
3 minute read
A MARÉ DOS TEMPOS Capítulo VIII

O mundo do século XVI estava dominado pelo Império Espanhol, que se estendia por metade do mundo conhecido. Ao se falar de Filipe II, não podemos deixar de nos referir às pinturas de Pieter Brueghel e seus filhos, que tiveram que viver os anos de luta contra a subjugação hispânica dos Países Baixos.

Uma pintura tão inocente quanto Censo em Belém reflete nos pequenos detalhes as mudanças políticas que estavam ocorrendo na sociedade. A chegada do Menino Jesus a um país dominado pelos peninsulares (a águia bicéfala dos Habsburgos nas portas do edifício em que o censo é realizado equipara o Império Espanhol ao Império Romano) é, em si, uma mensagem sobre a submissão a que os súditos dos Países Baixos estavam sujeitos. Belém não é uma aldeia no deserto da Galileia, mas uma cidade holandesa do século XVI, onde se trabalha e se educa os jovens. O surgimento da imprensa permitiu que os textos bíblicos estivessem disponíveis para todos. Lutero, Calvino e os outros pregadores do protestantismo defendiam a leitura e a interpretação pessoal dos textos sagrados. Sendo assim, a Reforma implica educação, e os Países Baixos eram o melhor exemplo dessa mudança nas condições educacionais.
O ano de 1566 foi especialmente difícil para a Igreja Católica nos Países Baixos. Os calvinistas atacaram templos e conventos com um furor iconoclástico. Filipe II não estava em posição de tolerar essa pressão dos protestantes e substituiu Margarida de Parma como regente de seus domínios nos Países Baixos pelo rígido duque de Alba, quem não teve a menor piedade para suprimir qualquer insurreição. O duque não apenas subjugou o povo flamengo, o pressionou com impostos. Os Países Baixos, apesar de sua ínfima proporção dentro do Império, onde o sol nunca se pôs, geravam quase metade dos impostos que Filipe II recebia e quatro vezes mais do que o que era coletado em toda a Espanha. Como os fidalgos espanhóis e a Igreja não pagavam impostos, o fardo do tesouro caia sobre os países subjugados, como acontecia com os Países Baixos. Por exemplo, em Burgos (Espanha), das 3.319 pessoas que podiam pagar impostos, 1.722 eram fidalgos e 1.023 clérigos. Restavam, então, apenas 574 contribuintes para o fisco. Era improvável que estes fossem trabalhadores porque qualquer tarefa manual era mal vista pelos senhores peninsulares.
Essa situação de opressão econômica levou às longas guerras que devastaram o país e foram refletidas na obra de Brueghel. Dulle Griet, também conhecida como Mad Meg (“Mulher Louca”, no Brasil), é uma figura do folclore holandês: uma mulher que lidera um exército de guerreiras dedicadas à pilhagem e à destruição. Na pintura, Griet ataca o diabo nos portões do inferno.
A obra repleta de seres caricatos e aterrorizantes, ao mesmo tempo segue a melhor tradição de Bosco, quem pintou “o que não pode ser pintado”, como dizia o próprio Brueghel, com uma intenção didática. Dulle Griet era sinônimo do mal dos tempos em que viviam.
Griet pertence ao folclore holandês e, por sua vez, inspirou uma frase popular: “Uma mulher faz barulho, duas dão muito trabalho, três um mercado anual, quatro uma briga, cinco um exército, e contra seis nem mesmo o Diabo tem armas”. Para não deixar dúvidas quanto ao destino do Maligno, Brueghel pintou mais de uma dúzia de donzelas guerreiras.
O destino posterior desta obra a converte em metáfora da rapina que reflete: a pintura foi adquirida pelo imperador Rodolfo II, do Sacro Império Romano-Germânico, e, por sua vez, roubada pelos suecos em 1648. Dulle Griet esteve perdida até ser leiloada em Estocolmo, em 1800. Passou de mão em mão por diferentes proprietários que desconheciam sua origem até ser adquirida em 1897 pelo colecionador Van den Bergh, quem pagou uma quantia irrisória por ela. Van den Bergh reconheceu sua origem e, desde então, Dulle Griet tornou-se a expressão vívida da violência desencadeada.
Assim como Bosco, Bruegel tinha uma percepção apocalíptica dos tempos em que tinha que viver. Para ele, a cidade de Antuérpia era a nova Babel: a cidade com mais habitantes da Europa, receptora do novo comércio que vinha da Ásia e da América.
Chegavam marinheiros de todas as partes do mundo; nas suas ruas, se ouvia falar espanhol, flamengo, português, francês, italiano, dialetos alemães e uma infinidade de línguas, tal como na antiga Babel. A esta dispersão linguística acrescentavam-se a dos cultos, já que católicos, luteranos, anabatistas, calvinistas e anglicanos passeavam pelas ruas da cidade.
À medida que as diferenças se tornaram mais perceptíveis, a perseguição religiosa não esperou; Brueghel teve que fugir desta nova Babel por suas opiniões teológicas.
Um dos motivos pelos quais Brueghel pintou esta obra em 1563 foi porque naquele ano o palácio do El Escorial começou a ser construído perto da cidade de Madri: uma demonstração do poder dos espanhóis que dominaram os Países Baixos. Por acaso, o El Escorial era uma nova Babel? De forma alguma se poderia dizer que o piedoso rei Filipe desafiou Deus assim como Ninrode havia feito na construção da Torre.

Não, essa não era a sua intenção, ele só pretendia mostrar ao mundo a força do Império Espanhol. Porém, ele não teve sorte: o desastre da Grande Marinha, os conflitos com os protestantes, as enormes dívidas que levaram a sucessivas crises econômicas e a incapacidade de seus herdeiros, levaram ao colapso progressivo do Império.
