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CULTURA
O DIA ALAGOAS l 13 a 19 de julho I 2014
Projeto Vidas Anônimas
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FIGURA FOLCLÓRICA revela sua história,da infância no ‘mato’ até a venda de venenos no tradicional Mercado da Produção
Um tal Galego do Veneno Elayne Pontual
Elayne Pontual Repórter
E
Genésio Rodrigues, o popular “Galego do Veneno”, conta da infância difícil, mas que não endureceu seu coração
“Cabra veio” ama brinquedos e volta a estudar Por conta da dureza dos primeiros anos de sua vida, sem tempo para brincadeiras e estripulias, Genésio hoje, “cabra veio”, como gosta de dizer, conserva alguns hábitos que quem vê de longe, sem conhecer seu passado de muito trabalho, custa a acreditar. Imagine só: Um homem corpulento, pele enrugada e cabelos brancos, sozinho, brincando com um avião elétrico que sobrevoa desembestado os móveis da casa. Agora imagine esse mesmo homem sentado ao chão, dessa vez vendo seu carrinho de brinquedo dar voltas pelo imóvel, ziguezagueando por debaixo da mesa e assustando o gato, que arrepia os pelos da espinha exibindo as garras, enquanto o mini conversível corre e tromba, eventualmente, nas canelas de sua dona. – Mas no meu tempo de menino não tinha isso não! Quando sobrava tempo, a gente fazia umas rodinhas e apregava num pedaço de pau. Aquela coisa ficava rodando e era essa a brincadeira da gente dentro do mato. 68 anos se passaram desde que Genésio despontou no mundo recebido com um molhado e mudo beijo materno. Enfrentou “Deus e o diabo”, mas nada disso o impediu de compensar a meninice perdida, que os anos não trazem mais. Cada passo dado até aqui, até à tábua cheia de veneno pra bicho, foi realizado também
com a intenção de conquistar o que jamais pôde acrescentar à sua existência. Genésio, depois de tantos anos, apoderou-se não só de aviões e carrinhos de brinquedo, mas também de uma vida que nunca foi sua. Tenta remontar, perto do fim, o seu começo. Buscando recriar etapas da vida, Genésio tomou uma decisão que alguns anos atrás não poderia sequer imaginar: matriculou-se numa escola próxima à sua casa. – Estudei até o 4º ano, mas agora tô fazendo a 8ª série. – E como está sendo a experiência? – É ruim que só a gota. Papagaio véio pra aprender a falar dá um trabalho danado. – Mas sabe ler e escrever? – Sei escrever alguma besteirinha. Eu tenho a carteira do estudante, quer ver? – tira do bolso e mostra, cheio de um orgulho contido, um documento plastificado. É uma carteira de estudante, com direito a foto, data de nascimento, nome completo e um Nelson Mandela sorridente. – Por que o senhor resolveu voltar para o colégio? – Porque eu não tô fazendo nada de noite, aí vou estudar. Estudo a noite também porque não tem escola de dia pra velho não. – O senhor trabalha pela manhã e pela tarde, e ainda arrumou o que fazer durante a noite?
– Eu não trabalho pela tarde não, é só o primeiro horário. Até uma ou duas da tarde, no máximo, porque eu não sou de trabalhar muito. Sou preguiçoso! – Solta aquela gargalhada costumeira. – Mesmo assim foi arrumar escola pra estudar... – Mas estudar é outra coisa! Ele ri sem jeito, como criança quando é pega na mentira. Casado há quase 40 anos, Genésio tem filho com três mulheres diferentes. Começou atrapalhado no mundo, e não se importa com as censuras. Seus genes perambulam não só pelas ruas de Maceió, mas também pelas avenidas e logradouros de Mato Grosso e São Paulo. Tem filho jornalista, filósofo e historiador. – Se eu disser o tanto de filho que tenho, tu vai dizer que é mentira minha. Tenho dois numa mulher, tenho um em outra e em casa, com essa de agora, tenho mais três. Mas casei uma vez só. Eu era metido a doido naquela época, pior do que hoje. Sem vergonho todo. Genésio desembarcou em Maceió aos 13 anos. Primeiro veio a mãe, depois o pai, ele e os irmãos. Desde então, vem se virando como pode, e assim, crescido no mato, quase sem estudo, decidiu vender veneno como seu ganha-pão. Começou comercializando verdura e carvão para só depois montar o negócio que é o terror dos ratos, mosquitos e baratas da cidade. E.P.
le estaciona seu fusca próximo aos trilhos do trem, no Mercado da Produção, por volta das oito horas da manhã. Monta um tabuleiro, arma o guarda-sol, pluga o microfone na caixa de som, solta a sua voz e começa a vender seus produtos. Sentado com uma das pernas apoiada na cadeira, anuncia: “Eu sou o maior matador do Estado, mato rato e barata. Sou o galeguinho do veneno”. Animado como se estivesse sempre em seu melhor dia, usa um chapéu de vaqueiro preto que cobre os cabelos brancos e esconde um pouco, com a sombra das abas, os olhos cor de mel. Mas nada parece conseguir camuflar sua simpatia, nem cerrar seus dentes largos. Basta dois minutos de prosa para já nos sentirmos contagiados com aquela alegria desenfreada. O cheiro de titica e sangue de galinha que escorrem das avícolas, carregando para as bocas-de-lobo as penas dos cocoricós, incomoda um pouco, mas o papo de Genésio Rodrigues dos Santos, o tal Galego do Veneno, é tão entusiasmado que, por um longo momento, a gente até esquece o odor incômodo e o barulho perturbador, típicos daquele local tão peculiar, e logo nos pegamos distraídos observando as pessoas irem e virem com suas sacolas cheias de frutas e verduras naquele pedaço do Centro de Maceió. Quando pergunto se Genésio é de Maceió, ele não titubeia e a resposta é tão veloz quanto cada movimento que faz desde que se levanta, até a hora de deitar: – Sou do interior. Fui criado na mata que nem batata. Dentro do mato, que nem um bicho. Aproveito a oportunidade e pergunto se ele não sente falta de sua terra. Da mesma forma que deu a primeira resposta, disse a segunda, quase sem pensar nem titubear: – E eu sinto falta de morar dentro do mato? E eu sou raposa, menina? Se eu tivesse dinheiro lá, uma fazenda... Eu até que queria um gado, um cercado bom, uns dois cavalos bonitos, mas pra não ter nada, é melhor ficar aqui. Entre atender os clientes e responder às minhas pergun-
“ Mas nada parece conseguir camuflar sua simpatia, nem cerrar seus dentes largos
tas, Genésio por um momento se distrai e, sem afastar a boca do microfone, com a voz já gritante ampliada pelo eletrônico, ele fala para qualquer um que queira ouvir: – Sou casado e bem casado. A mulher gosta que só de mim. Só me chama de “fio”, ou “fio da peste”, a depender do dia e do momento. E assim a gente vive até hoje. “Genésio, olha o microfone!”, tento alertá-lo sem sucesso. Passados alguns minutos, ele mesmo percebe a gafe e ri sem jeito da própria situação, agora com parte da vida íntima exposta aos quatro cantos do mercado. Houve raros momentos em que o Galego do Veneno deixou o riso preso (momentos raríssimos). Com as mãos juntas e a cabeça baixa, pareceu por alguns segundos voltar ao passado e catar cuidadosamente as memórias de criança, como goiaba caída do pé. Foi quando perguntei de sua infância e sobre como se sucedeu a vida de menino no interior: – A gente tinha um pedaço de terra e eu não tive infância, porque naquele tempo não existia brincadeira pra moleque. Pelo menos não pra mim e meus irmãos. Foram tantos filhos que meus pais fizeram, que não consigo nem contar nos dedos. De todos, já morreu dois e o resto ainda tá vivo.