosso tempo, um tempo que é relativista. Porque onde tudo é relativo, onde nós não podemos colocar paradigmas que sejam seguros para a observação da realidade, não conseguimos estabelecer a verdade. Se não conseguimos estabelecer o que é a verdade, não conseguimos estabelecer o que é o bem – se não conseguimos estabelecer o que é a verdade e não conseguimos estabelecer o que é o bem, não conseguimos estabelecer o que é a ética. Da verdade brota o bonum, o que é um bem físico e moral, ou seja, a perspectiva do bem brota da afirmação daquilo que é um ser. Se eu sei o que é o ser, eu sei o que é bom para ele, e posso orientar a perspectiva para esse bem. E também acrescenta-se na perspectiva aristotélica o pulchrum, que é o belo, que é a perspectiva estética, então a verdade, o bem e a beleza estão vinculados profundamente naquilo que é a razão de ser de cada coisa, pelo último critério transcendental que é o “uno,” que une de uma maneira profunda toda essa realidade ontológica, toda essa realidade que é o ser. Então, nós precisamos olhar na perspectiva do que ele é, e aí estão os aspectos essenciais, precisamos olhar na perspectiva do bem, e aí está o aspecto qualitativo, precisamos olhar a perspectiva do belo, onde está o aspecto contemplativo, e precisamos também olhar a unidade dessa realidade que garante todas essas coisas em comunhão.
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Quando pensamos então sobre a existência humana precisamos afirmar isso, que a pessoa é substância. Quando a gente diz que a pessoa é uma substância a gente está dizendo que ela é um ser, ela é um composto de matéria e forma, ou seja, a realidade material, física, ela não responde a toda a dinâmica daquilo que é o ser humano se nós não olharmos por aquilo que essencialmente nos faz humanos. Por isso é importante perguntar, o que é essa existência humana? Como podemos definir o homem? Essa é uma pergunta que percorre todo o pensamento cristão, e é a pergunta base também daquilo que é o pensamento filosófico: o que é um homem, e por que ele existe? Para onde ele vai? São as perguntas que estão aí diante de nós. Se a pessoa é substância, a ontologia da pessoa, ou seja, o ser da pessoa corresponde à compreensão da pessoa dar-se através da busca metafísica. Lembremse do termo metafísica o que é, aquilo que está além da física, meta ta physica no grego, aquilo que não responde só as questões físicas, mas que transcende a essa realidade, que se dirige para o inteiro, assim, olhar de uma maneira holística esse ser não só sobre o aspecto físico. Talvez esse seja também o grande desafio entre vocês médicos quando pensam na própria ciência, o que é a medicina, com todas as suas particularizações. As vezes nós vamos nos tornando tão especialistas em uma parte do corpo humano que nos foge a percepção do todo. E como é importante na ontologia da pessoa olhar a perspectiva do inteiro. Na abordagem ontológica da pessoa é procurada uma definição substancial e não apenas funcional, ou seja, do que é a pessoa na sua verdade. É procurada essa definição, não apenas funcional, que não sejam subvalorizados o signum persona, ou sejam, todos aqueles elementos ou indícios que possam assinalar a presença. Quer dizer o signum persona é o sinal da presença da pessoa. Isso é importante, mas a pessoa como um todo também. Se nós não olhamos a pessoa como um todo nós corremos o risco de cometer determinados movimentos que são sobre muitos aspectos, impróprios. Eu dou um exemplo, a respeito disso na questão da origem do ser humano. Sabemos que se quisermos retroagir ao momento originário de um ser humano em última análise, em última instância, nós vamos ver que o ser humano passa a existir quando existe aquela fusão do núcleo, das informações genéticas do espermatozoide e do óvulo que formam uma primeira célula com uma identidade genética completamente distinta da identidade genética da mãe, e da do pai. Eu olho para aquela célula e posso dizer que aquela célula não é do pai. Certo. Eu posso também dizer que aquela célula não é mais da mãe. Certo. Porque aquela identidade genética já não pertence mais ao pai, já não pertence à mãe, e ao mesmo tempo eu posso dizer que aquela célula é humana e mesmo que potencialmente ali seja ainda o primeiro momento existencial, ele já é de fato humana, e precisa, se é de fato, ser também de
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direito. É por isso que a igreja, para não errar, afirma o respeito e a defesa da bíblia desde o momento da concepção até o momento da sua morte natural. Por quê? Em termos éticos é importante que saibamos estabelecer paradigmas que sejam objetivos. E dentro dessa objetividade eu não posso colocar, por exemplo, a existência da pessoa começar pela formação do tronco encefálico. Eu não posso estabelecer uma data a não ser cientificamente falando, retroagindo, até ao momento da concepção. Nos parece muito claro em termos de evidência. O ministro Ayres Brito (STF) tomou uma decisão na época da lei de biossegurança na sua apresentação da questão: colocou, citando São Tomás, que ele estabeleceu o início da vida, ali na 16ª semana de gestação. Claro, porque São Tomás avaliava as coisas segundo as possibilidades que tinha. Quando São Tomás pensou no assunto, pensou de que forma? “Devo retroagir até o momento em que perceba efetivamente a vida.” E qual era a possibilidade que São Tomás tinha no seu tempo de observar? Quando a criança começava a mover-se no seio da mãe. Só então aí ele teria certeza que ali havia vida, e ali ele definiu a vida. Se São Tomás tivesse o conhecimento científico que temos hoje, São Tomás obviamente se colocaria na perspectiva do momento da concepção. Por quê? Se eu posso saber esse momento, eu devo definir esse momento. Vamos então a algumas definições clássicas a respeito de pessoa. A primeira definição é aristotélica, homo est animal rationale: o homem é um animal racional, então a primeira definição é um pouco mais primitiva, vincula a humanidade à perspectiva animal, ao mesmo tempo que já coloca o princípio racional. Boécio, que vamos encontrar já no final do século IX e início do século X define o homem como racionale naturae individua substantia, uma substância individual de natureza racional. Interessante porque em Boécio nós já vemos a caracterização da definição de indivíduo e da natureza racional daquilo que é a experiência do homem. Sublinha a identidade metafísica substancial porque a pessoa é original e redutível ao outro ou aos cosmos. Cada um é indivíduo, e enquanto indivíduo único e repetível nesse sentido. O recurso, a substância revela o caráter do sujeito existente, ou seja, de substrato da pessoa e não apenas a simples atividade. Então o homem não é homem só enquanto ele age como homem, o homem é homem naquilo que é a sua identidade, aquilo que é a sua realidade natural. Ricardo de São Vitor vai afirmar, racionale naturae individua existencia, vejam como vão mudando os termos, uma natureza racional de existência individual, ou seja, uma natureza racional que existe de modo individual. E São Tomás, juntando todas as ideias, fala de individuum, já então colocando toda a perspectiva da autonomia da pessoa. Individuum subsistem, um indivíduo que subsiste por ele mesmo, significa que a vida nesse sentido se manifesta como realidade autônoma, in racionale naturae, ou seja, numa natureza racional, é um indivíduo que subsiste de
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modo racional. Esse é o nome. E o caráter nesse sentido se torna bastante claro na perspectiva de São Tomás. Todos nós pertencemos a humanidade, mas cada um a seu modo, e em todas as formulações citadas surge a fundamental noção de indivíduo, o que não significa que o indivíduo seja indivisível, mas que ele é indiviso, nós podemos falar de corpo e alma, podemos falar das partes do corpo humano, podemos falar inclusive das propriedades da alma, mas tudo isso é numa realidade indivisa. Além disso, como o rabino inclusive já colocou, e eu não me prolongo, mas só para citar o texto da Sagrada Escritura, livro do Gênesis, capítulo 1, versículos 26 e 27, o homem para nós na teologia é a imagem de Deus. E enquanto imagem de Deus seria o homem a expressão daquilo que Deus é. Nós não temos de fato uma imagem de Deus, mas temos uma afirmação que que a Sagrada Escritura nos traz, que Deus é amor. São João diz: quem não conhece o amor, não conhece a Deus, porque Deus é amor. Se Deus é amor e nós fomos criados à imagem e semelhança Dele, significa que o homem é criado para o amor. Como na perspectiva do vínculo colocada pelo rabino, nós o colocamos na dimensão mais profunda em que o homem pode expressar a sua dignidade e a sua excelência, que é a caridade. Se nós olharmos a Carta aos Coríntios, o hino à caridade que Paulo escreve, e o escreve dentro de um contexto muito interessante porque o faz quando chega a uma cidade portuária cuja a deusa é Afrodite, e cujo culto é orgiástico, entendido dentro da perspectiva do sexo como oferta a Deus. Paulo chega nessa cidade que entende o amor como relação física, e fala: vou falar de um amor que é mais excelente. E começa o seu discurso: ainda que eu falasse a língua dos anjos e dos homens se eu não tivesse o amor eu nada seria. E vocês conhecem o discurso, eu não me prolongo nele, mas dá para entender que existe um caminho de realização humana na medida em que o homem sabe responder quem ele é. A comunhão de amor que é Deus em três pessoas divinas, se amam reciprocamente e são um único Deus, a pessoa humana é chamada a descobrir a origem e a meta da sua existência e de sua história. No compêndio de doutrina associada a igreja essa comunidade trinitária a Deus, que é amor, mostra ao homem de onde ele vem, ele vem do amor, e para onde ele deve ir, e qual é a sua meta – o amor. E nesse sentido, São Tomás afirma que o fim do homem é a visão beatífica, ou seja, a comunhão com esse Deus pleno, quer dizer, nossa vida não está orientada simplesmente para uma realização neste mundo, a nossa vida está orientada para a plenitude com Deus. Se a nossa vida está orientada para a plenitude com Deus, essa vida precisa ser vivida dentro de uma perspectiva de construção de plenitude. Qual é o fim do homem? Achar o seu encontro definitivo com Deus. Como ele consegue isso?
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Levando à plenitude aquilo que é a sua essência. Porque se nós somos capacitados para a experiência do amor, é o amor que é capaz de produzir no homem o caminho de realização e de felicidade. Se a felicidade é levado a um termo, a existência, é o amor a chave para a realização humana. Nessa vida é necessário viver de modo a elevar a bom termo a sua existência, ou seja, sair da condição de menor qualidade para de maior qualidade. No plano teológico o homem se realiza na medida em que busca a santidade, pois a santidade é aproximar-se do Deus, que é santo. E o próprio mandamento que existe da parte de Jesus: sedes santos como o vosso pai que está no céu é santo. E o único mandamento deixado especificamente por ele: amai-vos uns aos outros do modo como eu amei vocês. A santidade não é uma opção, mas a via natural da felicidade humana ordenada para Deus no seu convívio. A vida moral cristã consiste então em buscar a razão de ser de todo batizado, que é viver como filho de Deus. Muito obrigado pela atenção de vocês. Mundo Contemporâneo e as Percepções Humanas Dr.ª Carla Fragomeni: Bom dia a todos, gostaria em primeiro lugar de agradecer por essa oportunidade de estarmos aqui, ciência e religião dando as mãos no interesse do ser humano, nessa discussão tão importante no nosso mundo atualmente. O que vamos falar dentro da psicologia versa sobre o mundo contemporâneo e as percepções humanas. Vivemos hoje no que chamamos de era da informação. Essa foi a grande revolução humana dos últimos tempos, nós temos maravilhas e temos também excessos. O Dr. Marcus na fala dele mencionou grandes maravilhas que a medicina conquistou dentro da condição tecnológica; o acesso que nós temos hoje a informação é algo maravilhoso. Quando nós pensávamos nos tempos das bibliotecas, em que ficávamos enfurnados procurando um trechinho ou outro de 1960, hoje nós temos acesso a tudo em tempo real praticamente. E isso nos deixa, como também na fala do rabino e do padre, sem pontos fixos, sem referências. O que é fixo? Nada mais é fixo, tudo muda o tempo todo. E nós vivemos esse excesso de informação, nós temos um excesso de consumo, então o que permanece conosco? Dentro desse estudo do que é, do que somos capazes de reter dentro desse excesso de informação em que vivemos, chegamos à conclusão que precisamos de alguma vinculação emocional para que a informação seja retida. Civicamente falando, cognitivamente falando, não é? Então, a informação pura não entra mais, nós já estamos sobrecarregados em termos de estímulos. Agora então com esses celulares, nós não temos mais tempo livre, nós vivemos essa sobrecarga.
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E aquilo que fica em nós é aquilo que nos move de alguma maneira, é o que é o nosso interesse, e o que está antes da racionalidade é a emoção, é ela que determina a nossa própria racionalidade, a nossa cognição, que nos dá uma visão de mundo que nós é própria, e essa singularidade que o rabino mencionou. O que permanece conosco é absolutamente subjetivo, em tudo que está disponível, em tudo que nos é apresentado há essa subjetividade da percepção, cada um enxerga sob um ponto de vista, como o padre mencionou na teoria da caverna de Platão. Nós vivemos nessa condição absoluta de subjetividade, diante do excesso de possibilidades de escolhas ao longo de um dia. Como é difícil isso, quanto isso nos estressa, estamos o tempo inteiro precisando fazer escolhas que são norteadas por nossos valores, por nossas necessidades pessoais, apesar de estarmos conectados pela nossa humanidade. Nossa percepção muitas vezes nos prega peças e nos engana. Somos iludidos frequentemente, o critério do que é a verdade é bastante móvel hoje em dia, daí a necessidade de termos critérios e pontos fixos dentro de nós. Nossa percepção é influenciada por associações, por comparações, por aquilo que está próximo ou distante, nossa percepção sofre inúmeras influências externas e internas, e muitas vezes nos enganamos e nos perdemos dentro dessas referências. Como nós percebemos o mundo? Existem influências que determinam isso. Como se cria a minha percepção do mundo? Essa percepção é única porque eu estou em uma perspectiva única, eu sou um ser único, embora existam diversas influências agindo sobre mim. Como fomos criados, nossa história pessoal, eventos traumáticos que tenhamos sofrido, nossas crenças, crenças das quais muitas vezes nem temos consciência e que influenciam e norteiam nossas decisões momento a momento. A religião é uma influência que interfere na nossa percepção, a genética também, os condicionamentos que sofremos, as experiências, as emoções e as influências do medo. E muitos outros fatores que poderiam ser incluídos nessa construção. A crença em relação a quem eu sou também entra nisso, como eu me vejo. Eu me vejo uma pessoa com poder, eu me vejo uma pessoa sem poder? Nós vemos o mundo a partir da nossa perspectiva – que é única, insisto – porque nós só temos acesso a uma parte, não temos acesso ao todo, à informação completa. Quando se descreve o que é um elefante cada um vai dizer algo diferente, de acordo com a própria experiência. Estamos quase sempre inseguros, não é? A cerveja também influencia nossa percepção, como nessa imagem onde pode-se ver o perfil de uma mocinha e o perfil de uma senhora. Vocês todos estão vendo? Quem viu a senhora, levante a mão, por favor. Quem viu a mocinha? Então, são brincadeiras e peças que a nossa percepção nos prega o tempo todo, e uma vez que vemos uma imagem não conseguimos mais deixar de vê-la. Como as emoções interferem nesse processo, não é?
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Então aqui foi feito um experimento em relação a influência das emoções na nossa própria percepção. Aqui estão essas imagens. Todas as imagens são duplas, essa primeira pode ser um jacaré ou um esquilo. Quem viu primeiro o jacaré, levante a mão. Quem viu o esquilo primeiro? A maioria viu jacaré, vejam que interessante. A segunda imagem uma cobra ou uma corda. Quem viu a cobra primeiro? Quem viu a corda? E a terceira imagem pode ser um facão, ou uma caneta, não é? Vamos verificar a influência da emoção na percepção. Os pesquisadores utilizaram música, a música tem uma influência direta na construção das emoções, e fizeram o experimento com três grupos. Para o primeiro grupo apresentaram a imagem sem música alguma. Para o segundo grupo, apresentaram uma música suave. E no terceiro grupo utilizaram uma música ameaçadora. Sob a influência dessa última, as pessoas percebiam a imagem ameaçadora primeiro, e apenas ela. E viam menos a imagem ameaçadora quando a música era suave ou não havia música. Ou seja, quanto mais estressados estamos mais nossas emoções influenciam na forma com que percebemos o mundo. As emoções são parte importante da nossa percepção. Hoje diante de todos os excessos que vivemos, o que fica retido é aquilo que nos move, é aquilo que entra em nós, porque o que está disponível é muita coisa. Temos uma relação íntima entre o momento que vivemos no mundo, e a patologia do momento, as patologias do momento. Nós temos um contexto externo que favorece o surgimento de determinadas patologias. Por exemplo, na época do Freud, há mais de cem anos, o que acontecia? O contexto da época era um contexto de repressão feminina, repressão sexual feminina. E isso levaria à eclosão da histeria. Mulheres histéricas que ficavam cegas e paralíticas, a histeria era a doença do momento. O contexto social foi se modificando, foi se atenuando, hoje vemos pessoas com um potencial histérico, mas que não desenvolvem a doença propriamente dita porque estão melhor adaptados. As doenças do momento são hoje o estresse e a depressão, e a ansiedade permeia os dois. Essas são as doenças do momento, da moda como se diz, hoje mais de 5% da população mundial sofre de depressão. Isso é alarmante. E o estresse permeia a vida aí de todos nós, e isso tudo são influências do mundo contemporâneo, isso influencia a nossa percepção, isso influencia a nossa forma de estar no mundo. E o que do mundo contemporâneo nos traz essas influências? No caso do estresse, essa grande forma de auto violência da vida moderna, é a falta de tempo. Não temos mais tempo livre, não temos tempo de não fazer, de simplesmente estar. Nós estamos o tempo inteiro fazendo alguma coisa, e agora quando não temos o que fazer vamos correr para o celular e vamos ficar olhando vídeos sociais e também ocupando a mente, uma sobrecarga, uma superestimulação que nos leva a uma condição de mobilização crônica do corpo. Isso é um transtorno de adaptação, o corpo
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fica cronicamente desadaptado, sobrecarregado, o sistema nervoso autônomo simpático é cronicamente ativado, tudo muda o tempo todo. Nesse contexto onde está difícil termos pontos fixos, a condição da verdade que o padre colocou, não sabemos muitas vezes o que é a verdade, onde vamos nos ancorar, o que vamos fazer, porque temos informações que comprovam tudo e todo tipo de influências que estamos sujeitos. Essa dificuldade de adaptação diante de todos os excessos, o contexto do excesso de informação. Então, isso é uma influência dentro do estresse, existe a obra de Bauman, ‘A Modernidade Líquida’, que traz uma visão muito interessante sobre tudo isso no mundo atual. Nada mais é fixo, tudo muda o tempo todo. Até as relações humanas estão coisificadas, se a gente vê aqueles aplicativos para se conhecer pessoas, a gente vai ali escolhendo aquele cardápio, e se a pessoa incomodar um pouquinho a gente já elimina e passa para frente. As relações pessoais estão também entrando nisso, o que é uma coisa muito grave. E a depressão? A depressão começou a surgir e a se proliferar com o surgimento dos meios de comunicação, essa foi a grande influência do mundo contemporâneo em relação à depressão. Existem pessoas famosas, existe a sensação diante dos meios de comunicação que já não basta ter protagonismo na minha família, na minha pequena comunidade, a referência se tornou o mundo. E o mundo é muito grande, passamos a não nos sentir como pertencentes a ele, é como se houvesse sempre uma grande festa da qual não faço parte, não sou convidada, não pertenço. O não pertencimento está por trás desse sentimento, está por trás da depressão, já não basta a minha pequena comunidade, hoje a referência é o mundo e eu me sinto de fora, eu me sinto menor, desafiado, comparado. Outro fator importante é o nível de abstração mental ao qual nós chegamos. Nós nos tornamos excessivamente mentalizados, não é mesmo? Vamos para as escolas, onde somos estimulados a aprender, aprender, tantas vezes coisas que nem vamos utilizar, mas isso vai trazendo essa superestimulação mental que pode ir nos colocando em uma condição de ausência em relação ao próprio corpo, ausência em relação a nós mesmos, ao que são as influências dentro de nós e fora de nós. Então, nós vamos nos tornando desconectados e passamos muitas vezes a ser arrastados para estados mentais e psíquicos de sofrimento, nos igualamos pelo sofrimento. O excesso de abstração mental favorece a depressão. Qual impacto isso teve no mundo contemporâneo, no que estamos nos tornando? Vocês médicos e eu psicóloga lidamos com isso o tempo todo. Temos uma ilusão de controle pelo desenvolvimento da tecnologia dentro da medicina, mas há tanto a ser feito, como assim tem algo errado comigo? Isso é uma falha do médico, então, temos que consertar isso, é preciso que se conserte tudo isso com que lidamos, tudo a que temos acesso e todos esses estímulos que nos sobrecarregam: estamos nos tornando excessivamente reativos. Reativa é aquela reação automática, em piloto automático
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dentro dos nossos condicionamentos, sem reflexão. Reativos, impulsivos, imediatistas, temos baixa resistência à frustração, porque acreditamos haver um jeito para tudo e tudo pesquisamos tudo. Estamos impacientes, acelerados, pouco resilientes. Ficamos nessa posição excessivamente mental, presos à condição de uma mente que tantas vezes nos escraviza. Já vimos que se deixarmos a mente por conta própria, esse fluxo, trazendo todos esses excessos, nos colocará em todo tipo de sofrimento e vulnerabilidade, por esse eixo de pensamentos e emoções que nos arrastam, arrastam a nossa consciência. Precisamos nos educar primeiramente na percepção de nós mesmos: isso serve especialmente para vocês médicos fazerem uma auto percepção, um primeiro olhar, o que eu estou sentindo? O que estou percebendo, quais são as influências dentro de mim nas decisões que tomo? Eu me conhecer melhor, estou sendo gentil comigo mesmo, estou me cuidando bem? Onde estou nesse momento? De modo análogo, a percepção do outro, o doente: em que condições essa pessoa está? Que recursos tenho para ajudá-lo, e como seria feita essa ajuda? Nossa percepção está sujeita às influências do meio, da família, dos colegas, às influências sociais e materiais. Estamos sujeitos a tudo isso e precisamos desenvolver em nós mesmos a consciência de cada um desse focos; a percepção em nós mesmos, a percepção do outro, a percepção do meio e o que tudo isso traz de influências momento a momento. Torna-se portanto necessário, num mundo contemporâneo que traz tantos excessos, o gerenciamento da nossa atenção, saber onde está a minha atenção momento a momento. Em 47% do tempo em que estamos acordados, segundo estudo feito em Harvard, estamos perdidos em piloto automático, não estamos conscientes nem de onde estamos e nem do que estamos fazendo; operamos por reatividade, por condicionamento e por influências. Torna-se portanto necessário treinar mais a nossa atenção diante desse contexto da vida moderna, estimular o que chamo de metaatenção. Como alcançar essa meta-atenção, o que é a meta-atenção? Onde está a minha atenção agora? Quem já não passou pela experiência de ir de casa para o trabalho, chegar, estacionar e dizer: ‘não me lembro do percurso que fiz. Acelerei, ultrapassei, parei no sinal e não me recordo, não estou consciente.’ Como podemos viver assim no piloto automático? A meta-atenção, atenção sobre a atenção, é uma característica nossa, humana, por isso somos homo sapiens sapiens, eu sei e eu sei o que sei, eu sei que eu sei – vamos precisar considerar isso cada vez mais no contexto do mundo contemporâneo. Uma ferramenta muito utilizada hoje em dia na ciência é a mindfulness, o treinamento da atenção plena momento a momento: seja onde eu estiver, crio pausas, crio espaços onde eu vou ter condições de elaborar melhor uma resposta ao invés de reagir automaticamente.
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O conceito de felicidade passou a visto como uma habilidade, e não mais como um estado de graça. O que eu tenho ou não tenho eu posso buscar, posso fazer coisas que me tornam mais felizes de fato. Dentro desse contexto, felicidade passa a ser uma habilidade e podemos fazer algo pela nossa própria. Da mesma forma podemos considerar também o sofrimento: podemos ir desenvolvendo o manejo dentro desse contexto: onde colocamos a nossa atenção, precisamos tomar posse disso e nos responsabilizarmos por isso. Cada um de nós enquanto profissionais ou não, enquanto pessoas, precisa verificar onde está a sua atenção momento a momento. Fecho esta palestra citando William James, com uma frase que traduz muito desse contexto da vida moderna: ‘a maior descoberta da minha geração é que o ser humano pode alterar a sua vida mudando a sua atitude mental.’ Nossa vida acontece aonde está a nossa atenção e precisamos ter mais cuidado com isso, resgatando os nossos valores, buscando em nossas vidas pontos fixos, buscando o que é a nossa verdade. Muito obrigada, obrigada a todos. Medicina e a Vida: A Ciência a Serviço da Humanidade Dr. Celmo Celeno Porto: Prezado Nasser, muito obrigado por essa oportunidade de estar aqui hoje comemorando 30 anos da Academia, e 60 anos da Associação Médica de Brasília. Em sua pessoa eu cumprimento todos os que estão aqui participando, compartilhando com você desse momento. Quando você me deu esse tema eu fiquei desorientado. Tecnologia, vida, ética, relação, medicina, vida de novo, ciência, serviço, humanidade, eu pensei: por onde eu vou começar? O que eu vou escolher? Eu não tive dúvida Nasser, eu escolhi o ato médico básico. Eu escolhi como núcleo do meu pensamento aqui hoje, desse momento eu vou ter com vocês, o exame clínico, que é o ato médico básico. E para isso eu fiz a seguinte pergunta: que momento estamos vivendo? É uma simples transição, é uma revolução científica, é uma mudança de paradigma, ou é uma disrupção? Para poder responder, procurei alguns pontos de partida, três pontos de partida. Qual é o único momento insubstituível da prática médica? Qual é o ato médico essencial entre centenas de atos médicos? Qual é o núcleo luminoso da prática médica? Eu vou tentar responder. O momento insubstituível é o encontro clínico, porque dentro dele está tudo que é essencial, inclusive o ato médico essencial que é o exame clínico, e a relação médico-paciente, que é um núcleo luminoso. Mas eu precisava de referenciais teóricos, e as busquei em Thomas Kuhn, que é conhecido mundialmente, universalmente, por seu trabalho sobre a estrutura das
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revoluções científicas, publicada duas vezes, em 62 e 70 (na de 70 ele dez um posfácio muito interessante), e até hoje as ideias do Kuhn estão servindo de referência para inúmeros outros trabalhos que estudam os paradigmas. Quando ele diz que prefere não ter um padrão, caracteriza um corpo de conhecimento, métodos, técnicas e valores que perdurem por um certo tempo, o que permite estudar a evolução dos conhecimentos humanos do ponto de vista histórico, social, cultural, econômico e político, e é esse referencial que vou utilizar para estudar a evolução da medicina. E a teoria disruptiva, onde fui buscar referências? As encontrei em Clayton Christensen, cujo principal livro é ‘O dilema da Inovação.” Ele é um economista, diferentemente de Kuhn, que era um filósofo socialista. Christensen é um economista que vê a economia do ponto de vista social, político e filosófico. Qual é a essência da teoria disruptiva de Christensen? Ele afirma que as mudanças são provocadas por produtos ou serviços com características disruptivas ao invés de evolutivas. O nosso raciocínio está acostumado com a ideia de evolução, uma coisa se sucede a outra de uma maneira natural, mas na teoria disruptiva, a ruptura de padrões acarreta o surgimento de modelos até então inexistentes, com consequências imprevisíveis. Essa é a questão. Esse momento de disrupção que estamos vivendo tem consequências imprevisíveis. Então vamos lá, vamos começar com quem começou tudo, e eu tive um prazer de aprender um pouco com o nosso querido Joffre Marcondes de Rezende, com esse livro, um dos raros exemplares que existem no Brasil das Oeuvres complètes d’Hippocrate, são 10 volumes nos quais ele, Joffre, se baseou para fazer a tradução dos aforismos. Esta é uma das melhores traduções feitas até hoje dos aforismos, um livrinho maravilhoso que o meu querido professor Joffre fez. E infelizmente não é um best seller, tem despertado pouco interesse, foi editado pela UNIFESP. Bom, por que o Hipócrates é o pai da profissão médica? Simplesmente porque usou o método observacional, ele sistematizou o ato médico essencial, que é o exame clínico e tem um Código de Ética. Então sigo a opinião do professor Joffre, Hipócrates não é o pai da Medicina, é o criador da profissão médica. A medicina sempre existiu, mas a profissão médica passou a existir quando passou a ter um método observacional, um exame clínico, que era essencial e um Código de Ética. O paradigma hipocrático durou mil anos e só foi alterado na Renascença. Não coloquei aqui Vesalius, coloquei Leonardo da Vinci, porque Leonardo é o símbolo da Renascença, antecedeu a todos na pintura, na arquitetura e na ciência. Mas do ponto de vista médico nós consideramos que foi Vesalius com o De Humani Corporis Fabrica, publicado em 1543, meio século depois de Leonardo da Vinci ter feito o Homem Vitruviano, publicado em 1490 e que até hoje ainda serve para estudar semiologia. O De Humani Corporis Fabrica é o livro mais maravilhoso que existe na medicina e representa uma mudança de paradigma. O paradigma hipocrático tinha
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inúmeros erros, repetidos por sua vez por Galeno. Vesalius publicou esse livro com 27 anos e o considero o livro mais importante que já saiu na medicina até hoje. Foi escrito em latim, como era obrigatório, com ilustrações de discípulos de Ticiano e publicado na Alemanha. Existem alguns poucos exemplares no mundo, e tive a oportunidade de ver a capa de um deles, protegido por vidro, no Vaticano. Harvey também tem um papel importante, mas o Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (“Um exercício anatômico sobre o movimento do coração e do sangue em seres vivos”) nada mais foi do que a continuação do trabalho do Vesalius. Curiosamente, a descoberta do Harvey não teve nenhuma repercussão, só começou a ser conhecida depois que Descartes, que não era médico e não tinha nada a ver com medicina, elogiou sua pesquisa. Descartes entendeu que Harvey havia usado princípios matemáticos, e por isso citou o trabalho. Ficou conhecido a partir daí porque naquela época (o “Discurso sobre o método” foi publicado em 1637), predominava a língua francesa. E duzentos anos depois de Vesalius, ainda dentro desse paradigma, temos o trabalho do Morgagni, que é o pai da anatomia patológica, Em 1858 há o primeiro sinal de mudança de paradigma quando Virchow diagnosticou uma leucemia por meio de um microscópio, um instrumento construído pelo homem, pois até então os instrumentos existentes eram simplesmente a extensão dos nossos sentidos. O microscópio permitiu a Virchow ver as células sanguíneas alteradas e permitiu a ele fazer aquele diagnóstico. Michel Foucault fez um trabalho magnífico juntando dois ou três séculos em seu livro Naissance de la Clinique (“O nascimento da Clínica”), publicado na língua francesa em 1963, e por isso também o coloco dentro desse contexto. Mudamos de paradigma, quando Röntgen, em 1895, fez uma radiografia da mão da mulher dele, quase que por acaso, embora haja algumas polêmicas a respeito desse acaso. O paradigma que havia passado de hipocrático para científico passa agora a ser um paradigma tecnológico. Há cem anos atrás nascia também um outro paradigma, o de Freud. Freud, estudando os fenômenos psicodinâmicos, colocou o inconsciente como um dos componentes das funções cerebrais quando publicou a “Interpretação dos Sonhos,” quase na mesma época de Röntgen. Fiz essa sequência para mostrar como as coisas evoluíram de maneiras diferentes até o século XX, como até hoje esse pseudo-conflito ainda está sendo alimentado por aqueles que seguem uma ou outra dessas linhas, a medicina tecnológica, com identificação das lesões e das funções, o surgimento de outros aparelhos, o modelo biomédico muito reforçado pelo Relatório Flexner de 1910, a medicina das doenças, a biotecnologia. Mas o que é mais importante, que eu acho que
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nesse fórum falta um economista para nos mostrar o que há de mais disruptivo – o bionegócio. O bionegócio é um dos maiores negócios do mundo, ele está tratando de trilhões de dólares, é mais forte do que o negócio de armas, do que o agronegócio, do que o negócio das financeiras e nós somos a engrenagem inicial. Quando qualquer médico prescreve um medicamento ou pega um exame, ele está fazendo funcionar o bionegócio, é preciso colocar num fórum como esse uma discussão sobre o bionegócio. Os fenômenos psicodinâmicos não têm a devida importância na sociedade de hoje porque tratam de coisas que não são radiografadas, não são fotografadas, não são objetivas, que é compreensão da relação médico-paciente. O movimento psicossomático, um possível modelo biopsicossocial, a medicina dos doentes, tudo isso é uma interrogação. Esse modelo vai morrer, ou vai ter a possibilidade de ser juntar ao modelo biomédico? E a medicina, nessa disrupção que está vivendo, vai tomar um outro paradigma? É imprevisível isso. Dois estudantes, Lawrence Edward Page, todos o chamam por Larry, e Sergey Brin, promoveram uma disrupção em 1998 quando criaram o Google, no porão da casa de uma colega. Enquanto os outros paradigmas tiveram livros de grande importância e tiveram radiografias que foram mostradas para a sociedade, para onde foram esses dois descobridores? Para a bolsa de valores do Wall Street e é essa a razão desta disrupção simbolizada pelo Google. O que caracteriza a inovação disruptiva? O que ela é? Primeiro, ela é a descontinuação do processo evolutivo baseado em paradigmas. Isso é essencial compreender isso para entendermos em que momento nós estamos vivendo. É o aparecimento de novas tecnologias que criam produtos ou oferecem serviços de maneiras totalmente diferentes, nós estamos oferecendo produtos, nós estamos prestando serviços totalmente diferentes daqueles que até então os médicos estavam acostumados; os médicos, os psicólogos, os farmacêuticos, os fisioterapeutas, todos os profissionais da saúde, estão profundamente envolvidos nessa disrupção. E sem consciência disso. Estão sendo levados pelo bionegócio, que está comandando a disrupção, e isso, a meu ver, é o grande problema que estamos vivendo no momento. Mas tem um outro muito mais importante que o Dr. Google. O doutor Google porto do Dr. What’s (escrevi assim dessa maneira mesmo, irônica de chamar), é a plataforma da IBM, plataforma Watson, baseada na computação cognitiva, na inteligência artificial, que é muito mais revolucionária, é muito mais disruptiva do que armazenar dados como o doutor Google faz. Bom, qual é o ponto de chegada que eu quero? Meu ponto de saída foi bem clínico, o ato médico essencial, e o ponto de chegada é o mesmo.
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Eu quero dizer o porquê de achar que estamos vivendo uma disrupção. O momento insubstituível é o encontro clínico, mas até esse está sendo questionado. O ato médico essencial é o exame clínico, mas ele está sendo desprezado. E o núcleo luminoso é a relação médico-paciente, que está se apagando. Essa disrupção, essa discussão que estamos vivendo é consequência do bionegócio, é diretamente relacionado pelo domínio que a saúde inteira está sofrendo pelo bionegócio. O que é o bionegócio, para dizer claramente? É a indústria farmacêutica, é a indústria produtora de aparelhos eletrônicos, é a indústria que produz prótese e órtese, ela está invadindo tudo, inclusive a pesquisa, está invadindo todas as publicações. Estamos tendo que pagar para publicar as pesquisas que fazemos. Há poucos dias paguei 2 mil dólares para publicar um trabalho de uma revisão periódica numa revista de impacto. E vou ter que pagar para ler o meu artigo, a intromissão na produção científica é o máximo da invasão, da voracidade do bionegócio. O ato médico essencial é o exame clínico, mas ele tem quatro componentes para ser perfeito. Para ser perfeito ele tem que ter competência cientifica, eu tenho que dominar a ciência, não apenas a ciência médica, eu tenho que dominar várias ciências. Porque a meu ver a medicina não é uma ciência biológica apenas, a nossa profissão pertence às ciências humanas, e para exercê-las nós temos que usar todas as ciências. Nós temos que ter princípios bioéticos, não estou falando em Código de Ética: códigos podem mudar um atrás do outro, mas tenho que ter princípios. Princípios bioéticos (sou da corrente principialista), porque sempre achei fácil ajudar os meus alunos a entenderem – quando encontrarem os pacientes – o que é autonomia, o que é beneficência, o que é não maleficência, o que é justiça. As outras correntes, da virtude e do cuidado, são mais difíceis de serem levadas para a prática médica, a minha atitude, era ensinar o exame clínico. E as qualidades humanas? Respeito ao paciente, integridade e compaixão, sem essas três qualidades humanas o ato médico não é perfeito, ele é imperfeito, ele é insuficiente. Eu coloco bem claramente que isso é feito na relação médico-paciente, eu preciso ter compaixão, ser respeitoso, ser íntegro nessa relação, o resto é abstrato. As qualidades humanas não existem se a relação médico-paciente for inexistente, e tudo isso só é possível no encontro clínico. É aí que começa a grande discussão atual que é a telemedicina, que é como que vai se conciliar com o ato médico, que considero como essencial para preservar a profissão médica? Da mesma maneira que Hipócrates há dois mil anos atrás mudou o paradigma quando transformou o que existia nas doenças em fatos naturais, em fenômenos naturais. Nós estamos vivendo uma disrupção e nós não sabemos o resultado disso. Quando eu leio as resoluções do Código de Ética, fico pensando o quanto são ingênuas as pessoas que acham que uma Resolução pode antever o que vai acontecer.
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O que é a tão discutida Resolução 2027, se não me engano, ou um número muito parecido com esse, que não passa de uma tentativa de entender o que nós não sabemos nem o que é ainda, que é essa disrupção. E qual vai ser o impacto sobre o paciente? O que me interessa é isso. Eu não estou preocupado agora, nesse momento, em discutir o bionegócio, quem está tendo lucro, quem está sendo explorado, quem está sendo corrompido, não é isso, eu quero ver o paciente. Ele, o paciente está mudando completamente, o paciente está ficando informado, ele é o expert, ele está sendo equipado. Será um paciente totalmente diferente aquele que vai nos procurar, que já estamos tendo diante de nós. Informado ele já vem há mais de vinte anos, mas equipado é a grande novidade. O que é um paciente informado, um expert? Apenas com informações, com informações desde a época do farmacêutico que distribuía aquelas pequenas publicações ensinando como plantar chuchu, mas ensinando também alguma coisa de saúde. Aquilo já era uma informação. O Dr. Google só ampliou isso como uma capacidade fabulosa de armazenar informações. Esta é a grande diferença, o paciente equipado, são as chamadas tecnologias irresistíveis, relógios, por exemplo: provavelmente nessa plateia há alguém com um relógio desse que marca a frequência cardíaca, que marca quantos passos eu dei, que faz o eletrocardiograma, ele dosa a glicemia. Então esse reloginho, esse microcomputador, ele vai proporcionar ao paciente uma outra maneira de me procurar, ele vai estar equipado. Mas não é só reloginho obviamente, há óculos, capacete e anéis, também. Eu fiz até uma listinha para exemplificar a quantidade. O que eu achei mais curioso é que isso tudo já está à venda na internet, e não é o médico que compra, é a população que compra, é o paciente que compra. É uma roupa com tecnologia, é aquela camisa que registra a frequência cardíaca, a frequência respiratória, a impedância muscular, que faz eletrocardiograma: o paciente vai vestir essa camisa como vai colocar o cinto, como vai colocar o anel, ele é um outro tipo de paciente. E o mais incrível é esse aqui, provavelmente todos já viram, está circulando na internet e no mundo todo. Essa empresa está vendendo um kit com o qual a mãe examina com um endoscópio a garganta, o ouvido e o nariz da criança com um endoscópio, além de registrar os batimentos cardíacos. A propaganda está sendo feita para as mães, ainda não está sendo feita para os idosos, mas vai abranger todos e custa apenas 299 dólares. É um preço muito baixo, vai ser vendido de maneira extensa e vamos ver pacientes chegando ao consultório dizer: eu comprei esse aparelho. Como vamos conviver com esse paciente? Como vamos nos relacionar com esse paciente equipado? Não sabemos, vamos ter que reaprender nesse momento o que achávamos que estava consolidado, o que eu acho que está muito bem consolidado, que é o exame clínico e presencial, que é essencial. E se houver entre
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médico e paciente qualquer tipo de equipamento, por mais moderno que seja, não é mais um encontro clínico presencial, ele já mudou completamente a sua característica. Sem contar inúmeras outras alternativas que já estão sendo vendidas: com os autoanalisadores miniaturizados, com uma gota de saliva ou uma gota de sangue faço centenas de exames. Não preciso ir tão longe, eu vou em qualquer farmácia e compro kits que fazem diagnóstico de gravidez, de HIV, por exemplo. Isso já do mundo atual e estamos vivendo essa situação sem saber exatamente para onde vamos. O que houve então, de fato, de impacto, que pode ser dito? A entrevista médica mudou? Mudou. Eu não posso agora mais só querer o relato do paciente, porque ele tem muitas informações, a entrevista médica agora é um diálogo, eu tenho que saber que é um diálogo, do contrário não vou entender o que o paciente vai falar comigo. A relação médico-paciente mudou? Mudou, ela passou de autoritária, paternalista, como era o tradicional, para contratualista, o paciente é um contrato explícito ou implícito, mas é um contrato. E a decisão terapêutica não é mais unilateral, é compartilhada, é participativa, porque o paciente tem muitas informações. Inúmeros trabalhos feitos já mostraram que muitas vezes o paciente tem mais informações do que o próprio especialista que o está examinando porque na véspera ele foi ao doutor Google e obteve informações maiores do que aquela que o especialista de uma maneira geral armazenou e guardou na sua memória. Isso muda tudo, muda a relação médico-paciente, muda a entrevista médica, muda a decisão terapêutica. E para terminar vou deixar essa mensagem, que é um trabalho que publiquei junto com o professor Flávio Dantas na revista da Associação, da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, onde tentamos há 16 anos antever isso. A arte clínica é levar para cada paciente todas as ciências, não é uma equação matemática, depende da ética, uma vez que tudo que existe na medicina pode ser usado para o bem e para o mal. Quem decide essa equação é a ética. Eu coloquei na mensagem a MBE, a medicina baseada em evidência, mas ela está em segundo lugar, ela é menor do que a MBV, porque ver é vivência, e vivência é onde que eu coloco qualidades humanas, é onde eu coloco a relação médico-paciente, é onde eu coloco os princípios bioéticos.
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II – Quando parar?
Visão Jurídica Dr. João Costa Neto: Boa tarde. Essa questão realmente é extremamente interessante e o meu enfoque tem duas faces. A ideia aqui é – mais uma vez agradecendo ao convite da Academia e da Associação, estou muito honrado de estar aqui – mostrar como o Direito enxerga os problemas da medicina. Pretendo fazer isso hoje e também amanhã. E a verdade é que os juristas precisam aprender mais sobre a medicina, pelo menos essa é a minha percepção. Penso que o Direito é muito mais rico e tem muito mais condição de entender a complexidade da vida quando inclui perspectivas interdisciplinares. E a medicina, sem dúvida, é uma perspectiva que precisa ser incluída, os juristas precisam entender mais da medicina no que se refere, por exemplo, ao fornecimento de medicamentos, quando se obriga um plano de saúde a oferecer homecare para um determinado segurado, e assim por diante. Pretendo falar sobre eles amanhã. São temas do dia a dia de todo jurista, estão em todas as Varas e liminares são também dadas todos os dias por juízes em todo o Brasil. Algumas, evidentemente, são negadas e por vezes os próprios Tribunais Superiores não oferecem parâmetros muito claros sobre quando se deve fornecer um medicamento, quanto um determinado tratamento está ou não está abrangido. Mas falando propriamente da finitude biológica, as duas faces às quais eu me referi são: onde começar e onde terminar. Porque da mesma forma que a filosofia se pergunta sobre quando começa a vida ou quando termina a vida, o Direito também tem de certa forma que dar alguma resposta a essas perguntas. Por vezes respostas imperfeitas, respostas parciais e às vezes até contraditórias quando comparamos diferentes ramos do Direito. Começo então por onde começa a vida. Afinal de contas, quando é que o Direito dá proteção jurídica a uma pessoa, a um nascituro, a um concepturo? Nascituro e concepturo são conceitos jurídicos, o jurista chama de nascituro todo aquele que já foi concebido, portanto já houve nidação, o óvulo fecundado já foi fixado na parede do útero, mas não houve nascimento. Esse é o nascituro, é aquele que, o próprio nome em latim já designa isso, é aquele que deverá nascer pelo menos no cenário ideal das coisas. E esse ser tem uma proteção jurídica, já falarei sobre ela. Mas sobre o concepturo, juristas não falam muito, mas até aquele ser, se é que ele existe, que nem mesmo concebido foi, pode gozar de uma certa proteção. Há dispositivos obscuros na parte de herança que tratam sobre isso lá no Livro das Sucessões do Código Civil. Essa é a parte do começo, ou
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seja, quando é que afinal uma pessoa tem ou não proteção, e logo falarei sobre a parte final, ou seja, como o Direito trata a eutanásia, o suicídio assistido, e assim por diante. Bem, essa questão é complexa e não poderia ser diferente no Direito. Normalmente, quando se fala sobre isso, a resposta escolar pedagógica normal que se dá é que a morte encefálica, por exemplo, é o que põe fim à vida, e o começo seria o nascimento com vida. Essa é a resposta padrão, baseada em dois dispositivos: o Artigo 2º o Código Civil, que diz que em regra a personalidade começa com o nascimento com vida. Em tese, o Direito só consideraria como pessoa aquela que nasceu com vida, que respirou. Ela pode eventualmente morrer em seguida, mas nasceu com vida. O natimorto não seria considerado pessoa nessa definição. Por outro lado, a morte, o final da vida, seria a morte encefálica, porque é assim previsto no Artigo 3º da Lei de Transplante de Órgãos. A questão é que essa lei não diz que a vida termina com a morte encefálica, essa é uma interpretação de alguns juristas, a qual já tem em si um certo viés, uma certa escolha valorativa e axiológica, pois a lei fala apenas que o transplante só poderá ocorrer a partir da morte encefálica, desde que com autorização dos pais, ou eventualmente da esposa ou dos filhos, e assim sucessivamente, respeitada a sucessão hereditária. O que temos portanto são conceitos aproximados, pois o próprio Direito nunca conseguiu chegar a um conceito claro e bem definido sobre o assunto. E explico. Aquele que nem nasceu, o que nós chamamos juridicamente de nascituro, pode receber doação. Ele pode, por exemplo, receber um carro, pode receber um imóvel, e a condição jurídica, para que essa doação tenha eficácia, é o nascimento com vida. Ou seja, é como se o Direito desse com uma mão e tirasse com a outra. Ele pode receber e é bom que se diga, a data do negócio para todos os fins tributários, civis, e eventualmente até criminais, se houver falsidade ideológica, será referente a uma data em que aquele ser não havia ainda nascido. Mas aquele negócio está subordinado a uma condição, a um evento futuro e incerto, que é que ele nasça com vida. Se ele não nascer, aquele negócio jurídico, aquela doação, aquele contrato será desfeito. Ou seja, o Direito, nesse sentido, tenta acomodar e harmonizar essas diferenças e conflitos. O próprio Artigo 2º que já mencionei, que diz que a personalidade começa com o nascimento com vida, é um tanto contraditório, porque ele também diz que a personalidade começa com a vida – mas desde que previstos em lei, os direitos dos nascituros estão assegurados. Um famoso autor, chamado Caio Mário, já falecido, usava uma metáfora que dizia mais ou menos o seguinte: enquanto a pessoa já nascida pode ter todo e qualquer direito, ao menos em tese, então ela pode, por exemplo, abrir uma conta num banco, ela pode fazer qualquer coisa que a lei não lhe vede expressamente. No caso do nascituro é o contrário, a lei precisa permitir expressamente que ele possa ter um direito. Enquanto ter direitos para as pessoas, para todos nós aqui presentes é a regra
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(nós e regras podemos titularizar direitos), para o nascituro a lei concederia uma espécie de favor, tendo que permitir expressamente que ele titularize um eventual direito. Mas a lei o faz, a lei permite, por exemplo, a doação. Outro caso também muito conhecido é herança. Existe uma regra básica no Direito Sucessório segundo a qual só pode herdar quem está vivo, portanto, se uma determinada pessoa é pré-morta, ou seja, meu filho morreu antes de mim, eu sou o pai e ele morreu antes de mim, eventualmente os filhos do meu filho, os meus netos, poderão herdar, mas o meu filho jamais, porque uma condição básica para que alguém herde é que esse herdeiro, esse sucessor, esteja vivo. O nascituro é uma exceção. O nascituro é um caso raro em que uma pessoa que ainda não nasceu, foi apenas concebida, está na barriga da mãe, por exemplo, pode herdar. Ela herda antes de ter nascido. Mas, mais uma vez, essa herança estará subordinada a uma condição, a um evento futuro incerto, que é o nascimento com vida. Em outras palavras, se esse nascituro não vier a nascer com vida, é como se ele nunca tivesse existido e aquela parte que seria sua da herança será redistribuída entre os outros herdeiros, por exemplo, os seus irmãos. Essa, digamos assim, é a resposta padrão do Direito para o início da vida. Mas os Tribunais enfrentam cotidianamente casos complexos e construíram um verdadeiro edifício em cima dessas bases legais. Quer dizer, além de lidar com o Código, nós temos que lidar também com a jurisprudência, e os Tribunais tiveram um papel criativo e importante no que se refere a definir eventualmente o início da vida. Os juristas dividem-se (em regra, pelo menos os civilistas), no que se refere à essa ideia de quando começa a vida. Afinal, o que é a vida tutelada juridicamente, quando é que o Direito começa a proteger a vida, considerada biologicamente? Existem duas grandes correntes doutrinárias, dois grandes grupos: a Teoria Natalista, que é aquele que entende que só é pessoa e só merece proteção quem já nasceu com vida; e a Teoria Concepcionista, segundo a qual basta ter sido concebida, ou seja, a nidação é o suficiente para que aquele indivíduo receba todos os direitos possíveis. Hoje, sem dúvida alguma, e isso talvez surpreenda, pois para quem não é do Direito normalmente surpreende, a Teoria Concepcionista é absolutamente majoritária no direito civil. É até difícil encontrar alguém que defenda a Teoria Natalista, porque em geral os juristas, sobretudo os da parte de Direito Civil, entendem que o nascituro já tem direito a nome, já tem diretos da personalidade respeitados, e assim por diante. Existe uma corrente intermediária que defende uma teoria concepcionista mitigada, que de certa forma foi encampada pelo STJ, que diz o seguinte: o nascituro pode titularizar direitos que não sejam patrimoniais, ainda que não nasça com vida. Essa história de que a doação, por exemplo, é condicionada, que a herança é condicionada, essas condicionantes só existem porque esses direitos são patrimoniais. E realmente só faz sentido dizer que alguém vai titularizar patrimônio, ser dono de um
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imóvel, de um carro, se essa pessoa nascer com vida. Mas outros direitos, por exemplo, o direito a um nome, à boa imagem, à honra, por exemplo, a ter um pai, a ter uma mãe, esses direitos poderiam ser titularizados pelo nascituro, ainda que ele não nasça com vida. Pode parecer uma discussão vazia e em princípio talvez seja difícil encontrar um caso concreto que seja aplicado, mas eles existem e chegaram aos Tribunais Superiores. Existem ao menos dois casos muito emblemáticos julgados pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), em que esse Tribunal reconheceu que o nascituro sim, tem direitos. Os dois casos envolviam o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT). Então, eram todos batidas de carro e havia uma discussão sobre a indenização do seguro obrigatório. Quando ocorre um acidente, há, por exemplo, danos, se uma pessoa perde um membro ela pode pleitear indenização do seguro obrigatório. E nesse caso específico havia um acidente, o nascituro estava envolvido, ou seja, ele estava na barriga da mãe, que por sua vez estava dentro de um carro que se envolveu num acidente que lesionou toda a família e matou o pai dele. E a discussão era, o nascituro é uma cabeça a mais a ser indenizada, ou não? Em outras palavras, o bebê que estava na barriga teria o direito de ser indenizado? E notem que esse direito é um direito patrimonial, e não meramente um direito a um nome, à imagem. Ou seja, é como o STJ dissesse: sim, ele tem o direito a ser indenizado pela perda do pai, é como se o STJ adotasse a Teoria Concepcionista na sua forma mais forte, ou seja, o nascituro pode titularizar direitos não só da personalidade, direitos extrapatrimoniais, como também direitos patrimoniais. E foi justamente essa a posição adotada pelo STJ. Entendeu-se que – inclusive há uma célebre frase da ministra Fátima Nancy Andrighi – da mesma forma que perder um pai é uma causa de direito para se pleitear o DPVAT, também deve ser a não se ter o direito de conhecer o próprio pai. Entendeu-se naquele caso que o nascituro já tinha a direito de receber a indenização porque perdera um ente querido no acidente. O segundo caso é um pouco diferente, também relacionado ao DPVAT, mas aqui houve um aborto, ou seja, quem morreu foi o nascituro. Houve um acidente e infelizmente a gravidez chegou ao fim naquele momento em virtude da batida, e isso ficou claro. Só que a legislação do DPVAT prevê que haverá indenização por morte de pessoa, e a discussão era se o nascituro seria uma pessoa para fins da lei. E o STJ entendeu que sim, que aquela perda deveria ser entendida como a perda de um ser humano, de uma pessoa, e, portanto, deveria haver a indenização completa, como se, por exemplo, o pai tivesse morrido, como se uma pessoa de 30 e poucos anos, ou 60 anos, ou 15 anos, ou 4 anos, tivesse também falecido. A verdade é que o Direito faz parte da vida, e da mesma forma que a vida, questões complexas estão constantemente em tensão. Mas no Direito existem pessoas,
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digamos, do lado de cá do cabo de guerra e do lado de lá, e por vezes há decisões contraditórias. O STJ, por exemplo, como já mencionei, tende a ter uma posição bastante protetiva e entende que o nascituro tem direitos fundamentais e faz portanto, uma interpretação do Código Civil à luz desse entendimento. A propósito, quem é o concepturo e quando esse indivíduo, esse ser teria direitos? O concepturo é quem nem concebido foi, então é realmente algo que nem foi materializado, não houve nem fecundação de óvulo, não houve nada, mas o Direito permite que qualquer um de nós aqui faça um testamento em favor da prole eventual ou do concepturo de uma pessoa viva. Por exemplo, talvez eu não queira que João e Maria herdem a minha herança, recebam o meu patrimônio, mas por algum motivo eu já amo os filhos de João e Maria que nem nasceram ainda, ou venha a ter um carinho especial por eles. Mas eu não quero transmitir o patrimônio para João e Maria, eu quero que o patrimônio vá para os filhos de João e Maria, filhos que João e Maria ainda nem tiveram. O ordenamento permite então que esse concepturo, essa prole eventual seja contemplada por testamento. Eventualmente, se a pessoa tiver dependente necessário (filho, ascendente ou descendente), até 50% da herança e se só tiver irmãos, primos, ou tios), poderá dispor de 100% do seu patrimônio em favor dessa pessoa, que em tese, nem foi concebida ainda. Só que, de novo, há uma condição. Talvez uma condição menos de ordem filosófica, mas mais de ordem prática, para evitar que essa criança possa nascer daqui há 30 anos, daqui há 60 anos, causando uma insegurança jurídica tremenda. A condição é que essa prole eventual seja concebida dentro de 2 anos da morte do testador. Então, para essa prole eventual, João e Maria terão que conceber seus filhos dentro de dois anos, e nos nove meses seguintes, no máximo, esses filhos, ou um filho, ou uma filha, devem ou deve nascer com vida. É essa a condição. Ou seja, o ordenamento jurídico prevê não só proteção ao nascituro, aquele que já foi concebido e que deve vir a nascer, mas também àquele que nem foi concebido ainda, mas possivelmente o será. Mas por que existem decisões ao contrário, por exemplo, no Supremo Tribunal Federal (STF)? Porque, por outro lado, o Supremo tem outra leitura. Enquanto aqueles que leem o Código Civil em geral tendem a fazer uma interpretação de que os nascituros devem ter os seus direitos assegurados, a leitura prevalecente entre constitucionalistas é justamente a contrária, é aquela que enfatiza os direitos reprodutivos da mulher e entende que um ser que ainda não nasceu não é pessoa. E aí curiosamente nós temos uma espécie de paradoxo entre o tribunal mais elevado para interpretar o direito infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça e um tribunal que tende a fazer outra leitura, o Supremo Tribunal Federal, que dá a palavra final em matérias constitucionais. E como no Brasil quase tudo está na Constituição, a tendência é que a palavra final seja do Supremo.
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Bem, quando o Supremo Tribunal Federal enfrentou casos envolvendo o início ou o fim da vida? Em primeiro lugar, o Supremo enfrentou essa discussão quando declarou constitucional a Lei da Biossegurança. O Supremo entendeu ser constitucional a decisão do legislador, ou seja, na verdade havia uma lei, o legislador depois de muito debate chegou à conclusão de que pesquisas com células tronco embrionárias eram interessantes e oportunas: quando essa questão chegou ao Supremo, este entendeu que a lei era constitucional. E nesse debate, que foi muito rico, vários pontos colaterais relacionados a essa questão foram discutidos. Por exemplo, a criminalização da clonagem no Brasil. Houve quem entendesse que a proibição, a criminalização da clonagem seria uma interferência indevida do Estado sobre os direitos, por exemplo, do livre direito à pesquisa, da livre iniciativa ou concorrência, e assim por diante. O Supremo entendeu que não, de forma alguma, entendeu que seria uma restrição proporcional, tendo em vista os riscos envolvidos com esse tipo de pesquisa. Além disso, o Supremo também discutiu quando é que afinal de contas, começa a vida. Por exemplo, o processo de descarte das células tronco foi objeto de muita discussão durante todo o julgamento. E havia um argumento muito forte por parte de vários grupos no sentido de que o descarte das células tronco teria um quê de eugenia e geraria um verdadeiro genocídio, uma expressão que se utilizou na ocasião. O Supremo afastou esse argumento, entendeu que o descarte deveria ser feito como estava na lei, entre outros motivos alegando que do contrário isso inviabilizaria por completo as pesquisas, alegando também – e aí está o aparente paradoxo que há entre o Supremo e o STJ – que pessoa é só aquela que nasce com vida, portanto o embrião não mereceria uma tutela jurídica maior do que aquela que já lhe concedia a Lei de Biossegurança. O Supremo enfrentou em seguida a questão de como se tratar o aborto de fetos anencefálicos. O Supremo interpretou o dispositivo do Código Penal que proíbe o aborto dizendo que naquele dispositivo não estava incluído o abortamento de fetos anencefálicos, reafirmando várias vezes que não haveria vida viável ali e que portanto, não haveria porque proteger aquela vida incipiente que não seria pessoa. Uma crítica que se faz ao Supremo, é que suas premissas são mais fortes que suas conclusões. Em outras palavras, a premissa de que quem não nasceu não merece proteção jurídica, não só leva à descriminalização do aborto de fetos anencefálicos, como também à descriminalização de todo e qualquer abortamento. Mais recentemente, a primeira turma do Supremo, em um processo específico, um habeas corpus, num caso envolvendo um processo penal que visava punir pessoas envolvidas em uma suposta clínica de aborto, entendeu que o aborto, naquele caso, nem crime seria crime. Então é uma turma, não é o Supremo como um todo, são apenas cinco ministros, foi um caso concreto, esse precedente não vincula, não tem eficácia em
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todo o Brasil – é o único precedente do Supremo, mas realmente, por 3 votos a 2, uma turma entendeu que o aborto não deve ser crime no Brasil. Ainda segundo a turma, existem formas muito mais efetivas de punir essa conduta, e portanto, a proteção do feto não deve ser feita por meio da sanção criminal, deve ser feita por meio de educação, por meio de apoio às mães e assim por diante. Isso está no acórdão, mas esse é um caso isolado, como disse. Mas tramita hoje uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo justamente visando a fazer aquilo que foi feito com o abortamento de fetos anencefálicos. Em outras palavras, existem ações que podem ser ajuizadas só por algumas pessoas, um de nós, por exemplo, em tese, não poderia, talvez a Associação Médica, a depender dos requisitos ela como um todo talvez pudesse, mas existem certas ações que uma vez ajuizadas vinculam o Brasil inteiro quando o Supremo profere uma decisão. Essas têm que ser seguidas obrigatoriamente. Foi justamente o que aconteceu na ADI dos fetos anencefálicos, e é justamente o que se busca agora. Depois de dado esse passo, digamos assim, outras associações buscam que o Supremo dê outro passo além, no sentido que seja descriminalizado o aborto como um todo. E como jurista, e eu imagino que também como cidadão, fica difícil não pensar em como a própria complexidade do tema faz com que existam respostas parciais em diferentes ramos do Direito. Esse tema é extremamente rico e complexo, pois o Direito faz parte da vida, portanto não foge da complexidade que é inerente à própria vida, mas sobretudo porque o Direito é feito por seres humanos, e é falível, independentemente da resposta que se dê. Não fiz nenhum juízo de valor, o meu papel aqui foi puramente descritivo, mas o certo é que o próprio Direito, em suas diferentes instâncias, nos diferentes tribunais, não tem sabido dar uma resposta uniforme e harmônica a um problema. Porque, em última instância o problema é o mesmo, mas aparentemente as respostas dadas a esse problema são diversas, a depender do que está em jogo, da matéria, se é uma indenização ou se é o aborto em si. É a criminalização da conduta ou é a indenização de um nascituro? É o direito de um nascituro ser indenizado ou é um direito, por exemplo, do pai dele ser indenizado? A matéria é de Direito Civil ou é de Direito Constitucional? E assim por diante. Bem, chegando ao final, o que eu queria verdadeiramente dizer era que o Direito não foge à regra, que é intrínseca à vida, mas que pode constantemente ser aprimorado. E eu penso que na própria ciência não é diferente, Thomas Kuhn fala bastante sobre a constante necessidade de revermos as respostas que são dadas a um problema, e talvez o Direito esteja justamente num momento de revolução da ciência, num momento em que nós percebemos que os paradigmas que nós usamos para compreender os problemas da vida talvez não estejam sendo suficientes para darmos uma resposta coerente. E talvez nos próximos anos o Supremo Tribunal Federal, ou talvez o STJ, mas provavelmente o Supremo, será obrigado a dar uma resposta que
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revise a jurisprudência como um todo, e ao final das contas a harmonize. Não se sabe em que sentido será essa decisão, mas o fato é que os juristas têm advertido para dificuldade da forma como está a doutrina. E só para terminar, eu falei muito pouco do final, afinal, onde acaba a vida, mas curiosamente, esse é um tema mais ou menos solidificado, não sei se de forma boa ou ruim. A eutanásia e o suicídio assistido, por exemplo – por mais que haja discussões e elas são travadas todos os dias em bioética –, no que se refere à condenação de réus não há dúvida alguma: a eutanásia no Brasil é vedada, o suicídio assistido é vedado, embora haja um princípio em Direito de que o consentimento exclui o crime. Essa é a regra, por exemplo, na lesão corporal provocada por um pugilista: se o boxeador aceita tomar o soco não há crime de lesão corporal, ainda que ela seja grave, eventualmente até se gravíssima. Mas na morte, o que sempre predominou, e é assim, por exemplo, num país como a Alemanha, existe um interesse público, de ordem pública, no sentido de que nem o próprio indivíduo poderia abrir mão da vida dele. Essa questão evidentemente é complexa, e a matéria continua simplesmente criminalizada. Em outras palavras, se por um lado alguns juristas entendem que deve ser alterado o Código Penal, há um consenso que é crime auxiliar alguém a cometer suicídio ou a pôr fim ao sofrimento de um determinado indivíduo. Mas também é praticamente consensual e amplamente majoritário, que esse homicídio é um homicídio privilegiado, com uma sensível diminuição de pena. Então, a depender do caso, das circunstâncias, da primariedade do réu, etc., é possível que ele, por exemplo, comece a cumprir pena no regime semiaberto ou algo assim. Essa é uma questão muito mais solidificada, o final da vida, por assim dizer, está mais ou menos sedimentado. E um ponto que eu coloco apenas para reflexão: no Congresso por muitas vezes se buscou flexibilizar a criminalização do suicídio assistido ou da eutanásia, retirando essas condutas da rubrica do homicídio, artigo 121 do Código Penal, mas mesmo aqueles que são seculares, por exemplo, e que não colocam essa premissa na mesa, muitos são contra. Menciono aqui um estudo citado no Congresso Nacional, da baronesa Onora Sylvia O'Neill, membro da Casa dos Lordes da Inglaterra, que entendeu o seguinte: “por vezes é tão difícil estabelecer quando aquele consentimento é válido que talvez não se deva dar à família esse poder.” A tentativa é justamente depositar nos médicos ou no Poder Judiciário o crivo para saber se aquilo é lícito ou não, se, por exemplo, antecipar a morte daquela pessoa é genuinamente um esforço altruísta de colocar fim ao seu sofrimento ou uma tentativa de ficar com a herança dele. Deixar essa escolha à família é algo talvez temerário, mas talvez os médicos e o Poder Judiciário não queiram ter esse ônus, já que aquele debate ocorreu apenas no Congresso.
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Porém, uma coisa é certa, escolhas podem ser maculadas ou não. Quando a pessoa celebra um contrato é possível que ela o anule, se por exemplo, ela foi enganada ou algo assim. Mas uma vez que foi decidido colocar fim à vida da pessoa, essa escolha não tem volta, não dá para anular por erro ou dolo: “ah não, nós nos enganamos. Na verdade a pessoa não precisava, não estava sofrendo, foi a família que...” Não, uma vez tomada essa decisão, não há volta, como disse a baronesa Onora O’Neill, e essa é uma das razões pelas quais não se avançou sobre isso no Congresso Nacional. Há uma zona de penumbra muito grande, há uma zona cinzenta em que é difícil estabelecer uma linha clara entre até que ponto é possível ter certeza sobre um consentimento informado da pessoa e quando não. Basicamente é isso. Muito obrigado, boa tarde a todos. Visão Judaica Rabino Sérgio Margulies: Boa tarde a todos. Mais uma vez, um grande e enorme prazer estar aqui, um privilégio esse convite, essa participação nesse evento, que gera uma reflexão muito profunda sobre temas absolutamente profundos e relevantes na vida. Como rabino, vou utilizar inicialmente uma imagem de uma passagem bíblica. A passagem é quando Moisés, Moisés foi aquele líder do povo hebreu que lutou pela liberdade contra o faraó e conduziu seu povo ao longo de uma jornada de 40 anos no deserto. Moisés havia sido previamente convocado por Deus para assumir essa liderança. E quando Moisés é convocado por Deus, Deus tem que se apresentar a Moisés, e quando Deus se apresenta, o próprio texto bíblico descreve, Moisés esconde a sua face, o seu rosto. E por que, na interpretação do texto bíblico, Moisés escondeu o rosto para evitar o olhar a Deus? Uma das respostas dada é que Deus representa a infinitude e Moisés, como ser humano, portanto finito, de uma existência física finita, não queria se expor à infinitude, não queria confrontar a infinitude. Talvez tivesse medo de confrontar a infinitude porque uma vez confrontando essa infinitude que ele não tinha, poderia ter que lidar com a sua própria finitude. Ou talvez tenha evitado aquele olhar para realmente entender a sua própria condição humana de ser finito. O fato é, ouvi isso de um psicanalista, que vivemos como se fôssemos viver eternamente. Essa postura tem um aspecto bastante salutar, saudável, porque evita pensarmos que amanhã talvez não estejamos aqui, e isso nos possibilita elaborar projetos a longo prazo, etc., etc. Por outro lado, há um perigo, o perigo de considerar que vamos viver eternamente, um perigo que já foi abordado numa das perguntas do debate anterior: se vou viver eternamente, posso desperdiçar meu tempo, abandonar, relegar o que é relevante, e nesse sentido, morre-se enquanto vivo.
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Temos aqui um debate sobre o conflito potencial entre a nossa finitude existencial e física e a infinitude, que seria um prolongamento da vida. Mas entendemos que a infinitude é o potencial de contribuir, e nossa existência física é realmente finita. Mas como saber qual o momento em que essa finitude pode ser estabelecida? Como lidar quando chega a hora em que a notícia do término da nossa existência é dada? Quando uma doença é revelada e o tratamento já não pode propiciar uma esperança, ou uma cura, ou uma reparação? Como estar preparado? Como se preparar para isso? Claramente o texto bíblico, sempre entendendo que nesse aspecto o texto bíblico não precisa ser visto só como um texto religioso, ainda que assim o seja, mas como alegorias que nos permitem construir elaborações e significados relevantes da vida. Cito uma passagem de um personagem chamado Jacó, em que ele luta, ele luta com um mensageiro, com um suposto mensageiro de origem desconhecida, talvez um mensageiro divino, mas de origem desconhecida. E aí essa luta vai prosseguindo, em algum momento querem se desagarrar dessa luta, mas um diz para o outro, me liberte dessa luta. Aí o outro responde: só deixo você ir se você me abençoar. Fazendo uma interpretação metafórica, talvez a gente consiga estar mais preparado com o momento da notícia da morte se a gente transmite benção, se a gente transmite benção à nossa vida. Quando a gente não transmitiu benção, aí vai ser mais difícil, porque uma frustração, um vazio muito forte pode bater. Quando recebemos a notícia da nossa finitude, uma notícia que muitos dos médicos são obrigados, por força da sua atividade, a transmitir ao doente ou eventualmente à sua família também. Nesse momento, vocês provavelmente sabem muito melhor do que eu, quando há uma vida cuja extensão de anos ainda não é aquilo que a gente imagina como devidamente prolongada, há uma mudez, há um choro, um choro às vezes expresso com lágrimas, às vezes expresso com soluço, ou um choro silencioso, porque uma ordem é revertida. A gente acalenta o viver permanentemente, então, diante de uma notícia de doença, sobretudo até de alguém ainda mais jovem, há uma reversão dessa ordem, há um caos, ou a família fica desestruturada, porque uma referência potencialmente vai ser perdida. E, num passo seguinte, depois dessa mudez, há a possibilidade de reação da negação. Negar a informação. Depois de negar a informação, uma raiva pode tomar conta. E finalmente, pode vir o novo passo, a racionalização do sofrimento, seja da doença ou do fato de saber que é uma doença que vai culminar com o falecimento. Não é infrequente racionalizar esse sofrimento através de uma negociação com Deus. As pessoas começam a tentar negociar com Deus. E aqui, como rabino, como líder religioso, afirmo, nessa negociação com Deus, em que se busca, se Deus me curar eu farei isso, aquilo, etc., nessa negociação com Deus diante de uma doença, se a religião concede isso, autoriza e permite, a
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religião também faz parte da doença. A teologização da doença traz a dor da alma. É um uso manipulativo falso da fé. É importante não teologizar a doença. O papel da vida religiosa diante da doença é o contrário. É entender que uma depressão possa acontecer, que uma solidão, um sentido de abandono pode acontecer. O papel da religião não é dizer que a doença é fruto de alguma culpa, é fruto de alguma, é consequência de alguma penalidade. O papel da religião, da fé, é tentar mostrar que a doença com o seu sofrimento existe para que uma nova perspectiva seja construída, e uma perspectiva construída juntamente com apoio. Quando há solidão o apoio é fundamental, e aquele que se coloca enfermo frequentemente ele se sente abandonado, sozinho, seja esse sentimento real ou imaginado, ou, sobretudo, sentido. A vida religiosa é uma vida construída em comunidade, é construída através de família, é construída através da participação de um com o outro. E o papel da fé, no meu entender, é transmitir esse apoio. Transmitir esse apoio não é uma promessa de cura, porque isso seria falso, mas é trazer esperança diante da incerteza, trazer esperança diante da incerteza. E aí se estabelece uma genuína, honesta e verdadeira parceria entre a religiosidade e a ciência no seu exercício médico. Como lidar com a finitude do corpo diante do potencial de prolongar uma vida? Isso exige uma tomada de decisão. Há de se imaginar que talvez a inteligência artificial vá um dia tomar uma decisão até onde, ou como, de que maneira pode-se prolongar uma vida, mas a decisão ética é uma responsabilidade humana. Há um filósofo que diz, a minha ótica, a nossa ótica determina a ética. É um jogo de palavras entre ótica e ética, e a nossa ética vai trazer a indagação: olhamos, nossa ótica, a doença ou o doente? Isso implica uma tomada de decisão com responsabilidade humana. Não adianta a religião, no caso aqui o judaísmo, palpitar ou sugerir alguma coisa. Dos 613 mandamentos que foram compilados por Maimônides, filósofo do século XI, também médico de sua época, 213 tratam sobre questões da medicina. Então, não é um número desprezível, aproximadamente em terço dos princípios que a Bíblia traz é de questões relacionadas à saúde. E há várias interpretações, livros como Talmude trazem relações de remédios, claro que não como hoje em dia a gente os têm, mas dos que havia no século V, época em que o Talmud, um livro de debate às leis judaicas, foi editado. O que quer dizer isso? Número 1: não se pode culpar ou teologizar uma doença, mas é uma responsabilidade humana poder trazer a ajuda necessária. O judaísmo determina: não encurtemos a vida. Mesmo aquele que está prestes a morrer ainda é uma pessoa. Sendo uma pessoa, sua vida não pode ser encurtada, não pode ser eticamente retirada por uma ação humana. O argumento de qualidade de vida, num
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ato de compaixão, poderia ser um argumento, não é justo a perda dessa qualidade humana para que a pessoa fiquei aqui, então vamos retirar essa vida. Talvez haja aqui uma compaixão justa e sincera, mas ainda assim o judaísmo diz que não podemos retirar essa vida. E, ademais, como determinar o que é qualidade de vida? Qual o padrão, qual o sândalo? Assim, nosso papel, claro que dos médicos, evidentemente, mas estamos falando de todos que trabalham junto com pacientes, nosso papel é curar. E quando não possível curar, cuidar. Cuidar, mas dentro da ótica da ética judaica, não abreviar a vida. Por outro lado, não devemos prolongar a vida. Ou seja, se de um lado não se abrevia a vida, de outro lado não se prolonga a vida. É uma linha muito, muito tênue. Não há obrigação de prolongar a vida do paciente claramente terminal. Prolongar a morte inevitável não é considerado medicina, dentro da visão que eu trago. Mesmo assim, métodos de prolongamento da vida dentro de uma morte inevitável podem ser aplicados. Quero dizer, os métodos que prolongam a vida numa situação artificial podem ser removidos ou não aplicados, porém, a decisão de continuar ou cessar o tratamento é uma decisão que lida com angústia e profunda incerteza. Não há garantias que não haja esperança de recuperação. Por mais que critérios científicos sejam fidedignamente colocados, não há garantia que a remoção ou a não aplicação de determinados procedimentos irá acarretar em morte. Assim, enquanto não há obrigação de prolongar a vida do paciente claramente terminal, pois isso não é considerado, repito, exercício da medicina no foco do doente, tomar essa decisão é profundamente angustiante. Essa decisão, se tomada, não viola valores e princípios. Por exemplo, quando as ações não curam não violamos obrigações morais quando aquelas não são mais aplicadas. Isso é visto como um ato corretivo de uma ação que deixamos acontecer erradamente. E qual é essa ação que deixamos acontecer erradamente? Atrasar desnecessariamente a morte com atos heroicos. Não precisamos abraçar atos heroicos que prolongarão a vida que inevitavelmente já não será. O livro bíblico Eclesiastes traz uma frase, um poema, que diz que para tudo há um tempo. Para tudo debaixo do sol há um tempo. E há um tempo para nascer e um tempo para morrer. Mas somos capazes de reconhecer esse tempo para morrer? De se preparar para ele? Essa é a dificuldade. E um poeta contemporâneo israelense diz, nesse sentido, que “há um tempo em que não há tempo.” Não temos tempo, não nos damos tempo, tempo físico e sobretudo tempo psíquico, tempo emocional de nos prepararmos para o tempo de morrer. Abdicamos do tempo, suspendemos o tempo como se não houvesse finitude do nosso tempo de existência corpórea. Um tempo de finitude de existência corpórea dentro da atemporalidade infinita, que é o Cronos, o tempo do mundo.
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Essa é minha contribuição trazendo a ótica da ética judaica para que a gente possa aprofundar o nosso entendimento sobre esse dilema tão dramaticamente humano. Obrigado. Visão Cristã Eduardo Vinícius de Lima Peters: Uma boa tarde a todos. Me toca colocar um pouco dos aspectos da visão cristã a respeito da finitude biológica, essa relação da finitude biológica da medicina, ouvindo nosso jurista, também nosso rabino. É claro que são questões ao mesmo tempo extremamente antigas e novas. Desde o termo bioética foi introduzido no início da década de 70, tornou-se necessário fazer uma ponte entre o desenvolvimento biotecnológico e o humanismo. Por quê a bioética deveria ser uma ponte entre o desenvolvimento tecnológico e o humanismo? Toda essa perspectiva de desenvolvimento biotecnológico, embora seja algo extremamente positivo para o desenvolvimento nosso como sociedade e até mesmo como aprimoramento e qualificação da nossa vida humana, traz a necessidade de não perdermos nesse processo a própria humanidade. É interessante como que determinadas competências que adquirimos trouxeram à luz também uma série de problemas e uma série de questões que ainda não foram resolvidos em relação à nossa humanidade. E é até relativamente simples para mim hoje apresentar a vocês essa perspectiva da visão cristã, porque o magistério da igreja já fez uma proclamação a respeito dessa questão da eutanásia. Então existe, feita pela sagrada congregação, pela doutrina da fé, uma declaração sobre eutanásia. Aliás, acho que é interessante abrir um parêntesis aqui, eu não sei se os senhores e as senhoras sabem, mas boa parte dessas reflexões éticas que são elaboradas pela igreja católica não são elaboradas pelos religiosos. Como é que a igreja trabalha essa coisa? Estaria talvez o papa lá sentado em seu trono de ouro pensando qual é a norma que vai ditar amanhã para todo mundo de acordo com o seu humor? Claro que essas coisas não acontecem assim. Pelo contrário, exatamente porque nós não temos competência para tratar de determinadas questões na profundidade que elas precisam ser tratadas, que o papa João Paulo II, ainda na sua condução pastoral, criou a chamada Pontifícia Academia para a Vida. Hoje a Santa Sé promove, de maneira regular, encontros em uma Pontifícia Academia dedicada a questões relacionadas à bioética. Foi presidida inicialmente pelo monsenhor Elio Sgreccia e tem uma estrutura organizada com diversos profissionais de diversas áreas de pensamento e de conhecimento, para discutir exatamente a
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complexidade dessas questões que aparecem e que se mostram no dia a dia para todos nós. Então, quando temos uma declaração da igreja a respeito de alguma questão ética é preciso entender que essa resulta de uma elaboração e de um estudo aprofundado feito por diversos indivíduos de diversas áreas de conhecimento diferentes. A Igreja, como eu disse pela manhã, recorre a diversas ciências para ter uma iluminação a respeito do assunto. Até porque Jesus não tratou da clonagem, Jesus não tratou de tantas questões que nós temos hoje e que não existiam no Seu tempo. Não temos referências, vamos dizer assim, na Sagrada Escritura ou mesmo na tradição, dos problemas contemporâneos. Mas nós podemos, a partir daquilo que temos como referência de valores, falar algo sobre essas questões que hoje se manifestam. Então, eu gostaria de começar olhando o discurso do nosso jurista aqui no começo, em que ele colocava justamente essa dinâmica do Direito, eu não vou discutir os aspectos de Direito ou de lei, mas podemos discutir sobre aspectos éticos. A primeira coisa que me causa uma certa preocupação nos dias de hoje, é o enfoque muito grande dado à liberdade, e a primeira pergunta que deveria ser feita seria: a liberdade é um valor absoluto? Porque esse é o primeiro grande equívoco nosso, achar que a liberdade é um valor absoluto. Por sermos seres limitados temos também na nossa realidade limitada uma liberdade limitada. Não podemos entender, por exemplo, a liberdade, como uma escolha entre o bem e o mal, como às vezes parece ser possível, liberdade é escolher entre qualquer coisa? Não. A liberdade é a possibilidade de escolha entre bens. Porque eticamente, se e sei o que é o mal, eticamente, eu devo evitá-lo. Simples assim. E se eu sei o que é o bem eu tenho obrigação moral de fazê-lo. Nós podemos escolher entre bens. Se eu coloco aqui um sorvete de chocolate, um sorvete de creme, um sorvete de morango, eu posso dizer, vocês escolham aí o sorvete que vocês acharem melhor, vocês podem escolher um só, é uma escolha entre bens. Então, eu tenho três tipos de bens diferentes, eu posso escolher entre eles segundo os meus critérios pessoais, eu tenho a liberdade. Agora, se eu boto um litro de veneno, um pote de sorvete e uma caixa de prego e digo, vocês precisam comer ou beber de alguma coisa. E eu sei que o veneno é mal, eu sei que o prego é mal, e a única opção que eu tenho ali é o sorvete, eu vou tomar o sorvete. Ou não toma nada. Quer dizer, a liberdade não é absoluta. Hoje nós temos um discurso muito equivocado na nossa sociedade e o Direito se move muito na perspectiva da garantia das liberdades, mas talvez se despreocupe um tanto quanto sobre a garantia e a proteção do bem. Lembrem-se que o Direito surge justamente para defender aquilo que é o direito do mais fraco, quer dizer, a legalidade existe para que o mais fraco possa se defender muitas vezes daquele que tem a possibilidade de se impor. Não é possível, dentro dessa perspectiva, que eu dê, por exemplo, direito à mãe sobre vida e morte em relação ao seu filho. Porque ela não
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tem esse direito, é uma usurpação. Quer dizer, a mãe não tem direito sobre vida ou sobre morte a respeito da sua criança, ela tem direito e a liberdade de não colocar em movimento aquelas realidades que podem gerar uma criança, mas ela não tem o direito de matá-la uma vez que ela existe porque é outro indivíduo, dotado dos mesmos direitos que ela tem. Eu também não posso dizer que o indivíduo, por exemplo, tem já reconhecida a sua dignidade de pessoa enquanto nascituro para uma herança e, em relação à própria subsistência ele não tem direito à subsistência? Parece que são contradições que muitas vezes entram nos nossos discursos e que correspondem muitas vezes a essa obstinação que estamos tendo hoje de achar que o discurso, a construção do Direito está na garantia de liberdades. Quer dizer, o Direito deveria ser o garantidor do bem, e as liberdades em relação ao bem se organizam como a gente achar melhor. É claro que temos que garantir a liberdade, mas nós precisamos entender que a nossa liberdade é relativa ao bem, e não o contrário. E também não sou eu quem diz o que é o bem e o que não é o bem para mim, sob uma série de aspectos, porque algumas coisas não podem ser, dentro dessa perspectiva material, contraditórias. Se pararmos pra pensar, existe na Lei de Deus um mandamento muito claro. Aliás, um versículo brevíssimo: não matarás. Isso é simplesmente um mandato que vem da parte de Deus? Não. Isso está escrito dentro também da nossa própria natureza, porque tendemos a subsistir e a procurar manter aquilo que é a nossa experiência de vida. Desejar a morte em certo sentido já vai em contrário àquele que é o aspecto mais profundo do nosso instinto, que é o de subsistência. O mandamento da Lei de Deus não está só como um mandamento da revelação, mas ele está dentro de nós enquanto experiência, enquanto lei natural. Ouvistes, e o Evangelho complementa, ouviste o que foi dito aos antigos: não matarás. Aquele que matar terá de responder em juízo. Eu porém vos digo, quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o Tribunal. O Evangelho é ainda mais radical nesse sentido de que o mandamento do amor; a lei da caridade me propõe uma postura diante da vida não violenta. Não violenta! Então, quando olhamos para a perspectiva do que o Evangelho sugere, o Evangelho é extremamente solidário. E solidário até com quem na nossa concepção não merece a nossa solidariedade. Jesus diz de modo muito claro, se alguém te bate de um lado, ofereça o outro. Se alguém te toma o manto, dá a túnica, se alguém te obriga a andar um quilômetro com ele, anda dois. E olha o que diz: abençoai aqueles que vos amaldiçoam, emprestai para aquele que não tem como te devolver. Porque se você abençoa aquele que te abençoa, que diferença você tem ai de qualquer outra pessoa? Se você empresta àquela pessoa que vai lhe devolver, que diferença você tem de todos os outros? A normativa da caridade, ou seja, o mandamento da caridade nos coloca
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diante da perspectiva de não sermos violentos, mas pelo contrário, de sermos sobretudo solidário. E aí entra uma dinâmica interessante porque às vezes o grito daquela pessoa que sofre na verdade é um pedido de ajuda. O grito daquela pessoa que pede para morrer na verdade é um grito pedindo a nossa assistência, a nossa conformidade, o nosso reconhecimento do sofrimento que ela passa, e não necessariamente um desejo testamentário, vamos dizer assim, em vida, de deixar de existir. A vida humana é sagrada porque desde a sua origem postula a ação criadora de Deus e mantém-se para sempre numa relação especial com o criador seu único fim. Deus é a origem e Deus é o fim da vida, a nós não é lícito matar ninguém porque não somos senhores da vida do outro e nem da nossa própria vida. Só Deus é o senhor da vida, desde o seu começo até o seu termo. Ninguém, em circunstância alguma, pode reivindicar um direito de dar a morte diretamente a um ser humano inocente. Isso está na Domus Vita, documento da Sagrada Congregação para Doutrina da Fé, sobre também alguns aspectos relacionados à procriação humana. Então, diante disso, nós também precisamos olhar para o próprio sofrimento e nos perguntarmos se existe razão de ser também no sofrer. Porque isso é uma outra coisa, às vezes nós lidamos com a supressão da vida da outra pessoa, considerando, pela perspectiva da qualidade de vida, que é melhor não viver do que viver de modo precário. Claro que ninguém quer sofrer, é claro que quando a gente para pra pensar nessa perspectiva, ninguém quer se colocar numa condição de sofrimento, mas ao mesmo tempo nós precisamos nos perguntar se existe uma razão de ser humana no sofrimento. Todos os senhores e as senhoras que se formaram em medicina com certeza não se formaram sem o devido esforço e sem o devido sofrimento e sem o devido empenho para alcançar a devida qualificação para estar onde os senhores e as senhoras estão. Quer dizer, não existe nada na experiência da vida humana que possa ser descartado enquanto experiência de amadurecimento também. E aqui entra uma dinâmica que é um tanto quanto misteriosa, porque o sofrimento também nos faz amadurecer. As vezes o nosso próprio sofrimento e às vezes o sofrimento do outro. No sofrimento do outro, na nossa solidariedade com o outro amadurecemos o nosso modo de ser pessoa. No nosso próprio sofrimento aprendemos também que o sofrimento corresponde àquilo que é a nossa realidade humana e corresponde também ao aspecto da nossa necessidade de transcender ao próprio sofrimento. Por isso existe dentro da própria experiência cristã um sentido a se dar pelo sofrimento. Porque o sofrimento pode ser também um caminho solidário de apresentação da nossa dor, da nossa dificuldade em vista também daquilo que pode ser o amadurecimento do outro, ou até mesmo o meu próprio amadurecimento. Tal é o sentido do sofrimento verdadeiramente sobrenatural, e ao mesmo tempo humano. É
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sobrenatural porque se erradica no mistério divino na redenção do mundo. Não podemos ignorar o fato de que a redenção do mundo se deu por uma perspectiva de assumir Deus sobre si os sofrimentos e os pecados de uma humanidade inteira. A cruz é o grande sinal dessa experiência. Dizíamos pela manhã que felicidade é levar a bom termo a nossa existência. O Cristo, na sua missão nesse mundo, que era a redenção do mundo, para levar a bom termo a sua existência precisava assumir sobre si a pena de uma humanidade inteiro. O modo estabelecido pela realidade que viveu Cristo era a cruz. E é curioso isso, pela cruz o Cristo consuma o sentido da sua existência, que é salvar a humanidade. E se felicidade é levar a bom termo a sua existência, a cruz é o caminho, vamos dizer assim, da felicidade do Cristo enquanto leva a bom termo a sua existência, que é salvar a humanidade. No momento de maior sofrimento desse homem na cruz, é o momento também de maior consumação daquilo que era o sentido da sua própria vida. São João mesmo coloca essa linguagem da cruz de uma maneira muito concreta quando Maria chega às Bodas de Caná: filho, eles não têm mais vinho! Jesus olha para ela: mulher, o que eu tenho com isso? A minha hora não chegou. De que hora fala Jesus? Da hora da cruz. Ele mesmo diz: foi para isso que eu vim. Ninguém tira minha vida, diz ele, eu a dou por mim mesmo. A oferta da vida, a acolhida da experiência do sofrimento de uma humanidade sobre si como expressão de amor. Por isso existe no sofrimento algo que é também sentido sobrenatural, porque se erradica no mistério divino da redenção do mundo. E é também provavelmente humano porque nele o homem se aceita a si mesmo, na sua finitude, com a sua própria humanidade, com a própria dignidade e a própria missão. Existe no processo de morrer, existe no sofrimento e até na debilidade física, o reconhecimento daquilo que a humanidade é finita, e sobre muitos aspectos, necessitada de uma redenção exatamente porque ela sozinha não é capaz de realizar aquilo que a sua transcendência pede. Se nós pudéssemos, nesse sentido, aplicar a autoajuda, nos auto salvarmos, nos auto resolvermos, não precisaríamos do mistério da paixão, não precisaríamos da realidade da cruz. No entanto, a expressão de um Deus que assume o sofrimento humano para mostrar que o sofrimento humano pode ser vivido numa perspectiva de sentido, abre para a dimensão cristã todo um percurso a ser percorrido na nossa própria maturidade como pessoa. Então, há um sentido na perspectiva do sofrimento. Paulo escreve: completo na minha carne – vejam que misterioso isso –aquilo que faltou aos sofrimentos de Cristo Jesus. No sentido de que ele quer sofrer por amor de uma humanidade que precisa ser mudada, que precisa ser renovada. E ele associa então todas as dificuldades e os sofrimentos dele às necessidades e sofrimentos de Cristo na cruz. É misterioso, eu não estou dizendo para vocês que é fácil, mas todos
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nós vamos em certo sentido ter que contemplar na experiência da nossa vida e experimentar em certo sentido a realidade do sofrimento, porque é humano, e tudo aquilo que é humano diz respeito também ao nosso caminho de aperfeiçoamento pessoal. E podemos dizer – vocês sabem disso talvez não como médicos, mas como pais e mães – que privar muitas vezes nossos filhos do sofrimento pode causar a eles uma dificuldade ainda maior depois de enfrentar as próprias dificuldades da vida, porque não amadurecer no sofrimento significa não adquirir a resiliência suficiente para confrontar aquelas dinâmicas que muitas vezes se tornam depois imperativas. Quantos dos nossos jovens hoje têm dificuldade de enfrentar a vida exatamente porque foram preservados de todas as dificuldades que poderiam se apresentar no seu processo de amadurecimento? Se ele viveu a vida sempre recebendo tudo, por que num determinado momento, se eu disser “agora você tem que conseguir o que você precisa conseguir,” ele vai passar a conseguir como se ele não tivesse que ter aprendido pelo esforço como se faz isso? Quando entramos na dinâmica de definição de eutanásia, entendemos uma ação ou uma omissão que por sua natureza ou intenção provoca a morte a fim de eliminar toda a dor. A eutanásia situa-se, portanto, no nível das intervenções, no nível dos métodos empregados. O juízo moral sobre essa questão não está só, é importante que se diga isso, no nível das intenções. Por quê? Quando a gente fala em ato moral, três coisas são importantes para a gente fazer um juízo a respeito do ato moral: primeiro, a intenção; segundo, o ato enquanto tal, que é o objeto da nossa reflexão moral e terceiro, as circunstâncias. Então, se na minha intenção eu quero matar, se eu sei que com essa ação eu vou matar, quer dizer, isso tem um peso moral. Se no modo como eu atendo, ou seja, no método que emprego, sei que aquele método empregado é para matar, há uma implicação moral. Porque tanto no que diz respeito à intenção quanto no que diz respeito à simples observação do ato enquanto tal, existe ali uma reflexão que devemos fazer, porque essas coisas são passíveis de juízo moral. A nós não é lícito fazer o mal, e sempre que nas nossas intenções ou naquilo que fazemos objetivamente o mal se apresenta de fato, não podemos agir. O próprio juramento de Hipócrates, recordado aqui pelo nosso doutor professor pela manhã diz que não se pode causar dano a ninguém. O princípio de defesa da vida física ou de não malefício. O médico, no seu juramento de profissão, se compromete em não causar dano. A supressão da vida é um dano objetivo, não é uma questão subjetiva. Por mais que a pessoa diga “ah, eu tenho vontade de morrer, eu quero morrer,” objetivamente eu não posso fazê-lo porque isso é causar o dano diretamente a alguém. Nesse sentido então é necessário declarar uma vez mais, e aí está o juízo da igreja sobre o assunto, é necessário declarar uma vez mais, com toda a
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firmeza, que nada ou ninguém pode autorizar a que se dê a morte a um ser humano inocente, seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente, incurável ou agonizante. O que o rabino nos colocou faz pouco, comungamos dessa mesma ideia, a vida é sagrada porque a vida é um dom dado por Deus e só Deus tem o direito de chamar para si de novo esse dom. E também a ninguém é permitido requerer esse gesto homicida para si ou para o outro confiado à sua responsabilidade. A ideia do suicídio assistido é uma ideia também que brota de uma sociedade que perdeu o sentido da vida. Imaginem que os filósofos existencialistas dentro do seu existencialismo negativo, Paul Sartre dizia que a maior manifestação da liberdade humana é o suicídio. Mas como pensar nessa perspectiva tão pessimista em relação àquilo que é a nossa própria existência se não temos a noção de fim, da razão de ser da vida? É claro que dentro da nossa perspectiva vamos perder a razão até de viver. Não há autoridade alguma que possa legitimamente impor ou permitir isso. Trata-se com efeito de uma violação da Lei Divina, de uma violação à dignidade da pessoa, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade, como diz a Declaração sobre a Eutanásia da Sagrada Congregação para Doutrina da Fé. Porque de fato se fere aquilo que é um direito fundamental de existência, e não só um direito nesse sentido, mas a existência é a razão de ser do direito. Se eu suprimo a existência, que direito existe? Se eu não puder garantir o direito à vida do embrião, relativizo meu próprio direito à vida. Algumas referências aos senhores médicos e médicas sobre a dor e o uso dos analgésicos, vão também nessa mesma direção. Segundo a doutrina cristã, a dor, sobretudo nos últimos momentos da vida, assume um significado particular no plano da salvação de Deus. É com efeito, uma participação na paixão de Cristo e união com o sacrifício redentor que ele ofereceu em obediência à vontade do Pai. O indivíduo que consegue ler o seu sofrimento a partir do sofrimento de Cristo e se vincular a esse sofrimento é capaz de significar até mesmo esse sofrimento no fim da vida. Por isso não é surpreendente que alguns cristãos moderem o uso dos medicamentos analgésicos, para aceitar voluntariamente ao menos uma parte dos seus sofrimentos e se associar assim com plena consciência aos sofrimentos de Cristo crucificado. Alguns talvez, no sentido de uma espiritualidade mais profunda, possam querer isso, mas não seria prudente, porém, impor isso como norma geral, como uma atitude heroica. Ninguém está obrigado a sofrer, pode ser que alguém entenda o sofrimento como purificador também, mas ninguém está obrigado a sofrer. Pelo contrário, a prudência humana e cristã aconselharão, para a maior parte dos doentes, o uso dos medicamentos capazes de suavizar ou suprimir a dor, mesmo que surjam efeitos secundários, como torpor ou menos lucidez.
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Claro, estamos ali para também assistir o doente nesse momento de sofrimento. Quanto àqueles que não podem exprimir-se, poder-se-á razoavelmente presumir que desejem receber esses calmantes e administrá-los de acordo com o conselho do médico. Então, o médico também acompanha esse processo. Os senhores e as senhoras, nesse sentido de dar ao paciente o devido auxílio nesse momento de sofrimento. Quanto ao uso prolongado dos meios terapêuticos, em muitos casos a complexidade das situações pode ser tal que surjam dúvidas sobre o modo de aplicar os princípios da moral. É claro, hoje nós temos um grau de sofisticação e de ação que as vezes é difícil a gente entender, a gente interfere, a gente não interfere, como que a gente faz? As decisões pertencerão, em última análise, à consciência do doente ou das pessoas qualificadas para falar em nome dele, como também aos médicos, à luz das obrigações morais e dos diferentes aspectos do caso. Então, o discernimento sobre como proceder, nessa perspectiva do fim da vida, cabe ao médico com o seu paciente. Nesse relacionamento em que nós precisamos respeitar também o princípio de autonomia. Faz pouco, semana passada celebramos o sétimo dia do nosso decano lá no seminário, padre Oscar faleceu às vésperas de completar seus 88 anos. E ele, muito bem vivido e muito bem experimentado, dizia sempre para mim: padre Eduardo, eu já vivi bastante, se em algum momento eu precisar de um processo de internação e precisar desse processo de mecanização, de me entubar, não me entube. Ele dizia: não me entube. Eu já vivi, eu sei, eu não quero prolongar o meu processo de morrer. Consciência que ele tinha da vida dele. É suicídio assistido? Não. Não tem nada ver uma coisa com a outra. Pelo contrário, é a consciência da vida vivida. A gente tem um testemunho muito concreto disso, os senhores devem recordar do falecimento do Papa João Paulo II. Se recordam do evento, eu imagino, não é? O Papa João Paulo II sofria de uma enfermidade que era o mal de Parkinson. Chegou um determinado momento em que não era possível mais fazer nada para reverter o processo da doença, e mesmo assim eles queriam usar tubos, colocar respiração mecânica, com o intuito de lhe dar uma sobrevida. O Papa olhou para eles e disse: me deixem ir para a casa do Pai. Foi a fala dele. Porque não havia para ele previsão de reverter sua condição de saúde. Era uma sobrevida que na verdade seria um prolongamento do processo de morrer e não uma terapia que pudesse justificar aquele tipo de conduta naquela situação. Então, é importante que se tenha algumas referências em relação a esse uso proporcionado dos meios terapêuticos. É dever de cada um cuidar da sua saúde ou fazer-se curar. Aqueles que têm os cuidados do doente devem fazê-lo conscienciosamente e administrar-lhes os remédios que lhe julgarem necessários ou
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úteis. Mas será preciso em todas as circunstâncias recorrer à todos os meios possíveis? Até agora os moralistas respondiam que nunca se deveria ser obrigado a usar meios extraordinários. Essa resposta, que continua a ser válida em princípio, pode talvez parecer hoje menos clara: o que são os meios extraordinários e o que são essas condições? Seja pela imprecisão do termo, meios extraordinários, seja pela rápida evolução terapêutica, porque hoje se pode dar uma sobrevida muito grande a uma pessoa que sozinha não conseguiria se manter. Por isso há quem prefira falar dos meios proporcionados e não proporcionados. De qualquer forma, deve-se colocar os meios terapêuticos a usar, os riscos, o custo e as possibilidades de aplicação, em confronto com o resultado que se pode esperar, atendendo ao estado do doente e às suas forças físicas e morais. O que se pede é fazer um certo raciocínio a respeito das possibilidades. Será que essa terapia vai realmente ser eficiente, vai ser viável, vai surtir um resultado em que realmente valha a pena investir nesse processo? Ou vamos simplesmente fazer com que o paciente aumente a sua condição de sofrimento? Então, é importante levar em consideração também aquilo que é e que são as forças físicas e morais do próprio paciente. Para facilitar a aplicação dos princípios gerais podemos dar então os seguintes esclarecimentos precisos. Então, algumas coisas que podem servir de norte em relação a esse juízo ético. Primeiro, se não há outros remédios, é lícito, com o acordo do doente, recorrer aos meios que dispõe a medicina mais avançada, mesmo que eles estejam ainda em fase experimental e sua aplicação não seja isenta de alguns riscos. Aceitando-os, o doente poderá dar também prova de generosidade e serviço à humanidade. É possível pensar nas terapias experimentais desde que tenham finalizado todas as possibilidades ordinárias do processo e do cuidado terapêutico, se pode avançar naquilo que a terapia experimental, desde que o paciente seja devidamente informado sobre as possibilidades que existem em relação a isso. É também permitido interromper a aplicação de tais meios quando os resultados não correspondem às esperanças neles depositadas, mas para tal decisão ter-se-á em conta não só o justo desejo do doente e da família, como também o parecer dos médicos competentes, ou seja, dedicados àquela realidade e àquelas circunstâncias. São esses, na realidade, que estão em melhores condições do que ninguém para poderem julgar se os instrumentos e o investimento de pessoal, além das técnicas postas em ação, impõem ao paciente sofrimentos ou contrariedades desproporcionais aos benefícios que deles pode receber. Pensando sempre no princípio de um efeito colateral, o que que seria esse princípio? É uma ação que tem dois efeitos diferentes, um efeito bom e um efeito ruim e temos que pensar sempre quando estamos diante de uma situação dessa. Primeiro precisamos querer o bem do paciente. Depois o bem querido precisa ser
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proporcionalmente maior do que o mal sofrido. Terceiro, o mal não pode ser meio para um bem, então na minha ação não pode haver uma dificuldade ética nesse sentido. E cuidar justamente para que isso possa ser devidamente tido em conta. É sempre lícito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar. Não se pode, portanto, impor a ninguém a obrigação de recorrer a uma técnica que embora já em uso ainda não está isenta de perigos ou é demais onerosa. Então ninguém precisa se submeter a nada além daquilo que a terapia normal. Recusá-la, recusar esses meios não equivale a um suicídio, significa antes a aceitação da condição humana, preocupação de evitar pôr em ação um dispositivo médico desproporcionado com os resultados que se podem esperar. Enfim, vontade de não impor obrigações demasiadamente pesadas à família ou à coletividade. Então, o indivíduo pode rejeitar um tratamento nessa perspectiva. Na eminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito tomar-se a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso o médico não tem motivos para se angustiar como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo. Se existe no caso da pessoa a recusa de um tratamento terapêutico mais amplo, o médico também não deve se angustiar com isso, entendendo justamente que deve assisti-lo da melhor maneira possível nesse processo de morrer. Falamos hoje em eutanásia (“eu” é bom no grego, “tanatos” é morte, eutanásia é a boa morte), distanásia, que é o prolongamento do processo de morrer, e por conta das possibilidades técnicas que temos hoje, precisamos falar também da ortotanásia, o jeito certo de morrer. Afinal, também temos que ter cuidado em relação a não fazer uso do que poderia prolongar o sofrimento do paciente. Concluo com uma ideia que tirei dos Camilianos, a ideia de dar assistência espiritual a quem está morrendo, expulsando tudo aquilo que é mal do entorno do moribundo, de acompanhá-lo nessa perspectiva do último momento dele para o encontro com Deus. Aqueles que exercem profissões destinadas a cuidar da saúde pública, não hão de negligenciar a colocação de toda a sua competência a serviço dos doentes, dos moribundos. Mas lembrem-se de lhes prestar também o conforto muito mais necessário de uma bondade imensa e de uma ardente caridade. Um tal serviço aos homens é também um serviço prestado ao Cristo Senhor, que disse: o que fizeste a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizeste. Dentro de uma lógica cristã, o médico que vai diante do paciente pode ver no paciente o Cristo que sofre, e amar o Cristo também na espiritualidade dele cuidando daquele moribundo. Lembrar-se sempre a importância e a necessidade da humanização desses processos. Se alguns anos atrás as pessoas podiam morrer nas suas casas,
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acompanhados dos seus filhos, das suas famílias, assistido, podendo dizer as suas últimas palavras (e a morte não era uma realidade estranha nem sequer às próprias crianças), hoje escondemos o processo de morrer nas UTIs dos nossos hospitais. E muitas vezes essas pessoas estão ali sozinhas, desamparadas, até porque não podem ter o acompanhamento ostensivo das suas famílias, e se veem ali agonizantes e muitas vezes numa solidão profunda. Como é importante organizar também para que o nosso processo de morrer possa ser mais humanizado, mais correspondente à nossa dignidade de pessoa e mais dentro também daquilo que é a nossa cultura e nossa experiência social. Hoje parece que temos que esconder o doente, temos muitas vezes que ocultar aquilo que é o sofrimento e aquilo que é a dor, e talvez por isso não estamos mais sabendo lidar com ela, a morte. De modo que, ao fazer essa apresentação de alguns critérios para serem levados em conta na assistência aos nossos moribundos, possamos ser esses que estejam próximos desses pacientes, preocupados não só naquilo que é a perspectiva ética, mas sobretudo de dar a esses que estão no seu processo de morrer a dignidade que eles merecem e a solidariedade que é própria de uma humanidade que partilha o mesmo destino. Muito obrigado. Visão Médica Dr. Celmo Celeno Porto: Quando parar? Continuar ou não com uma determinada proposta terapêutica não é fácil. Pode ser que em alguns casos seja tão óbvia aquela situação de irreversibilidade da doença que fica fácil tomar uma decisão, mas são centenas de situações diferentes. Eu não vejo nem possibilidade de fazer protocolos, diretrizes, guidelines para tomar essas posições. E quando ela é clara, se o paciente tem um tumor do pulmão, uma primeira possibilidade fracassou, mas ainda há possibilidade de uma segunda tentativa, devemos passar para essa segunda tentativa. Eu interrompi a primeira? Claro, sem problema. Vou interromper a segunda? Depende da resposta. Mas vai chegar um momento que não há mais alternativa, e aí a obstinação terapêutica de tentar continuar é um grave erro médico. Eu acho que é desumano quando um médico tem consciência de que está diante de uma situação de que tem que usar a medicina baseada em evidências, mas a medicina é também baseada em estatísticas, eu nunca esqueço de colocar essa palavra estatística depois de evidência, porque eu trabalho com estatística sem parar e estatística não é sinônimo de ciência. Estatística estuda probabilidades, e a ciência pertence a outro território.
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Então, quando tenho diante de mim um paciente que não tem possiblidade terapêutica, tenho obrigação de interromper aquela proposta. Eu preciso ter segurança com relação a tudo que fiz: com o diagnóstico comprovado e a utilização da melhor proposta terapêutica, cheguei à conclusão que não tenho mais possibilidade de preservar a vida do meu paciente. Não veria problemas em parar. Quantas e quantas vezes eu tive oportunidade de fazer isso? Muitas vezes. Isso tem que ser conversado com a família, com o paciente. É fácil? É dificílimo. É um sofrimento para o médico, eu sempre tive esse sofrimento, não nego isso, de ter que dizer para o paciente que do ponto de vista de cura eu não tenho mais possibilidades. Isso pode ser aplicado na insuficiência cardíaca. No início é facílimo compensá-lo, vai ficando cada vez mais difícil, e depois de cinco anos nós sabemos que a insuficiência cardíaca alcança um índice de mortalidade mais alto do que o câncer. Chega um momento que o paciente não tem mais “possibilidades curativas” da sua insuficiência cardíaca. Passamos então para um outro momento. E esse é mais comum, é aquele momento que eu tenho que decidir o que fazer, porque parar nunca. Eu acho que o médico não tem direito de parar de cuidar do paciente. É o momento de introduzir cuidados paliativos, que também é tratar. Cuidados paliativos fazem parte da medicina moderna, e cuidados paliativos devem ser usados até o último momento, então não há por que parar. A palavra “parar” para mim aqui ficou imprópria porque se restringe às possibilidades curativas e eu vou passar a tratar esse paciente com cuidados paliativos. E é sempre o médico. É sempre o médico. Não é o advogado, não é o religioso, às vezes a enfermeira, às vezes a enfermeira ocupa esse lugar, às vezes a psicóloga entra nesse papel, mas na maior parte das vezes é o médico, é obrigação dele. Faz parte dos nossos deveres sentar junto ao paciente e a família, isso é fundamental. Jamais excluir a família. Se nós incluirmos a família o nosso trabalho fica compartilhado, se não a incluirmos assumimos uma posição muito mais difícil perante o paciente. Porque ele está em sofrimento. Ele pode estar em qualquer uma daquelas fases que o padre citou, não, o rabino citou, pode estar com raiva, negando, ele pode estar em qualquer uma delas, se ele tiver na fase de aceitação da doença inevitável que vai leva-lo ao óbito, é muito fácil, mas se ele tiver na fase de negação não é fácil conviver com esse paciente. Ele está negando, ele está hostil, e ele fica hostil contra todos, e contra a medicina, e isso dificulta muito o nosso trabalho. Então, essa é uma abordagem inicial que eu acho que ela é fundamental para entender que é um trabalho dificílimo, mas nunca parar, é preciso mudar de estratégia. Eu mudo a estratégia de curativa para paliativa. Os cuidados paliativos hoje precisam ter um lugar de destaque em tudo, nos cursos de medicina, nos hospitais, na cabeça dos médicos, porque quase todos os pacientes precisam deles. É
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muito mais necessário o cuidado paliativo porque todos os pacientes, exceto talvez aqueles que morrem subitamente, precisam de cuidados paliativos. E eles nunca ele devem ser negados ao paciente. Uma outra questão que me parece o lado negro da medicina é usar a UTI para os pacientes terminais. Eu não concordo com isso de jeito nenhum. A UTI foi criada para os pacientes que tivessem possibilidade de reabilitação, de recuperação. Mas o que está acontecendo é que a UTI passou a ser usada para os médicos se livrarem daquela situação difícil. Muitas vezes eu já escutei isso de colega: “não tem mais jeito eu mando para a UTI.” Isso é completamente antiprofissional, o médico que faz isso, esse descarte do paciente para UTI porque lá é o anonimato, lá é o plantonista que chega agora, dá uma olhada e por mais competente que seja, a ligação, a relação do intensivista com o paciente é muito diferente daquela entre o médico que cuidou do paciente e a dele. Eu acho que a UTI ainda é uma situação que não me impressiona – nada daquela aparelhagem, daquelas traquitanas acendendo e apagando luzes. Eu acho que aquilo é até um atraso. Nós temos que passar para a UTI individualizada. Sabe qual é a comparação que eu faço? Na Revolução Francesa, vocês sabem que ela foi feita por jovens, entre os jovens tinham muito médicos, era uma turma que tinha de 25 a 30 anos, Robespierre, Danton, e tinha alguns médicos nessa turma. E sabe o que os médicos reivindicaram para colocar lá na Revolução Francesa? Cada paciente teria o direito de ter o seu próprio leito. Como assim? Porque naquela época colocava-se na mesma cama dois, três doentes. Fazia parte da cultura daquela época colocar na mesma cama dois ou três doentes. Nós estamos colocando no mesmo ambiente 10, 20 pacientes com estimulação totalmente errada. Escuro o tempo todo, gelado o ambiente, “bip” tocando. Na minha época de estudante, lá em Belo Horizonte, na enfermaria, que era uma enfermaria de 40 leitos, havia um quartinho ao lado que a gente chamava de antecâmara da morte. Nós estudantes tomamos a iniciativa na época de levar os pacientes para morrerem com mais tranquilidade naqueles quartinhos. E acho que as UTIs precisam sofrer mudança. E sabem por que não sofrem? Leiam o livro ‘Mortais’, de Atul Gawande (Being Mortal: Medicine and What Matters in the End), que diz o que é um paciente nos Estados Unidos de alta gravidade do ponto de vista do bionegócio: 10 mil dólares por dia. Então, a UTI está sendo usada como uma as maiores fontes de renda dos hospitais, e como um lugar de descarte dos pacientes que os médicos não querem mais olhar. Então, isso para mim não tem nada a ver com ética, isso é humanidade. Isso aí é a concepção que eu tenho do médico no seu lado humano. Ele não está tendo respeito ao paciente, ao sofrimento dele, ele não está sendo íntegro para exercer a profissão e muito menos ele não está tendo compaixão e empatia.
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Estas são as UTIs, onde estão morrendo a maior parte dos doentes. Eu tenho um testamento vital que já entreguei ao meu filho dizendo a ele: não façam isso comigo, não aceito morrer dentro da UTI, com tubo enfiado em tudo quanto é buraco, com agulha em todos os meus vasos. Isso é uma morte indigna, porque a maior parte daqueles pacientes já se sabe que não têm recuperação. Eu não entendo fazer hemodiálise em um paciente que está com insuficiência cardíaca, insuficiência renal, numa fase que eu sei que ele não tem chance de transplante. E eu vou fazer hemodiálise? Por que é que eu vou fazer diálise daquele paciente, hemo ou peritoneal, seja qual for? Não tem justificativa. Eu acho que é parte do bionegócio. É ali que o negócio é mais grosso, é ali que rola mais grana, e a UTI está sendo usada para isso. Então, quando eu fico um pouco exaltado nessa discussão é porque isso sempre foi, desde a minha época, do início da minha carreira médica e da minha carreira como professor, um ponto de permanente discussão nos ambientes aonde eu trabalhei. Nós temos que ter coragem de analisar criticamente o que é que nós estamos fazendo mal, o que nós estamos fazendo errado. Da mesma maneira que na Revolução Francesa, quando eles ganharam a revolução, cada paciente tinha uma cama. Em alguns poucos lugares as UTIs estão ficando “humanizadas” porque estão colocando uma cortina entre um paciente e outro. Mas humanizado para mim é morrer com um familiar perto, se possível em sua própria casa do. Estou querendo demais? Quero mais. Eu não quero pouco, eu não quero pouco para o fim da vida. Eu quero que a gente possa avançar com crítica severa, pública, da mesma maneira que, acabou de sair agora a 8ª edição do meu livro “Semiologia Médica”, eu escrevi isso lá claramente, e sei que felizmente milhares de estudantes vão ler. Não sei se eles vão adotar essas ideias, mas o papel, o meu papel é de provocar os estudantes, porque eu não acho que os médicos vão mudar. Infelizmente eu não acho que os médicos vão mudar a mentalidade. Eles vão continuar do mesmo jeito que estão aqui. A questão, eu vou eu abrir uma polêmica com o padre ali: ele abordou a questão do sofrimento, eu nunca tive dúvida de que ninguém quer sofrer. Nunca, um paciente me levou uma mensagem que dissesse que eu o deixasse sofrer. Não. Ninguém quer sofrimento. O sofrimento não é só dor, alucinação é um grande sofrimento, a insônia é um grande sofrimento, a dispneia é um grande sofrimento. Então, eu tenho que usar cuidados paliativos para aliviar o sofrimento. Eu acho que ninguém precisa sofrer para morrer. A morte não é acompanhada necessariamente de sofrimento. Isso sim, a medicina progrediu, eu posso aliviar alucinações? Posso. Eu assisti a minha mãe ter alucinações e eu vi como que é terrível. Talvez seja pior que a dor. E não tive dúvida em ajuda-la, ela morreu em casa, com a orientação de uma pessoa que sabia cuidar de uma pessoa na fase final e que quando ela começava a ter
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alucinações, fazia o antialucinatório. Estava com dispneia? Fazia morfina. Ah, mas e o risco de a morfina causar efeito secundário? Não me interessava. Eu desprezava o efeito secundário dela porque sabia que ela iria ser benéfica, eu precisava que ela fizesse efeito. Isso faz parte do meu ponto de vista de que o sofrimento não faz parte da morte, do caminho para a morte. E eu sei usar todos os recursos, mas entubar os pacientes no sentido de mantê-los vivos, aí sim, aí está errado. Colocar um marcapasso para fazer o coração bater sem parar, eu posso fazer isso anos seguidos, e isso já foi feito muitas vezes, paciente mantido artificialmente vivendo. É difícil de tomar essa decisão? Muito difícil. Mas faz parte das nossas obrigações profissionais. E essas obrigações profissionais não têm nada a ver com a ciência. Nessa hora a ciência não vale quase nada, o que vale nessas horas finais é a visão humana da nossa profissão. Nós é que temos entender que a vida tem terminalidade, que naquele momento aquele paciente já recebeu tudo que a “ciência” podia lhe dar, porque eu nunca achei que medicina fosse uma ciência, ela é apenas uma profissão, e portanto tenho que usar todos os recursos disponíveis para dar a ela toda a qualidade possível, inclusive as jurídicas. Adorei aquela fala do advogado porque naquela equação matemática, que eu e o professor Flávio Dantas (ele é médico e advogado) fizemos há 10 anos, 12 anos atrás, nós já pensávamos que aspectos jurídicos e aspectos legais também precisavam ser levados em conta quando tomávamos nossas decisões. Os aspectos econômicos, os aspectos financeiros, os aspectos jurídicos, tudo isso precisa ser levado em conta. Mas por que não os levamos em conta? Porque estamos aprisionados às ciências biológicas, e as ciências biológicas não dão essas respostas. Essas ciências são limitadas, não tem capacidade de nos dar essas respostas, que devem ser procuradas na religião, na sociologia, na antropologia, em outras ciências, sejam elas quais forem. Assim sendo, respondo da seguinte maneira à pergunta “quando parar de tratar?” Nunca. O que devo fazer é mudar meu enfoque para com o paciente, mas parar de tratar não, eu não posso fazer isso. Se eu parar de tratá-lo e mandá-lo para a UTI para me livrar dele eu estou fazendo a maior falcatrua que um médico pode fazer contra o seu paciente. Muito obrigado. Abordagem Psicológica Dr.ª Carla Fragomeni: Bom, ao comentar com os meus colegas que eu estaria aqui eles foram unânimes em dizer “não gostaria de estar na sua pele.” Porque realmente esse é um tema tão delicado, que toca a todos, nós todos nos conectamos pelo sofrimento, pela felicidade, todos nos conectamos nessa condição humana de ser.
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E eu pensei em começar contando uma situação que eu vivi em um dos cursos que eu fiz que me chocou profundamente, e foi onde eu mais aprendi sobre sofrimento em relação a tudo que eu estudei até hoje. Foi numa cena que eu presenciei em um curso e nem veio dos professores. Mas eu estava nesse curso, nos Estados Unidos, de Mindfulness, uma das etapas da formação, e uma senhora começou a falar. Sempre se abre a fala para as pessoas, e essa senhora começou a contar que ela estava no fim da vida, que tinha talvez alguns meses ainda de vida e que ela estava pretendendo estar lúcida diante desse processo, que ela estava ali se presenteando com aquele curso porque ela estava se preparando para essa passagem. Ela olhava para essa condição e a aceitava. Aceitar é diferente de se resignar. Se resignar é uma postura passiva, e aceitar é uma postura ativa. É completamente diferente, não é? Quando a gente vai se casar é perguntado: você aceita essa pessoa? Essa pessoa com todos os seus defeitos e todas as suas qualidades em todos os seus momentos, você aceita? Eu aceito. No momento em que eu aceito eu me coloco em movimento. Ainda que mudando de direção tantas vezes, como o professor falou, a questão da mudança, do tipo de cuidado, para o cuidado paliativo. Então resignar-se é diferente, ninguém pergunta? O padre não pergunta, você se resigna a essa pessoa? Não, você aceita. Então, eu pude testemunhar aquele momento daquela senhora, todos nós sentamos, respiramos junto com ela, estivemos ali oferecendo a nossa presença para esse momento dela onde ela estava plenamente consciente e lúcida do que estava acontecendo. Ela aceitou, ela se colocou em movimento. Foi assim, de uma beleza extrema ter podido estar ali naquele momento. E quando acabou a fala da senhora, em seguida falou uma moça, uma moça muito bonita inclusive, fazia lá o curso e a moça chorava copiosamente, descontroladamente, e ela dizia: ninguém entende o meu sofrimento, porque minhas coxas são grossas demais e ninguém entende o quanto eu sofro por causa disso. E aí todo mundo entrou em choque. Como aquela senhora, passando por aquela situação, onde ela encarava a própria finitude com consciência, ela não estava em sofrimento naquele momento. Ela aceitou e transcendeu naquele momento que poderia ser algo para a maioria de nós que nos levaria ao desespero. E aquela moça, com uma coisa que eu entendia como um sofrimento “menor”, uma questão da vaidade dela, um incômodo, uma imperfeição, talvez fosse tudo tão perfeito e algo que não era perfeito a deixava naquela situação de sofrimento extremo: ela estava em sofrimento extremo e a senhora não. E foi em seguida à fala da senhora. Naquele momento eu tive uma epifania acerca do sofrimento. Talvez nada justifique que entremos em desespero, talvez possamos melhorar nossa condição diante da perspectiva do sofrimento, nesse sentido precisamos conseguir nos fortalecer, nos aceitar, a aceitar a realidade dentro do que está acontecendo.
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Nós conversávamos, como o padre colocou, nós não queremos olhar para a morte, nós escondemos a morte, escondemos o sofrimento, escondemos a doença. A doença é do ente, o doente, é do ente, é intransferível, é o momento onde a pessoa se encontra ali sozinha, ela se encontra muitas vezes no desamparo e muitas vezes ainda vai morrer nessa condição do isolamento e da solidão. Então, é intransferível. Compreendi que dor e sofrimento são conceitos diferentes. A dor é algo objetivo, incluindo também as dores psicológicas e emocionais que também são dores. A dor é algo objetivo, o sofrimento é muitas vezes aquilo que fazemos dessas dores. O sofrimento, incluindo aí também o sofrimento do médico, que muitas vezes, como o doutor colocou, não tem nem condições emocionais de estar presente, e mesmo assim tem que estar. Existe também uma condição em que médicos e cuidadores podem adquirir, chama-se burnout empático. Estar com pessoas em extremo sofrimento, pode nos fazer entrar em ressonância empática, pode nos jogar em uma condição de esgotamento. E eu acredito que muitos médicos vivam essa realidade, onde entramos em ressonância com o sofrimento do outro, nos desesperamos, a família se desespera. E como lidar com o desespero? E como sair dessa condição da empatia? Qual o antídoto da empatia, a desconexão? Isso também não pode acontecer com o médico! Como o médico não vai ser empático? E também como ele vai se proteger? Então muitas vezes os médicos entram até em linguagens dissociativas, utilizando termos que sugerem um tipo de desconexão com aquilo que está acontecendo. O antídoto da empatia em excesso que leva a essa contaminação, a essa ressonância, seria a compaixão. Há uma diferença entre compaixão e empatia. Na compaixão eu percebo o sofrimento do outro, eu reconheço o sofrimento do outro porque eu conheço o meu próprio sofrimento e eu faço algo para aliviar o sofrimento do outro. Isso é compaixão. Diferente da ressonância empática pura. Então, no momento onde eu me movimento e eu posso fazer algo para aliviar, com a intenção de aliviar o sofrimento de alguém que eu trate, eu estou ali exercitando a compaixão e eu me sinto melhor novamente. Então, há essa distinção entre dor e sofrimento. Às vezes até em situações extremas há pessoas que não estão em sofrimento e há pessoas que estão em sofrimento, e nós vemos isso todos os dias, e nada está acontecendo. Já experimentamos isso, pessoas ricas, saudáveis, inteligentes, com boas conexões e relações, e muitas vezes em sofrimento profundo. Quem lida com o sofrimento psíquico consegue visualizar muito bem essa distinção. Às vezes não há nada de objetivo e o sofrimento é atroz. Em situação de desespero, quando entramos em desespero, e eu falo nós, seja o médico, seja a família, seja o doente, nós podemos entrar em desespero em alguns momentos, e isso forma um sequestro emocional. Quando a amígdala dispara, dispara todo o mecanismo do sistema nervoso autônomo simpático, nós entramos em luta ou
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fuga, essa é uma reação primitiva, vocês sabem muito melhor do que eu. E nisso nós temos reações. Essas reações não são conscientes. Nesse momento nós entramos em desespero, nós perdemos a nossa lucidez e a nossa consciência diante do que está acontecendo. Não há consciência dentro dessa condição de sequestro emocional, dentro da reatividade. Nesse momento eu vou reagir de acordo com o que for o piloto automático, que é a minha programação própria. Diante do sequestro emocional, do desespero, nós assumimos rotas cerebrais automáticas, e que na maioria das vezes não funcionam e não são bem ajustadas para aquela situação. Essa questão emocional diante do sofrimento na visão da psicologia tem uma importância muito grande. Somos programados para evitar o sofrimento e para buscar o prazer. Essa é a nossa programação. Às vezes é possível evitar o sofrimento e às vezes não. E às vezes evitamos quando não deveríamos evitar. Há três níveis de atuação diante do sofrimento, três possibilidades. E a minha fala aqui se dirige ao doente, se dirige ao médico e se dirige à família também, porque estão todos conectados numa mesma situação, cada um no seu papel, cada um nas suas dificuldades dentro dessa condição. Então, o primeiro nível diante do sofrimento é evitar, queremos evitar o sofrimento a qualquer custo, ninguém quer sofrer, como o doutor falou. Ninguém quer sofrer, ninguém quer ver ninguém sofrer. Nós não queremos. E quando não é possível? E quando não é possível? Há possibilidade também de nos programarmos para gerenciarmos o nosso foco diante do sofrimento. Há treinamentos mentais diante da dor, quem trabalha com parturientes sabe, tem aquela coisa, vamos respirar, respirar, e mudar o foco. Vai se gerenciando, vai se manobrando aquela dor, o que é diferente de negar, diferente de evitar ou se ausentar: é estar presente e mudar o foco dentro da medida do possível. Há pessoas que podem ter reações do tipo: ah, eu sei que eu vou morrer, então eu vou gastar todo o meu dinheiro, vou viver uma farra, vou... Não é? Isso seria uma negação, não é bem isso. Mudar o foco. Eu vou colocar o foco em algo que não está desconfortável, algo que não está doendo, exercitando a gratidão por aquilo que está bem, estando presente com as conexões dentro da medida do possível. E o terceiro? O terceiro nível diante do sofrimento é a aceitação, como aquela senhora que eu relatei. É onde ela estava. A aceitação do que é a verdade daquele momento se permitindo a transformação e a exploração do que é aquilo. Olhando para aquilo com uma curiosidade aberta. A sociedade não nos permite mais estar presente com a morte, com o que é a morte: as crianças são alijadas desse processo, não queremos ver, e lá se vão as pessoas para morrer na UTI. Realmente nós não convivemos mais com a realidade da morte, não temos funerais em casa, tudo isso é terceirizado, a cremação, tudo para que possamos evitar ao máximo aquela realidade. Mas há grandeza nessa aceitação.
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E dentro disso a entrada dos cuidados paliativos, a importância que isso tem. A doutora Ana Claudia Quintela tem um trabalho belíssimo em relação a isso, e fala bastante a possibilidade de estarmos presentes, de podermos ter consciência de que todos nós vamos passar por isso, o médico vai, o doente vai, a família vai, todo mundo vai chegar a esse momento, não é? A princípio não era algo muito natural ter consciência de que vamos morrer e quando. Isso é também uma das benesses da era tecnológica, onde nos é dado mais ou menos um tempo para se tomar essa consciência. Um excesso, por assim dizer, de informação, talvez fosse mais humano nós não termos essa programação e essa consciência. A consciência da própria morte já é algo que nos faz sofrer demais. Porém há essa possiblidade, aceitar, olhar para isso, estar presente, oferecer a nossa presença atenta, a nossa escuta empática, compassiva, a essa pessoa que está passando por aquele momento. Isso pode ajudar a aliviar um pouco o sofrimento. E fazendo tudo isso com consciência, não é, doutores? Porque quem está ali na linha de frente do sofrimento humano é o médico, e é ele que está tendo que tomar as decisões, é ele que está ali respondendo por tudo aquilo, é a ele que o doente se desespera e pede por socorro. Com muito respeito e com muita consciência, é assim que entendo ser o papel do médico nesses momento. Temos, portanto, três elementos da experiência humana, e um eixo do sofrimento. Temos esses três elementos, temos pensamentos, que são elementos mentais puros, lembrança, planejamento, divagações, julgamentos, ideias. Temos outros elemento da experiência humana, como as emoções: medo, culpa, raiva, nojo, orgulho, alegria, amor. E as sensações. Uma sensação é tudo aquilo que ocorre no corpo e que é sentido puramente por ele, como frio, calor, tremor, dor, prazer. Sensações. Esses elementos eles se interrelacionam o tempo inteiro na nossa experiência humana. O tempo inteiro. Existe um pensamento, que dá origem a uma emoção, que dá origem a uma sensação, e nós assim nos perdemos muitas vezes nas nossas experiências. Por exemplo, eu tenho uma dor, sensação, que leva a um pensamento, será que isso aqui é muito grave? Que leva a uma sensação de medo. O medo gera contração, que aumenta a dor, e o pensamento começa a ficar obsessivo em relação às conjecturas do que pode ser, se há estudos sobre o que significa essa dor. E assim nós nos perdemos na nossa experiência e tendemos a ir nos desconectando do nosso próprio corpo e da presença no momento presente, da nossa presença no aqui e no agora. O eixo do sofrimento é esse eixo relacionado ao pensamento e emoção. Pensamentos levam a emoções, a emoção leva ao pensamento; quando as emoções são negativas nós ficamos muitas vezes aprisionados nesse eixo.
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A emoção é um evento mental porque parte de algo interpretativo, mas tem também um efeito no corpo, pois o configura para um determinado tipo de ação específica. Como, por exemplo, quando você está sob domínio de uma emoção, onde você a sente no seu corpo? A raiva é sentida na parte de cima, como se preparando para socar. E vejam a felicidade, na felicidade nós estamos presentes nas sensações do corpo. Na depressão nós estamos ausentes, o azul é onde não estamos sentindo, não há sensação. Não percebo. A depressão leva a uma desconexão do corpo, não sentimos o corpo, não é? E a tristeza também, mas na tristeza há sensação dos olhos no peito. Então a emoção se situa entre o pensamento, de um lado, e a sensação, na outra ponta. E por que eu estou falando sobre isso? Porque para sairmos desse eixo onde ficamos aprisionados, um gerando e alimentando o outro, o que fazer? Como nós nos autorregularmos, isso tudo lembrando a questão do desespero e do sofrimento, como manejarmos isso? Tanto o médico, o doente, ou a família, todos nós incluídos? Ir para o corpo, ir para a sensação. Sensações do corpo. Sentir os pés tocando o chão, sentir a respiração acontecendo momento a momento, sentir os batimentos cardíacos, perceber os sons, a audição, os sons, o cheiro. Quando nós vamos para a sensação nós voltamos para o momento presente, nós damos um tempo para que esse eixo se desmonte e que entremos em autorregulação, que o sistema nervoso parassimpático entre em ativação. No momento que o parassimpático entra em ativação nós saímos daquele sequestro emocional, onde nós estamos no piloto automático, e nós podemos tomar decisões mais claras, melhores, muitas vezes mais hábeis muitas vezes, dentro do que seja o sofrimento. Jamais vamos nos impor dor, isso não é humano, não é da nossa essência, nós queremos todos ser felizes e não sofrer. Porém, o treinamento dessa habilidade implica em certo desconforto com o qual precisamos ir lidando, não é? Praticar o fortalecimento da nossa estrutura emocional através da autoconsciência, através da presença, da consciência aberta diante de tudo que se apresenta, é algo fundamental nesse processo. Precisamos criar um espaço médico para esse momento, que puxa, assim eu imagino, o quanto deve ser difícil o momento de ter que tomar decisões rápidas, que às vezes já estão programadas, são orgânicas, e é preciso que seja assim, de forma reflexa. Nesse espaço, existe um espaço, eu coloquei essa frase de Viktor Frankl que eu gosto muito: “entre o estímulo e a resposta há um espaço, neste espaço está o nosso poder de escolher uma resposta, e nessa resposta está o nosso crescimento e a nossa liberdade”. Novamente lembrando essa questão da liberdade, a liberdade é o como nós lidamos com as imposições que a vida nos traz. A vida traz imposições, não há como não ser assim, todos nós vamos passar por toda essa condição da finitude, e enquanto sugestão pessoal dentro desse colóquio, eu gostaria de dizer que eu, por exemplo,
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como psicóloga, eu não conhecia o conceito de distanásia, por exemplo. Nós ouvimos falar muito em eutanásia, mas tirando por mim, talvez o público em geral não conheça o que é distanásia, e talvez fosse interessante trazer para esse público, esse conceito de distanásia. Porque é uma diferença muito grande, como o rabino colocou, o padre colocou, o doutor colocou. Então assim, há uma diferença muito grande com todo esse desenvolvimento tecnológico que nós passamos, em que a medicina foi adquirindo mais recursos, mais recursos e mais recursos. A imagem que me veio é do sapo na água quente, que a água vai esquentando progressivamente e ele não percebe, quando vê a água já está fervendo. A situação de hoje, onde se tem tantos recursos, é contudo, inóspita, pela ausência de compaixão. Porém, e sem querer de forma alguma parecer ingênua, eu nunca tinha ouvido esse termo, bionegócio antes desse colóquio, mas os interesses dos familiares também estão envolvidos. Quem vai decidir? A família. Então, a família vai decidir. Uma família quer que a pessoa morra logo para receber a herança, em outra família a pessoa é dependente da pensão daquele idoso e não quer que ele morra de modo nenhum, independentemente do tipo de custo. Outra família está genuinamente conectada com o que seria o melhor interesse da pessoa. Então é esse quem decide. Me parece que poderia ser melhor explorado e levado a público esse conceito da distanásia, porque é algo bem diferente da eutanásia, é algo já relacionado à humanidade, e que deva ser de alguma forma melhor trabalhado e trazido à consciência das pessoas. Minha sugestão. E o fortalecimento de nós mesmos enquanto indivíduos, que possamos olhar para essa condição de que vamos sim ter a nossa finitude, que possamos estar presentes com a pessoas naquele momento. O desenvolvimento e o leque que se abrem nesse momento dos cuidados paliativos é um trabalho belíssimo, não é? E a individualidade, a subjetividade, a singularidade de cada um nesse momento. Há pessoas que têm estrutura emocional para lidar com tudo isso e há pessoas que não tem estrutura emocional nenhuma para lidar. Como fazer? Então, há famílias que estão preparadas, há famílias que não estão. Nosso trabalho pessoal em relação a nos prepararmos para que não entrar em desespero nem no papel de doentes, nem no papel de familiares, nem no papel de médicos. O manejo do nosso próprio emocional. E termino lançando de volta a pergunta: quando parar? Porque, dentro dessa condição da singularidade, dos valores de cada um, não é, agora que me elucidei um pouco mais com a fala do doutor, não devemos parar nunca, não é? Também concordo com isso, é isso mesmo, então seguir com os cuidados paliativos, mas quando mudarmos nessa direção? Qual é esse momento? Na medicina me parece que isso é bastante claro, mas há que se levar em consideração a singularidade, os valores,
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da religião de cada um, o respeito, a dignidade nesse momento, esse momento do morrer, do morrer com dignidade. Me veio à mente uma cena do filme do Chico Xavier, onde ele está com o guia espiritual dele e o avião tem uma turbulência muito grave e ele entra em desespero, e o guia diz para ele: ‘depois de tudo que você sabe, vais entrar em desespero? Pelo menos morra com dignidade!’ Eu achei muito emblemático. Agradeço a vocês, agradeço a oportunidade dessa discussão, a honra de estar aqui lidando com esse tema, entrando em contato com isso tudo e abrindo essa discussão, porque não parece que não vai ter fim tão cedo. Muito obrigada a todos.
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III – Judicialização da Medicina ou da Vida
Para onde vamos? Dr. João Costa Neto: Bom dia a todos. Mais uma vez é uma honra estar aqui. Hoje eu gostaria de pontuar três grandes temas, que fazem parte do dia a dia de um operador de direito e envolvem justamente a judicialização da medicina de uma forma ou de outra. O primeiro tema é o fornecimento de medicamentos, o segundo é o fornecimento de tratamento domiciliar, do home care, sobretudo no contexto de planos de saúde, e o terceiro é a pejotização da medicina, que é um processo pelo qual a medicina tem passado e que ao meu ver tem forte ligação com decisões do Superior Tribunal de Justiça. Começarei pelo último, a pejotização. O Superior Tribunal de Justiça, ao longo dos dez últimos anos, tem feito uma reinterpretação da responsabilidade civil do médico, de tal forma que hoje é praticamente pacífico o hospital não ter como regra o dever de responder por aquilo que o médico faz nas suas dependências se não houver um vínculo empregatício entre eles. Isso tem gerado um efeito que já era antecipado, a pejotização da medicina e da atividade dos médicos. Em outras palavras, a fim de evitar responsabilidades, é cada vez mais comum que não haja um vínculo empregatício ou um vínculo mais estável entre médicos e hospitais, clínicas e assim por diante. Normalmente se faz uma pessoa jurídica e os lucros são partilhados, em que todos são sócios, justamente para evitar aquela responsabilização. Assim, a regra é que o hospital não responda por ela. Mas cada vez mais chegam casos ao Judiciário em que esse afastamento do vínculo é questionável, justamente porque se entende que há uma espécie de abuso de forma. Embora o STJ já tenha decidido, pacientes e advogados têm tentado cada vez mais quebrar esse entendimento falando que é um abuso de forma. Então a tendência é a pejotização, é não haver vínculos empregatícios. Tudo isso, claro, como todos aqui sabem, faz com que não haja 13º, férias, etc. Há uma outra forma de remuneração por meio eventualmente dessas sociedades que fazem contratos com os hospitais. Eu sei, por exemplo, que na área de anestesiologia isso é muito comum, mas em várias outras especialidades médicas também é. Tudo isso é para dizer que nos próximos tempos o debate que será travado será sobre os critérios que devem ser fixados para se entender qual é o médico que coopera de forma episódica e não faz sentido fazer com que o hospital responda por ele, já que há aqui um vínculo transitório, episódico, casuístico, não é um vínculo empregatício disfarçado de PJ. E aí, claro, o grande desafio é saber quando existe um abuso de forma, um abuso de direito, e quando não há.
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Fiz questão de colocar essa questão aqui porque é uma questão sem resposta, isso é judicializado em 1ª Instância, o juiz de 1ª Instância tem que lidar com isso cotidianamente e não tem uma resposta, os Tribunais Superiores não enfrentaram verdadeiramente essa matéria. Isso, mas de fato é algo que os advogados já conhecem, já é um argumento comum, é um argumento que tem sido enfrentado, e que nos próximos cinco anos, na pior das hipóteses, dentro de dez anos, deve haver uma posição mais ou menos uniformizada, como já há mais ou menos em Direito Tributário sobre o tema. Ainda que sempre haja um pouco de subjetividade do julgador ou algo assim. O segundo tema, o fornecimento de home care, de tratamento residencial em caso de planos de saúde. Os planos de saúde, e aqui verdadeiramente sem fazer nenhum juízo de valor, não têm colecionado muitas vitórias nos Tribunais Superiores. Pelo contrário, a jurisprudência é, segundo a visão dos planos, bastante dura quanto a isso. Existem súmulas, súmulas são entendimentos cristalizados do Tribunal. Por exemplo, prevendo fixação de danos morais quando o plano recusa um tratamento. É o que nós chamamos de dano moral, ele é automático, negou a cobertura e não era para ter negado, automaticamente já é dano moral, a pessoa não precisa provar nenhum aborrecimento, dano psicológico. O STJ entende que o dano psicológico, o abalo, o aborrecimento é intrínseco a você se você estiver querendo um tratamento, que é o seu direito, e que esse tratamento seja negado. Que isso não é um aborrecimento normal do cotidiano que as pessoas deviam suportar, isso configura dano moral. E por vezes o dano moral, claro, o dano moral será fixado, mas é sempre uma condenação considerável, é sempre um valoramento. Então, existem várias súmulas e entendimentos dúbios. Mas um caso que deixa muitas questões ainda em aberto, porque o STJ fixou parâmetros mais ou menos abertos, diz respeito ao tratamento residencial. Casos que chegam todo dia à Justiça envolvem justamente alguém que está no hospital e alega que teria muito mais qualidade de vida se pudesse permanecer em casa. E o plano de saúde nega, fala que não é obrigado a fazer isso, que não está na apólice do seguro ou não fala nada ou diz expressamente que o home care está excluído, e as pessoas entram na Justiça ou entendendo que aquele é um dever implícito do contrato quando o contrato silencia a respeito, ou sustentando que a cláusula que exclui o home care é abusiva, e que portanto ela viola direito do consumidor. Existe um Artigo, Artigo 51, se eu não me engano, do CDC, Código de Defesa do Consumidor, que anuncia algumas cláusulas abusivas. A expressão que o Código usa, por exemplo, é: tornar excessivamente onerosa a prestação do consumidor. São conceitos jurídicos indeterminados que são concretizados pelo intérprete caso a caso. Eventualmente já existem certas coisas que os Tribunais entendem como de fato abusivas e que já estão pacificadas. Mas quando os casos novos surgem há
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sempre uma discussão até que sejam sedimentados e ao longo do tempo há uma certa indeterminação. No caso do home care, o STJ já foi chamado a se manifestar sobre o assunto. Os argumentos dos planos de saúde, são basicamente os seguintes: a lei que trata dos planos de saúde exclui expressamente o home care, fala que o plano básico não inclui tratamento residencial, salvo para em casos de antineoplásicos. Só. Então, só nesse caso é que seriam condições mínimas que o plano não pode retirar. Mas para as pessoas, o tratamento antineoplásico não é a questão, isso normalmente nem é judicializado, são outros tratamentos diversos, todo tipo de coisas. Há pessoas que pedem uma cuidadora 24 horas por dia, com enfermagem. Há pessoas que pedem que se monte uma UTI dentro da casa delas. E essas questões chegam ao Judiciário, e casos geralmente trágicos, muito difíceis, em que vidas humanas estão em jogo, sobretudo em que há muito sofrimento. O argumento delas é como pode o CDC, que é lei, que é uma lei geral, que é de 91, se eu não me engano, prevalecer sobre uma lei de 97, e no direito à lei posterior revoga tacitamente a lei anterior, uma lei que é de 97 e que é específica para os planos de saúde? Então, o que os planos de saúde dizem é mais ou menos o seguinte: eles entendem que o CDC não viola esse tipo de coisa porque isso é absolutamente normal, eles entendem, faz parte da liberdade contratual dos envolvidos, não é abusiva, não torna onerosamente excessiva a vida do consumidor. Mas ainda que se entenda o contrário, nós somos um nicho específico do mercado; enquanto o CDC tem normas gerais para todo tipo de relação consumerista, então, por exemplo, uma compra de um carro numa concessionária, uma compra que nós, por exemplo, podemos fazer no supermercado, existe uma lei que trata só dos planos de saúde, e essa lei exclui expressamente o tratamento residencial. E aí, será que seria possível, com base numa lei anterior, de certa forma passar por cima daquela lei que regula esse nicho específico do mercado, entendendo que o tratamento, o home care pode sim em alguns casos ser devido? Basicamente essa é a visão, ou seja, se essa lei nunca foi declarada inconstitucional, se ela é vigente, se ela diz que home care só é algo implícito aos contratos de plano de saúde quando for para tratamento antineoplásico, então para todos os outros, se ou não está no contrato ou se está vedado no contrato, o plano de saúde não teria obrigação. Esses são os argumentos dos planos de saúde. Por outro lado, os consumidores alegam, com muita frequência, que se paguei um plano por 30 anos, 20 anos, é um absurdo que agora que estou num momento de dificuldade não tenha condições de receber um tratamento minimamente digno, um tratamento decente. Claro que eu estou falando a visão deles, se o tratamento é o minimamente digno isso é controvertido, por vezes também o plano também alega que deveriam ficar no hospital. Mas há uma sensação de muita vulnerabilidade por parte do segurado que vai no seguinte sentido: fui uma pessoa extremamente
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responsável, paguei o plano durante toda a minha vida, e no momento em que eu preciso de um suporte, na primeira oportunidade o plano bate à porta na minha cara. Em Direito existe uma teoria famosa chamada diálogo das fontes, em que, em tese, antes de se entender que uma lei é contraditória, que ela não é compatível com a outra, deve-se tentar harmonizá-las. E foi exatamente o que o STJ fez, o STJ entendeu que é sim possível harmonizar, que uma lei não é propriamente incompatível com a outra, que o plano de saúde prevê a regra, e a regra é, o home care está excluído. Mas existem alguns casos específicos (se for absolutamente necessário para o tratamento e se não houver uma prova da seguradora de que aquilo é totalmente desproporcional ao que era pago todo mês pelo consumidor), em que é sim possível exigir o home care em favor do segurado. Então, por exemplo, montar uma UTI na casa de uma pessoa dificilmente seria possível, porque nesses casos o STJ deixa uma válvula de escape, ele faz uma exceção, estabelece que quando houver um pedido excessivo, os gastos forem excessivos, não é devido o home care. E, é claro, excessivo é um tema abrangente, é um tema que tem um “quê” de subjetividade. Por isso que eu disse, o STJ de certa forma fixou parâmetros, mas afinal de contas, o que é excessivo? E aí os limites são testados a cada novo momento. E eventualmente um magistrado pode ter uma posição num determinado sentido e outro ter outra, o que é normal, e os Tribunais tentam uniformizar. Mas é realmente algo muito trágico e ao mesmo tempo desafiador, porque não é tão fácil estabelecer esses parâmetros. Até que ponto é possível estabelecer ao plano uma obrigação de montar uma equipe ou montar uma estrutura na casa de uma pessoa? Que tipo de doença, de patologia, justifica o sofrimento a mais ou a menos, como mensurar isso? A alegação é, no hospital eu até posso sobreviver, mas eu quero ter um pouco mais de qualidade de vida, eu quero permanecer com a minha família, quero ter um pouco mais de tranquilidade, tenho uma doença terminal, sofro de um mal extremamente grave, e tudo isso cai na mão do Judiciário, ou seja, cabe ao juiz no final das contas tomar essas decisões, que da mesma forma que são complexas para qualquer ser humano, são também complexas para os magistrados, que, diga-se de passagem, não têm conhecimentos médicos. É portanto importante, como ressaltei ontem, que os operadores do Direito como um todo, os advogados, os promotores de Justiça que eventualmente atuem nessas causas, se inteirem da medicina, porque faria com que tomassem uma decisão mais informada. Há um juiz, que é também um escritor muito conhecido no meio jurídico chamado Jorge Marmelstein, que é juiz federal do Tribunal Regional da 5ª Região, que publica vários artigos sobre a judicialização da saúde. Um deles, tem um título bastante interessante, We can’t always get what we want, não podemos ter sempre o que queremos. Ele explica como por vezes na cabeça do magistrado, na cabeça do
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juiz, em virtude daqueles famosos vieses cognitivos, daqueles defeitos de fábrica, digamos assim, que temos como seres humanos, por exemplo, o viés da confirmação. O ser humano em tese, não busca infirmar a sua crença, normalmente quer só confirmar, e quando lhe são apresentados vários fatos ele tende a rejeitar os que são contrários aos que ele já acreditava e ele então eleva o ônus da prova para mudar de opinião. Somos teimosos por natureza, digamos assim, e há várias pesquisas que demonstram isso, os senhores sabe bem disso. E elas mostram como esses vieses por vezes atuam na judicatura. É um texto muito interessante, por vezes fica difícil a posição de um julgador negar esse tipo de coisa. E ele mostra que o juiz, o jurista deve conhecer medicina, entender os dramas da medicina, desmistificar esse mito da invencibilidade, da infalibilidade dos médicos, pois os juristas, e eu tenho um artigo escrito sobre isso, são muito mais duros com os médicos na responsabilidade civil do que, por exemplo, com os advogados. Quando um advogado deixa de recorrer, é pacífico no STJ que em regra não cabe a teoria chamada “pena de uma chance,” que faria com que o advogado respondesse muito mais. A minha tese é de que isso só ocorre porque o juiz conhece o Direito muito bem e sabe que no Direito há tantas e tantas e tantas coisas indeterminadas. Mas quando um juiz julga um médico, não todos os juízes, claro, mas muitas vezes, ou mesmo os advogados quando ajuízam uma ação contra um médico, não há, digamos assim, uma compreensão da dificuldade, da complexidade que há na medicina. Quero dizer, não tenho conhecimento, sou leigo na área, mas até para se diagnosticar uma dor de garganta, uma amigdalite, uma faringite, se ela é bacteriana ou é viral, por exemplo, o médico na verdade dá muitas vezes um palpite, quer dizer, existem vários diagnósticos difíceis para algo absolutamente banal. Em outros casos, quantas decisões difíceis os médicos têm que tomar? Quer dizer, nesse aspecto o médico é que nem o advogado. Da mesma forma que o STJ entende que os advogados, por terem que tomar decisões difíceis, e por não serem obrigados a acertar sempre, relativiza e diminui sua responsabilidade civil em vários casos. O que sustentei nesse artigo é que por vezes os Tribunais não têm essa mesma compreensão para com os médicos, que também vivem numa área que não é exata, que também têm que tomar decisões extremamente rápidas, dispondo de pouquíssimas informações. Basicamente portanto, é esse o drama que se passa dentro de uma casa de Justiça no que se refere à judicialização da medicina, quero dizer, home care é para se dar ou não se dar. E embora haja parâmetros, em tese mais ou menos fixados, como eu disse, eles ainda dão margem, eles ainda precisam ser concretizados. Eu preciso olhar para o caso e verificar, isso aqui se enquadra ou não se enquadra no que o STJ diz. E não é algo automático, não é algo algorítmico, é sempre preciso que se faça uma interpretação e um juízo de valor.
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E por fim, quanto ao fornecimento de medicamentos, esse também é um tema absolutamente do dia a dia, é uma hipótese comum de judicialização, e há aqui basicamente dois grandes problemas: o fornecimento de medicamentos pelo Estado e o fornecimento de medicamento pelos planos de saúde. Os Tribunais fazem uma diferença, o que se exige do Estado é uma coisa, o que se exige do plano de saúde é outra. Um exemplo clássico, pacífico, descritivo e sem juízo de valor, envolve o fornecimento de medicamentos off label para uso. Então, há um determinado medicamento, como todos sabem, para uma determinada finalidade, mas há um burburinho, a pesquisa ainda não foi comprovada, a ANVISA não a aceitou ainda, ele serve para a doença X, mas poderia servir também para, por exemplo, combater a doença Y. Então as pessoas entram na Justiça com muita frequência, laboratórios contratam advogados, etc., há uma máquina, digamos assim, que move-se com o propósito de obter remédios de alto custo, etc. E a prescrição off label para o plano de saúde é admitida, diz o STJ, mas não para o Estado. É curioso isso, para o plano de saúde o STJ pacificou: se o médico disser que aquele remédio cura aquela doença, é possível que o Poder Judiciário obrigue o plano de saúde a fornecer o medicamento, desde que ele seja implícito ao tratamento. Então, por exemplo, o paciente está na UTI e precisa daquele medicamento, mas ele precisa ser importado. O plano diz: não, isso não está coberto, está expresso na apólice de seguro que eu só pago o remédio quando for absolutamente essencial para o tratamento para o qual ele está internado, e mesmo assim desde que seja algo chancelado pela ANVISA. Não basta ser prescrito, tem que haver provas científicas de aquele remédio realmente vai resolver aquele problema. No final, os planos de saúde têm pago. Quero dizer, os Tribunais têm entendido que aqui existe uma relação contratual, de novo com base no Código de Defesa do Consumidor. O STJ entende que existe uma cláusula, também ampla e determinada no CDC, estabelecendo mais ou menos o seguinte: quando algo é intrínseco ao contrato eu não posso tirar meu corpo fora no meio da execução contratual. O STJ entende basicamente que como o contrato de seguro é um contrato do qual eu preciso num momento de dificuldade, se ficar provado que aquele medicamento off label é necessário no momento de dificuldade, o plano tem que fornecer. O STJ entende que há aqui um dever de boa-fé objetiva, eu tenho que respeitar os interesses do segurado, se ele precisar do remédio o plano é obrigado a fornecer aquele medicamento. Não preciso dizer como isso é oneroso para uma seguradora, para um plano de saúde – o remédio pode custar fortunas e, claro, as seguradoras adoram afirmar que é por isso que os planos de saúde são tão caros no Brasil. Porque, de novo, a partir de uma análise econômica do Direito, alguém vai pagar essa conta e como esse segurado já pagou o prêmio dele (prêmio é o que se paga todo mês por um seguro) a seguradora
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vai diluir os custos, cobrando abusivamente, por exemplo, dos idosos ou de quem não utiliza o plano, e assim por diante. Os planos sempre dizem que a judicialização no fundo é prejudicial ao consumidor, porque o Judiciário resolveria casos pontuais, mas ao final será o próprio consumidor que pagará aquela conta. E eu pago a conta dos outros, eu não pago a minha. Porque o STJ incluiria, essa é a visão dos planos, não estou fazendo nenhum juízo de valor, por exemplo, coberturas que não estão no contrato. Os planos adoram citar o seguinte exemplo: imaginem que eu tenha um contrato para furto de carro, e se sou roubado, posso entrar na Justiça para pedir que me devolvam o meu carro no roubo? Ora, eu pagava um valor de seguro, um prêmio, baseado no risco X, se fosse o risco furto e roubo, provavelmente o prêmio seria aumentado, se for roubo, furto, incêndio, danificação e mais não sei o que, seria outro preço. E quando, por exemplo, eu tenho expressamente que aquilo não está coberto, aquele sinistro, aquele fato ruim não está coberto e vem o Judiciário e embola, os planos dizem que isso faz com que haja um efeito cascata em todos. Esse é o argumento deles. Por outro lado os consumidores dizem que não, que isso não faz o menor sentido porque pagaram a vida toda, ficaram 20, 30 anos pagando seguro, e agora quando precisam, não podem contar com ele num momento de dificuldade? Querem dizer, deram dinheiro de todas as formas para esse plano, se fizerem as contas do que foi pago, essa será muito menor do que aquilo que estão precisando, e pagam seguro justamente para isso. Basicamente, são esses os dois lados. Está claro que plano é obrigado a fornecer todo tipo de medicamento? Não, pelo contrário, em regra não é. A lei fala claramente, mas o STJ passa por cima. Mas toda vez que o remédio for intrínseco ao tratamento, se o tratamento está coberto pelo plano, o STJ diz que o medicamento também estará. Então não é normal um plano ter que pagar medicamento, mas isso passou a ser mais normal com o passar do tempo, porque agora o argumento é sempre o seguinte: não, o remédio é essencial para o tratamento, está embutido no tratamento, ele precisa do medicamento. Não adianta tratar sem o medicamento. Como vou tratar sem o remédio? É a mesma coisa que não tratar. Então, se está no seguro que é para tratar, está embutido que o medicamento entra nessa história, porque do contrário não há tratamento apto a salvar essa pessoa. Isso é a discussão a respeito do fornecimento de remédio quanto aos planos de saúde. E, por fim, há uma discussão, essa também muito grande, objeto de inúmeros julgados (o STF vai no fundo dar a palavra final, mas já não julga há bastante tempo, por enquanto os Tribunais aplicam a posição do STJ), que diz respeito ao fornecimento de medicamento pelo Estado. O Estado não é obrigado a oferecer nada off label, segundo o STJ. Existem julgados em sentido oposto, mas são isolados. O precedente vinculante, que é um recurso especial repetitivo que todo magistrado no Brasil é obrigado a cumprir, diz que não. O plano de saúde é obrigado, mas o Estado
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não. E, claro, nós sabemos que o Brasil é um país diferente quanto ao resto do mundo, sendo inclusive criticado por vários autores internacionais, entre eles um professor de Cambridge chamado Jeff King, que escreveu um livro sobre a ‘Adjudicação de Direitos Sociais’ discutindo até que ponto o Estado pode forçar adjudicar, decidir sobre, outorgar proteção ao cidadão, para concretizar um direito social. Por exemplo, um juiz pode determinar a matrícula de uma criança numa creche? O Supremo diz que sim, isso é uma coisa cotidiana, muito comum. Um magistrado, o Poder Judiciário pode, por exemplo, obrigar o Estado a fazer casa para as pessoas? Esse já é mais difícil, claro. Na África do Sul, por exemplo, que também tem uma constituição protetiva como a nossa, com um catálogo extenso de direitos sociais, a Corte entendeu que sim, mas desde que fique manifestada a irrazoabilidade da atuação estatal e desde que seja por atuação coletiva. Qual que é o problema, por exemplo, de dar creche para uma pessoa segundo quem critica essa atuação do Judiciário? É que no final a pessoa que entra na Justiça fura a fila. Porque as vagas são limitadas, então, se não botaram mais ninguém na história é porque não há mais vagas. Por exemplo, nós temos uma fila com 300 crianças, a que está em 10º na lista aparece e sua mãe argumenta que se todo mundo tem direito à creche, ela vai ajuizar uma ação pedindo a creche para hoje. Essa mãe precisa trabalhar, está na Constituição que ela tem direito à creche se a criança tiver até 3 anos, e ela exige e quer a creche. E então, nesse caso, ela fura a fila, digamos assim. Quem faz isso diz: não, eu não estou furando a fila, era só todo mundo ajuizar também. O problema é que se os 300 ajuizassem, possivelmente não haveria creche. Então, de certa forma, isso só tem dado certo porque não são todos que ajuízam. Por mais que as pessoas tenham facilidade de encontrar advogado, por mais que haja uma Defensoria Pública em quase todas as capitais do Brasil, defensorias que podem ajuizar uma ação de graça até, esse tipo de judicialização ainda não é tão escancarada. Quer dizer, são casos pontuais. E essas pessoas normalmente ganham, porque o Supremo Tribunal Federal já falou que até 3 anos você tem que dar e pronto. Há uma discussão se até 5, mas até 3 é certeza, e quem entra em geral obtém vitória, porque é um direito da Constituição, o Supremo diz: se está na Constituição o Estado tem que se virar e cumprir. E o problema no Brasil, um dos problemas apontados pelo Jorge Marmelstein, aquele juiz federal, que escreve muito sobre isso, é que as demandas são todas individuais. O Ministério Público tem como agilizar uma ação civil pública, e às vezes ajuíza, associações poderiam fazê-lo, mas o Judiciário aceita ações individuais. Na África do Sul, por exemplo, o Judiciário fechou e disse: não, só demandas coletivas, porque do contrário como eu vou mandar construir a casa do José, mas não do João? E há decisões da Corte Constitucional Sul-Africana determinando que o Estado construa casas, dede que que sejam programas habitacionais inteiros. Há um
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caso, por exemplo, em que as pessoas estavam sem casa, moravam em uma favela, algo como há dez anos, e o Estado prometia, prometia, prometia que ia construir, na verdade o Estado as retirou de um lugar e as mandou para outro sob a promessa dizendo que “olha, vou tirar vocês desse local porque é inadequado, vou ter que fazer uma obra, mas vou dar um local adequado para vocês.” Passa um ano, passam-se dois, três, quatro, cinco, dez anos, e nada é feito. A Corte determinou então que fossem construídas casas para todos. O Brasil é criticado pelo Jeff King não porque tenta efetivar direitos sociais, isso faz parte, digamos, de uma nova geração de constitucionalismo em boa parte do mundo. A Alemanha, por exemplo, a Lei Fundamental Alemã de 1949, praticamente não tem nenhum direito social, mas o Tribunal Constitucional derivou de cláusulas da Lei Fundamental e pouco a pouco foi efetivando um direito ou outro, mas de forma sempre coletiva, quer dizer, sem tentar resolver pontualmente. Nos Estados Unidos é impensável que um juiz bloqueie uma penhora direto na conta para fornecimento de medicamento. Mas isso faz parte do nosso dia a dia, porque a ordem judicial é dada e muitas vezes o Estado alega que não tem como cumprir, e o juiz determina a penhora na conta do Estado. Quer dizer, onde o Estado tiver dinheiro essa vai ser bloqueada. E é por isso que existem críticas ao Brasil. O fornecimento de medicamentos pelo Estado, só para resumir, depende de três requisitos já fixados pelo STJ e que o Supremo um dia pode mudar, mas a posição que está valendo por enquanto é essa. É preciso que haja registro na ANVISA e em tese, todos os Tribunais brasileiros estão proibidos pelo STJ de darem liminares fornecendo o medicamento sem esse registro. Mas nós sabemos que o registro demora, e é por isso que eventualmente o juiz abre exceções e determina que nesse ou naquele caso o remédio já é registrado na FDA, nos Estados Unidos, que seria a respectiva agência reguladora análoga à ANVISA. Se ele já é registrado na FDA, já passou por todo tipo de estudo. E a pessoa argumenta assim: “olha, a ANVISA está demorando X anos, ela descumpriu todos os prazos para registrar o medicamento e ele já é aceito nos Estados Unidos e em toda União Europeia, eu quero o remédio.” Nesse caso, mesmo não havendo registro por aqui, o pedido é eventualmente deferido, uma vez que o remédio serve para aquela utilidade, a agência reguladora de todo mundo o aceita e só o Brasil ainda não admitiu o seu registro. Mas a regra é que sem registro na ANVISA não se pode exigir medicamento do Estado. Além disso, a parte precisa provar que ela não tem dinheiro para comprar e isso gera uma discussão tremenda, porque na Constituição, existe, por exemplo, a Previdência. Como é que eu recebo da Previdência? Eu pago e depois recebo. Não é necessariamente eu pago a minha aposentadoria, às vezes eu pago pouco, mas logo fico inválido, vou receber até morrer. Às vezes eu paguei pouquinho, mas vou receber muito. Tem gente que paga a vida toda, se não deixar descendente dependente, não
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vai nem ver pensão, então morre, não se aposenta e não deixa pensão para o descendente. Às vezes paga-se a vida toda e não se recebe nada. É por isso que querem mudar a Previdência para um regime de capitalização, como se fosse um banco como o Bradesco, eu pago o meu e tiro o meu daquela conta. Na prática não é assim que funciona a Previdência brasileira, eu pago para que quem está hoje aposentado receba, e quando eu estiver idoso, quem estiver trabalhando é quem vai trabalhar para pagar a minha aposentadoria. Não fica armazenado numa conta para depois eu tirar. Esse seria um modelo de capitalização, que é o que funciona, por exemplo, num seguro como o Bradesco. A aposentadoria privada é assim, mas a Previdência Social não, ela é regida pelo princípio da solidariedade, todo mundo se ajuda, eu estou pagando a aposentadoria de outros, outros vão pagar a minha, e assim sucessivamente. Por isso que querem mudar, porque no final, pelo menos o que se argumenta, é que isso gera muita indefinição, muita injustiça. Não sei se esse é o caso, mas essa é uma discussão a parte. Mas o que eu quero dizer é que na Previdência é assim, eu pago para receber, ainda que solidariamente. Na saúde, a Constituição é expressa, todos têm direito, se um empresário extremamente rico for agora para a porta de um Hospital de Base e pedir para ser atendido jamais o Hospital de Base poderá dizer que ele não pode ser atendido, porque é universal, esse inclusive é um dos princípios regentes do SUS. Pois bem, mas as pessoas com dinheiro ajuizavam ações e ganhavam medicamentos que valiam fortunas, e algumas dessas pessoas tinham dinheiro para pagar os remédios. Então o SJT fez uma exceção ao que está na Constituição, e isso tem sido muito criticado, mas o STJ talvez tenha tido bastante bom senso, porque realmente o Estado dá de graça para quem pode pagar, sendo o orçamento limitado. Talvez não seja a melhor opção, mas o STJ determinou: “tem que ter registro na ANVISA, tem que ter o pedido do médico, tem que estar provado que precisa mesmo, e além disso a pessoa tem que provar que não pode pagar. O STJ criou, e é por isso que esse, entre tantos outros motivos é um tema polêmico, uma vez que o Supremo sempre disse que se uma pessoa numa Ferrari parar na porta do Hospital de Base e pedir atendimento ela tem que ser atendida, já que o hospital é público. Mas não para medicamentos, diz o STJ. Em tese, da mesma forma que eu não posso negar atendimento no Hospital de Base para quem pode pagar um hospital privado, eu não poderia negar o fornecimento de medicamento. Mas o STJ entendeu que precisamos ter um pouco mais de senso e razoabilidade. Por exemplo, por que vou pagar um remédio que custa 10 mil reais por mês para uma pessoa se ela é rica, se ela é, por exemplo, um empresário que declara só no imposto de renda, receber 300 mil reais por mês? Isso acontece, mais do que a gente pensa. Esses casos chegam à Justiça, pessoas que claramente pelo imposto de renda têm plenas condições de pagar o remédio. Claro, elas vão ter um ônus, elas vão gastar
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um quarto, um sexto da renda delas, mas isso faz parte, é um ônus que todos nós temos. Mas elas pedem na Justiça. E o STF fixou agora de forma vinculante que isso não é mais admitido, a pessoa só pode ter medicamento pleiteado no Estado se houver registro na ANVISA, salvo casos excepcionalíssimos como os que eu mencionei, se ela não puder pagar e se ficar claro que aquele medicamento é absolutamente imprescindível para o tratamento. Muito obrigado, era isso que eu queria colocar. Colóquio: Tópicos de Bioética Dr. Paulo Nasser A ciência é a nossa vida. Que palavras bonitas, e como isso é importante para todos nós. E como é bom ser médico, como é bom exercer uma vida na plenitude, porque o ato médico é um grito de bondade, de doação, de entrega, de verdade, e a ciência é a busca da verdade. Vocês sabem bem a dimensão dessas palavras e como isso é importante para nós. E desde do Eclesiástico, que dizia que “seu trabalho não terminará até que a paz divina se estenda sobre a face da terra (Eclo 38:7-8),” estamos aqui, trabalhando de madrugada, de noite, numa uma vida de dedicação plena. E é muito difícil fazer isso num país tão atribulado, com tantos problemas institucionais, jurídicos, econômicos, culturais, num mundo em constante mudança. E para temperar esse caldeirão, a figura do negócio, que nos perverte, nos agride, nos avilta e nos traz vieses terríveis, entrou na relação médico-paciente, seja ou não através de convênios. O ato médico implica numa entrega, numa entrega por parte do paciente. E já dizia Genival Veloso, o paciente se entrega e não existe entrega sem confiança, não existe confiança sem confidência. E essa relação tem sido adulterada de modo significativo. Assistimos um crescimento exponencial da judicialização, que tem tomado proporções assustadores. E para exemplificar isso, vou por um caso problema, que eu queria que cada um da mesa desse a sua visão. Seria a visão médica, a visão ética, a visão psicológica, a visão jurídica, e a visão religiosa. Como encará-las, já que nos deparamos com esses problemas todos os dias, das formas mais diversas. Então, vamos ao caso, todos nós já o tivemos na prática. Temos uma paciente, aos 95 anos, com uma demência mista terminal, já em estado vegetativo há 15 anos, pesando 35 quilos, em home care, atendimento domiciliar, uma gastrostomia, em estado de sarcopenia avançada, essa paciente entra em falência respiratória. Bom, eu como médico chamo um filho, exponho a situação, um caso praticamente terminal, e no meu entender, eu tenho que ter a humildade de aceitar um ciclo da vida se cumprindo, não vou fazer malabarismos, panaceias para prolongar um dia, dois. Eu tenho que ter a humildade de aceitar. Compartilho isso com um filho e essa visão é aceita por ele.
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Meia hora depois um segundo filho me acusa de omissão. Eu estaria sendo omisso porque deveria levá-la a uma UTI, entubá-la, fazer o que for necessário para prolongar o que, por quanto tempo? Então, minha pergunta é para todos, mas infelizmente o doutor João teve uma urgência e precisou sair, embora a visão jurídica aqui fosse fundamental. Eu perguntaria se ele me mandaria prender ou não. Eu não sei se fiz o certo, não sei se fiz o errado, até porque o que acho que não tem tanta importância, estou lá para ajudar, gosto de ajudar dentro da ética, da lei e da decência. Deixo para perguntar ao doutor João se ele me prenderia na próxima oportunidade. Pergunto então ao Pe. Peters, vou arder nas chamas do inferno? Sou um pecador? Como posso resolver esse problema? Padre Eduardo Vinícius de Lima Peters: Perguntas sobre o inferno são sempre complexas, não sabemos quem vai para lá e nem quem não vai. Mas no que diz respeito à questão de ser ou pecador, em relação a esse caso, ela é interessante porque a condição para que se peque é que se tenha a advertência e o consentimento. Ou seja, a advertência é que o nosso intelecto perceba que aquilo é errado, e que eu queira mesmo assim e faça mesmo assim. Então, as pessoas às vezes chegam para mim e falam assim: padre, eu errei. Aí conta o pecado. Eu falo: você não errou, você acertou. Quer dizer, acertou no sentido de fazer aquilo que você queria fazer. Porque o erro, geralmente a gente erra quando a gente pensa estar fazendo algo certo e resulta no errado. No caso do pecado não precisa ter advertência e consentimento, a advertência é saber se aquilo é certo ou não. Quando a gente fala da questão da nossa consciência, e eu acho que talvez esse seja o drama maior, que a gente se encontre em consciência diante das coisas. A nossa consciência, existem três regras para a gente trabalhar com a nossa consciência, a primeira é a obrigação de seguir a consciência, se a consciência diz faz, faça, se ela diz não faz, não faça. Depois, na dúvida não faça, porque eu preciso dirimir a dúvida antes de fazer. E a gente tem a obrigação moral de formar a nossa consciência para o bem. Então, quando a gente está diante de uma questão de consciência sobre o que deve fazer ou não deve fazer, a consciência deve ser a intérprete fiel daquilo que devemos fazer. A Gaudium et Spes, número 16, o Concílio Vaticano II, diz que a consciência é esse núcleo secretíssimo sacrário do homem onde Deus fala. Então, se a gente quer falar com Deus, primeiro lugar mais apropriado para procurar esse encontro é na nossa própria consciência. E em consciência, existe uma regra fundamental de que a gente deve fazer ao outro aquilo que a gente gostaria que fosse feito com outro, e não fazer com o outro aquilo que a gente não gostaria que fosse feito conosco.
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Estabelecida essa perspectiva de bem, quando nós estamos diante de uma situação como essa, de uma pessoa que já está aí sofrendo, já não está mais consciente, já não tem condições, nesse sentido, de subsistir por si mesma, está ligada aos aparelhos por questão de subsistência, não há porque prolongar o sofrimento dessa pessoa. Desde que esteja aí salvaguardada essa preocupação dos atendimentos mínimos que uma pessoa tem direito a receber, porque nós não podemos suprimir a vida da pessoa, mas nós podemos acompanhar esse processo da pessoa com dignidade, isso pode e até deve ser feito. Quanto à situação das pessoas interessadas, você que está olhando a sua mãe, imagino que ninguém que tenha um bom relacionamento com a mãe, olhando a mãe, queria qualquer tipo de mal à mãe, olhando as condições e as circunstâncias, procura fazer um raciocínio sobre aquilo que é melhor. Um filho, um neto que acompanha as circunstâncias e reconhece também essa necessidade a mesma coisa. E esse que se opõe dizendo: não, vamos manter... acho que é o tipo de expressão daquela pessoa que tem a dificuldade muitas vezes de lidar com o próprio processo de perda de uma pessoa querida, de uma pessoa próxima. E às vezes a gente tem essa situação, eu já encontrei várias pessoas que vieram conversar comigo sobre essas questões: padre, o que eu faço? Tem dois anos, tem três anos que a situação é essa. Então assim, se não há um meio de reversão, não há uma previsão de reversão desse estado, não há nenhuma perspectiva de melhora nesse sentido e a única coisa que nós estamos fazendo é justamente protelar esse processo de uma pessoa que está num estado vegetativo, há que fazer aquilo que é melhor também para a pessoa, não é, nessa perspectiva. Eu não vejo nenhum problema nesse sentido. Paulo Nasser: Doutora Carla, como administrar esses conflitos, esse drama psicológico, que muitas vezes vem camuflado, fantasiado, maquiados? Muitas vezes não estamos a par dos conflitos familiares, pessoais. Aí entra arrogância, maldade, dinheiro, invejas, cicatrizes, mágoas e etc. Como conduzir tudo isso? Carla Fragomeni: Eu entendo quanto o médico sofre em relação a essa questão da comunicação e das relações com o paciente, a relação com os familiares, como é difícil esse manejo. Dentro do que eu falei ontem, muitas vezes as pessoas entram em situações de sequestro emocional pelo sofrimento. Há também situações imponderáveis dentro disso tudo, que o médico não tem visibilidade, tem vieses essas situações que o
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médico não sabe, e é o médico que está ali na linha de frente tendo que tomar todas essas decisões. Agora, muitas vezes eu imagino que o médico precise lidar com as pessoas que entrem em desespero, e esse é um ponto também complicadíssimo. Como nós vimos ontem, a pessoa que entra no desespero entra em sequestro emocional e não raciocina mais, entra em piloto automático. Há técnicas que o médico pode se utilizar dentro da psicologia nesse manejo com a pessoa em desespero, há técnicas bastante efetivas e simples do como lidar quando se tem que dar uma notícia gravíssima, onde tem que se tomar algum tipo de decisão extrema. E hoje se fala muito em comunicação não violenta, a comunicação onde há passos, assim, que começa pela escuta, a escuta do outro, tantas vezes quando nós entramos em desespero nós não escutamos, não conseguimos escutar, entramos naquele vórtice do eixo do sofrimento, como nós vimos ontem, da retroalimentação de pensamentos e emoções e ficamos possuídos, a palavra é essa, possuídos por nós mesmos, pelo nosso próprio sofrimento e não enxergamos a situação como um todo. É muito complicado realmente lidar com isso. Há alguns passos que podem ser dados em situações como essa, essa é uma situação complicadíssima, do ter que lidar com esse filho, quando ele acordar dessa situação do desespero e entender o poder que ele tem. O que pode ajudar o médico num momento como esse, onde tem que se dar uma solução e o outro sai de si, perde a própria lucidez e entra em reatividade, entra no processo reativo? Dentro de um processo reativo temos duas grandes tendências: a agressividade e a passividade. Alguns de nós em situações extremas agredimos, atacamos, é o que houve com esse rapaz, e outros de nós podemos ter uma atitude de paralisia, congelamento, passividade, nos ausentando da situação e não conseguindo tomar providências. Existem esses extremos: a pessoa não está lúcida, não está ouvindo, não está ciente do que está acontecendo, está em reatividade. Isso é algo muito preocupante porque em grande parte das besteiras que fazemos, passando pelas coisas graves que cometemos, não estamos em estado de lucidez. O que o médico pode fazer não só numa situação extrema como essa, mas também no manejo do desespero humano, é ter talvez um pouco mais de consciência na questão da comunicação. Ainda que saiba que nem sempre há tempo para isso, muitas vezes pode se eliminar um stress tremendo. A primeira coisa é escutar. Escutar se for o caso, o paciente em desespero, ou escutar os argumentos e dizer que escutou. O escutar e dizer que escutou, repetir o que ouviu, ‘eu ouvi você dizer que você não quer que sua mãe se vá, eu ouvi você dizer que você não aceita que nós não tomemos providência’, e repetir todos os argumentos dele. Repetir. Quando a pessoa se sente escutada ela se acalma, ela pode sair da condição da reatividade muitas vezes, e pode então conseguir ampliar um pouco o repertório
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comportamental dela, escutar qual é a necessidade naquele momento. Para o segundo passo, é necessário um roteirinho mesmo de comunicação, já que o resultado que a comunicação não violenta traz é bastante interessante. O primeiro passo é a observação: qual é a situação? Segundo passo, o que é necessário nesse momento? Qual é a necessidade? Terceiro passo, quais são os sentimentos envolvidos? O que eu sinto enquanto médico, o que o outro está sentindo? E último, o pedido, elaborar um pedido claro. Entendo e tenho muita, muita compaixão dos médicos que enfrentam esse tipo de situação porque uma pessoa em desespero não está escutando, a pessoa não está lúcida, ela não está compreendendo. E a patologia que esse rapaz trouxe, atingindo o senhor de forma até desrespeitosa, é uma complicação. Porém o médico precisa estar habilitado para lidar – porque imagino que isso aconteça muito – com uma pessoa em desespero. O que fazer? Parece e é bastante complicado, mas do ponto de vista do que o senhor fez, dentro do aspecto da psicologia em relação à senhora, demonstrar compaixão me parece acertado. Porque seria a distanásia o que já estava acontecendo com a senhora, e a diferença é grande. Mais uma vez eu repito o que eu falei ontem em relação à importância de se levar ao público leigo o que é distanásia, porque nós só ouvimos falar em eutanásia. Distanásia é um conceito que não se ouve falar tanto assim e faz toda, toda a diferença para o público leigo conhecer essas diferenças. Muito obrigada. Dr. Paulo Nasser: O grande problema é que muitas vezes é bastante sutil essa fronteira entre eutanásia, ortotanásia, distanásia, e a forma como são interpretadas. Não digo as diferenças, mas a forma como são interpretadas. Mas pior do que a interpretação é o mau uso da interpretação, a narrativa conforme é conveniente. Tem uma citação no Direito que diz que quando os homens são bons as leis não são necessárias, quando os homens são maus as leis não são suficientes. O que quer dizer isso? Quando a narrativa é tendenciosa, perversa, cheia de vieses, fica complicado se modificar isso e esse parece ser o grande problema. Dr. Luiz Fernando Salinas: Bom dia a todos. Vou me limitar a fazer algumas considerações de natureza ética. Fiquei muito satisfeito em ouvir ontem o padre Eduardo e doutor Celmo, em relação a algumas colocações com as quais comungo plenamente. E se me permitem, fiz algumas anotações, mas garanto que não levo mais do que 15 minutos.
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O caso clínico apresentado para discussão refere-se a uma paciente em idade avançada, com um quadro de doença em fase terminal, levando-se em conta que encontra-se em estado vegetativo a longo prazo, com demência, desnutrição, pneumonia, insuficiência respiratória e cardíaca. Submetida a tratamento sob regime de home care, seu médico, discutindo com um dos filhos a situação clínica e o prognóstico da paciente, optou por não levá-la para uma UTI. Um segundo filho não aceita esta conduta, considerando ser fundamental aquele encaminhamento chegando a fazer ameaças ao médico de uma ação judicial por omissão e negligência se assim não procedesse. O questionamento que se faz diz respeito à conduta quanto à levar ou não levar a paciente para uma UTI. Inicialmente, trato da primeira questão, com o aval do primeiro filho. Aprendemos muito sobre tecnologia de ponta e pouco ou quase nada sobre o significado ético da vida e da morte. Despreparados para a questão, passamos a praticar uma medicina que subestima o conforto do enfermo com doença incurável em fase terminal, impondo-lhe longa e sofrida agonia. Deixamos de cuidar da pessoa doente e nos empenhamos em tratar a doença da pessoa, esquecendo que a nossa missão primordial deve ser a busca do bem estar físico e emocional do paciente. Com relação ainda a esses pacientes, o temor em face da possibilidade de responsabilização ética, civil e criminal pela morte tem conduzido alguns médicos à adoção de todos os recursos e procedimentos disponíveis, ainda que sabidamente inúteis e desnecessários. O Código de Ética Médica (CEM) em seu Capítulo 1º, que trata dos princípios fundamentais, discorre expressamente no inciso 22º que “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”. Este dispositivo fundamenta o Parágrafo Único do Artigo 41 do mesmo código, que estabelece: “no caso de doença incurável e terminal deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. Diante de um enfermo portador de doença em fase terminal, isto é, em que a doença não responde a nenhuma terapêutica conhecida e enquanto se tem um processo que conduz irreversivelmente à morte, a Organização Mundial de Saúde preconiza que sejam adotados os cuidados paliativos, enfatizando a eliminação ou diminuição de dor e de sofrimento, por meio de uma abordagem voltada para qualidade de vida tanto dos pacientes quanto dos seus familiares. Além dos dispositivos éticos referentes ao Código de Ética Médica citadas acima, o Conselho Federal de Medicina, em novembro de 2006, publicou a Resolução Nr. 1805/2006, que encontra-se em vigor, permitindo, repito, permitindo ao médico
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limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Acrescenta-se ainda na Resolução que o médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. Que a decisão médica deve ser fundamentada e registrada no prontuário, sendo ainda assegurado ao doente ou ao representante legal, o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Ademais, a Resolução 1805/2006, estabelece que o doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. Ou seja, a Resolução não é impositiva nem proibitiva de uma determinada conduta, mas oferece aos médicos orientação, objetivando permitir que os médicos interrompam ou não e iniciem tratamentos desproporcionais à doença. Inclusive esse termo “desproporcionais” foi muito utilizado por padre Eduardo no lugar de tratamentos extraordinários. A Resolução fala em tratamentos desproporcionais. No paciente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, a limitação do suporte de vida ou limitação do esforço terapêutico diz respeito a determinados procedimentos e tratamentos que não têm nenhum sentido curativo, sendo mantidos não para evitar a morte, mas para manter a vida artificialmente. Nesse sentido, cabe ao médico, por dever ético, em primeiro lugar, observar os princípios da beneficência, ou seja, fazer o bem para o paciente e sua família, não devendo utilizar-se indiscriminada e abusivamente da tecnologia médico-científica para preservar a vida a qualquer custo. E, em segundo lugar, observar o princípio da não maleficência, evitando o sofrimento do paciente. Entendo que a conduta adotada pelo médico está de acordo com as normas éticas. Trato agora da segunda questão, a conduta que considera fundamental o encaminhamento da paciente para uma UTI. A terminalidade da vida atualmente ocorre numa UTI. Ultimamente as pessoas têm dificuldade de lidar com um enfermo terminal em casa, seja pela supervalorização dos recursos tecnológicos disponíveis, seja pelos custos advindos, e, desse modo, todos querem ir para a UTI. A UTI passou a ser o lugar de morrer. Existe, segundo alguns, uma verdadeira UTIzação da morte. Um problema de difícil abordagem é quando um determinado membro da família, como no caso que foi apresentado, seja por não ter acompanhando de forma próxima o diagnóstico, o tratamento, ou a evolução da doença, mantem uma expectativa de cura até o final, seja por desconhecimento de que a medicina intensiva se destina a diagnosticar, tratar e manter doentes em iminente risco de morte, porém potencialmente reversível. No caso em discussão, não sendo conhecida a existência de uma diretiva antecipada da vontade por parte da paciente, seja verbalmente, seja
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através de um testamento arbitral, relativo aos tratamentos que deseja ou que se recusa a receber no fim da vida. Tendo em vista a divergência de conduta entre os potenciais representantes legais, isso seria uma questão que eu gostaria de levar ao doutor João, que sempre fala em representante legal, mas que nem sempre a gente consegue identificar, como no caso em questão. No caso dos dois filhos, entende-se que ambos seriam maiores de idade, mas quem é o representante legal? É o mais velho? Então, é uma questão que do ponto de vista jurídico talvez fosse importante esclarecer. Deve-se, nessas situações, tentar inicialmente, segundo o meu entendimento, um consenso por meio de diálogo. Não sendo possível a resolução do conflito dessa forma, se torna necessário remeter a discussão para outras instâncias. Se o paciente encontra-se internado em uma instituição, seja ela pública ou privada, pode-se ou deve-se recorrer à Comissão de Ética dessa instituição, eventualmente ao próprio Conselho de Medicina, ou Regional de Medicina ou até mesmo o Conselho Federal de Medicina, e fora de uma instituição privada ou pública, restaria o poder judicial como único recurso. Então, eu não saberia responder, na realidade, diante da posição divergente de um dos filhos em relação se leva ou não leva a paciente, que era a mãe deles, para uma UTI, eu acho que a questão aí é mais judicial. Da mesma forma que os advogados têm uma certa dificuldade para entender o medicinês, nós médicos temos uma certa dificuldade de entender o juridiquês. E ficamos numa situação muitas vezes difícil para decidir. Muito obrigado. Dr. Cid Carvalhais: Bom dia. Muito obrigado pela oportunidade. Eu jurei que ia ficar quietinho aqui, mas diante de tanta provocação do ponto de vista jurídico, não dá para ficar quieto. Em primeiro lugar, o senhor coloca uma questão de natureza constitucional. Nós vivemos num Estado Democrático de Direito, temos regras e leis que atendem a todos e implica a todos e obriga a todos. E sobre esse aforisma “de que a lei é igual para todos, mas alguns são mais iguais que outros,” eu sempre faço uma advertência: fique fora da lei em transgredí-la, porque se transgredí-la, vai ser igual para todos. O que é que a Constituição diz fundamentalmente? A vida é um direito indisponível. Isso é um ponto básico fundamental. Mas por outro lado ela diz que é livre o exercício da profissão, e cada profissional devidamente acreditado tem a sua autonomia. Então isso parece que são conceitos constitucionais conflitantes, mas na realidade são convergentes. No caso do médico em razão específica, lhe é dada autonomia reconhecida por jurisprudências dos Tribunais Superiores, no sentido de reconhecer que a autonomia profissional do médico deve ser respeitada.
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Outro aspecto é a codificação infraconstitucional. O nosso Código Penal diz no seu Artigo 121: matar alguém, pena de tanto a tanto, dependendo da natureza do crime cometido, com atenuantes, agravantes, etc. Mas também deixa claro que o crime pode ser cometido por comissão ou por omissão. A comissão é o ato de fazer e se dolosamente, se a minha vontade foi efetivamente transmitida na ação que eu executei. E omissivamente, se deixei de executar ações que deveriam ser executadas naquele momento. A situação colocada se caracteriza, em princípio, como um possível futuro homicídio por omissão, em virtude da ameaça feita. Mas é importante salientar que na nossa codificação civil existe a responsabilidade dos diversos contraentes. Nós não podemos entender que o contrato é unilateral, isso é absolutamente injustificável e insustentável do ponto de vista jurídico. Para que se estabeleça um contrato, explícito ou implícito, esse contrato efetivamente envolve duas ou mais pessoas, e aí se estabeleceu um contrato, um contrato bilateral, que é do médico representando o seu, a sua responsabilidade profissional e a instituição que o envolve, e o paciente. O doutor Salinas levanta uma questão de quem é o representante legal. A lei é muito clara, filhos menores, pais maiores, e hoje não existe mais o pátrio poder, mãe e pai são exatamente idênticos do ponto de vista sobre a responsabilidade dos filhos menores, até 14 anos. De 14 a 16 é a menor idade relativa, de 16 anos aos 18 uma menor idade mais relativa ainda, a partir dos 18 anos, maioridade. Então, este indivíduo, se consciente, ele responde por si a partir dessa idade. No caso de casamento ou união estável, é o cônjuge supérstite. É um nome bonito à beça, não é? É só para provocar mesmo. Significa que ele está vivo, e que está consciente e que está devidamente presente. Então, seria ele. Provavelmente, uma senhora aos 95 anos de idade não teria um cônjuge supérstite. Surge então uma figura muito importante, essa senhora que vinha há quinze anos em estado vegetativo, ela por acaso tinha sido interditada? Se o foi, por um processo prévio, é o seu tutor o responsável por ela. Se não o foi, a família escolhe um representante único. Não existe essa pluralidade de representações. Senão vem o filho, a filha, o irmão, o primo, o neto, o tio... porque a lei garante representatividade até o terceiro grau. Então, isso é infinito. A família no seu consenso escolhe um, se não há as previsões legais colocadas. Existe um outro aspecto, doutor Nasser, que nós temos que levar em conta, que o médico às vezes assume uma passividade muito grande. Então, como médico eu faria exatamente o que o senhor fez, e fiz isso várias vezes, e tenho certeza que farei mais ainda, assim espero viver consciente, idoso, para poder fazer. Não acrescento absolutamente nada ao que foi falado pela mesa. Mas do ponto de vista jurídico, existe, nesta situação, em primeiro lugar, a possibilidade de uma coisa chamada ‘reconvenção.’ Quando alguém me processa, num caso como esse, por exemplo, eu
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posso propor uma reconvenção, ou seja, eu sou a vítima e não o réu, e a vítima ou o autor anterior é que se transforma em réu. Isso tem alguma possibilidade no mesmo processo. Uma segunda possibilidade, e aí vamos voltar aos preceitos constitucionais, é entender que o interesse público se sobrepõe ao interesse privado. E considerandose que o interesse público, no caso, é exatamente a objetividade do tratamento e, consequentemente, a objetividade do preceito econômico de não se gastar desnecessariamente, não se pode fazer prevalecer, no que eu costumo chamar de ‘amor ou afeto absolutamente egoístico,’ como a doutora Carla já definiu muito bem quando falou sobre todos esses conflitos de natureza emocional. Assim sendo, devo advertir este cidadão que posso sim, por imposição dele, levar esse paciente para a UTI, mas ele é responsável pelos gastos e eventuais indenizações. Porque a sociedade não deve pagar. Eu acho que esses princípios jurídicos devem ser sempre lembrados pelos médicos. Pe. Eduardo Vinícius de Lima Peters: Faço uma distinção que considero importante, sobretudo porque não me considero tão místico, mas a minha formação é em teologia moral. Eu digo uma coisa aos meus alunos que às vezes os choca: ‘se oração resolvesse todos os problemas a gente não precisava de hospital, bastava rezar.’ Mas acho que cada coisa no seu devido lugar. Ao mesmo tempo que a espiritualidade é extremamente importante para formar aquilo que é o espírito humano, até mesmo para a nossa humanização, a nossa capacidade de lidar com as diversas circunstâncias da vida também de uma maneira transcendental; nós não podemos deixar de estabelecer também uma dimensão, vamos dizer assim, da educação e da formação da pessoa na sua dimensão humana. Então para mim são as duas coisas, tanto quando a gente vai abordar uma situação dessa é preciso ajudar a consolidar também a formação da pessoa, a orientação da pessoa naquilo que diz respeito à sua dignidade, à sua humanidade, e dentro desse processo perceber o quanto a oração nos qualifica. E aí sim eu tenho certeza que a oração pode ser um elemento, sob muitos aspectos, convergente, até porque se nos sentamos e rezamos juntos, isso ajuda bastante. Na igreja é muito curioso porque o modo da gente administrar as nossas relações eclesiais em instâncias muito grandes se chama concílio. Quer dizer, a ideia de que todas as pessoas cheguem no mesmo lugar e se movam no sentido de achar algo que seja uma conciliação. A última vez que nos encontramos assim de modo mais amplo foi no Concílio Vaticano II. Mas se diz também, nessa perspectiva, que a concórdia é o sinal do Espírito Santo. Eu administro uma casa que presido como reitor, mas o meu Conselho são sete
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padres, e a gente sempre coloca isso como premissa, invocamos sempre o Espírito Santo para que ele nos ilumine nas nossas decisões, e nós, nesse sentido, estabelecemos que a concórdia é sempre o melhor sinal entre nós. E quando a divergência entre nós é muito grande, aquilo que eu dizia à respeito da consciência em termos de prudência, nós reservamos o assunto e voltamos nele na semana seguinte, depois de termos pensado melhor. Então, acho que é uma conjunção tanto entre a possibilidade e a construção do diálogo, quanto também a perspectiva da oração. Eu falo isso no sentido humano, mas é evidente que também junto à oração a perspectiva da graça e o influxo mesmo de Deus que age em nós. Quanto a isso não há dúvida. São Tomás de Aquino, num hino muito belo nosso diz que nós somos, o Espírito Santo é o nosso doce hospede de alma. Então, é muito importante que quando estamos em situações de conflito, estejamos também abertos à possibilidade de perder a nossa posição para acolher aquilo que é melhor. Eu digo muito para os casais, a gente acompanha muitos casais, que quando a gente está numa situação de dificuldade na vida de casal a gente tem que esquecer o eu, o ele ou ela e ponderarmos o que é melhor para nós. Oxalá com a oração as famílias fossem capazes também de nesses momentos de dificuldades serem capazes de convergir, e é claro que a oração nesse sentido ajuda muito, seja pelo influxo da graça, seja também pela humanização que se deve buscar dentro dessas perspectivas. Mas eu volto a dizer, eu acho que a gente precisa caminhar nesses dois fronts, tanto na formação da nossa dimensão humana quanto também no crescimento da nossa espiritualidade como parte desse processo de humanização. Não sei se respondi a questão, mas penso assim. Dr. Augusto Cesar de F. Costa: Bom dia a todos e todas. Primeiro eu queria parabenizar o doutor Nasser pela primorosa qualificação do temário desse seminário e da escolha dos palestrantes. Parabéns a todos. E só para fazer alguns comentários, eu queria reportar que uma das experiências mais interessantes e ricas que já tive, foi ser do Conselho Regional de Medicina, mais ainda por ter sido agraciado pela companhia do doutor Salinas, doutor Zapata e outros grandes e ilustres colegas daquela gestão. E comecei então a entender o sentido do Conselho como um sentido civilizatório, ou seja, tudo que vai, tudo que chegava ao Conselho, tudo que o corregedor, Dr. Formiga encaminhava, era porque não havia sido conseguido encontrar um consenso. E o consenso é uma coisa civilizatória, enquanto que o dissenso é a representação da lei do mais forte, seja qualquer tipo de mais forte que apareça. E o processo civilizatório é justamente isso, poder caminhar indefinidamente,
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porque o processo civilizatório não acaba nunca, a sociedade, a civilização está sempre por se fazer. E temos sempre uma enorme dificuldade para encontrar um consenso e esse consenso ser endossado após, claro, um processo de discussão. Mas vivemos em uma sociedade que privilegia a disputa e a concorrência. Nessa realidade os seres humanos infelizmente só têm duas modalidades de se relacionar: ou nós competimos ou nós cooperamos. Fora dessas duas modalidades não existe nenhuma outra. As relações entre as pessoas estão tensionadas muito em função do processo político que vem acontecendo, a competição se acirrando aos extremos, nos levando para um mundo distópico, um mundo onde a narrativa prevalece sobre a verdade, a história das coisas sendo desprezada, a ponto de tornar o conhecimento de história e filosofia uma coisa totalmente supérflua. Enfim, tudo convergindo para situações que a tecnologia vem agravando. Um exemplo disso foi relatado pelo Dr. Nasser, o de um cardiologista que foi processado porque ele não respondeu ao WhatsApp de um paciente. Então, onde nós chegamos? Minha pergunta é para o doutor Celmo. Como o senhor vê a questão da medicina à distância, que eu não chamo de telemedicina, porque para mim é a mesma lógica do ensino à distância, ou seja, abrir mão do professor em sala de aula é a mesma coisa que abrir mão da presença do médico na relação com o paciente. Ambas são situações distópicas. Escutei uma reportagem dizendo que isso era muito bom, que ia haver médicos em todos os lugares, que ia haver uma cobertura nacional de médicos por intermédio dessa tecnologia. Como psiquiatra, como vou abrir mão de interagir diretamente com um paciente, passando a fazer isso por intermédio da internet? Para finalizar, dentro de uma perspectiva de uma construção interminável do processo civilizatório, como o senhor vê a questão da permanente tentativa de nos remeter – por intermédio de uma distopia – a um padrão absolutamente anticivilizatório? Dr. Celmo Celeno Porto: Cabe a nós construir as atitudes que virão por aí. Hoje eu recebi um e-mail de um colega da Academia de um editorial do New England, defendendo ardorosamente a medicina, até a telemedicina dos Estados Unidos. E lá não se pode falar que ela é para atender os rincões, cidades que não tem médicos, é outra proposta. Então, nós que estamos agora passando por essa ‘desopção,’ para usar a palavra da moda, nós é quem vamos desconstruir. Nós quem? Os Conselhos, as associações, esses fóruns, porque nós não temos a receita do bolo, não sabemos. Temos posições pessoais, então eu vou dizer a minha, eu não consigo entender a nossa profissão à distância. Então, parte dos meus atos poderão ser feitos por
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mecanismos de tecnologia, mas alguns nunca poderão ser feitos à distância. Por exemplo, o ato médico básico, que é o atendimento inicial do paciente. Eu não entendo isso. Você fala: ‘ah, mas é um paciente que está lá no fim da Amazônia.’ Isso é exceção. Nós não podemos raciocinar com exceções, nós temos que raciocinar com o nosso cotidiano. No meu ponto de vista, as instituições, principalmente aquelas que têm poder legal para definir posições, como o Conselho Federal de Medicina, têm que tomar atitudes concretas radicais. E eu vou colocar a mais radical de todas, que ao meu ver é a principal, que é, o primeiro atendimento, o ato médico básico: o exame clínico essencial tem que ser presencial. Atendida essa premissa, essa situação inicial, aí eu posso discutir as outras. O monitoramento, o seguimento, a evolução do paciente é possível pela internet, pelo zap zap, pelo SMS, qualquer um desses? É possível, perfeitamente, desde que seja relacionado àquele problema que foi tratado na consulta presencial. Os pacientes às vezes acham que se foram lá e fizeram uma consulta, tudo que vier depois pode ser feito por meio eletrônico. É claro que isso é irracional. Então, no meu ponto de vista, nossas instituições, e deve nascer nelas aquilo que vai para o Congresso, aquilo que vai ser transformado em lei, aquilo que vai ser usado pelo Judiciário. Somos nós médicos é que temos que estabelecer qual é a nossa posição. A única que eu acredito que é irrevogável para mim é o atendimento presencial inicial. As demais é difícil discutir. As relações entre os médicos, que são as chamadas videoconferências ou teleconferências, são coisas completamente diferentes. As cirurgias robóticas, que é feita também por especialistas, não tem nada a ver com essa minha visão. Eu estou tratando do ato médico básico. No momento que a nossa profissão não tiver esse ato médico defendido, do ponto de vista ético, do ponto de vista científico, do ponto de vista humano, a nossa profissão vai mudar completamente. Aí eu não sei o que é que ela vai ser. Então eu não tenho dúvida de defender essa posição. E no caso da psiquiatria, eu vi também hoje aqui um colega psiquiatra do Rio dando sugestões para vocês psiquiatras como atender um paciente pela internet. Ele liga e você pergunta: é ansiedade? Eu disse: é. Aí tecla 1. É depressão, tecla 2. É síndrome do pânico, tecla 3. Você está tendo alucinação? Tecla o 4. É uma caricatura, mas ela é perfeita. Eu acredito que na psiquiatria o ato médico presencial talvez seja o mais essencial de todos! Dr. Paulo Nasser: Muito obrigado pela colocação. Realmente, dado ao adiantado da hora, nós vamos encerrar, e lembrar que esse evento foi em comemoração aos 30 anos da
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Academia de Medicina de Brasília e 60 anos da Associação Médica de Brasília. Quero agradecer profundamente ao doutor Celmo a gentileza, a honra de tê-lo aqui, criou um brilhantismo todo especial. Padre Eduardo Peters, muito obrigado pela gentileza, pelos ensinamentos, pela disponibilidade de ceder o seu precioso tempo nos brindando com essa participação maravilhosa. Doutora Carla, doutor Salinas, que sempre contribuiu muito com a medicina de Brasília através do CRM. Ao rabino Sérgio Margulies e ao Dr. João Costa também, pela participação, e a todos vocês, pela presença. Muito obrigado!
FIM
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