TURMA 82 ITA - HISTÓRIAS E MEMÓRIAS

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40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS

INSTITUTO TECNOLÓGICO DE AERONÁUTICA

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS

INSTITUTO TECNOLÓGICO DE AERONÁUTICA

Tornavoi Edmur

Gusella

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INTRODUÇÃO
de Almeida
de
Pinto
Maia
de Souza
Cascelli
de Arruda Lorenzi
Neto
Santacreu
de Oliveira
Guimarães Neto 063 Carlos Augusto Oliveira do Carmo 073 Celso Massaki Hirata 085 Cesar de Sousa Teixeira 093 Charles Kusniec 103 Christophe Six 107 Cícero Matthiesen Granja 113 Dirceu Tornavoi de Carvalho 118 Edmur Zambello 121 Edson Gusella Junior
Afonso Mainha
de Souza
Ary Carmo Massaki
006
012 Adalto Erdmann
015 Afonso
Campos
022 Álvaro Claudio
027 Antonio Carlos Reis
033 Antonio de Almeida
035 Antonio Guilherme
040 Antonio Ribeiro
044 Arthur Chaves Mas
052 Arthur Henrique César
055 Ary
SUMÁRIO Adalto
Reis
Cascelli Guigui Ribeirão Santacreu Arthur
Bói Kusniec Christophe Granja

124 Enderson Guimarães

134 Ernesto Yo Hayashi

147 Fabio Mattos Segre

158 Fuad Sobhi Azzam

162 Germano de Souza Kienbaum

173 Gilberto Peverari Simões

177 João Alexandre Sartorelli

184 João Roberto Moreira Neto

189 Jonas Noboru Tamaoki

193 José Borges Matias

196 José Cledi Lima Figueiredo

201 José Luís Andrade

205 José Ronaldo Fernandes Teixeira

209 Juliano Bittencourt Joppert Junior

211 Luís Augusto Orfei Abe

216 Luís Carlos Affonso

222 Luís César Spalding Verdi

227 Luiz Cláudio Cunningham de Carvalho

229 Luiz Akutsu

240 Luiz Alberto Butti de Lima

PV

Sartô

João Moreira

Jonas

Matias

Cledi

Zé Andrade

Zé Ronaldo Gulius

Abe

Luisão

Verdi

Luizinho

Akutsu

Butti

Enderson Hayashi Segre Fuad Kienbaum

242 Luiz Eduardo Falco Pires Correa

245 Luiz Jether de Holandino Vasconcelos

248 Marcel Ledon Marcel

251 Marcelo Bortman Bortman

262 Marcio Mattos Borges de Oliveira Marcio Mattos

269 Marcio Ricardo Golfe Andreazzi Swiba

280 Marcos Antônio de Almeida Marcão

283 Marco Valério de Albuquerque Vinagre Vinagre

288 Maurício Fantinato Fantinato

291 Mauricio Fulco Garoto Fulco

300 Mauro Cesar de Andrade Moreau

313 Mussio Mussi Mussio

317 Nelson Mitsuhide Shinzato Shinza

323 Otto Conde de Resende

340 Paulo Cesar de Souza Lucas

344 Paulo Cesar Steinkirch Souza

346 Paulo Eduardo Vaz Volpi Volpi

349 Paulo Martins Ferreira Diniz Paulinho Diniz

358 Paulo Outi Outi

363 Reinaldo Alvarenga Bergamaschi Berga

Adinho
Jether
Otto
Tim
Barney

371 Reinaldo Shuhei Sakumoto Sakumoto

381 Renato Horioka Horioka

383 Renério Fráguas Junior Fráguas

389 Roberto Castañon Penha Valle Bebeto

392 Ruy Antonio Mendes Amparo Ruyzão

399 Vagner Laerte Ardeo Vaguinho

407 Walter Schalka Schalka

415 Wataru Ueda Wataru

420 Willians Gonçalves Nogueira Nogueira

Álbum de 40 anos da Turma 82 do ITA

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PREFÁCIO

Uma vida! Sim, independentemente do número exato de anos, nós nos conhecemos, como Turma, há muito tempo. Desde quando ainda éramos jovens, bem jovens: a maioria com seus 17 ou 18 anos.

Quarenta anos é, sim, o tempo de uma vida, uma vida em que o destino nos permitiu conviver e estender esse convívio, muitas vezes, às nossas famílias, aos amigos e demais entes queridos.

Sem dúvida, nós crescemos, fizemos uso de muitos aprendizados e valores que nos foram passados por nossos pais e professores. Contudo nenhum aprendizado parece ser suficiente.

Tivemos de aprender com a vida, com a família, com os amigos, com as injustiças, com as derrotas e com o tempo. Todos fizeram e fazem parte da nossa jornada.

Nenhuma vida é perfeita. Ela é repleta de obstáculos, de imprevisibilidades, nos brinda com muitas coisas boas, mas também nos apresenta situações difíceis. Mas a jornada maravilhosa de nossa existência nos leva justamente a passar por todos esses momentos, e nós, da Turma 82 do ITA, tivemos a nossa jornada pela vida facilitada um pouco, pensamos, pela nossa convivência e pelo respeito aos valores que cultivamos.

A nossa intenção, quando lançamos a ideia de escrever os Relatos que constituem este Álbum da Turma 82 do ITA, foi deixarmos um pequeno registro de nossas existências nesta maravilhosa jornada da vida.

Não têm estes Relatos a pretensão de ser lições de vida ou legado. Não! Eles visam mostrar a história de vida de pessoas que

compartilharam experiências e valores durante algum tempo no alojamento H8 do ITA. Mostram a gratidão que temos pelas nossas conquistas. Mostram que a nossa existência passa obrigatoriamente por altos e baixos, mas que o saldo parece ser sempre positivo quando lutamos e acreditamos. Mostram que o aprendizado na escola, apesar de relevante, não é suficiente. Mostram que as injustiças – se persistimos contra elas – nos fazem crescer. Mostram que a reconciliação é sempre possível quando a alma não é pequena. Durante estes 40 anos, alguns colegas se foram. Muitos se distanciaram por diversas razões: problemas profissionais, crises econômicas, problemas de saúde e pessoais. Vários retornaram ao grupo. Estes relatos mostram, acima de tudo, que continuamos, mesmo com divergências de opiniões e com alguns afastamentos, mais unidos.

Nossa Turma – consideramos membros da Turma 82 do ITA todo aquele que conosco conviveu pelo menos por um dia – é composta por 129 colegas. Temos aqui Relatos de 68 deles (alguns escritos por familiares e/ou amigos daqueles que já não estão mais fisicamente ao nosso lado), aos quais agradecemos muito pela contribuição. Entendemos que um número tão significativo de depoimentos com experiências tão únicas faz com que o “conjunto da obra” seja muito especial. Boa leitura!

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 7 U
Gui(gui)lherme Lorenzi

Os 129 colegas da Turma 82

Adalto Erdmann de Almeida

Afonso de Campos Pinto

Alckmar Luiz dos Santos

Álvaro Cláudio Maia

Anastácio Katsanos

André Luiz Rosa Mayoral

Antonio Carlos Reis de Souza

Antonio de Almeida Cascelli

Antonio Guilherme de Arruda Lorenzi

Antonio Ribeiro Neto

Arthur Chaves Mas Santacreu

Arthur Henrique César de Oliveira

Ary Guimarães Neto

Bruce Ellison Brogiolo Halasz

Carlos Arrifano Schelim

Carlos Augusto Oliveira do Carmo

Carlos Guerra de Almeida Gomes

Carlos Henrique de Araújo Ponte

Carlos Herbert de Lima (†1979)

Carlos Yoshiharo Yamagata

Celso Massaki Hirata

Celso Pasquini

Cesar de Sousa Teixeira

Cesar Gorrensen Fricks

Charles Cavalcante Alcarde

Charles Kusnniec

Christophe Six (†2011)

Cícero Matthiesen Granja

Cláudio Roberto Alves Ferreira

Clóvis Augusto Eça Ferreira

Dirceu Tornavoi de Carvalho

Douglas Ricardo de Freitas Clabunde

Edmur Zambello

Edson Gusella Junior

Eduardo Pessoa Fontes Gurgel do Amaral

Enderson Guimarães

Ernesto Yo Hayashi

Fabio Mattos Segre

Fuad Sobhi Azzam

Gelson Baronto dos Reis

Germano de Souza Kienbaum

Gilberto Peverari Simões

Italo Eiji Saruhashi

João Alexandre Sartorelli

João Roberto Moreira Neto

Jonas Noboru Tamaoki

Jorge Corban Neto

José Auri Cunha

José Borges Matias

José Cledi Lima Figueiredo

José Humberto Branco dos Santos

José Luís Andrade (†2017)

José Roberto Gomes Zappa

José Ronaldo Fernandes Teixeira

Juliano Bittencourt Joppert Junior (†2020)

Kenichi Yanagida Lee

Laertes Guimarães

Luis Augusto Orfei Abe

Luís Carlos Affonso

Luis César Spalding Verdi

Luís Eduardo Vergueiro Loures da Costa

Luís Fernando Andrade de Almeida

Luiz Akutsu

Luiz Alberto Butti de Lima

Luiz Alberto Lage da Fonseca

Luiz Alberto Passos Almeida

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Luiz Antônio Athayde Cardoso

Luiz Antonio Fernandes

Luiz Cláudio Cunningham de Carvalho

Luiz Eduardo Falco Pires Correa

Luiz Jether de Holandino Vasconcelos

Marcel Ledon

Marcelo Bortman

Marcio Mattos Borges de Oliveira

Márcio Ricardo Golfe Andreazzi

Marco Antonio Chamon

Marco Antônio de Oliveira Lopes

Marco Valério de Albuquerque Vinagre

Marcos Antônio de Almeida

Marcos Antonio Ferreira da Silva

Marcos Augusto Soriano Freire

Maurício Fantinato

Mauricio Fulco

Mauro Cesar de Andrade

Mauro Hirdes

Mauro Nishi

Michael Gottfried Oesterreicher

Milton Carlos dos Santos Junior

Milton Mitsuo Murata

Milton Yassuhi Suguita

Mussio Mussi

Nei Alves Barreto

Nelson Mitsuhide Shinzato

Nelson Tokumi Yoneda

Otto Conde de Resende

Paulo Cesar de Souza Lucas

Paulo Cesar Steinkirch Souza (†2005)

Paulo Eduardo Vaz Volpi

Paulo Luiz Alves da Silveira

Paulo Martins Ferreira Diniz

Paulo Outi

Paulo Roberto Neves Fernandes

Reinaldo Alvarenga Bergamaschi

Reinaldo Shuhei Sakumoto

Renato Busatto Neto

Renato Horioka

Renério Fráguas Junior

Ricardo Abuawad Jarsún

Roberto Castañon Penha Valle

Roberto Satoshi Numada

Roberto Yoshikazu Hoshino

Robson Fernandes Ramos

Rogério Ferraz de Camargo

Ruy Antonio Mendes Amparo

Ruy Nobussuke Takahashi

Sebastião Bento Filho

Sérgio de Souza Dias Filho

Sérgio Gonçalves da Costa

Sidney Luiz Alessi Carrara

Solon Venâncio de Carvalho

Thomas Renatus Fendel (†2018)

Vagner Laerte Ardeo

Victor Rubens Svoll

Walter Schalka

Wander Toshihiko Miyata

Wataru Ueda

William da Silva Mattos

William Iwao Kamada

Willians Gonçalves Nogueira

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 9

N A Comissão

Nossa Turma deixou o convívio intenso que o ITA e, principalmente, o H8 nos proporcionavam há 40 anos, mas mantivemos (e mantemos) uma ligação fortíssima pela amizade que criamos no tempo da escola, por termos “trombado” uns com os outros em ligações pessoais e profissionais, pelo fato de as redes sociais, internet e e-mails terem aparecido em nossas vidas (permitindo contatos remotos impensáveis, quase de graça e com alta frequência, de modo inimaginável na época em que éramos estudantes e mesmo nos anos subsequentes) e por sermos (acreditamos muito nisto) seres humanos muito especiais, cada um do seu jeito.

Mas é preciso também ressaltar que, para além da tecnologia, as ligações da especialíssima Turma 82 foram também catalisadas por alguns amigos incansáveis na tarefa de promover nossa integração, como Sartô ao induzir os primeiros grupos de e-mail , Swiba mais recentemente com as lives , Afonso coordenando (entre outras atividades) vários encontros nos botecos da vida, Schalka levando parte da moçada para a formatura dos “bixos” em que era paraninfo, enfim... temos vários exemplos de “catalisadores” humanos que trabalham pelo prazer de ver a Turma unida em torno de uma mesa etílica ou de truco.

Não dá para não fazer uma menção mais que honrosa ao grande líder supremo e eterno das comissões que organizam nossos encontros presenciais no mínimo a cada cinco anos, nos quais temos o prazer de

voltar aos 20 anos por um fim de semana, em companhia de namoradas, esposas, sogras, amantes, filhos, netos, agregados, e quando temos o prazer imenso de beber, comer, relembrar, rever amigos que o tempo afastou, e tudo é muito especial. O querido amigo Guigui de tempos em tempos põe na linha, com doses equilibradas de uma cobrança duríssima e de uma paciência digna de budas joseenses, um grupo de abnegados que, por puro prazer de estar nas divertidíssimas reuniões e, mais ainda, de ver os resultados acontecerem – sejam os encontros regulares, o Álbum dos 40 anos, o “resgate” de membros da Turma que há muitos anos não se faziam vivos, ou qualquer outra entrega a que a gente possa se propor – , trabalham com afinco debaixo de seu “chicote”. Cada um dentro da sua disponibilidade de tempo e afinidade com determinado tipo de atividade, mas todos dentro de uma organização de não fazer feio diante dos projetos em que participamos ao longo da vida, com disciplina, muito empenho e – não custa repetir – com muito prazer e diversão.

Em especial nesta celebração dos 40 anos, a Comissão, liderada pelo Guilherme (nome que, em tupi-guarani, significa “aquele que não envelhece”), também agradece o empenho de todos os demais colegas que ajudaram a fazer acontecer esta incrível demonstração de força da Turma 82.

Em ordem alfabética: Afonso, Akutsu, André, Auri, Bortman, Enderson, Massaki, Otto, Paulinho Diniz, Ruy, Sartô, Shinza, Tim e Vagner

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Adalto

ADALTO ERDMANN DE ALMEIDA

Em um verão no início dos anos 70, em Ponta Grossa – PR, cidade onde nasci, me encontrei por acaso com um amigo, numa rua do meu bairro, eu adolescente. Comentei com ele sobre minha facilidade com as matérias de exatas e que eu gostaria de prestar vestibular para engenharia. Então ele me falou sobre o ITA, que tinha um vestibular muito difícil, que ao me formar sairia com emprego garantido e que ficaria hospedado em alojamento da própria escola, até mesmo recebendo um soldo (muito a calhar tendo em vista as dificuldades financeiras do meu pai).

Se eu não tivesse tido essa conversa com ele, talvez jamais viesse a prestar vestibular para o ITA, já que praticamente não se tinha acesso a informações como essa numa cidade do interior. Então resolvi arrumar um emprego numa loja de autopeças, durante meu 2º ano do científico (que cursei à noite), para ajudar meu pai a pagar um cursinho em Curitiba, numa escola que tinha inclusive algumas aulas específicas para quem fosse prestar vestibular para o ITA.

Eu me sentia bastante seguro para tentar o ITA, já que sempre fui o melhor aluno da sala no primário, no ginásio e

no científico. Também nos simulados do cursinho em Curitiba sempre fiquei entre os primeiros (muito bem acompanhado por outros também candidatos ao ITA).

Uma vez no ITA, essa questão de ser o melhor da sala desvaneceu-se. Durante o curso, em termos de notas médias, fiquei sempre posicionado da metade para baixo em comparação aos colegas de turma. No meu entender, de modo bem genérico, há quatro tipos de iteanos, em uma combinação de “gagás e não gagás” e de “muito inteligentes e não tão inteligentes”. No meu caso, me incluo no grupo dos “não gagás” e dos “não tão inteligentes”; por essa razão, penei um pouco para cursar o ITA; me formei com cinco “I”s no currículo. Se eu pudesse voltar atrás, teria sido mais gagá durante o curso. Mas fazer o ITA considero que foi também uma grande escola para a vida.

Ingressei na Turma 81, em que fiz o Curso Fundamental; o Curso Profissional, até me formar, fiz com a Turma 82. Fui contratado pela Embraer para compor o grupo de engenheiros que iria para a Itália pelo programa AMX (Aeritalia, Turim), sendo que a Turma 82 foi a que enviou o maior efetivo de engenheiros para trabalhar na Aeritalia e na AerMacchi. Tive a sorte de conviver com estes colegas de turma nos três anos em que permaneci na Itália (além de colegas de turmas anteriores). Esse convívio foi fantástico.

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Ainda na Itália, tirei o brevê de piloto privado no Aeroclub di Alessandria , em 1984. Por dois anos pude contemplar do alto as paisagens, colinas e paesi (vilarejos e pequenas cidades) do norte da Itália. No Brasil, voei nos aeroclubes de São José dos Campos e de Curitiba, até 2002, quando tive que parar em razão de um descolamento de retina no olho direito (hoje tenho só 50% de visão nesse olho).

Como engenheiro aeronáutico, trabalhei na Embraer por oito anos, que foram intensos e muito gratificantes, principalmente no exercício das atribuições de engenheiro de ensaios em voo. Após esse período, porém, mudei de rumo e prestei concurso para a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) do Ministério da Fazenda, de Brasília, órgão responsável pelas finanças públicas da União.

Em 2003, um dos braços da STN, responsável pelo controle interno da União, transformou-se na Controladoria-Geral da União (CGU), órgão com status de ministério, para onde fui designado. Dentre as atribuições da CGU, destacam-se a avaliação dos programas do governo federal, a auditoria da despesa pública, a prevenção e o combate à corrupção. Em 2016, já lotado em Curitiba, na delegacia regional do órgão, me aposentei pela CGU no cargo de auditor federal de finanças públicas e controle interno.

Hoje meu dia a dia se alterna, junto à família, entre Curitiba, Ponta Grossa e um sítio, herdado dos meus avós, que fica no município de Ivaí (onde temos duas estufas para cultivo de morangos). Também gosto muito de viajar. Em razão deste rápido retrospecto, parando um pouco para refletir, noto que, se por um lado a vida é muito curta, por outro há várias vidas numa única existência, cada uma com um padrão de relacionamentos, de experiências e de autoconhecimento. Todas elas me fizeram evoluir muito como pessoa, não me rendendo à inércia, à estagnação, e sem perder tempo com banalidades.

O tempo de ITA, em particular, foi uma fase que me fez aprender a buscar a melhor forma de solucionar problemas, quaisquer que sejam, em qualquer área ou situação do dia a dia. Aprimorei minha capacidade de análise e meu modo de abordar e resolver problemas a partir de uma visão sistêmica, em que cada parte do sistema é intrinsecamente interligada às outras partes. Se eu fosse um médico, por exemplo, não analisaria o sintoma do paciente limitando-me, como muitos fazem, às particularidades da minha especialidade apenas, mas procurando descobrir que influência outras partes do corpo poderiam ter desencadeado aquele problema, inclusive no que se refere à parte

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Se eu pudesse voltar atrás, teria sido mais gagá durante o curso. Mas fazer o ITA considero que foi também uma grande escola para a vida.

emocional, mental, nutricional, e aspectos relacionados ao meio ambiente, etc.

O ITA me ensinou a aprimorar o pensamento lógico e organizado, a desenvolver um espírito crítico, a fazer um cuidadoso planejamento antes de executar uma tarefa importante, a enxergar mais longe a cada situação, mantendo em mim o estímulo de sempre estudar, pesquisar, investigar, sem me intimidar com obstáculos.

Os tempos de ITA e o convívio do H8 com colegas e amigos incríveis contribuíram muito para minha formação pessoal, me permitindo depurar meus defeitos e me enriquecer com novas qualidades, vestir a camisa da disciplina consciente, valorizar princípios éticos e morais, ser solidário e ter sensibilidade social.

A respeito de nunca parar de estudar e pesquisar, nos anos que se seguiram após

o ITA, me interessei também por outros assuntos não afins à minha área de atuação no trabalho, quase sempre como autodidata, tais como os ligados à saúde, à fitoterapia, à nutrição, à medicina preventiva, à yogaterapia (a propósito, pratico meditação transcendental desde 1988), a questões filosóficas e esotéricas, bem como às ciências espiritualistas. Nas horas vagas adoro cozinhar e tocar piano (tenho três: um em Curitiba, outro em Ponta Grossa e mais um no sítio – sempre fui exagerado), mas não sou nenhum exímio pianista. Enfim, as experiências de todas as fases da minha vida me ensinaram a desenvolver mais a inteligência emocional e social, a ser menos cartesiano, a pensar e agir de forma equilibrada com os dois lados do cérebro (razão e emoção/intuição), moldando assim, tudo somado, a minha personalidade. Tudo valeu a pena. Com certeza.

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Nasci e cresci no tradicional bairro do Cambuci em São Paulo, próximo ao centro da cidade e cercado por Aclimação, Mooca e Ipiranga. Lá fui aluno, desde o “pré”, de uma escola estadual, da qual minha mãe era uma das professoras do curso primário. Na época do ginásio consegui, através dela, uma vaga numa escola profissionalizante, a Escola Técnica Antarctica, mantida pela companhia de bebidas, num modelo bastante interessante e revolucionário para a época (educação gratuita em tempo integral, com recursos privados a troco de algumas isenções fiscais). Lá permaneci até a conclusão do 3º colegial, saindo como auxiliar técnico em Eletrotécnica, e sem a menor intenção de continuar estudando o tema…

A facilidade com as disciplinas exatas indicava uma propensão à engenharia, muito mais por conveniência do que por convicção. Obviamente, a falta de referências me permitia apenas sonhar com o ingresso numa escola da dimensão do ITA, quando no 2º colegial descobri que um colega de escola tinha um irmão que lá havia se formado. Tempos depois descobri que se tratava do Carlos Nobre (Turma 74), um dos maiores especialistas em meio ambiente e meteorologia do país. Esse fato fez com que o sonho ficasse minimamente mais concreto, embora ainda distante e quase

Afonso

AFONSO DE CAMPOS PINTO

impensável. O apelo do ITA se fazia ainda maior pelo fato de, desde muito pequeno, eu passar pela entrada do CTA por ocasião das férias escolares, quando nos dirigíamos, no interior de um Pássaro Marrom à praia do Capricórnio (entre Caraguatatuba e Ubatuba) para uma casinha da minha avó paterna – muitas vezes ouvindo a frase emitida pela minha mãe, dirigida a mim e ao meu irmão: “Vocês irão estudar aí!”. No 3º colegial consegui uma bolsa no cursinho Objetivo e os bons resultados nos simulados me deixaram confiante de conseguir sucesso em alguma escola pública, mas jamais um lugar no ITA. De toda forma, frequentei as diversas aulas especiais de desenho para o ITA, e nelas me recordo de notar as presenças marcantes de pessoas que viria a conhecer um pouco mais tarde: Ardeo, Taka e Swiba.

A notícia da aprovação veio através de uma ligação da mãe de um amigo, dizendo ter visto meu nome no jornal, na lista de aprovados. Levou um certo tempo para “cair a ficha,” confesso, mas acabei percebendo a importância e o número de oportunidades que isso representava. A partir daquele momento até os dias atuais, todos os

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movimentos, situações e mudanças na minha vida profissional, acadêmica e, em muitos casos, até pessoal tiveram algum tipo de conexão com o ITA. A começar pela pressão colocada nos ombros do meu irmão Aecto, em relação ao vestibular do ano seguinte, no qual ele orgulhosamente teve sucesso.

As primeiras semanas no CTA me pareceram um sonho, meio surreal, meio inacreditável, ollhando aquele bando de garotos, todos muito inteligentes, sem saber muito bem como agir, se adaptando, naquele local bonito, espaçoso, calmo, porém com uma aura um tanto enigmática. O início foi complicado, pois a minha “base acadêmica” era evidentemente inferior à de muitos colegas, que, por exemplo, comentavam ter usado “Séries de Taylor” na resolução de uma questão do vestibular, ou ter chegado em ln x como resposta a uma questão de Física via “integração”. Precisei de muito catching up para me sentir em sintonia com a turma, mas acabei conseguindo. Os anos no ITA nos exigiram muita dedicação, disciplina, além de foco e perseverança. Esse processo e esse período de convivência intensa marcaram a nossa vida universitária de forma profunda, afetando claramente a relação que temos e mantemos entre nós como iteanos, como turma, e como entidade – a Turma 82.

Morei, durante todo o tempo que lá passamos, apenas no apartamento 109, com duas formações principais. Nos dois primeiros anos dividi com Fantinato o quarto do fundo, com Segre e Peverari, Helbert e Yamagata completando o apartamento. A partir do Profissional, eu e Swiba, Fulco e Schalka permanecemos durante todo o período. Tivemos também as marcantes participações de Sartô, Loures, Ardeo e Enderson. Muito aprendi e me diverti com todos, grandes amigos de vida.

Durante os cinco anos não tive maiores problemas do ponto de vista acadêmico, mas eles não faltaram no lado disciplinar: estive em quatro situações de potencial desligamento entre 1979 e 1982 – algumas bizarras, outras inacreditáveis, que por si só merecem relatos (a serem incluídos na versão eletrônica deste Álbum), mas que, de uma forma ou de outra, consegui contornar, sempre com ajuda e apoio de iteanos, em particular do Hirdes e suas conexões (professores Wolney Ribeiro e Danilo Cesco). De forma atípica à grande maioria da turma, a minha escolha por engenharia aeronáutica foi muito mais baseada em coleguismo do que em vocação. Não nego ter tido um certo namoro com aeronáutica nos primeiros anos do Profissional, mas ele não

AFONSO DE CAMPOS PINTO 16
De forma atípica à grande maioria da turma, a minha escolha por engenharia aeronáutica foi muito mais baseada em coleguismo do que em vocação.

prosperou em função da minha percepção, durante o curso, de que gostava mais da beleza de modelos matemáticos aplicados do que da engenharia em si e todos os seus processos envolvidos. Em função disso, já no início do 5º ano fui estagiar na área de processamento de dados do Banco Itaú em São Paulo, inclusive com a perspectiva de efetivação imediata após a formatura. Mais do que um bom salário inicial e de estar na minha cidade, o que mais me atraía à ideia era a possibilidade de ter um dia livre por semana para realizar um mestrado. Neste sentido, a transição para o período pós-formatura foi bastante suavizada, dado que no semestre seguinte à nossa colação eu já estava semanalmente de volta às salas de aula do ITA no mestrado em Pesquisa Operacional. Entre os colegas nessa primeira empreitada estavam Moreau, Massaki, Nojima (Turma 81), Paulo Rodolfo (Turma 81), todos inspirados pelo meu primeiro “chefe” no Banco Itaú: Marino (Turma 78). O ex-presidente do CASD estava concluindo o seu mestrado no ITA sob orientação do Prof. Michal. Lembro-me muito bem da defesa. Inspiradora!

Nessa época já estava bastante evidente o meu desejo de ter alguma experiência no exterior. Percebi que um possível caminho seria concluir o mestrado e tentar uma bolsa para um doutorado. Depois de dois anos de trabalho e estudo concomitantes, consegui concluir todos os créditos, mas percebi que ainda teria um longo caminho para produzir a dissertação. Foi justamente quando acidentalmente me encontrei com o Suzuki (Turma 81) aguardando para ser entrevistado no mesmo

departamento em que eu trabalhava: o Departamento de Projetos Especiais. Esse encontro casual acabou tendo um imenso impacto na minha vida. Foi do Suzuki que consegui todos os bizus para obter uma bolsa de estudos do Ministério da Educação, da Cultura, dos Esportes, da Ciência e da Tecnologia (Monbu-kagakushō) do governo japonês, também conhecido como MEXT, para um mestrado em Systems Science no Instituto Tecnológico de Tóquio, além de seis meses iniciais de estudo de japonês na Osaka University of Foreign Studies. Ao ser aceito, tive que abandonar o mestrado a terminar no ITA; mas não me arrependo. Foi uma experiência muito impactante em todos os aspectos, principalmente o cultural. Fiquei no Japão entre 1985 e 1988, numa época pré-internet, sentindo-me bastante atraído e surpreendido por muitas facetas da sociedade japonesa. A experiência acadêmica foi também muito valiosa, permitindo-me observar como funcionavam os “labs de pesquisa”, não apenas na sua estrutura, mas na importância da hierarquia no seu desempenho. Os atributos desenvolvidos no ITA em muito me auxiliaram diante da possibilidade de conclusão de um curso dado todo em japonês. É quando ressoam as sábias palavras, diversas vezes proferidas nos corredores do H8, e frequentemente repetidas pelo Tim: “Só o gagá constrói…”.

Foi no Japão que fui “mordido” pelo mundo acadêmico, algo que a princípio, durante os anos de ITA, não me atraía muito. Sentia-me mais à vontade no ambiente e mais motivado. Passei a considerar fortemente a possibilidade de partir para um doutorado, mas desde que em outro local. Lá se iam três anos

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sem sair de Honshu (principal ilha do Japão)... Buscava novas experiências.

De retorno ao Brasil em 1988, retomei a posição que havia deixado via licença no Banco Itaú, mas por lá permaneci por apenas poucos meses. O foco era conseguir financiamento para um doutorado no exterior. Fui trabalhar numa pequena software-house , a Axioma, onde me reencontrei com o Nojima (Turma 81), o Calfat (Turma 81), e acabei conhecendo o Kajita (Turma 75), que dizia ter se sustentado durante os cinco anos do ITA pelo que ganhava na vidinha . Nojima e Kajita viriam a ser meus sócios mais de uma década depois. Fiquei nessa empresa por um ano, até finalmente conseguir uma bolsa de estudos do CNPq para o PhD em computação no Imperial College London, curso que se iniciou no final de 1989.

A experiência londrina é um longo e importante capítulo da minha trajetória pós-ITA. Lá, além da satisfação de ter atingido o objetivo inicial proposto, vi meus dois filhos, Lucas e Laura, nascerem, minha primeira esposa terminar sua graduação na Universidade de Londres, e tive diversas experiências interessantes e inusitadas. A mais rica, pela sua própria natureza, foi ter conseguido um emprego de warden (espécie de síndico/zelador) de um dos dormitórios de estudantes da escola, sendo recompensado com moradia gratuita em local privilegiado em Londres por quatro anos, e a chance de conviver com estudantes das mais diversas partes do mundo. Após a conclusão do curso, consegui uma posição de pesquisador associado no próprio departamento em que estudava, o que estendeu a minha permanência por

lá até o final de 1995. Durante todo esse período, viajamos pela Europa diversas vezes, principalmente para Paris, onde moravam minha irmã e o seu então marido, o Alckmar, em função do seu doutorado na Universidade de Paris. A conexão ITA em Londres acabou vindo, neste caso via Pedro Savadovsky (Turma 69), meu colega de turma de doutorado no Imperial College. Ficamos bastante próximos desde então, chegando até a uma sociedade alguns anos depois. Outra importante conexão iteana em Londres foi ter o Massaki como colega de doutorado e de peladas dominicais no Hyde Park por vários anos. Devo muito à ajuda que recebi dele em diversas situações e momentos, mas agradeço, principalmente, a grande amizade, sempre presente.

Esse período foi rico também em questões culturais e esportivas. Nesta última, tive a sorte de ter participado – e sido campeão – do time de futebol de campo do Imperial College da Liga Universitária da Greater London na temporada 19891990. Experiência tardia, mas justa, já que havia ficado “na seca” de medalhas nas cinco OIs de que havia participado até então… Em relação a questões culturais, além da abundância de museus, bibliotecas, exposições, teatro, o que aproveitei mais intensamente foi sem dúvida o grande número de shows musicais a que assisti, com inúmeras lendas vivas, na época, como George Harrison (no Royal Albert Hall), Paul McCartney, Ringo Starr, Eric Clapton, Chuck Berry, B. B. King, The Kinks, Beach Boys, e muitos outros. Foi aí que me ficou claro que, diferentemente da maioria da turma, meu gosto musical é mais “pré-1970” …

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Após quase dez anos longe do Brasil, tendo “escapado” de todos os planos econômicos dos anos 1980, da eleição e queda do Collor, e com o Palmeiras voltando ao seu devido lugar no futebol brasileiro, resolvi regressar, movido principalmente pela saudade, e por decidir que o melhor lugar para a criação dos filhos seria próximo aos avós. Tendo trabalhado por muitos anos com o desenvolvimento de modelos estocásticos aplicados à computação paralela e transmissão de dados, soube, ainda em Londres, da procura pelo mercado financeiro de cientistas de diversas áreas como matemática, estatística e computação. Foi nesse caminho que decidi me especializar e buscar a minha recolocação no regresso, assumindo que o mesmo movimento estivesse ocorrendo no país. Depois de uma rápida passagem pelo Instituto de Matemática, Estatística e Computação da USP com bolsa de pós-doutor, consegui uma posição na área de controle e gestão de risco de mercado de um pequeno banco do grupo francês AGF, o AGF Braseg, com a responsabilidade de criar e montar a área, sem saber muito bem do que se tratava. A conexão ITA, nesse caso, se deu via o Kajita (Turma 75), que havia regressado recentemente de um período no Japão. O Banco tinha como CEO seu colega de turma, Carlos Gomes (Turma 75), e o grupo AGF tinha como vice-presidente Paulo Marracini (Turma 65). Eu, como gerente de riscos tinha como par em TI o Carlos Machado (Turma 85), nosso contemporâneo no ITA, com quem viria a defender as cores do time de futsal do Banco, chegando ao vice-campeonato em 1996, em um torneio com mais de cem equipes de diversas instituições

financeiras de São Paulo. Chegamos inclusive, eu e o Machado, a jogar futsal pelo time da PEA campeão da O.I. em 1997 ou 1998, finalmente obtendo a minha primeira medalha. Embora a experiência no Banco tenha sido muito intensa e proveitosa, e com muito aprendizado em pouco tempo, lá permaneci por apenas dois anos.

Mais uma vez, via conexão ITA, surgiu uma oportunidade em uma instituição financeira de porte bem maior, o banco holandês ABN AMRO, via o Longuini (Turma 80), que havia trabalhado com o meu irmão no Citibank. Atuar como senior risk manager numa instituição global me permitiu entender e aprender os mecanismos que fazem com que instituições desse tamanho e estrutura funcionem. Permitiu-me também perceber o que me agradava nesse tipo de ambiente e o que me incomodava. Já nos aproximando do final do século passado, meio por acaso, acabei me tornando empresário, sendo um dos fundadores de um dos primeiros provedores brasileiros de software para risco de mercado – a MAPS –, tendo como um dos sócios o Savadovsky (Turma 69), aquele mesmo que havia conhecido em Londres.

Depois de cinco anos passamos por uma reestruturação societária, seguida de uma fusão que resultou na configuração atual, tendo entre os sócios Kajita (Turma 75), Nojima (Turma 81) e Germano (Turma 99). Atuamos na produção de software e consultoria para instituições financeiras tais como bancos comerciais, bancos de investimento, fundos de investimento, custódias, seguradoras etc. Atualmente sou responsável pelas áreas de pesquisa e desenvolvimento,

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e treinamento, tanto interno quanto externo. A empresa tem sido uma das minhas principais atividades profissionais durante todo o século vigente, e, por enquanto, não considero “pendurar as chuteiras” no curto prazo. Mencionei a expressão “uma das...” pois desde 2004 venho me dedicando, simultaneamente, a uma outra atividade profissional: sou professor de finanças da Fundação Getulio Vargas.

O meu ingresso na FGV ocorreu numa época em que eu já manifestava o desejo de retornar ao mundo acadêmico. Em 2004 a sempre presente conexão ITA se dá quando o Richard Saito (Turma 85), então professor da escola, me avisa sobre um concurso para ingresso de novos professores na Escola de Administração de São Paulo (EAESP). Tive a sorte de ser aprovado, por lá permanecendo até 2009, ano em que me transferi internamente para a Escola de Economia de São Paulo (EESP), menor em termos de estrutura, mas que permitia e incentivava que novas ideias e iniciativas fossem propostas e implementadas. Foi então que consegui criar e organizar o Mestrado Profissional em Engenharia Financeira, que desde 2010 coordeno, formando dezenas de mestres, e que continuamente no decorrer dos anos vem obtendo avaliação máxima pela CAPES. Vale ressaltar que o professor homenageado na nossa formatura do ITA, o Prof. Marcos Antonio Botelho, foi por mim convidado, e há tempos faz parte do corpo docente do programa.

Foi na FGV que percebi e senti a minha grande realização profissional, ao abraçar a profissão da minha mãe. Na educação, que havia me levado até ali, que havia me levado a muitos lugares, me propiciado

muitas experiências, muitas oportunidades, encontrei a grande paixão, o grande barato da minha vida profissional. E devo muito ao ITA até nessa área, pois lembro-me muito bem dos bons professores que tivemos, e até dos não tão bons, que me auxiliam no processo de contínua busca da melhor forma de transmitir o conhecimento. Não posso deixar de mencionar que foi também na FGV que consegui materializar, pela primeira vez, a percepção do passar dos anos, ao ter como aluna a Beatriz Schalka, que certa vez, por incitação paterna, ameaçou organizar um movimento de melação de prova, prontamente cortado pela raiz.

Em meados de 2019, obviamente mais uma vez via conexão ITA, fui convidado pelo Alan Fernandes (Turma 90) a participar como membro do Comitê de Riscos do Haitong Banco de Investimento do Brasil, banco chinês do qual ele é o CEO no Brasil. Essa vem sendo a minha terceira atividade profissional atual, que, muito mais do que cansativa ou demandante, considero uma excepcional nova oportunidade de aprendizado.

Seria injusto resumir a influência do ITA a apenas questões profissionais na minha trajetória até aqui. Num dos momentos mais difíceis da minha vida pessoal, a separação em meados dos anos 2000, encontrei no Butti, companheiro de longas jornadas de gagá, palavras de conforto e apoio, que muito me ajudaram. Outro aspecto que teve crucial participação iteana foi a minha conversão ao budismo, há duas décadas.

A decisão veio após quase sete anos de muitas conversas, argumentos, discussões, com o Kajita (Turma 75), e com ele, com o Nojima (Turma 81) e com o Germano

AFONSO DE CAMPOS PINTO 20

(Turma 99) divido, além da nossa relação profissional, o caminho espiritual escolhido. A carreira futebolística está infelizmente “pendurada” desde 2015, mas não posso reclamar da jornada. Joguei entre 1999 e 2013 em diversos campeonatos varzeanos em São Paulo, tendo tido a felicidade de contar com o meu filho como colega de equipe nos dois últimos anos desse período. Joguei ainda mais dois anos nos veteranos da Associação Atlética Serra Morena do Pari. O falecimento dos meus pais em 2015 (com intervalo de pouco mais de um mês entre as ocorrências) me afastou dos campos por um período que acabou virando definitivo... por enquanto. Os meus hobbies atuais são: arranhar no violão, estudar japonês pesadamente com uma professora nativa, e cuidar e

ser cuidado pela Lú, com quem divido a minha vida desde 2009. Eventualmente, devo voltar com as caricaturas... Hoje, aos 62 anos, ainda não antevejo uma aposentadoria iminente, mas sinto que quando o momento chegar continuarei atuando direta ou indiretamente com educação, em qualquer nível, de qualquer forma, mas sempre buscando ampliar e multiplicar o conhecimento e os valores fundamentais que se solidificaram na nossa experiência iteana. Reconheço imensamente a enorme influência que o ITA, aquele lugar mágico que eu via da janela do ônibus todas as férias, teve e tem na minha vida. Por isso me dedico muito à união da nossa turma, e a homenagens à nossa querida alma mater . Muito obrigado ITA, muito obrigado Turma 82, por tudo, por todos...

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Mainha

ÁLVARO CLAUDIO MAIA

Nasci em abril de 1961, na pequena cidade de Jaguaruana-CE, onde vivi até quase completar 14 anos. Estudei em escolas públicas até o 4º ano do ginásio (hoje, ensino fundamental I). Vendo um certo potencial para os estudos que eu mostrava desde pequeno, principalmente nas exatas, meus pais me trouxeram para a capital do Ceará no início de 1975 para me preparar melhor para o vestibular.

Fiz os três anos do científico no Colégio Cearense, na época a melhor escola da cidade, onde, em conversas com amigos e sem saber ainda direito que carreira seguir, soube da existência do ITA. Na época, me divertia fazendo os exames de vestibulares de engenharia, mesmo sem poder me matricular. Que diversão, né?

Pois é... Hoje, relembrando, chego à conclusão de que minha decisão de fazer o vestibular do ITA foi praticamente um desafio pessoal. Se eu era um bom aluno, por que não testar, tentando o exame mais difícil do país (pelo menos era a informação que eu tinha na época)? Não sentia muita necessidade de maiores horizontes, de morar em outro lugar, de ter mais liberdade do controle familiar, nada disso. Parece meio infantil,

mas também não dava para exigir muita maturidade de um “menino” de 15 anos, sem experiência fora do círculo família-escola. Assim decidi, e me preparei como pude, com cópias de provas de exames anteriores cedidas por colegas iteanos aqui da terrinha. Naquele tempo não havia a estrutura educacional que hoje temos aqui no Ceará, com preparo focado nos vestibulares ITA-IME e a tarefa era bem mais complicada. Para completar, no ano em que prestei o vestibular, 1977, foi a única vez em que as datas dos vestibulares da UFC e do ITA coincidiram, ou seja, ainda tive que escolher entre o relativamente seguro caminho da Universidade Federal daqui e o arriscado exame do ITA. Com a coragem típica dos adolescentes, fui pelo ITA, na verdade o único vestibular “valendo” que prestei.

Ora, era muito novo, podia perder um ano, qual era o problema? Mas as provas foram até certo ponto tranquilas e passei. Ainda lembro do meu pai fazendo uma ligação DDD (coisa rara naqueles tempos) para o ITA, confirmando minha aprovação. Enquanto eu comemorava, minha mãe começou a chorar: o filhinho dela iria para longe da família pela primeira vez na vida...

E lá fui eu para São Paulo, mais precisamente para São José dos Campos.

Cheio de sonhos, em um mundo bem diferente do que já tinha vivido, logo

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descobri que era o mais jovem da turma: iria completar 17 anos em abril de 1978. Ao me inscrever no vestibular, optei pelo curso de Engenharia Eletrônica – era o que mais me atraía pelo que já tinha lido, e pensava em vir a ser um projetista de circuitos eletrônicos. Aqui, um pequeno spoiler : não deu certo.

Devido à minha total inexperiência nos assuntos mais banais (nunca tinha comido um cheeseburger ou trocado um cheque num banco) e da minha pouca idade, além do fato de ter vindo do Nordeste, fui alvo de algumas brincadeiras dos veteranos no início do curso, mas que logo foram bem absorvidas. O lado bom é que rapidamente consegui me relacionar muito bem com meus colegas de turma, a gloriosa Turma 82, e formei amizades que marcaram minha vida completamente, ajudaram-me a crescer como pessoa e como profissional – certamente, uma das melhores coisas que aconteceram em minha vida. Por exigência do curso, entrei, como todos, na rotina de estudar bastante, mas nem tudo foi gagá. Já era beatlemaníaco, mas também conheci o rock progressivo (obrigado, Marcos Almeida, Corban, Berga), que adoro até hoje. Também aprendi a

beber cerveja (depois dos 18 anos, claro), para acompanhar os amigos nas poucas opções de lazer que a cidade nos oferecia. No H8 passei os dois primeiros anos no apartamento 117, mudando, no 3º ano, para o 103, local que acabou sendo escolhido como centro de jogos de truco da turma – mas foi muito legal, e juro que não atrapalhou o gagá. O curso foi duro, exigiu muito esforço, principalmente nos últimos anos. Acho que o saco de meter gagá já estava meio cheio (ou foi o truco e a cerveja, sei lá...), mas consegui chegar ao final sem grandes sustos, e claro que com algumas ajudas nada desprezíveis de alguns colegas. Obrigado, Celso Pasquini, por várias vezes me ajudar pacientemente, já tarde da noite, com a matéria da prova do dia seguinte, e Bruce, pela parceria no TG. Entretanto, como muitos colegas, eu também via a formação do ITA bem mais do que simplesmente técnica: era um aprendizado de como trabalhar em equipe e buscar e conseguir soluções para os problemas mais diversos e complexos que podem ser exigidos de um bom profissional de engenharia. E isso acho que nós todos aprendemos durante nossa convivência –

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E lá fui eu para São Paulo, mais precisamente para São José dos Campos.
Cheio de sonhos, em um mundo bem diferente do que já tinha vivido, logo descobri que era o mais jovem da turma.

certamente o grande diferencial da formação do ITA.

E assim os cinco anos se passaram, com a rotina de estudar, as provas e a solidão nos finais de semana e feriados no H8 – agradeço aos colegas que me convidavam para usufruir do aconchego de suas famílias de vez em quando (Marcos Silva, Gurgel, Bebeto, Cícero, Bruce, Pasquini..., desculpem se esqueci de alguém) –, a saudade da família, e as férias muito bem curtidas, nas quais aprendi a gostar mais daqui, da capital do Ceará. Impossível não citar a CV, minha primeira viagem ao exterior, quando passei quase dois meses no inverno europeu com mil dólares no bolso, em uma época antes do cartão de crédito internacional. Emocionante... Uma experiência fantástica!

Depois a festa de formatura... Tudo muito legal. Mas aí veio a hora da decisão: que caminho tomar? Havia opções no mercado local, a Embraer, em franca expansão, queria contratar a Turma 82 quase toda, mas a saudade da terrinha falou mais alto naquele momento. Surgiu a oferta de um emprego na estatal de telefonia Teleceará, onde já existiam vários engenheiros iteanos que tinham feito essa opção. O salário era bem compatível com a média do que estava sendo oferecido em São Paulo... e lá fui eu! A família adorou e eu, finalmente, fiquei bom da rinite alérgica que me acompanhou durante os cinco anos de ITA. Não tinha me dado muito bem com o clima de São Paulo, mas o clima quente e a brisa daqui consertaram tudo. Ainda bem que hoje já consigo viajar para Sampa sem ficar espirrando o tempo todo. A escolha era clara: estava optando por qualidade de vida, mas ciente de que teria poucas opções de crescimento na carreira.

Iniciei na Teleceará, até fui engenheiro nos primeiros anos, projetando sistemas de comunicação rádio-multiplex (tudo analógico ainda, é claro!), em métodos e tecnologias que não tinha estudado no curso, mas é assim mesmo: a gente sempre continua aprendendo. Depois, a natural ascensão para postos de gestão: primeiro a gerência de projetos de transmissão até assumir a nova área de telefonia celular da empresa, onde gerenciei a implantação pioneira da tecnologia aqui no Ceará em 1993, tarefa da qual me orgulho até hoje. Aí veio a privatização do Sistema

Telebras em 1998 e fui para a operadora italiana TIM, onde fiquei responsável pela Operação e Manutenção da planta celular da empresa para boa parte da região Nordeste, do Piauí até Alagoas. Foi um trabalho bem interessante e desafiador, que mesclou atividades de projeto e implantação com manutenção da rede, além de aprender a lidar com os gestores italianos ( rs ). Mas a natural centralização da empresa e inevitáveis reestruturações acabaram extinguindo meu cargo e, em 2008, tive que procurar novos rumos.

Fui então utilizar meus conhecimentos de Telecom na operadora Oi, na época comandada pelo amigo Adinho (Luiz Eduardo Falco, Turma 82), a quem sempre agradeço a força. Lá, também gerenciando a operação e manutenção da planta de telefonia fixa e celular da empresa na região MA-PI-CE, fiquei até 2014.

A partir daí, decidido a procurar opções fora das operadoras de telefonia, fui convidado pelo colega iteano Adalberto Albuquerque (Turma 86), que, nomeado presidente da Etice – Empresa de Tecnologia

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de Informação do Ceará (estatal do governo do Estado que gerencia e fornece serviços de TI para os órgãos do governo), me convidou para assumir a Diretoria de Tecnologia e Inovação da empresa, onde fiquei até julho de 2021. Foi um grande aprendizado, em contato estreito com o universo frenético das novas tecnologias nessa área.

Já estou aposentado pelo INSS, depois de ganhar na Justiça o direito de incluir os anos de ITA, e recebo renda do fundo de pensão dos tempos de Teleceará-TIM, mas não gostaria de parar de trabalhar agora, e espero ter oportunidades profissionais por mais alguns anos ainda.

Casei-me com a Dilma, que conheci aqui em umas férias, no último ano do ITA, frustrando um pouco os planos de curtir a vida de solteiro depois de formado. Brincadeira... Ela ainda é o grande amor de minha vida. Fizemos 33 anos de casados em abril de 2022 e tivemos dois filhos. Alan, o mais velho, é hoje médico neonatologista, já casado e me deu, em janeiro de 2022, minha primeira netinha, a Júlia (estou babando muito...). Ianê, a filha mais nova, chegou a fazer boa parte do curso de engenharia elétrica mas mudou de área e formou-se também em Medicina (acho que a influência da mãe enfermeira foi mais forte); casou no final de 2021 e emigrou para a Inglaterra. Uma família maravilhosa!

E continuo torcendo pelo glorioso Vozão, que finalmente começa a exercer seu merecido papel no cenário futebolístico nacional: da capital do Ceará para o mundo. Hoje, depois de quase 40 anos, às vezes fico analisando minhas escolhas.

Trabalhei sempre sediado na mesma cidade, em contraste com a carreira de

vários colegas, mas penso que fiz um bom trabalho: sou muito bem lembrado pelas equipes que gerenciei, tive uma carreira satisfatória e acho que pude contribuir com o meu trabalho para o progresso do meu Estado. Uma vida feliz, tanto no aspecto afetivo quanto no material e com bastante saúde (ainda...). Pude cultivar alguns hobbies ( off-road , rallies ), conseguimos viajar bastante, tanto aqui no país como lá fora, em turismo e a trabalho.

Sobre o off-road , foi uma época bem interessante. Fizemos muitos passeios pelo lindo litoral do Nordeste, expedições para lugares fantásticos, como a Chapada Diamantina, na Bahia, e os Lençóis Maranhenses e Chapada das Mesas, no Maranhão. A emoção dos desafios dos caminhos fora-de-estrada e o estreito contato com a natureza, além da companhia e amizade do grupo de jipeiros, deixaram ótimas lembranças.

Acabei entrando no mundo das competições, os rallies de regularidade, onde aprendi muito e me diverti pra caramba. Era uma terapia perfeita para desopilar dos desafios do dia-a-dia. Cheguei a disputar campeonatos nacionais, como a Copa Troller, Copa Mitsubishi, além do Cearense de Rally. Inicialmente nas divisões básicas, sempre conquistava troféus, o que gerou reclamações da Dilma, sobre onde guardá-los. Infelizmente esse problema acabou quando fui promovido para a “Série A” do esporte e aí os troféus desapareceram ( rs ) – como quase tudo na vida, teve seu tempo, mas foi uma época muito legal.

Mais recentemente venho focando na minha nova paixão: o mundo do vinho. Sendo um cervejeiro convicto, até que foi

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 25

surpreendente minha adesão ao vinho, há pouco mais de 10 anos. Prazer que só foi aumentando quando decidi, além de apenas beber, estudar o vasto universo dessa bebida. Fiz cursos, desde os básicos até o de sommelier profissional, visitei vinícolas fantásticas na Argentina, em Portugal, na Itália e na França e participo de confrarias de amigos para compartilhar bons vinhos. Bom demais!

Destaco minha participação no maior evento de vinhos premium do mundo, o New York Wine Experience, promovido pela revista Wine Spectator , em 2016 e 2019. Nesses eventos, tive a oportunidade de degustar os melhores vinhos do mundo (vários deles infelizmente muito caros para se ter em casa), o que certamente expandiu bastante meus conhecimentos, além do prazer de beber preciosidades, como grandes Bordeaux, Borgonhas, Supertoscanos, Barolos, Brunellos, Riojas, Sauternes, Champagnes etc. A Disneyworld para um enófilo!

Tive um pequeno susto em abril de 2021 quando contraí a covid-19, que, felizmente,

veio em uma forma muito leve. Foi mais o impacto psicológico (traduzindo, medo mesmo, não cabia um cabelo, rsrs ). Como dizem alguns amigos aqui, “dei uma voadora nesse vírus fdp”. Agora, já vacinado, é seguir em frente, mas algumas lições ficaram... como, por exemplo, tomar logo meus melhores vinhos e só guardar os ruins ( hehe ). Vamos aproveitar a vida da melhor maneira possível, enquanto podemos. Embora seja irrelevante agora, ainda fico pensando no que poderia ter acontecido se tivesse ficado em São Paulo. Talvez o projeto de morar e trabalhar um tempo no exterior, o que nunca pude fazer, uma carreira acadêmica (fiquei só na Especialização/MBA). É difícil dizer. Mas de uma coisa tenho certeza: os cinco anos de ITA foram fundamentais para tudo que consegui em minha vida. A formação da escola, o que aprendi com a convivência com essa turma fantástica (pensem no orgulho que sinto quando vejo o sucesso dos colegas) e, principalmente, as amizades que tenho até hoje, tudo isso vale muito! É inesquecível. Simplesmente maravilhoso!

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Reis de Souza

ANTONIO CARLOS REIS DE SOUZA

Antes de mais nada, registro que minha vida é abençoada por Deus e tudo que vem para mim é para o meu bem. Rogo-Lhe que me permita entender seus desígnios e tomar as melhores decisões.

A todos aqueles que tive a oportunidade de conhecer, conviver, negociar, meus sinceros agradecimentos. A cada momento, um ensinamento.

ANTEPASSADOS

Meus antepassados são de Portugal, por parte de mãe, e da Rússia, por parte de pai.

Minha mãe é neta de português que chegou ao Brasil no final do século 19, com 13 anos de idade, para trabalhar. Como bom português, trabalhou duro, poupou o que podia, terminou sócio da empresa de ferragens e material de construção onde trabalhava. Implantou uma fábrica de lança-perfume em Recife. Casou-se com uma pernambucana, do interior, cuja origem, pela cor da pele, certamente seria a Europa. Minha mãe teve quatro irmãos e duas irmãs.

Meu avô paterno, judeu russo, no início do século 20 imigrou para os Estados Unidos da América e, em seguida, para o Brasil. Passou pelo Rio de Janeiro e se radicou em Recife. Sua atividade era o comércio madeireiro. Minha avó paterna, judia russa, imigrou para Recife no início do século 20.

Meu pai teve três irmãos e uma irmã, todos da área de exatas e focados em educação. O romance do meu pai com minha mãe teve início quando ele foi seu professor nos preparatórios para o vestibular. Minhas avós não aceitavam o namoro, por praticarem religiões diferentes. E a história culminou com uma gravidez antes do casamento. Foi um momento difícil para ambos e, como era a prática da época, casaram-se, mas nunca dividiram o mesmo teto.

INFÂNCIA

Pernambucano, filho único, convivi muito com meus primos. Minha mãe, nutricionista do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, dividia seu tempo entre o trabalho e em atenção a mim. Meu avô materno, a quem tinha referência de pai, faleceu em 1966, quando eu tinha 7 anos. Perdê-lo foi uma enorme dor. A partir de então, morávamos eu, minha mãe, minha avó e minha tia caçula, ainda solteira, que veio a se casar no ano seguinte.

Sempre gostei muito de bicicleta e pratiquei vários esportes, sem me destacar em nenhum. Minha paixão, desde cedo, foi a matemática.

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Vim a conhecer meu pai quando eu tinha 9 anos. Tivemos contato durante um ano, até quando fui passar sete meses na Europa, por ocasião de uma licença-prêmio de minha mãe, direito de funcionário público, e ele se mudou para São Paulo.

Nessa época, ele tinha se casado novamente e teve dois filhos e uma filha.

JUVENTUDE

Aluno de colégio jesuíta, eu sempre me destacava nos estudos, principalmente nas disciplinas das ciências exatas.

Aos 15 anos, recebi a notícia do falecimento do meu pai, aos 36 anos, vítima de câncer. Embora não tivesse tido a oportunidade de estar próximo dele por muito tempo, o fato me deixou bastante triste.

Tomei conhecimento do ITA quando estava cursando o 2º ano do segundo grau (hoje ensino médio), ano em que estava um pouco disperso e tirando notas ruins em Física. E lembro-me, como se fosse hoje, de uma conversa com o professor de Física, Gildo Nascimento, sobre o ITA. Ele me disse: “Com essas notas, você não tem chance de passar no vestibular do ITA”. Foi um comentário excelente. Bateu em mim como um desafio e para me despertar: eu precisava me dedicar mais aos estudos.

As férias que antecederam o 3º ano passei no Rio de Janeiro e tive a oportunidade de estar com um primo, Eduardo Barata, que estava interessado no IME. Ele tentava me convencer a concorrer ao IME e eu o estimulava a fazer o vestibular do ITA. Para ele, residente no Rio de Janeiro, era bastante conveniente a escola da Praia Vermelha. Para mim, o ITA era o sonho.

Voltando das férias, ao discutir a ideia com minha mãe e minha avó, elas me desestimularam – talvez pelo receio de o filho único sair de casa tão cedo e com a possibilidade de não mais voltar para a terra natal. De fato, foi uma ducha de água fria, que me levou ao desinteresse pelos estudos. Até que, em maio, minha mãe teve uma conversa comigo e resolvemos que eu faria o vestibular do ITA.

A partir daí, foi uma incansável rotina de estudos das 7h00 às 23h00, resolvendo todas as questões de provas anteriores a que tive acesso, até às vésperas do vestibular.

Lembro-me bem do professor Borgest na aplicação da prova em Recife, a quem passei a admirar bastante, por sua atenção.

O sucesso no vestibular foi um momento divino, de muita emoção pelo sonho alcançado.

ITA

Fevereiro de 1978: mudança para o ITA. Voei de Recife para São Paulo e, conduzido pela Pássaro Marrom, desci na Dutra, carregando minha bagagem. Um mundo novo a desbravar inicia com as orientações da Divisão de Alunos, a indicação do apartamento 112 do bloco A e, como orientadora, a professora Maristela. Compartilhei meu primeiro apartamento no H8 com Alckmar, Mussio, Arthur Henrique, Horioka e Bói. Foram momentos muito agradáveis o convívio com esse grupo.

Na verdade, a Turma 82 foi uma nova família que se formou para mim. Compartilho com meus amigos que foram maravilhosos os momentos que vivemos juntos. Não posso deixar de mencionar as

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hilárias lembranças do Ceporra, com suas ordens unidas e com as piadas infames.

Guardo na lembrança o convívio magnífico com essa turma, as visitas nas férias em Recife daqueles que pude receber em casa. Registre-se que minha mãe e minha avó adoravam as visitas.

Um destaque para o caríssimo Mussio, que era um gentleman longe da escola.

Concluído o 2º ano, foi muito triste a saída de alguns colegas, como Fuad, Alckmar, Arthur Henrique. A cachaça foi muita; a ressaca foi enorme, talvez a maior de minha vida. Vida que segue.

Nas férias de fim do ano, antes do Profissional, comecei a namorar minha esposa. Na volta às aulas, me acompanhou a vontade de voltar para a terrinha e ficar ao lado de minha amada. As frequentes ligações telefônicas não satisfaziam, até que a enorme saudade me levou a trancar.

Decisão dificílima!

1980

Maio de 1980: tranco matrícula e volto para Recife. Dedico-me ao ensino de estudantes para o vestibular. Tive a oportunidade de preparar alguns vestibulandos em matemática e física. Na época, o reitor da Universidade

Estadual era um médico que havia sido meu pediatra, Dr. Figueira. Fui visitá-lo para saber como faria para ser transferido para sua Universidade, ao que recebi a seguinte resposta: “Não aprovarei sua transferência para minha Universidade. Crie vergonha e volte para o ITA”. Não podia ter sido melhor a orientação.

1981-1983

Volto para o ITA decidido a concluir o curso de eletrônica, então, longe de minha turma original, com pouco tempo para compartilhar momentos com aqueles que tanto admirava. Nova turma, também com pessoas maravilhosas, que me receberam com todo o carinho.

No 4º ano do ITA, o entusiasmo pelo ensino levou-me a dar aula na Escola Técnica de Jacareí – meu primeiro emprego com carteira assinada.

Tive a oportunidade de ser estagiário no Inpe por três anos consecutivos, de 1981 a 1983, apoiando o orientador no desenvolvimento de aplicações para análise de informações da ionosfera. Foi uma experiência maravilhosa.

O trabalho de graduação desenvolvido com Schelim, para a Telesp, foi de muito aprendizado.

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Na verdade, a Turma 82 foi uma nova família que se formou para mim. Compartilho com meus amigos que foram maravilhosos os momentos que vivemos juntos.

Concluído o curso de Engenharia

Eletrônica em 1983. Ufa! Que alívio! Que maravilha! Sonho realizado! Graças a Deus!

VIDA APÓS O ITA

• Primeiro emprego

1984: início de uma nova fase, a profissional.

Já no início do ano, noivo e casamento marcado para janeiro de 1985.

Meu primeiro emprego como engenheiro foi na empresa de processamento de dados do Banco Econômico, em Salvador – BA, contratado para participar do projeto de caixas eletrônicos, depois de uma seleção que a empresa fez nas principais escolas do eixo Rio–São Paulo, e em que contratou nove pessoas, além de outras nove da Universidade Federal da Bahia. Do ITA, foram selecionados também Nobuo e Hermann, mas este desistiu logo na integração e voltou para São José.

Eu, Nobuo, dois paulistanos e um carioca formamos uma república. Foram momentos interessantes.

Como preparação para atuar no setor de TI de um banco, fui promovido a especialização em Análise de Sistemas na Universidade Federal da Bahia. Lá permaneci por oito meses. Coincidentemente no momento em que o banco começou a discutir se passaria a ser um banco de clientes especiais ou se permaneceria como um banco popular, questionando, inclusive, a continuidade do projeto de caixas eletrônicos, recebi dois convites para trabalhar em Recife.

projetos de supervisão, controle e proteção digital de usinas e subestações.

De volta à terra natal, ao seio do lar materno, foi felicidade para todos.

No dia 17 de setembro de 1984, iniciei minha carreira na Chesf, empresa que me proporcionou muitas oportunidades de crescimento profissional e investiu na minha formação, em cursos de especialização (Tecnologia Digital em Controle e Proteção de Usinas e Subestações pela PUC-RJ em 1987 e MBA em Gestão Empresarial pela FGV-RJ em 2001) e mestrado profissional (Economia Aplicada, UFPE, 2005) e faço parte de seu quadro de empregados até hoje, 2021.

A Chesf, como o ITA, foi criada por uma visão desenvolvimentista, visionária. Nos idos 1948, a contragosto de muitos, recebeu o desafio de implantar uma usina hidroelétrica em Paulo Afonso – BA, numa região onde os mananciais aquíferos eram propícios para gerar energia para o Nordeste. Não se pode esquecer do industrial e empreendedor Delmiro Gouveia, que implantou uma usina hidrelétrica em Paulo Afonso no início do século 20 para gerar energia para sua fábrica de tecidos. Foi uma tremenda façanha!

• Companhia Hidrelétrica do São Francisco – Chesf Optei pela Chesf pelo objeto de ação:

A Chesf foi sempre movida a desafios. Com seu espírito desenvolvimentista, foi a responsável pela geração e transmissão de energia no Nordeste até o fim do século 20, quando uma reforma no setor elétrico permitiu novos participantes, num processo concorrencial, acabando com sua exclusividade. Foi nessa época a criação da Agência de Energia Elétrica e do Operador Nacional do Sistema Elétrico.

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A partir de então, o mundo da Chesf mudou. Tivemos que chavear do mundo da excelência, em que os projetos visavam principalmente a qualidade, e incorporar conceitos de custos, concorrência com empresas que se iniciavam no setor elétrico nacional.

No período de julho de 1992 até dezembro de 1995, participei do projeto e implantação do sistema de supervisão e controle digital da usina e da subestação de Xingó. Foi uma experiência memorável. O projeto, de julho de 1992 até abril de 1994, ocorreu nas instalações da Siemens em Erlangen e Nuremberg. E a partir de junho de 1994 a implantação ocorreu nas instalações da Chesf, em Xingó.

Na Chesf, permaneci como engenheiro na área de automação até março de 1997, quando assumi a gerência do Departamento de Sistemas de Informação até novembro de 1997, quando fui designado superintendente de Tecnologia da Informação, permanecendo nessa função até janeiro de 2003. Implantei a Ouvidoria em janeiro de 2009 e, a partir de junho de 2010, passei a atuar como secretário-geral.

Indicado pela Chesf, pude atuar:

– como membro titular do Conselho

Fiscal da Energética Águas da Pedra (Eapsa), sociedade de propósito

específico responsável pela Usina

Hidrelétrica Dardanelos (mandato de agosto de 2018 a agosto de 2019);

como membro suplente da Norte

Energia S.A. (Nesa), sociedade de propósito específico responsável

pela Usina Belo Monte (mandato de agosto de 2020 a agosto de 2022); e

– como membro titular do Conselho

Deliberativo da Fundação Chesf de Assistência e Seguridade Social (Fachesf) para os mandatos de agosto de 2016 a julho de 2020 e de agosto de 2020 a junho de 2024, tendo assumido a presidência do Conselho a partir de junho de 2018.

• Comitê de Cidadania

Um grupo de empregados da Chesf atua e contribui financeiramente para um comitê de cidadania que tem por objetivo dar suporte a comunidades carentes no entorno de suas instalações.

O Comitê de Cidadania dos Chesfianos de Recife – CCCR foi constituído em junho de 1993, como uma Sociedade Civil Sem Fins Lucrativos e inspirada na “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”.

Em 1999, o engenheiro e criador do Comitê, João Paulo Maranhão de Aguiar, por quem tenho o maior respeito e admiração, convidou-me a participar das iniciativas do Comitê, para implantar um curso de informática básica para as comunidades em torno da sede. De pronto, aceitei o desafio e, com a participação de vários colegas voluntários chesfianos, montamos um curso que atendeu a mais de mil pessoas na introdução da informática e ferramentas básicas de escritório por um período de 10 anos.

Depois, com mais um grupo de voluntários, montamos um curso preparatório para vestibular, que foi interrompido por ocasião da pandemia.

O sucesso dos alunos e seus depoimentos, em ambos os cursos mencionados, são motivos de intenso regozijo e emoção dos voluntários.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 31

Quando da aposentadoria do engenheiro João Paulo, assumi a Presidência do CCCR e participo de sua diretoria até então.

• Professor

Ainda em 1985, surgiu a oportunidade de substituir um professor no curso técnico de eletrônica da Escola Técnica Federal de Pernambuco – ETFPE (hoje, Instituto Federal de Pernambuco – IFPE). Posteriormente efetivado, permaneci como professor até janeiro de 2018. No IFPE, iniciei lecionando telecomunicações e redes de telefonia. Depois, participei da implantação de disciplinas de microprocessadores, redes de computadores e automação industrial. Sinto saudade da sala de aula e dos meus alunos. Parei de ensinar por falta de condições de conciliar meus compromissos da Chesf com o do IFPE.

• Família

Voltando a janeiro de 1985, casei-me com Isabel, psicóloga, filha de um médico piauiense e radicado em Pernambuco, casado com uma pernambucana, ambos pessoas maravilhosas. Diga-se de passagem, adoro minha sogra. Na época do casamento, tive o prazer de iniciar convívio com a família do meu pai.

Começamos a partilhar bons momentos com meus tios e primos e conheci meus irmãos, que moravam em São Paulo. Foram novas amizades, recheadas de carinho e emoções. Isabel e eu formamos mais uma família, com planos e sonhos conjuntos. Tivemos a bênção de ter três filhos cheios de saúde, muito equilibrados e inteligentes –Carolina (1986, médica), Bernardo (1988, engenheiro da computação) e Gabriel (1999, engenheiro mecânico) – e focamos nossa vida na educação de nossos filhos. Carolina nos presenteou com dois netos: Giovanna (2010) e Leonardo (2020), que enchem a casa de energia e alegria. Sentimos muito prazer nos encontros e passeios com toda a família.

• Finalmente...

Para finalizar, agradeço a Deus todos os momentos de minha vida. E desejo, nesta celebração dos 40 anos da Turma 82, que venhamos a nos encontrar, por pelo menos mais 40 anos, com todo o vigor, muita saúde e só felicidade. Um beijo no coração de cada um de vocês, minha família iteana.

Viva a Turma 82!

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Cascelli

ANTONIO DE ALMEIDA CASCELLI

Caros,

O que mais me aflige é a finitude. Como pensar no passado ou como avaliá-lo com os dados do presente?

Impossível e insensato.

Não sinto ou não lembro que se passaram sessenta e um anos. Não tenho memórias da infância, apenas reminiscências ou imagens isoladas.

Quase tudo o que lembro e revivo se apresenta como incompleto.

Brevemente.

Após o ITA fui para a Embraer, onde permaneci por onze anos, trabalhando com instrumentação para ensaios em voo. Gostava muito, porém tive grande dissabor e momentos de grande aflição pessoal quando o trabalho me levou para armamentos, objetos de destruição. Percebi claramente meu desconforto e resolvi desistir, num momento em que meu primeiro filho tinha apenas um ano – decisão que me marcou muito.

A família voltou para Jacutinga, terra natal minha e da Mariléa – aqui ela se dedicou a uma pequena indústria de malhas e eu à propriedade agrícola da família, e iniciei um colégio com a franquia do Anglo de São Paulo. Estávamos em 1993.

Tivemos mais dois filhos e enfrentamos adversidades práticas da vida, porém, revejo neste instante, sempre com tranquilidade, paz de espírito e harmonia.

Aqui estamos hoje. A indústria de malhas foi encerrada, a propriedade agrícola continua, bem como o colégio. Os filhos já não estão conosco.

A experiência com a agricultura, atividade que tenho até hoje, trouxe-me o aprendizado da paciência e das consequências. Uma atitude equivocada, plantio, adubação, podas, manejos na hora errada refletem após um ou dois anos numa frustração de safra. Isso também vale para medidas acertadas: serão recompensadas no futuro. Creio mesmo que isso vale em todas as situações. Aprendi a ser mais moderado, prudente e a ouvir mais do que falar.

Uma lição importante é a forma de exploração da propriedade. Utilizo a parceria com os funcionários: eles têm metade da produção e eu a outra metade, e dividimos os gastos anuais. Assim, produzimos um ótimo café e exportamos 80% da produção através da cooperativa.

Nesse meio conheci homens sábios que não sabiam ler ou escrever.

Falando da cooperativa, ao escrever vou lembrando, peço desculpas por eventuais descontinuidades; ela reúne cerca de 400 produtores de café da região e é um importante apoio aos produtores. Neste momento sou o presidente.

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A experiência com a educação formal, atividade que também exerço até hoje, está relacionada à escola com a franquia do Anglo, que vai do ensino infantil até o cursinho pré-vestibular. A escola nasceu com a filosofia de aprovar os alunos nos vestibulares, quando aqueles com esse anseio tinham que se deslocar para as cidades vizinhas. A escola iniciou em 1993 com 60 alunos.

Tive o grande privilégio de ser professor dos meus três filhos.

Com os anos, vi que apenas a formação técnica não bastava; era preciso que o aluno permanecesse na universidade, ou seja, deveria ter além do conhecimento técnico a inteligência emocional para enfrentar desafios como o afastamento da família e lidar com professores universitários, nem sempre aptos para acolher os calouros.

A introdução do ensino de filosofia e sociologia desde o sexto ano ajudou muito. Tenho grande alegria ao reencontrar ex-alunos bem-sucedidos, falando de seu modo e filosofia de vida.

Aprendi e ainda estou em processo de aprendizagem de como lidar com os jovens e com as famílias. Fica clara a conjuntura social que vivemos em nosso país, em se tratando de educação: um desastre, com consequências anunciadas e evidentes.

Fui Secretário Municipal de Educação por quatro anos e pude conviver e sentir nossa tragédia educacional. Conheci outros

secretários municipais, estaduais e até o Ministro. A cada degrau na hierarquia o conhecimento teórico vai aumentando, as concepções e filosofia da educação vão se consolidando e aparece a incrível incapacidade de realizar – a prática do professor na sala de aula é totalmente diversa. Com essa realidade, o sentimento de impotência e conformismo campeia. Uma lição que consegui tirar é que ao fazer um grande esforço para amealhar algum dinheiro e então adquirir um bem... não é dinheiro que se gasta, mas o tempo do qual tivemos de dispor para ganhá-lo. Por isso hoje o tempo é, para mim, o bem mais precioso.

Foi bom? Claro que sim, uma vez que tudo que foi feito foi com a certeza da melhor decisão naquele momento. A sabedoria manda não analisar os fatos do passado com os dados do presente; como não sou sábio procuro não pensar em decisões passadas. Exorto todos a mergulhar na vida e combater a separação entre a razão e a emoção – elas devem andar juntas e em equilíbrio; afinal, em se tratando de um olhar universal, nada tem sentido, porém, do ponto de vista pessoal, tudo faz muito sentido.

Enfim, aprendi que as pessoas ao nosso redor são o mais importante e dão sentido à vida.

Caloroso abraço a todos.

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Foi bom? Claro que sim, uma vez que tudo que foi feito foi com a certeza da melhor decisão naquele momento.

Guigui

ANTONIO GUILHERME DE ARRUDA LORENZI

Sim, lá se vão 40 anos! Bem vividos, felizmente, com alguns percalços e dificuldades, mas com muita determinação, crença no ser humano, otimismo e sempre com a presença e o apoio da família. Não há como falar dos últimos 40 anos sem algumas considerações a respeito dos outros 20 anos que os antecederam. Eu nasci em São José dos Campos em 1960, já respirando, por assim dizer, o ambiente da aviação que se instalara na cidade desde meados da década de 1940. Com o incentivo despretensioso (?) de minha família, em particular de minha mãe, que me levava com frequência a observar e mesmo a tocar aviões no aeroporto, como os Douglas DC-3/C-47, e de meus avós, que me ajudaram a construir minha pequena coleção de aviões de brinquedo, não foi difícil já naquela minha primeira década de vida ganhar o gosto por algo tão mágico, complexo e apaixonante como o mundo dos aviões. Fui agraciado talvez, e uma vez mais, com uma segunda década de vida que presenciou o nascimento da Indústria Aeronáutica Brasileira: ao longo dos anos 1970 passavam, literalmente por cima de minha casa, os Bandeirante e Xavante, além de outros, como os Universal e os Regente, o que só fez aumentar em mim a curiosidade e o gosto “pelas coisas do ar”. A opção por dedicar-me profissionalmente à aviação, portanto, mostrava-se como algo

natural à luz do que vivenciei nessas duas primeiras décadas de vida.

Da decisão de tentar entrar no ITA a efetivamente passar no vestibular, bem... foram tempos de muita dedicação aos estudos e de muito – muito mesmo –sacrifício pessoal e, também, por parte da família. Antes ainda de irmos ao objeto deste relato, os últimos 40 anos, cabem algumas poucas linhas sobre o que veio logo após o vestibular, ou seja, os cinco anos no ITA. De uma forma muito resumida, o ITA colaborou em muito para forjar não somente o engenheiro, mas também a pessoa que eu seria dali em diante. Foram anos em que o sacrifício pessoal continuou, de forma talvez ainda mais aguda, mas agora compensado, tal como tinha sido o papel da família nos anos que antecederam ao vestibular, pela minha “nova família”: os amigos que a partir dali não seriam mais tão somente amigos de faculdade, mas amigos para a vida, como bem atesta este Álbum que estamos construindo, passados 40 anos desde então. Um verbo que representa esse período? Sonhar.

A primeira década de formado, a terceira de vida, foi dedicada efetivamente à engenharia aeronáutica: viver a prática do

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aprendizado em sala de aula no chamado “chão de fábrica”. Um aspecto já chama a atenção nesse início de carreira: a pouca ênfase dada aos aspectos práticos na formação acadêmica, bem como a ausência de um conteúdo voltado à gestão, pois esta – a gestão – se fará necessária em todos os momentos de uma carreira vitoriosa independentemente, a meu ver, do caminho a ser trilhado. Foi o motivo pelo qual busquei uma formação complementar em Administração, de caráter genérico, que me abriu algumas importantes oportunidades de desenvolvimento profissional. Também foi nessa fase da vida que eu viria a constituir a minha família: esposa e filhos que teriam papel de grandíssima importância em minha jornada. Sempre pensei que, se a felicidade existe – e creio que ela existe, sim – a chance de a alcançarmos é tão maior quanto mais harmônica for a integração entre família, amigos, trabalho e saúde, física e espiritual. Assim, a busca por esse equilíbrio sempre norteou minhas ações, o que não significa necessariamente que não houve momentos de algum desequilíbrio ou de alguma “tensão no ar”. Foi também por essa época que as primeiras incursões no mundo dos negócios e da gestão começaram a acontecer, felizmente no momento em que a formação em Administração se desenvolvia a contento. O caminhar para o mundo da gestão, entendo, é algo natural pela própria formação do engenheiro, mas talvez aqui deva-se também destacar a importância da vivência no ITA, onde os desafios são grandes e não necessariamente o sucesso é garantido (entenda-se por sucesso, no ITA, a formatura após os cinco anos). Ainda que o sucesso não fosse garantido, o ITA

nos deu algo impagável: a amizade de que viríamos a desfrutar, em maior ou menor grau, com este ou aquele colega, pelo resto da vida. Amizade à prova do tempo e do tema, forjada por enfrentarmos, juntos, as grandes dificuldades, lado a lado. Os grandes desafios permitiram que parte significativa das dificuldades que viríamos a enfrentar ao longo da vida fosse vista com olhos otimistas, com olhos de quem as reconhece mas sabe que há uma boa chance de serem superadas, principalmente se contarmos com as famílias – a nossa própria e a “família dos amigos do ITA”. Um verbo que representa esse período? Construir.

A década de 1990, a última do século XX, a segunda de formado e a quarta de vida, foi marcada pela mudança: mudança de cidade e mudança de área de atuação profissional. Eu nasci, cresci, estudei e havia trabalhado nos primeiros anos de minha vida profissional em São José dos Campos. Uma mudança, àquela época da vida, poder-se-ia dizer, seria pouco provável, mas uma crise, das não tão raras, vivenciada pela indústria aeronáutica e pelo próprio Brasil, nos levou a mudar para outra cidade e outro Estado: Curitiba, Paraná. Algumas importantes lições foram aprendidas: a primeira é que, como bem sabemos (?), não temos o controle total de nosso destino. Podemos planejar, estudar minuciosamente as alternativas e tomar as melhores decisões, mas isso não garante que chegaremos exatamente aonde gostaríamos ou aonde planejamos. Por outro lado – a segunda lição – as mudanças de curso em nossas vidas podem ter efeitos positivos inimagináveis. Fomos para Curitiba, eu, minha esposa e meus filhos, de 3 e 6 anos à época, decididos a

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nos adaptar à cidade e à sua cultura, e isso foi de fundamental importância para que viéssemos a nos realizar ali, tanto no âmbito pessoal como no profissional. O “friozinho na barriga” gerado pelas mudanças, seja na questão pessoal, indo para uma cidade onde não se tem amigos e conhecida pela pouca receptividade aos “forasteiros”, como na questão profissional – fiz a minha primeira mudança de segmento de atuação profissional, deixando a aviação e adentrando o mundo da tecnologia da informação, mais especificamente o setor de software – esteve presente ao longo dos primeiros meses. Mas, e uma vez mais, o lidar com os desafios, a capacidade de adaptar-se e o trabalhar em família, tão bem vivenciados no ITA, mostraram-se como aprendizados importantes para vencer os novos desafios, a ponto de eu considerar como uma das melhores coisas de nossas vidas essa mudança, ainda que não tenha sido absolutamente planejada, em momento algum. Esse período foi marcado, também, pela mudança em definitivo para uma atuação profissional voltada para a gestão e para os negócios, mudança essa que viria a se intensificar e mostrar-se acertada ao longo da década seguinte. A engenharia aeronáutica começava a ser parte do passado, mas sempre viva – e talvez como nunca antes – no meu coração. Um verbo que representa esse período? Mudar.

E chegamos ao século XXI! Pois bem, aqui vamos para minha terceira década de formado, a quinta de vida. É aquele período marcado ao mesmo tempo por uma consolidação da carreira, quando colhi alguns resultados marcantes como, por exemplo, o reconhecimento profissional, uma certa

satisfação pelos trabalhos realizados até então (creio que uma “satisfação total” é algo ilusório) e a consciência tranquila por um caminhar coerente com as minhas expectativas e valores pessoais. A vida pessoal também pode ser considerada consolidada naquele momento e, como ouvimos com certa frequência, posso também eu afirmar que não há carreira de sucesso que justifique uma vida pessoal de fracasso. Assim, cheguei nesse momento da vida vislumbrando duas alternativas: seguir pelo caminho trilhado até então ou “agitar” um pouco a carreira. Entendi que, aos 40-50 anos de vida, valeria a pena, sim, agitar um pouco a vida profissional. E esse “agito”, no meu caso, deu-se de duas formas: voltando aos bancos escolares, fazendo inicialmente um mestrado e, a seguir, um doutorado, e mudando uma vez mais de segmento de atuação, desta feita para a difícil e complexa área da Saúde. Como assim? Um engenheiro aeronáutico administrando um hospital do SUS? Sim, por que não? E acreditem: há muita coisa em comum entre a aviação e a saúde, mas isso é conversa para um outro momento. Passados alguns bons anos desta opção pelo “agito”, posso afirmar que não me arrependo da opção feita mas, sem dúvida alguma, também que exagerei “um pouco” na profundidade da mudança. Fazer um doutorado com quase 50 anos, trabalhando normalmente, sem deixar de cuidar da vida familiar, cuidado esse pautado pela harmonia e presença, além de iniciar uma atuação profissional em um novo segmento, não foi algo simples de administrar. Por outro lado, fiz valer a minha experiência anterior relacionada às mudanças e principalmente – e lá vamos nós novamente às origens deste relato –

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 37

ao aprendizado de vida proporcionado por ocasião de nossa estada no ITA, quando a regra básica era vencer barreiras “intransponíveis”. O preço pago pela mudança de segmento foi alto inicialmente, mas compensado em um horizonte maior. Acredito que sempre temos coisas boas à nossa volta, em todas as fases da vida, ainda que alguns tenham a tendência por ressaltar aquelas não tão boas. Sempre podemos tirar bons proveitos, mesmo de situações aparentemente ruins. E esta tem sido a minha opção de vida, e não que seja algo fácil: enxergar o lado bom de todos os momentos que vivemos pois – acreditem os mais jovens – a vida realmente é curta, não importa o quanto vivamos. Um verbo que representa esse período? Estudar, ainda mais!

A segunda década do século XXI, minha sexta de vida e quarta de formado, veio acompanhada de novos e grandes desafios, como foi em geral a minha vida, ainda que muitos a vejam, por puro desconhecimento, como uma vida tranquila. Sim, na realidade tem sido tranquila, mas por conta de tantos e grandíssimos “esforços invisíveis”. Vivi nesse período, possivelmente, o auge da carreira enquanto executivo, mas também enfrentei uma segunda grande crise no mercado de trabalho no que tange a funções voltadas para a assim chamada “alta administração”. Isso me levou a

passar por experiências até então não vivenciadas: trabalhar em outra cidade durante a semana e voltar para casa nos finais de semana. Foram quase quatro anos de muita “estrada”, mas também de ganhos em termos profissionais e em termos pessoais, ainda que os sacrifícios tenham sido imensos, inclusive do ponto de vista físico. Faltava-me essa experiência “de estudante”, já que não morei longe de casa por ocasião do curso no ITA. E foi assim que encarei: uma nova experiência que me ajudou a ver aspectos da vida sob alguns pontos de vista até então não vistos. Foi também ao longo dessa década que migrei da “carteira de trabalho” para a famosa “PJ”, e posso dizer que foi uma migração relativamente tranquila. E a década terminou com o início de mais uma nova experiência: trabalhar no setor público após mais de trinta anos atuando em instituições privadas. Assim, novas experiências sempre fizeram parte de minha vida, e talvez isso tenha sido um importante combustível de minha carreira ao longo do tempo: a dinâmica da mudança, da adaptação e do aprendizado, sem deixar jamais a preocupação de retribuir aos meus contratantes – creio eu – trabalhos de qualidade, e aos meus funcionários, respeito e reconhecimento. Um verbo que representa esse período? Superar.

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Sim, lá se vão 40 anos de atividade profissional! E sessenta de vida.
E o que vem pela frente?

Sim, lá se vão 40 anos de atividade profissional! E sessenta de vida. E o que vem pela frente? Em termos materiais, profissionais ou humanos, por assim dizer, talvez uma carreira um pouco mais tranquila (?), no sentido da disponibilidade, mas não menos produtiva, e com o enfoque de compartilhar com os mais jovens experiências e aprendizados ou, em outras palavras, apontando para caminhos mais curtos, menos tortuosos e mesmo para como “...levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima...”, como diria o poeta, após alguma eventual queda. Ah, sim, e muitas viagens, praias, basquete, natação, cinema, talvez um pouco de surfe, sempre ao lado das famílias (com mais, muito mais netinhos!) e dos amigos! E do ponto de vista das coisas da alma e do espírito, creio que a contínua busca pela compreensão de que estes poucos anos que passamos por aqui –não importa quantos, são poucos – são tão somente uma passagem para o que vem a seguir e que, portanto, devemos também nos preparar para a próxima etapa, de forma serena e com conhecimento de causa

por assim dizer. Deixo, por fim, algumas palavras de um colega do ITA que ainda não tive chance de conhecer pessoalmente, Thales Muniz Soares, que me marcaram de forma singular, e que talvez representem a síntese de meu pensamento no que tange ao nosso papel enquanto profissionais e seres humanos: “Procurem reger suas vidas profissionais por um propósito maior, não somente pelo sucesso em si mesmo. Na medida em que cresçam, busquem uma oportunidade que seja congruente com esse propósito, e onde possam trabalhar naquilo que tenham paixão em fazer. Revelem em suas vidas profissionais os valores... e a honestidade, e nunca deixem de buscar o aprendizado: quando acharem que já não estão aprendendo tanto, saiam de sua zona de conforto. Seus talentos são muito preciosos para serem desperdiçados ou subutilizados”. Um verbo que representa o que vem pela frente? Acreditar.

Sim, lá se vão 40 anos! E que venham os próximos!

Sonhar – Construir – Mudar –Estudar – Superar – Acreditar

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 39

Ribeirão

ANTONIO RIBEIRO NETO

ITA

Ser engenheiro eletrônico – um sonho desde criança. Minha história começa lá na minha infância, não sei precisar o ano e o dia, uma vez que já se passaram mais de 50 anos, mas o fato em si jamais esquecerei. Eu adorava ler gibis e foi naquele dia, numa história em que algo parecia quase impossível de resolver, que o meu herói declarou “Eu sou engenheiro eletrônico” e a partir daí tudo mudou, até a solução, porém na minha vida tudo só estava começando e, obviamente, mesmo sem entender bem o que era aquilo, eu soube naquele momento: iria ser o melhor “engenheiro eletrônico”.

Objetivo traçado, mesmo com o escopo nebuloso, eu teria que me preparar para chegar lá; os desafios seriam muitos e a missão, quase impossível.

Explicando melhor: meu pai e minha mãe, ambos cearenses, já chegaram em Ribeirão Preto, onde cresci, com quatro filhos e eu tinha 6 anos de idade. Sempre trabalharam por conta própria na área de vendas porta-a-porta, portanto, ficavam praticamente o dia todo fora de casa. Minha irmã mais velha e eu ficávamos em casa e cuidávamos dos dois menores durante o dia, e de alguns

afazeres da casa. Muita responsabilidade desde criança, além de ir à escola pública próximo de casa e de algum tempo para brincar. Os anos passaram e quando chegou o meu objetivo eu sabia que ir bem na escola não seria o suficiente e que precisaria de algo mais, mas como não havia como renunciar às responsabilidades em casa, passei a estudar mais e brincar menos e ainda tinha a prova do “Vestibulino” (acho que era assim que chamavam), para se conseguir uma vaga para fazer o colegial em escola pública. Consegui a pontuação que precisava para estudar no colégio que queria: o “Dr. Tomaz Alberto Whatelly”. Nessa etapa, com meus irmãos já maiores, eu me dividia entre estudar, ajudar meus pais na empresa e praticar esportes. No 3º colegial, estava chegando a hora do vestibular... Renunciei aos esportes e consegui uma bolsa de estudos no Curso COC para estudar à noite, e ajudei meus pais a pagar, com minhas notas altas nos simulados. No COC havia uma forte pressão para os melhores alunos prestarem exame para Medicina-USP em Ribeirão Preto, mas nada mudaria meu sonho e foi no COC que ouvi a primeira vez sobre o ITA – e que teria que fazer algumas aulas de Desenho para me preparar, pois na escola pública a disciplina não fazia parte da grade escolar.

Em 1976, meu sonho estava próximo de se realizar. Eu me sentia preparado

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e certo de entrar. Prestei exame para o ITA pela primeira vez, mas minha nota de inglês não atingiu o valor mínimo. Foi aí que chegou a minha “Tropa de Elite” –minha mãe, meu pai e meus irmãos. Eu me senti mais do que apoiado e, sem perder tempo, fui atrás de uma escola de inglês. Além disso, meus pais me liberaram da ajuda na empresa, assim no ano seguinte foi só estudar, estudar e estudar.

Em 1977, prestei para Poli e ITA apenas.

Bingo: passei em ambos e fui abençoado de entrar na Turma 82! Aqui começa a minha história com o ITA, meus eternos irmãos da Turma 82 e com toda uma família de iteanos.

São muitos “causos” durante a nossa convivência no ITA, desde o trote, as primeiras velvas, a nossa primeira reunião onde aprendemos a DC, nas aulas, nas provas, no CEPORRA, na nossa discoteca Tokita, nas idas para os bares no centro (lembro-me do Amarelinho...), nos esportes, nas competições (ovos pra lá e pra cá com a Fundação, pileques e mais velvas em Colina), particularmente na sala de sinuca e nas nossas partidas de futebol no fundo do H8, nas caronas na minha bike , nas nossas noites e noites de gagá e só algumas com o tão esperado grito “Meellllaaaaaaa”!

Que saudade! Fomos muito felizes.

Nossos irmãos foram nos deixando no ITA e eu também acabei indo após três anos intensos, mas o ITA nunca me deixou e até hoje segue comigo. Vou listar, a seguir, alguns momentos da minha vida como uma forma de agradecimento eterno à nossa querida escola.

Desde que segui para a Unicamp, já fomos em turma – Turma 82 (Gusela, Catarina, Cícero, Jonas e Laertes) e na minha república Tadeu (Turma 83), Jonas, Chamon e eu. Vários professores ex-ITA foram fundamentais para a minha decisão em seguir minha formação em Telecom, e Campinas foi paixão à primeira vista, onde pude encontrar vários colegas da Turma 82. Certamente vou esquecer alguns nomes aqui: a turma do curso Integral – Luiz Cláudio, Fernandes, Alkmar e Charlão (quem diria?), Tornavoi, Fanta, Auri... e de outras turmas – Balster, Ranieri e outros.

Em Campinas comecei a vida profissional no CPqD como desenvolvedor de SW e HW para o projeto TRÓPICO-R. Fui contratado, mas logo o ITA surge: o Bruce (Turma 82) me chama para trabalhar numa empresa do sócio dele na época, a MC Microelectronics. Aí o sangue cearense falou mais alto, Mainha e Tadeu (Turma 83) me chamam para a Teleceará e acabei indo para lá, mesmo com

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Nossos irmãos foram nos deixando no ITA e eu também acabei indo após três anos intensos, mas o ITA nunca me deixou e até
hoje segue comigo.

o casamento marcado. Seis meses depois, em setembro de 1985, me casei em Ribeirão Preto com a Maria do Carmo, meu eterno amor, e passamos a lua de mel lá no Ceará. Com o apoio do Bonfim (Turma 80), que me indicou uma vaga para professor na Cefet, fui aprovado após um processo seletivo pesado. Na época criei o Curso de Rede de Computadores e, só para ilustrar o quanto isso era inovador para a época em relação aos mainframes IBM, com meus alunos montei dois desktops I7000 compartilhando uma impressora RIMA. Imaginem! Com isso convenci o chefe do meu departamento na Teleceará a montar essa mesma rede na área de planejamento. Pronto! O chefe do CPD IBM da empresa me comia com o olhar ao cruzar comigo. Como podia alguém imprimir algo na empresa fora do CPD dele? Kkkkkkk.

Após quase dois anos de convívio com o cluster de iteanos da Teleceará, retornei a Campinas, numa indústria de Telecom, a Darumatec, onde fiquei por sete anos responsável pela Engenharia de Testes, nacionalizei os PABX da Telic-Alcatel, experiência fundamental para o Jeferson (Turma 80) me chamar para montar em São Paulo (capital) o time de engenharia que traria a tecnologia do PABX/DAC da AT&T no Brasil, cujo diretor da área era o Paulo Bergamasco/ITA. Já no primeiro projeto montamos a primeira rede de PABX do Banco do Brasil interligada por fibra óptica (pioneira no Brasil) e no segundo projeto o maior call center do país, o Unibanco 30Horas. Não parou aí até dominarmos 85% de market share dos maiores call centers do país. Nesse período realizei dois grandes sonhos profissionais: ser um

executivo dos Laboratórios Bell (Bellabs) e me tornar o CTO da empresa – para ambos, preciso agradecer todo o suporte de um iteano, o Roberto Gregori (ITA/MIT).

Em 2002, após 11 anos no mesmo grupo AT&T, Lucent e Avaya, meu MBA me levou a ser convidado pelo Eugênio Staub (FGV – um dos poucos com quadro de aluno ilustre) a dirigir (CEO) o R&D Center da Gradiente em Manaus. Fiz “ponte-aérea” Campinas-Manaus-São Paulo durante três anos, nos quais tripliquei a empresa e muito por causa de outro iteano, o Mariano (Turma 84), que direcionou os recursos de P&D da Siemens Mobile para o Instituto Genius em Manaus–AM.

Retornei a Campinas, dessa vez para dirigir (CEO) o R&D Center da Ericsson, que trabalhava como uma unidade de negócio da empresa apenas, e que transformei no maior R&D Center do país, com uso de recursos da Lei de Informática, superando o Instituto Eldorado da Motorola – nisso também contei com a ajuda dos recursos do Mariano/ ITA, mas, majoritariamente, ao montar o primeiro R&D Center da Sony-Ericsson mobile terceirizado, a única operação global de desenvolvimento para os celulares da empresa sem colaboradores da própria SonyEricsson. Sony e Ericsson rompem a parceria global e uma nova fase profissional se inicia.

A minha vida de empresário começa aqui, em São Paulo, como sócio de dois iteanos e CEO na PCS, o Caio Shimada e o Pasquini (Turma 82), e o desafio era alavancar uma empresa nacional com desenvolvimento próprio num mercado altamente competitivo dos contact centers , dominado por players globais. Focamos no nicho de pequenos e médios contact centers ,

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para os quais os grandões não tinham apetite. Nessa época, estar em São Paulo me permitia uma vez por mês encontrar vários iteanos de diversas turmas, que se reuniam mensalmente numa churrascaria para uma bate-papo descontraído e com insights maravilhosos. Nesse período fiz muitas amizades que duram até hoje.

O mundo mudou e, particularmente, o dos contact centers , levando essa tecnologia para a nuvem, e foi com a chegada da Five9, maior empresa de CC na nuvem, que deixei a PCS, após quase cinco anos, para ser sócio da Nuveto (a Five9 no Brasil) e, desde o início, em 2014, já deixei claro para meus sócios que estava avaliando um mercado que eu considerava promissor –na época só isso mesmo: promissor –, o de geração de energia elétrica fotovoltaica.

Em 2022, sou sócio, há três anos, só da minha esposa Maria do Carmo, o meu eterno amor há 35 anos. Chega de outros sócios! E meu voo solo com a minha empresa

é no mercado de geração de energia elétrica fotovoltaica.

Mas como sou multitask , como consultor de tecnologia, a pedido de um grande amigo, não iteano, trouxe um projeto de redes privadas LTE com parceria com o Facebook para o Brasil, que desenvolvi ao longo destes últimos três anos, e cuja experiência nosso irmão Sérgio de Souza (Turma 82) e eu estamos avaliando juntos.

Pessoal, o que seria da minha vida sem o ITA?

À minha eterna família, minha gratidão!

Por fim, agradeço aos meus pais e irmãos, pelo suporte.

Às minhas filhas Bárbara e Amanda, que estão sempre ao meu lado.

E sou testemunha viva de que por trás de uma carreira de sucesso há sempre uma grande mulher. Ao meu eterno amor, Maria do Carmo, o meu muito obrigado.

Assinado: Riba, Ribão, Ribeirão, Ribeiro –e, desde julho de 2021, o vovô da Paola. Bom demais!

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 43

Santacreu

ARTHUR CHAVES MAS SANTACREU

Paulistano, filho de imigrantes: mãe paraense e pai espanhol que veio para estas terras com 26 anos. Corintiano por influência da colônia espanhola que adotou o Corinthians como time aqui no Brasil. Vivemos até meus 5 anos de idade na casa do meu avô materno, que era muito ampla e que acomodou muito bem meus pais recém-casados. Tive o privilégio de ser muito paparicado por avós, bisavó, tia-avó, babá... Acho que não trago traumas da infância ( rsrs ).

Fiz a pré-escola na cidade natal do meu pai na Espanha, durante um ano sabático dele em 1964. Foi a primeira vez que ele voltava à terra natal para rever irmãos e amigos. Nesse período de infância na Espanha eu falava bem o espanhol e o valenciano, que é um dialeto muito similar ao catalão.

Hoje ainda falo o espanhol.

De volta para o Brasil, fomos morar num bairro próximo da casa do meu avô no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Rua ainda de terra, muitos terrenos vazios, tempos de jogar bola na rua, taco, bolinha de gude, pião, guerras de mamona, “safáris” pelos terrenos baldios com nossas espingardas de chumbinho, passeios de

bike e carrinho de rolimã em algumas ladeiras asfaltadas das redondezas.

Entrei no primário numa escolinha de bairro também próxima de casa. Fui um aluno disciplinado, mas medíocre em termos de aproveitamento escolar. Uma curiosidade dessa escolinha – que eu vim a descobrir há poucos anos – é que a Monica do Schalka estudou na minha classe. Descobri isso quando fui convidado para uma confraternização organizada por um grupo dos ex-alunos da escolinha... na casa do Schalka! Para o ginásio meus pais decidiram me matricular no Liceu Eduardo Prado (LEP), que hoje não existe mais.

Naquela época, os negócios do meu pai (beneficiamento de arroz em Goiás, transporte e distribuição na zona cerealista de São Paulo) não iam bem. Tivemos que vender carros e casa para injetar nos negócios. Meu pai era um imigrante sem formação acadêmica, mas muito culto e empreendedor.

O LEP tinha recém-criado uma modalidade de ginásio experimental, chamado Ginásio Vocacional, e lançou um concurso de bolsas de estudo para incentivar alunos saindo da então 5ª série a se matricularem nesse ginásio. Apesar de ser ainda um aluno medíocre em termos de notas, entendi que da minha parte seria importante tentar aquela bolsa para aliviar

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um pouco a dificuldade que meus pais estavam tendo para me manter naquela escola particular. Foi a primeira vez que me empenhei nos estudos e, para surpresa geral, inclusive a minha, passei em primeiro lugar e consegui a bolsa integral que se renovaria ao longo do curso se eu mantivesse notas altas. O interessante desse ginásio é que não havia provas individuais: toda a avaliação era baseada em trabalhos feitos em pequenos grupos. As notas individuais eram definidas pelo próprio grupo, sem interferência do professor. Como eu tinha como meta manter a bolsa integral, estudava bastante, muitas vezes carregava os grupos nas costas e, no final, o grupo acabava me dando as notas de que eu precisava. Nunca estudei por gosto do estudo em si, sempre foi por necessidade, para atingir algum objetivo. Outra avaliação que faço desse período foi aprender desde cedo a trabalhar com pessoas de todo tipo e respeitar as diferenças. Os grupos tinham duração bimestral e alguns membros tinham funções definidas, como coordenador e avaliador. Nunca fiz questão de assumir essas posições de liderança nos diversos grupos de que participei. Eu fazia o trabalho pesado, tinha o reconhecimento do grupo e as notas de que precisava, mas não fazia questão da liderança. Recentemente aprendi que isso faz parte do meu temperamento fleumático. Meu desempenho tanto em termos de resultados como em termos de satisfação pessoal sempre foi melhor como mão na massa do que como gestor. Após o ginásio, fui para o Colégio Bandeirantes, por indicação dos próprios professores do LEP. As finanças da família continuavam apertadas, de forma que os descontos na mensalidade que o Bandeirantes oferecia para os melhores

alunos me mantiveram focado nos estudos. Folga apenas para assistir à “Seção da Tarde” depois do almoço e ir ao clube na represa de Guarapiranga com meu avô nos fins de semana, para velejar com ele e meus primos. Nós morávamos num apartamento alugado na rua da Consolação. Da Consolação até a rua Estela, onde fica o Bandeirantes, eram 10 minutos de bicicleta pela avenida Paulista. Fiz os três anos de Bandeirantes pedalando a avenida Paulista e testemunhando a derrubada dos belos casarões para construção de prédios comerciais. Na minha opinião, uma perda arquitetônica e histórica enorme para a cidade.

Foi nessa época, com patrocínio do meu avô, que comecei a velejar competitivamente.

Estudar no Bandeirantes era um diferencial competitivo para ter um bom desempenho nos vestibulares. Acabei pegando também uma bolsa do Objetivo, que ficava na avenida Paulista. Eu dava uma pedaladinha rápida até lá depois do jantar pra assistir a umas aulas gravadas de decoreba que ajudavam a calibrar o chute nas provas de múltipla escolha. Fiz 89 pontos na primeira fase da Fuvest. Assim como a maioria, entrei no ITA e na Poli. Decidi pelo ITA para ter a experiência de morar fora e ainda ter um pequeno salário. Nem fiz a matrícula na Poli.

No H8 morei no 115 com Zumba, Guerra, Cascelli, Wilians, Luisão, e depois no 103, com o Mainha, Corban, Butti, Adinho e Bebeto.

Desde o 1º ano do ITA eu já estava competindo na vela e no windsurf com regatas todo fim de semana. Com isso eu tinha que estudar durante a semana sem tempo pra barzinhos e sem poder ficar

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no H8 nos fins de semana. Não lembro de perrengues com professores ou estresse por notas. Sexta-feira era dia de carona pra Sampa com os pés-de-chumbo Wilians ou Guerrinha. Essa fuga pra Sampa nos finais de semana com certeza prejudicou minha vida social em Sanja. Ainda tentei socializar na cidade quando dava aulas de química orgânica no cursinho do Casd.

O ITA também me abriu a perspectiva do transcendente. Meus pais eram católicos. Fiz catecismo e primeira comunhão. Com o tempo eles deixaram de frequentar as missas e eu também, mas a questão da religião volta e meia passava pela minha mente. As aulas do primeiro ano sobre estatística e probabilidade me trouxeram o assunto de novo à tona. Eu pensava que mesmo que a hipótese da vida após a morte tivesse baixa probabilidade suas possíveis consequências não me permitiam desconsiderá-la. Comecei a frequentar um grupo de oração que se reunia à noite na capela do CTA, do qual o Fernandes e mais alguns da turma faziam parte. Achei interessante, mas aquela cantoria não casava com meu temperamento fleumático. Tinha um outro grupo, o Jasd – Jovens Adventistas do Sétimo Dia, que fazia reuniões de estudos bíblicos. Aquilo me parecia mais “científico” e comecei a participar, mas aos poucos vi que também não era pra mim. Aí veio o Christophe e me convidou pra assistir umas palestras com um padre católico do Opus Dei. Essas palestras eram semanais e eu acabei frequentando junto com o Christophe durante todo o tempo de ITA. A proposta do Opus Dei me parecia fazer mais sentido, embora eu ainda estivesse bem cético quanto às religiões. Aliás, eu sempre fui e me considero um

cara naturalmente cético – nunca acreditei em Papai Noel, cegonha, coelhinho da Páscoa, pirâmides financeiras, fórmulas pra ficar rico antes dos 30, políticos e manchetes sensacionalistas. Eu achava que se um dia viesse a ser cristão seria por milagre, dado o meu ceticismo com relação a religião. As histórias contadas na Bíblia me pareciam difíceis de acreditar, mas por algum motivo (sobrenatural?) hoje me parecem fazer todo o sentido. Resumindo, sou mais um católico convertido com ajuda do Christophe. Entendi que “meter gagá”, trabalhar, praticar esportes são meios de nos prepararmos para ser úteis, servir ao próximo, à família, à empresa, aos colegas de trabalho, à sociedade, e com isso cumprir o propósito para o qual fomos criados.

Estive na primeira missa do Christophe em Jacareí, recebi dele, junto com todos que lá estiveram, a primeira bênção pós-ordenação, que é uma tradição católica: ao final dessa primeira missa, os presentes que desejam formam uma fila no corredor central da igreja para receber, um a um, a primeira bênção sacerdotal. Adquiri o hábito que mantenho até hoje de ir à missa diariamente. Tem um livrinho de pensamentos cristãos cujo título é Caminho , escrito por São Josemaria

Escrivá e traduzido para praticamente todos os idiomas, que no seu primeiro ponto começa dizendo: “Que a tua vida não seja uma vida estéril. Sê útil. Deixa rastro...”. Vejo com alegria, pelos relatos dos colegas, que a nossa turma está fazendo isso: temos sido úteis à sociedade e estamos, sem dúvida, deixando rastros.

Em 1980, no 3º ano de ITA, fui vice-campeão brasileiro de windsurf e fui

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representar o Brasil no campeonato mundial na Hungria. Em 1981 fui campeão brasileiro e fui novamente representar o Brasil no mundial, dessa vez na Espanha. Como eram eventos oficiais, consegui com a divisão de alunos flexibilização nas faltas em aulas e em provas. Meu desempenho nos mundiais foi mediano. O windsurf no Brasil era um esporte novo e estávamos no começo da curva de aprendizado enquanto na Europa o esporte já estava muito avançado e profissionalizado. Por conta dos gastos com a viagem para o mundial de 81, não tive como participar da nossa CV, mas consegui um “encaixe” pra ir na CV dos “bixos”. Fiz só o programa de visitas de Portugal, depois foram dois meses de esqui em quase todas as estações da Europa.

Fiz estágios no Inpe, na Engesa e no IAE na área de materiais compósitos. Meu primeiro emprego foi na Embraer.

Por conta do meu TG junto com o Adinho (dimensionar, construir e testar uma empena para o foguete Sonda IV em fibra de carbono), fui chamado para uma das vagas da área de ensaios estruturais para o programa AMX, mas declinei pois não queria me ausentar do país por muito tempo para poder ajudar meu pai nos negócios. Entrei na produção da Embraer na área de materiais

compósitos por indicação do Paulo Neves. Foi uma fase muito produtiva, com viagens de benchmarking a empresas aeronáuticas como Sikorsky, McDonnel Douglas, e congressos e workshops sobre materiais compósitos. Todo o aprendizado foi aplicado na produção de peças do Brasília, Tucano, MD-11 e CBA-123. Fiz mestrado na área de materiais compósitos, orientei Tgs, publiquei trabalhos nessa área e ajudei alguns “bixos” a estruturarem mestrados também nessa área. Da produção de peças primárias em compósitos, fui para o anteprojeto do 145 durante a fase de certificação, gestão de programas no início da operação, qualidade do 145 e finalmente qualidade do 170/190. Na qualidade tive novamente a oportunidade de liderar a implantação de novos processos, só que dessa vez processos de gestão. Foi a fase das mudanças dos processos de papel para o digital. Tempos de muita resistência dos antigos, acostumados com a papelada e sua burocracia, e alguns apegados a sistemas que só rodavam no mainframe da IBM. O trabalho como gerente da qualidade tanto do 145 quanto do 170/190 foi muito gratificante do ponto de vista de poder estar com a equipe tanto no chão de fábrica, acompanhando as inspeções e testes, como ao longo do processo produtivo, voos de

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Vejo com alegria, pelos relatos dos colegas, que a nossa turma está fazendo isso: temos sido úteis à sociedade e estamos, sem dúvida, deixando rastros.

produção e voos de aceitação com clientes. A equipe de técnicos e engenheiros da qualidade era composta na sua maioria pelo pessoal antigo ex-CTA e por técnicos mais novos com experiência em companhias aéreas. Isso nos dava muita segurança para suportar os desafios de introdução e ramp-up de novos produtos. Era um trabalho de muita interação com produção, engenharia, comercial e cliente, que culminava com a aprovação final do avião, emissão do certificado de conformidade com o projeto de tipo, certificado de aeronavegabilidade para exportação, aceitação do cliente e entrega do avião.

Nesse período, eu me casei – e continuo casado – com a Izabela, que conheci em São Sebastião num campeonato de windsurf e que, além de esposa, é também minha tripulante em regatas. Fiz, junto com ela, uma pós-graduação em Orientação Familiar pela Universidade de Navarra, na Espanha. Temos cinco filhos: Miguel, estudante de medicina; Gabriel, empresário, tem uma agência de marketing (contato: https:// attri.com.br/ ); Isabela, publicitária no Itaú; Rafael, arquiteto (contato: https:// www.instagram.com/rafaelsantacreu/ ); Arthur, engenheiro pela UFABC (ufa, pelo menos um filho engenheiro!), mas que acabou se formando também em educação física e atua como empresário de esportes outdoor e treinador de atletas de alto desempenho (contatos: https://www. instagram.com/be.outtraining/ e https:// www.instagram.com/explorelife_br/).

Meu baixo desempenho escolar no primário infelizmente se repetiu nos filhos. Os quatro primeiros apresentaram muita dificuldade de aprendizado, notas baixas

e dificuldade para passar de ano. Depois de muitas idas e vindas com orientadoras, pedagogas, trocas de escola, chegamos ao diagnóstico de que todos tinham algum grau de dislexia. Só o caçula, o menos disléxico, conseguiu entrar numa universidade pública. O vídeo “Dislexia em Família” (https://youtu.be/1gduXfKw32g), feito pela ABD – Associação Brasileira de Dislexia, conta um pouco da saga da minha esposa tentando ajudar os filhos “burrinhos”.

No período de Embraer não abandonei as competições na vela. Competi inclusive como tripulante do Swiba, no barco dele, num campeonato que acabamos vencendo. O curioso é que a vela nunca foi meu esporte preferido; sempre gostei mais de pedalar e jogar bola do que de velejar, mas a vela sempre me deu muito prazer, pois foi onde consegui competir em alto nível, viajar para competições, obter boas vitórias e encontrar minha esposa. Devo ter algum dom natural para a vela que infelizmente não tenho para o futebol. Já no ciclismo acabei conquistando duas medalhas na OI pela PEA em 1985, prata no sprint de 1.000 metros, e ouro com direito a recorde na prova dos 30 quilômetros. Demos uma volta na equipe segunda colocada e fechamos os 30 quilômetros em 45 minutos, com média de 40 km/h. Nosso time de três ciclistas pedalou os 30 quilômetros em pelotão com revezamento de quem puxava e quem vinha atrás no “vácuo”. Na reta de chegada a equipe desfez o pelotão e foi cada um por si no sprint . Fui o mais rápido nesse sprint , cruzei em primeiro e fiquei com a medalha de ouro e o recorde da prova.

Em 2007 o Koike (Turma 77) me convidou para assumir a área de engenharia na Tecsis,

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que fabricava, em Sorocaba, pás eólicas em materiais compósitos cem por cento para exportação. Pedir demissão da Embraer, abrir mão de todos os benefícios dos 24 anos de casa e da posição de gerente da qualidade do principal programa da aviação comercial da empresa, o 170/190, para começar na startup do Koike me parecia um tanto arriscado. Por outro lado, a remuneração oferecida e a perspectiva de crescimento da Tecsis compensavam. A decisão foi sair da minha zona de conforto e assumir um desafio para o qual eu me sentia bastante confiante: engenharia de processos, desenvolvimento de novos produtos em materiais compósitos e chão de fábrica. O business da Tecsis era receber o desenho da pá projetada pelo cliente, fabricar o protótipo, fazer os testes estáticos e dinâmicos, realimentar o projeto em função dos resultados dos ensaios, repetir o processo, emitir todos os relatórios para certificação do produto e finalmente colocá-lo em produção. Desenvolvemos e certificamos pás para GE, Gamesa, Acciona, Siemens, Clipper, basicamente todos os grandes players . Nossas pás chegavam nos Estados Unidos mais baratas do que as chinesas, devido ao frete bastante competitivo a partir do porto de Santos. As pás são relativamente leves pelo seu tamanho e são acomodadas nos decks dos navios que levam as cargas de minério, grãos etc. nos porões. A Tecsis, em Sorocaba, se tornou, em termos de volume, o maior site produtor de pás eólicas do mundo. Produzíamos coisa de 20 pás eólicas por dia. Toda noite, nos dias de semana, saía de Sorocaba um comboio de carretas com as pás em direção ao porto de Santos. Em 2010 50% da energia

eólica gerada na costa oeste dos Estados Unidos vinha de pás feitas pela Tecsis. Naquela época cada pá tinha 37 metros de comprimento – maior que a envergadura de um Boeing 737-700. Com o tempo, o tamanho das pás foi aumentando e materiais mais sofisticados como a fibra de carbono foram sendo utilizados. Basicamente ocorre que os parques eólicos mais antigos foram construídos nos locais com ventos mais fortes. Os novos parques acabam indo para locais com um pouco menos de vento e precisam de pás maiores para que o mesmo gerador possa continuar produzindo na sua capacidade máxima. Como o aumento do tamanho implica aumento de peso, em alguns casos tivemos que trocar a fibra de vidro das longarinas pela fibra de carbono, que tem resistência e rigidez específicas bem mais altas. O dimensionamento das pás é principalmente por rigidez. As pás envergam com a carga aerodinâmica e têm que ter uma rigidez adequada para não colidir com a torre. A rigidez em torção também é calculada para que à medida que a pá envergue ocorra ao mesmo tempo uma torção que reduza o ângulo de ataque e, com isso, alivie a carga aerodinâmica. Isso é muito útil, principalmente nas rajadas que são aleatórias e o sistema de controle de pitch não consegue responder a tempo. Chegamos a desenvolver um processo de fabricação a vácuo para longarinas de fibra de carbono com a mesma qualidade de laminado das peças aeronáuticas feitas em autoclave. Para quem vibra com engenharia é gratificante participar desses ciclos de desenvolvimento partindo do desenho do produto, protótipos, testes, certificação, montagem da linha de produção e produção

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seriada. Ainda mais porque, enquanto um modelo estava em produção, já estávamos desenvolvendo o próximo. Os ciclos de vida de cada modelo foram ficando cada vez menores por conta do constante aumento dos tamanhos das novas pás.

Em 2011 o Koike vendeu a empresa. Eu saí da diretoria e fiquei como especialista. Os tamanhos das pás continuaram crescendo. Chegamos a produzir pás de 60 metros –pouco maiores do que a envergadura de um Boeing 747. Em 2016 a empresa começou a perder mercado para indústrias instaladas no Nordeste, vindo a praticamente fechar em 2018. Eu saí em 2016 e desde então dou consultoria nessa área de compósitos.

Quando fui para a Tecsis, decidi morar em Alphaville em vez de Sorocaba, para ficar mais perto dos meus filhos que já estudavam em São Paulo e poder competir mais na represa de Guarapiranga. Levei todos os filhos para o iatismo (em Sanja o esporte deles era a natação, por influência da minha esposa, que era nadadora). Do iatismo os filhos foram para a canoagem, stand up paddle , e um foi para o hipismo. Dois deles se tornaram atletas de ponta de nível internacional na canoagem e no stand up paddle . Nas campanhas do caçula para os campeonatos mundiais de stand up paddle de 2017, 2018 e 2019 pude dar meus pitacos no design da prancha. Fizemos uma prancha radicalmente diferente das demais, que resultou muito eficiente para a prova de 200 metros. Resultado: ele foi o único atleta a subir ao pódio nos três mundiais consecutivos, ficando com o bronze em 2017 na Dinamarca, ouro em 2018 na China e bronze em 2019 novamente na China. A prancha, além da preparação

física e técnica específicas para a prova de 200 metros, foi um diferencial. Em 2018, a convite de um “bixo”, o Mauricio Aveiro, associei-me a um grupo de amigos para iniciarmos um projeto de implantação de escolas de ensino personalizado de orientação católica em São José dos Campos. Somos parte de uma rede internacional com mais de 500 escolas em 38 países e com universidades de prestígio na Europa e nas Américas. Em 2019 inauguramos a primeira escola da rede em Sanja, no bairro Urbanova, 9ª da rede no Brasil: a Serra&Mar, que atende do berçário até o infantil. O projeto visa chegarmos em Sanja até o ensino médio. Estão todos convidados a nos fazer uma visita: www.serraemar.org.br.

Assim como a maioria dos relatos da turma, acho que o meu aqui também confirma a influência do ITA e dos relacionamentos com os colegas iteanos na nossa trajetória.

Desde o início da pandemia moro com minha esposa na casa que temos num bairro simples, de pescadores, em São Sebastião. Aqui praticamente não sentimos a pandemia. O povo simples daqui vive da pesca artesanal e não parou de pescar e de suprir os entrepostos. São muito solidários e ajudam os amigos e vizinhos. Peixe não faltou para ninguém. Cestas básicas também foram distribuídas pela paróquia, graças a donativos.

O bairro aqui tem padaria, mercadinho, peixarias, pizzaria, hamburgueria, boteco, academia, feira-livre, sítio arqueológico, coleta de recicláveis etc., de forma que praticamente faço tudo a pé ou de bike .

Vidinha simples ou low carbon footprint

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lifestyle , como dizem os ambientalistas. Meus filhos moram uns em São Paulo, outros em Sanja, mas frequentemente estão em beach office por aqui. Daqui consigo cumprir minhas atribuições na mantenedora da escola e cuidar dos negócios. Vou à missa diariamente num convento franciscano de mais de 350 anos que fica a um quarteirão de casa. A praia do bairro tem três quilômetros e é ótima para corridas, remadas, velejadas

e caminhadas ao som relaxante das ondas quebrando na areia. Vale a pena conhecer as praias ao sul de São Sebastião: Guaecá, Toque-Toque, Calhetas, Maresias, Baleia, Camburi, e outras. Pedalar com a Iza até Ilhabela pra almoçar ou simplesmente comer um crepe no fim de tarde é um programa frequente. Os amigos que curtem vida simples, praia, pedal, remo, vela, surfe, pesca estão convidados. E nos vemos pessoalmente em 2022. Fiquem com Deus!

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Arthur

ARTHUR HENRIQUE CÉSAR DE OLIVEIRA

Para contextualizar: ingressei e cursei os dois anos do Fundamental na Turma 82 do ITA; depois mudei para a Unicamp, onde me formei em Engenharia Elétrica-Eletrônica, mas tenho o prazer de fazer parte da grande família que é a Turma 82!

Nasci em São José dos Campos e tenho parentes formados no ITA, inclusive um tio bastante próximo, também Arthur, da primeira turma do ITA em São José (Turma 54). Sempre ouvi menções e elogios ao Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Quando pequeno, passeava com a minha família pelo CTA e aeroporto; tinha paixão por aviões; via a Embraer crescer; eventualmente um namorado de irmã ou prima era aluno do ITA... enfim, o nome ITA fez parte da minha formação. No segundo grau, fiz o curso técnico de Eletrônica na Escola Técnica Everardo Passos – ETEP, em São José dos Campos, tendo vários professores formados ou cursando o ITA. Na ETEP começou a paixão por eletrônica: fazer projetos e montar circuitos, gerar produtos!

Fiz os exames para o ITA na virada para 1978, sendo aprovado para o curso de Infraestrutura Aeronáutica, que não era minha primeira opção (era eletrônica, é

claro!). Já tinha colegas da ETEP na Turma 81 do ITA, e outros ingressaram comigo na Turma 82, o que ajudou na integração. Lembro que já nos primeiros dias de ITA, no exame médico, no alojamento provisório, na mudança para o H8, conheci figuras incríveis da Turma 82, alguns que até mudaram radicalmente de curso. Mas é impressionante que mais de 40 anos depois o pessoal continua unido via Turma 82. Tenho grande amizade e contato com parte da turma e também ótimas lembranças desse período e do pessoal que lá conheci.

O curso fundamental do ITA foi bastante intenso em número de matérias, quantidade de listas de exercício, relatórios etc. Um aspecto de que eu não gostava eram as matérias muito teóricas, profundamente focadas em teoremas, corolários, fórmulas e demonstrações, comparando com o que amigos de outras escolas mencionavam de matérias mais aplicadas e práticas. Apesar de a família morar em São José dos Campos, eu ficava hospedado durante a semana no H8 (como outros joseenses), pois isso facilitava o acesso às dependências do ITA e ao material de estudo, o contato com a turma e a troca de informações. O alojamento H8 é um dos fatores para a boa integração e unidade das turmas do ITA, com as desvantagens da proximidade dos veteranos no período de trote escolar, e

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eventual bagunça quando você precisava estudar, em contraste com o grande apoio do pessoal e as farras memoráveis.

Durante o curso fundamental, prestamos serviço militar no Centro Preparatório de Oficiais da Reserva da Aeronáutica – CPOR-AER, no qual tivemos aulas teóricas e práticas sobre armas, tiro, táticas e regulamento militares, e exercícios de Ordem Unida (marcha militar). Apesar do rigor militar no CPOR, eu o considerava um certo “descanso” das aulas muito teóricas do ITA.

No final do 2º ano no ITA, como eu não conseguiria mudar para o curso de Eletrônica, que era muito concorrido, decidi prestar vestibular para o curso de EE da Unicamp. Vários colegas da Turma 82 mudaram para outras escolas e cursos, pelos mais variados motivos. Fomos eu e uns sete colegas para Campinas (mais alguns foram antes e depois), onde montamos uma república de estudantes e posteriormente fundamos um curso pré-vestibular, o Integral, depois ampliado para curso secundário e fundamental, virando um grande colégio, graças ao talento e dedicação de alguns amigos.

Na Unicamp fiz a graduação em Engenharia Elétrica, modalidade Eletrônica,

e Mestrado em EE, Microeletrônica. Durante o curso fiz projetos de iniciação científica e estágio na área de componentes eletrônicos da Texas Instruments, junto com amigos vindos da Turma 82 do ITA. Um detalhe é que as turmas da Unicamp não têm a mesma união que vemos no ITA. Casei-me com uma campineira e temos um casal de filhos, já adultos, nenhum deles na área de engenharia. Minha vida profissional foi sempre na área técnica, e por sorte baseada em Campinas, sendo bastante focada na área de projeto de circuitos integrados –Microeletrônica, iniciando no Centro Tecnológico para Informática – CTI, depois Vértice Sistemas Integrados, que era do grupo SID/Sharp do Brasil, e depois CPqD-Telebras. Na primeira metade dos anos 1990, a área de microeletrônica sofreu grande baque no Brasil, com a abertura radical do mercado no governo Collor, e muitas empresas fecharam. Trabalhei por um tempo na Magneti Marelli, em projeto de sistemas eletrônicos automotivos, fiz um estágio curto na França e tive contato com tecnologias automotivas avançadas.

No final dos anos 1990, eu e alguns amigos fomos chamados por um ex-chefe para a montagem de um centro de

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 53
Nessa minha jornada o nome ITA não foi usado para abrir portas, até porque não me graduei lá, mas foi um bom qualificador de capacidade.

ARTHUR HENRIQUE CÉSAR DE OLIVEIRA

projetos de chips da Motorola, baseados na enorme e belíssima fábrica de celulares e sistemas de comunicação da Motorola do Brasil, em Jaguariúna. Nota: durante um período a Motorola ficou só com as fábricas no Brasil e na China, sendo que a do Brasil produzia 120 mil celulares por dia! O Brazil Semiconductor Technology Center da Motorola teve grande sucesso, crescendo de oito engenheiros iniciais para até 240 engenheiros e técnicos, desenvolvendo chips para o mercado global. No BSTC eu passei a gerenciar uma equipe de projeto de chips microcontroladores, com grande interação com equipes da Motorola em Austin, Phoenix, França, Japão e China. Em 2004 a Motorola Semiconductors foi separada do grupo, passando a ser Freescale Semiconductors, inicialmente controlada por um grupo de investimento e depois passando a empresa de capital aberto na bolsa de valores.

Saí da Freescale em um dos cortes iniciados com a crise de 2008, fui gerenciar um grupo de projeto de chips no Centro de Pesquisas Avançadas Wernher von Braun, na época com um acordo com a SempToshiba e a Toshiba do Japão, onde parte da equipe foi treinada. No Centro von

Braun desenvolvemos o chip e o tag de RFID usado pela empresa Sem Parar no sistema de pedágio eletrônico. Além de todo o projeto do chip passivo (sem bateria, alimentado pelo campo de RF), desenvolvemos o teste de wafers de silício na Malásia, projetamos a antena impressa no tag, ajudamos a desenvolver a produção do tag na China e o teste automático do tag pronto. Um projeto de grande desafio e satisfação. Aposentei-me em 2019, em um país onde, além da crise recessiva corrente, quase não há espaço para pessoas com mais de 50 anos. A partir daí, desenvolvo projetos de eletrônica de modo independente, mais como um hobby e ocupação do tempo, já que sempre gostei da área técnica. Nessa minha jornada o nome ITA não foi usado para abrir portas, até porque não me graduei lá, mas foi um bom qualificador de capacidade. Trabalhei com alguns profissionais oriundos do ITA, embora poucos, um deles na VSI, uma excelente pessoa e ótimo profissional. É incrível já ter ouvido que iteano não é bom para trabalhar em grupo, mas isso deve ter sido por um caso pontual, já que a Turma 82 e a vivência no H8 são exemplos de união e bom relacionamento.

Abraços a todos!

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Faça dos seus sonhos objetivos de vida e não esqueça de regá-los. Pense nos vários aspectos e busque o equilíbrio. Ter objetivos serve de motivação para a vida fluir.

Mantenha a cabeça ativa, confie no seu potencial de realização e tenha forças para não desistir em meio aos obstáculos que encontrar no caminho. A trajetória nem sempre é fácil e é necessário cuidado constante para lembrar que a felicidade está em suas próprias mãos.

ARY GUIMARÃES NETO

Após muita ponderação, e no último momento, o espírito de missão me inspirou e resolvi encarar o desafio.

Nasci na cidade de São Paulo, em 1960, numa típica família de classe média. Os aviões sempre estiveram presentes no meu imaginário. No ginásio, nas aulas de artes (a criatividade era muito limitada), meus trabalhos ficavam restritos à confecção de aeromodelos de madeira balsa. Só um planador voou...

Ao completarmos 40 anos de formados, a ideia de compartilharmos nossas vivências pareceu-me bastante interessante. Porém, confesso que quando o desafio de produzirmos textos com nossas experiências de vida foi lançado, dois sentimentos afloraram: dificuldade , pois não possuo o dom da arte literária; oportunidade para uma reflexão.

Ressalte-se a paciência e a insistência da Comissão Organizadora, que, incentivando a contribuição de cada um de nós, resultou nestas considerações de um engenheiro aeronáutico que optou pela carreira militar na busca de seus sonhos e na forte convicção do dever de retornar para a sociedade os investimentos que recebemos.

O empurrão definitivo ocorreu em 1973 em São José dos Campos, no 1º Salão Internacional Aeroespacial. Meu pai, sabendo da minha paixão pela aviação, me proporcionou esse passeio, e foi a oportunidade de uma vida! De fato, o Brigadeiro Paulo Vitor, então Diretor do CTA e mentor da Embraer, foi o idealizador do salão, que pela sua amplitude nunca mais se repetiu. Aeronaves do mundo inteiro estavam presentes e os produtos da Embraer, recém-criada, tiveram a oportunidade de ser expostos ao mundo.

A visão de aviões entre os mais modernos da época reforçou os sonhos de me incluir naquele mundo: o Galaxy (C-5), maior avião do mundo, os Thunderbirds com os

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Phantom F-4 (alguns anos mais tarde entrariam na minha vida mas naquele momento eu não fazia a menor ideia), o Harrier com pousos verticais, o Vulcan (que também voltaria ao Brasil em uma situação não tão pacífica).

Além da feira propriamente dita, do deslumbramento com aquelas máquinas, foi a primeira oportunidade de conhecer o CTA, o ITA e a Embraer. Ninguém da minha família estava inserido nesse mundo aeroespacial.

Voltando para São Paulo, a ideia fixa na aviação cresceu e um dia fomos, meu pai e eu, buscar mais informações sobre o assunto para arquitetar as possibilidades futuras. Procuramos o Comando Aéreo Regional (Comar IV). O Oficial de Dia nos recebeu e apresentou as opções que a FAB oferecia para o ingresso. Pela minha idade e pelas minhas pretensões, a Epcar foi a mais adequada (primeira etapa).

No ano seguinte, prestei o vestibular para a Escola e no meu aniversário em 1975 embarcava num C-47 para Barbacena. Ressalto esse período do ensino (então 2º grau) por diversas razões...

1- Longe de casa, a Escola reforçou os valores que trazia da família e acrescentou mais alguns.

2- O ensino era de alto nível, e junto com a estrutura e regime a que éramos submetidos, foi um bom treinamento para aprender a viver num ambiente de pressão.

3- O espírito de corpo, a camaradagem e o trabalho em equipe foram exaustivamente exercitados.

4- Finalmente, o desejo de me aproximar dos aviões foi aprimorado com o desejo de voar.

No final de 1977, a primeira decepção: fui reprovado no exame médico para a AFA. Não tinha a altura mínima exigida. Os médicos da Escola acharam absurdo e me aconselharam a entrar com recurso. Nesse meio-tempo, fiz a inscrição para o vestibular do ITA. Não iria desistir do objetivo do entrar no mundo da aviação...

O Cemal não acatou o recurso e eu passei no ITA para cursar Engenharia Aeronáutica. Aí veio a segunda preocupação: e se fosse reprovado novamente no exame médico? Mas, graças a Deus, dessa vez não se importaram com a minha estatura.

Então começou a segunda etapa da caminhada rumo aos aviões.

O apartamento 110 seria minha casa pelos próximos cinco anos... Pasquini (que veio da Epcar comigo, ou eu com ele, pois era mais antigo), Otto (grande amigo – hoje mora no meu prédio), Bruce, Svoll e o “Catarina”.

Ali ganhei muitos apelidos, como quase todo mundo; muito trote com foco na minha origem da Epcar; mas foi também o início de fortes amizades. No primeiro dia do CPOR, o Gilberto (acho que estava no 5º ano) me levou ao seu apartamento e me fez tomar quatro doses de pinga. Depois me liberou com um chiclete para disfarçar... e lá fui eu meio tonto para a primeira instrução militar.

O período do CPOR não foi complicado, pois não havia novidade. Mas foi divertido ver o pessoal tomando contato com os armamentos (para alguns geravam muita curiosidade) e com as idiossincrasias da vida militar.

O esforço máximo poderia ser concentrado no ensino fundamental.

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O final do 2º ano foi mais um ponto de inflexão e decisão. Resolvi fazer a opção para o quadro dos Oficiais Engenheiros. Muitas lembranças, grandes momentos, muita tensão com algumas provas... Tudo compensado pelos papos à noite, truco de fim de semana, Tokita e as corridas para “melação”... Na OI, o judô foi minha única atividade física naquele período. Bombinhas e o final de grandes batalhas de WAR. Cinco anos que forjaram sentimentos de forte camaradagem e companheirismo pelos 40 anos que se seguiram e ainda serão muitas voltas mais em torno do sol.

Um momento de tensão, que me marcou, foi o trancamento do Chamon, um grande amigo. Lembro do protesto atrás do elefante branco e que resultou numa situação delicada para mim... O pessoal da Divisão de Alunos estava fotografando o protesto e no dia seguinte fui chamado pelo Major Couto (que era nosso “bixo” e depois foi vice-diretor do CTA). Ele perguntou por que eu era o único fardado naquele protesto. E disse que, pela minha ficha, eu já deveria saber que aquela atitude não era condizente com um aspirante. Depois de uma longa conversa sobre a situação, recebi uma advertência na ficha, mas escapei de uma punição mais severa. Anos depois, trabalhando na Gerência de Projetos do CTA, tive um longo papo com ele e fiquei sabendo por que a punição foi branda. No 5º ano, mais uma inflexão. Fazia o TG na área de Transporte Aéreo e escolhi o curso opcional de Ensaios em Voo. Os instrutores eram o Cabral e um engenheiro da Embraer. Os laboratórios eram voos realizados pela Divisão de Ensaios em

Voo. Percebi que era a chance de reunir a engenharia com a possibilidade de voar. O destino aprimorou os sonhos de uma criança. Depois da formatura, os militares do ITA são designados para vários setores da Força Aérea. Naquele ano, os aeronáuticos ficaram no CTA, especificamente na Divisão de Ensaios em Voo. O programa AMX demandava pessoal especializado para dividir as tarefas no Brasil e na Itália. Assim, Cledi, Jether e eu ficamos em São José dos Campos.

Em janeiro de 1983 me apresentei na Divisão e o vice-chefe determinou que me aprontasse e fosse para o avião. Desnorteado e conduzido por um sargento, troquei de roupa (me arrumaram um macacão de voo emprestado), me equipei e fui para a linha de voo. O piloto, Major Mark, o próprio vice, me ensinou a me amarrar e, após um breve briefing na cabine, partimos para um voo de Xavante. Após uma hora e meia de ensaio de navegação, algumas manobras operacionais de ataque ao solo e acrobacias, retornamos para o CTA. O Major Mark olhou o cockpit traseiro e perguntou se eu havia passado mal. Como nada havia acontecido, ele concluiu: “serve para a Divisão”.

Comecei a ser orientado pelo chefe da engenharia, Capitão Gastão (AER – 76, formado na Epner, na França), e a estudar os manuais franceses de ensaio. Meu francês estava bem enferrujado desde a Epcar. Realizava o planejamento, executava e concluía o relatório de ensaios mais simples. O papel do engenheiro de ensaios na FAB é um pouco diferente do da Embraer. Os programas de ensaio estão completamente sob a responsabilidade do engenheiro

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 57

de ensaios. O ciclo completo, desde a definição do problema, planejamento integral da campanha de ensaios (incluindo instrumentação, logística e recursos), sua execução e análise dos dados e conclusão através de relatórios de desenvolvimento ou de certificação compõem nosso trabalho.

Mais uma vez o destino interveio. Uma visita de uma comissão da USAF (United States Air Force) ao CTA ocorreu no início de 1983. O Diretor negociou vagas na escola de ensaios da USAF e conseguiu quatro vagas (dois pilotos e dois engenheiros) para início ainda em 1983 e 1984. Já havia pilotos preparados para frequentar as escolas no exterior. Engenheiros disponíveis, só os recém-formados. Após uma discussão sobre a conveniência de mandar “novinhos”

para a USAFTPS (United States Air Force Test Pilot School), ficou decidido que eu iria no segundo semestre de 1983 e o Jether no primeiro semestre de 1984.

A missão começou em San Antonio –Texas, num estágio para língua inglesa. De manhã, aulas de inglês técnico e, à tarde, treinamento para entender papo rádio. Eu não entendia nada, nem em português, sobre os conceitos operacionais de voo... Aos poucos fui aprendendo o jargão. Dois meses estressantes, pois estava lá representando o país. Não era uma situação apenas pessoal; era uma missão oficial. Falhar não era uma opção.

Após dois meses, chegamos a Edwards AFB, na Califórnia. Nas primeiras semanas, atividades burocráticas, fichas e autorizações de segurança para setores da base, equipamento de voo, instalação residencial, treinamento de aterrissagem de paraquedas, treinamento fisiológico e

sobrevivência no deserto etc. Na escola, o encarregado do setor administrativo me chamou porque achava que minha ficha pessoal estava com dados errados. A USAFTPS é uma escola de gestão de programas de desenvolvimento de sistemas aeroespaciais. O currículo estabelece o ensino das técnicas de ensaio (incluindo a teoria básica), mas o foco é no planejamento e na gestão de programas. Portanto, os engenheiros americanos que são designados para lá são engenheiros de ensaio com pelo menos dez anos de trabalho na área em outras bases de ensaio. A média de idade gira em torno de 30 anos. Ele achou que minha idade, 23, estava errada. Confirmados os dados, fui chamado pelo comandante da Escola para um “papo”. Ele expressou sua preocupação com a falta de experiência, mas disse que a Escola me apoiaria em qualquer dificuldade.

Foi um ano gratificante e muito proveitoso. Um arranjo interessante que consegui para preencher o gap operacional foi, digamos, uma “mão lava a outra”... Havia um piloto estrangeiro e um navegador, ambos com muita experiência em combate (real) mas que sentiam dificuldade com a teoria e a matemática por trás dos temas de ensaio, desempenho, qualidades de voo, sistemas e armamentos. Assim, à noite, fazíamos uma sessão de troca de informações. Eu explicava a teoria e eles me ensinavam a prática.

Em 150 horas de voo num ano, tive apenas dois incidentes graves: uma situação de fogo no motor do F-4 e uma pane no sistema de controle de voo do A-7. No final da missão na USAFTPS, minha estada nos Estados Unidos foi desdobrada para mais

ARY GUIMARÃES NETO 58

dois cursos de extensão em Kansas, na University “Digital Flight Control Systems”, e no MIT, “Simulator Technologies”.

No retorno ao Brasil, trabalhei em programas como Tucano, prosene, míssil Piranha e diversos projetos menores de desenvolvimento e certificação.

Em 1986 participei da equipe que iria planejar e estruturar o curso de ensaios em voo no Brasil – antes, a formação era exclusivamente no exterior.

Esse curso (CEV) já está na sua trigésima edição, formando pilotos e engenheiros de ensaio nas modalidades de asa fixa e asa rotativa, além da formação de engenheiros e técnicos de instrumentação.

O CEV foi reconhecido pela SETP em 2004 e o currículo do curso é a base para a qualificação de pilotos PEV-1 pela Anac (IS nº 61-15-001-revisão-D).

Hoje o CEV é reconhecido mundialmente e existe um intercâmbio com outras escolas. Inclusive formou profissionais para a Embraer (CCEV) e a grande maioria da equipe que desenvolve os projetos atuais da empresa é oriunda do CEV.

Em 1990 fui designado para uma missão de dois anos na Itália, em Pratica de Mare, nos arredores de Roma, no Programa AMX. O desenvolvimento estava na fase de definições dos sistemas de pontaria e autodefesa e as viagens para a Sardenha eram constantes para a realização dos ensaios em voo dos sistemas e de qualificação de armamentos. Além do acompanhamento durante os ensaios, a engenharia da FAB na Itália representava o Governo Brasileiro nos diversos contratos em vigor.

Antes de embarcar, casei-me com a Nilce em março daquele ano e fomos

curtir a vida de recém-casados na Europa. Minha filha Renata nasceu na Itália em 1991. Foi um período de muito trabalho, mas também de muitos passeios. Mesmo com uma filha pequena, nunca houve dificuldade para um passeio bem planejado.

No retorno ao Brasil, em 1992, assumi a chefia do escritório de coordenação binacional do AMX e iniciei o mestrado no ITA. Em 1994 assumi a Chefia do Túnel de Vento do CTA (Divisão de Ensaios Aerodinâmicos).

Os anos 1990 foram agitados com a realização de vários cursos de carreira e de aperfeiçoamento profissional, acumulando funções no CTA. Sempre no quadro da Divisão de ensaios em voo, outros cargos foram exercidos, inclusive aulas no ITA, diretor administrativo do ITA na época do Michal como reitor etc. Fiz o MBA ITA/ESPM e a especialização em Guerra Eletrônica.

Na virada do século, novos cursos e novas responsabilidades: Cursos de Comando e Estado-Maior e ESG, adjunto ao Diretor do IAE e Gerente Técnico dos programas de modernização do AMX e do radar SCP-01, certificação dos mísseis Piranha (MECTRON) e Phyton III com as respectivas qualificações nas aeronaves de caça, avaliação dos requisitos do supertucano etc.

Encerrei minha carreira na ativa assessorando a Direção do CTA.

Começando uma nova etapa da vida, na reserva, não abandonei os ensaios em voo nem a participação em projetos aeroespaciais.

O primeiro passo dessa nova fase foi abrir uma firma de consultoria, a AGN Consultoria em Ciência e Tecnologia, pois a Embraer

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 59

queria contratar alguém para coordenar o curso negociado com o CTA – o CCEV (curso civil de ensaios em voo). O trabalho era organizar, planejar, acompanhar um curso focado nas aeronaves civis de grande porte, parcialmente conduzido pelo CTA e parte com recursos da Embraer. Esse foi o primeiro trabalho realizado como civil.

Concomitantemente ao CCEV, o CTA estava em fase final de montagem do VANT (Acauã) e precisava iniciar os ensaios em voo. Fui contratado pelo projeto para desenvolver a metodologia de ensaio e gerenciar as campanhas subsequentes de desenvolvimento do veículo. Nesse projeto, comecei a voar de helicóptero, que era o veículo mais adequado para o acompanhamento dos voos. O programa consistia no desenvolvimento de um sistema de guiamento e navegação; depois, numa segunda fase, pouso e decolagem automáticos (poucos veículos no mundo tinham essa capacidade naquela época). Tivemos um pouso forçado do VANT num canavial em Pirassununga, onde, para recuperar o veículo, tivemos que fazer rapel operacional do helicóptero para evitar um incêndio. Foi intenso: utilização de uma manobra treinada, mas nunca executada em uma situação real.

Outros contratos e projetos realizados pela AGN até 2012:

• Consultoria a pequenas empresas de LSA ao programa Br2020 da Anac.

• Consultoria à IAI na concorrência da compra do VANT para a FAB.

• Planejamento e orientação (primeiro semestre de 2012) no projeto de VANT de grande porte para o Ministério da Defesa da Coreia do Sul. Essa consultoria

foi bastante delicada, devido ao sigilo envolvido e ao estado de guerra entre as Coreias. Era vigiado o tempo todo e toda semana precisava justificar minhas saídas etc. Entretanto, minha estada na Coreia foi bastante significativa. O país é muito bonito, mas muito fechado.

• Consultoria à IAI na concorrência ao SISFRON (volume de offset oferecido) e planejamento para integração a outros sistemas, como o SIVAM e SISGAAz.

Em outubro de 2012, aconteceu uma tragédia na minha vida pessoal: minha esposa faleceu. Foi o pior momento da minha vida receber a notícia e depois transmiti-la para minha filha, que cursava o 4º ano de Engenharia Química na USP, em Lorena. Depois de um período natural de luto, reorganizei minha vida, e procurei dar mais atenção a minha filha, pois estávamos sozinhos e um precisava apoiar o outro.

A vida segue e outros trabalhos apareceram a seguir, como uma nova consultoria para a IAI, agora na concorrência do KC-X, também na proposta de offset , mas com toda a coordenação subsequente incluída. Essa concorrência foi vencida pela IAI, porém não implementada pela FAB por falta de recursos.

Em conjunto com um outro piloto de provas, meu ex-aluno do segundo CEV, montei um curso, aprovado pela Anac, para classificação PEV-2 de acordo com a IS nº 61-15-001.

Esse curso foi ministrado para a Embraer, que contratou para realizá-lo também na Indonésia, após a venda dos A-29 para aquele país. E lá fomos conhecer mais um país asiático. Ambos os cursos ocorreram em 2014.

ARY GUIMARÃES NETO 60

Ainda em 2014, o Tenente Brigadeiro Amaral assumiu o DCTA. Ele, companheiro de turma de Barbacena, pediu-me para prestar um serviço como TTC (contrato para prestação de serviço denominado “tarefa por tempo certo”). A missão era organizar o setor de planejamento e orçamento do IAE e controlar os projetos, desenvolvendo uma metodologia de classificação de prioridades. Essa necessidade de reorganização interna foi consequência de mudanças na legislação do país e de mudanças do planejamento estratégico da Força Aérea. Fiquei nessa tarefa até 2016, quando a Embraer me chamou para repetir o ocorrido dois anos antes. Dois cursos PEV-2, para ela própria em São José dos Campos e outro na Indonésia, um país muito bonito, com um povo alegre e hospitaleiro (o oposto dos coreanos), tolerante para assuntos religiosos e étnicos, mas bastante severo com criminosos. Uma boa combinação. Um tempo depois, apareceu mais um desafio na área de ensaios em voo: desenvolver uma metodologia de ensaio e certificação e ministrar um curso adaptado a dirigíveis. O contrato foi patrocinado pela ADB (Airship do Brasil), localizada em São Carlos – SP. Foi um

trabalho gratificante e desafiador. Os resultados foram bastante relevantes.

Em 2017 foram meus últimos voos de ensaio (até o momento, pois ainda procuro outro projeto que necessite de ensaios em voo e pretendo continuar voando). Os voos foram no protótipo do B-250, uma aeronave da classe do A-29, projetada e produzida pela Novaer, com financiamento da Callidus dos Emirados Árabes.

O projeto do B-250 depois do Dubai Air Show (novembro de 2017) foi interrompido por desavenças entre os sócios. Os árabes estão tentando prosseguir sozinhos com boa parte da equipe técnica brasileira. Outro fato relevante em 2017 foi encontrar uma nova companheira de vida, a Madeleine.

Em 2018 recebi nova proposta da direção do DCTA para participar da organização de um novo setor ligado diretamente ao comandante. O núcleo trata da Gestão da Inovação, coordenando os projetos do DCTA e o relacionamento com a indústria. Esse núcleo (NGI) trabalha em quatro frentes: gestão do portfólio, gestão do conhecimento, propriedade intelectual e transferência de tecnologia e prospecção tecnológica. Com outro contrato TTC assumi a chefia da Divisão de Prospecção Tecnológica até dezembro de 2020.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 61
Busque os melhores caminhos para alcançar seus sonhos. Nunca deixe os obstáculos derrotarem você. É como nos comportamos depois da queda o que nos define.

Com as limitações da pandemia, muitas oportunidades foram adiadas ou canceladas, principalmente no exterior. Assim, em 2021 participei da organização de um curso de pós-graduação patrocinado pela Etep e pela Sirius, na área de Ensaios em Voo. Para os pilotos, a graduação é equivalente ao PEV-2 pela classificação da Anac.

A carreira dentro das Forças Armadas pode parecer monótona, mas traz muitos desafios se você se dedicar e procurar sempre se aperfeiçoar (sem acomodação). Os valores aprendidos desde a Epcar e depois aprimorados no ITA nortearam minha carreira e principalmente minhas atitudes. Na vida particular, sempre busquei o equilíbrio nos diversos papéis que a vida nos impõe.

A área de ensaios em voo é peculiar, pois lida com problemas novos, mas a experiência tem muito valor. Caminhar ao longo dos limites do envelope de voo nos traz uma perspectiva de vida. Coragem frente ao desconhecido, excelência na execução das tarefas, trabalho em equipe, responsabilidade, adaptabilidade e integridade, a busca incessante pelo conhecimento e outras qualidades essenciais em qualquer atividade, só que aqui, normalmente, estão em jogo vidas. O melhor lema que vi vem da escola inglesa de ensaios em voo: “Learn to test, test to learn”.

Outro aspecto importante é o compartilhamento dos conhecimentos e experiências adquiridos. A participação na montagem e execução de diversos cursos sobre o assunto é uma maneira de fazê-lo. “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina” (Cora Coralina). Busque os melhores caminhos para alcançar seus sonhos. Nunca deixe os obstáculos derrotarem você. É como nos comportamos depois da queda o que nos define. O espírito de missão vai muito além do profissionalismo; sempre que tudo o mais parece perdido, é dele que extraímos forças para continuar na labuta sem esmorecer. Projetos relevantes, com bons resultados nem sempre vão adiante. Não podemos nos abater... Às vezes podemos ir parar num museu... (MAB – Projeto REVO no Xavante – Engenheiro Curinga 11 – Tenente Ary). As circunstâncias fora do nosso controle nos atrapalham... Adapte-se e prossiga. Acredito em Hemingway: “Os melhores capítulos de uma biografia ainda estão para ser escritos”... se você ainda estiver vivo, claro!

P.S.: Dedico minhas vitórias a minha falecida esposa, meu alicerce em vida e minha inspiração até hoje. Hoje, 2022, completam-se dez anos de sua ausência. Que o Grande Arquiteto do Universo a ilumine onde quer que ela esteja.

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Carmo

AUGUSTO OLIVEIRA DO CARMO

“DETESTO ESTAR NUM LUGAR EM QUE EU SEJA O MELHOR!”

Essa frase não é minha, não sei quem é o autor nem de quem a ouvi pela primeira vez, entretanto eu a tenho usado há tantas décadas que sinto como se minha fosse. Ela traduz o anseio por estar no meio de gente boa, muito boa, o anseio de aprender, ter novas referências e tal. Essa era a minha situação pré-ITA. Eu sempre fui o melhor por onde passei, desde o primário numa escola municipal em Campo Grande (então MT, depois MS), o exame de admissão para o ginásio numa escola estadual, considerada a melhor escola da cidade na época, o científico/colegial, tudo. A minha referência para comparação era quase sempre eu mesmo. Buscava a própria superação, somente.

Quando entrei no ITA e comecei a conhecer meus companheiros, colegas, amigos... quanta gente boa! Eu me sentia entre os melhores. De longe, estava num lugar onde eu não era o melhor. Admirava tudo e todos. O ITA em geral e a Turma 82 em particular foram os grandes pêndulos que mudaram as minhas referências.

Voltando um pouco, eu pretendia começar meu relato com “yo tengo tantos hermanos, que no los puedo contar” , justamente pela importância e a consideração que eu tenho pela Turma 82. Entretanto, essa linda frase

já tinha sido magnificamente utilizada pelo meu irmão mais novo do 116 (o caçula Ruy). Restaria para mim acrescentar “y una novia muy hermosa, que se llama Libertad!” Apesar de belo e de referenciar um valor muito importante para mim, preferi mudar... Com esse preâmbulo, gostaria de começar contando que venho de uma família de classe média baixa, filho de um pai com primário incompleto mas que se tornou topógrafo do então DNER, razão pela qual morei em vários lugares no início da infância até que ele decidisse se estabelecer em Campo Grande para “criar os filhos”. Por sorte, o ensino público era muito bom naquela época e eu tirei muito proveito disso até que, à época do colegial, começou a derrocada do chamado ensino público. Havia um “cursinho” recém-inaugurado na cidade – o Preu (pronunciava-se “préu”, de “pré-universitário”), que alguns anos depois foi comprado pelo Objetivo. Eu participei de um simulado de vestibular quando estava na metade do 2º colegial, fui muito bem e ganhei uma bolsa para cursar o 3º colegial junto com o cursinho. Pasmem: foi nessa ocasião, no 2º colegial, que ouvi falar do ITA pela primeira vez.

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CARLOS

Eu sempre tinha comigo que queria ser engenheiro, que seria a extensão, ainda que longínqua, para a profissão que meu pai teve. Ao longo do tempo defini que queria ser engenheiro mecânico, fascinado que era por carros. Pensava na indústria de carros. Adorava ver os aviões. Havia rota comercial em Campo Grande e havia os muitos aviões militares. Por estar localizada em região próxima à fronteira, Campo Grande tem muitas bases militares, inclusive uma base aérea muito importante. Sempre tínhamos Esquadrilha da Fumaça em eventos na cidade. Entretanto, eu nem sabia que existia Engenharia Aeronáutica. Para mim, seriam engenheiros mecânicos que “fabricariam” aviões, mas isso era algo que estava muito longe, nem fazia parte dos sonhos. Eu me contentaria com a indústria de carros. Brinquedo de “criança”. Quem me falou do ITA pela primeira vez foi um colega e amigo, o Edson. Ele também era muito bom na escola, mas se vangloriava do seu irmão mais velho, que estava no ITA – o Hudson, da Turma 79 (de quem ninguém vai se lembrar, pois era muito mocado). Perguntei o que era o ITA. Ele o colocou como algo muito acima, distante, que não era para qualquer um. Acho que foi isso que me levou ao ITA. Soou como um grande desafio. Eu tinha planejado fazer vestibular para Engenharia Mecânica na UFMG, onde teria algum suporte de familiares mas, a partir de então, pus na cabeça que queria o ITA. No cursinho, as pessoas sabiam que eu faria vestibular para o ITA e uma meia-dúzia de colegas também fariam. Só pelo fato de ser alguém que faria vestibular para o ITA já me olhavam como um bicho diferente. Só falo isso para mostrar que o ITA começou a influenciar minha vida

antes mesmo de eu entrar na faculdade. A minha vida começou a mudar aí, mas ainda faltava um “detalhe”: passar no vestibular.

O VESTIBULAR

O cursinho Preu era um preparatório para as escolas de Campo Grande e outras escolas semelhantes, com o vestibular da Fuvest (lembram-se?) mas eu precisava me preparar para o ITA. No cursinho não tinha desenho geométrico, nada; eu nunca tinha visto isso nas escolas públicas, e teria que enfrentar uma prova específica dessa matéria. Tive que estudar sozinho. O meu amigo Edson conseguiu um livro de desenho emprestado do seu irmão, o Hudson. Sou eternamente grato a esse livro. Foi a minha salvação.

Eu tinha considerado que poderia não passar na primeira tentativa para o ITA, então o plano seria começar a cursar Engenharia na UFMG e me preparar para uma segunda tentativa. Era tão soberbo que achava que na UFMG passaria, com certeza.

Essa foi a razão pela qual eu fiz o vestibular em Belo Horizonte. Eu me lembro do Diniz chegando para a prova, levado pelo pai, mais um amigo (Otto?). O vestibular lá foi coordenado pelo Professor Stepaniak, que ficou na minha sala. Eu ainda estava em BH quando o meu pai avisou que um amigo meu que estava de férias no Rio de Janeiro vira o meu nome na lista de aprovados, no jornal. Que alegria e que sufoco! Eu precisava ver com os próprios olhos o meu nome na lista, e não encontrava o jornal do dia anterior em BH...

Alguns dias depois, fui ver o resultado na UFMG só pra ver meu nome no mural. Já havia descartado essa possibilidade.

CARLOS AUGUSTO OLIVEIRA DO CARMO 64

O H8

O H8 foi uma das melhores “escolas” que tive. Escola de vida, de relacionamento, de aprendizado, de concessão, de negociação, mas principalmente de amizade. Os membros da gloriosa Turma 82 não têm ideia da importância que tiveram e têm para mim. Tenho carinho, respeito e uma admiração muito grande por todos.

Eu via unidade num universo o mais heterogêneo possível. Sempre achei que as dificuldades nos uniam. Os milicos nos uniam. Fui parar no “famoso” 116 porque foi a vaga oferecida. Ali, formamos uma “família”. Eu era de longe e de alguma maneira me senti muito acolhido pelos demais membros. Éramos, e provavelmente ainda somos, muito diferentes entre nós, mas nos completávamos, nos respeitávamos e nos ajudávamos. Havia e há confiança.

O Reinaldo e o Enderson me emprestavam o carro – vejam que maluquice: e eu nem carteira de motorista tinha! O Ruy me emprestava a sua linda moto (acho que foi a primeira Yamaha TT 125 que apareceu por aquelas bandas, e em seguida o Luisão também teve uma). Costumo dizer que moto, escova de dentes e mulher não se emprestam, nessa ordem de prioridade ( hahaha ), e o Ruy me emprestava a moto!

Com o Reinaldo eu fui pela primeira vez à praia, em Lagoinha – Ubatuba. Só tinha “ido” à praia quando bebê, em Salinas, no Pará, mas essa vez não conta. O 116 mereceria um relato à parte! Mas o H8 me forjou. Eram diferentes vieses políticos, esportivos, culturais. Sou o que sou hoje, como pessoa, graças à sólida base moral e ética que minha família me deu e ao H8. Eu nunca, nunca, vou esquecer as OIs, a Meia-salada Edgardo, a sala de sinuca, o truco, as velvas, os gagás monstros, as melações de última hora, a guerra d’água, o dia em que frustramos uma tentativa de velva no 116 ( hahaha ), a velva no Ribeirão no dia do jogo do Brasil contra a Suécia, o porre de vinho do Suguita, o pijama e o chazinho do Moreau, o nojo que o Marcelo tinha das nojeiras que aconteciam a toda hora, como os arrotos do Mussio ( hahaha ), o “Hoje tem iogurte” para acordar o Reinaldo, as idas para Aparecida do Ruy, os bumerangues para canhotos construídos pelo Mayoral, as peladinhas de futebol no campinho de árvores, o Mainha medindo a temperatura de madrugada no meio da rua... Uma passagem interessante ilustra a nossa unidade na diversidade. Em 1981 (de acordo com a cola que o Akutsu me passou), eu já estava em Campo Grande

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 65
Éramos, e provavelmente ainda somos, muito diferentes entre nós, mas nos completávamos, nos respeitávamos e nos ajudávamos. Havia e há confiança.

com minha família e eis que passam por lá três dos amigos viajando rumo à Bolívia. Podem pensar num grupo mais diverso que Reinaldo, Akutsu e Busatto? Pois é, esses três me deram o prazer de passarem por minha casa em Campo Grande, a caminho de sua viagem à Bolívia. Foram de trem e iriam tomar o chamado trem da morte...

Falando em viagem, vale a pena um comentário sobre a CV. A decisão de ir ou não precisaria ser tomada no começo do 4º ano para tentar angariar a grana necessária, a menos que se tivesse muita grana e não fosse necessário levantar pelos meios disponíveis junto às empresas, para a viagem “técnico-cultural”. No mesmo dia em que alguns veteranos nos apresentaram a CV – o processo e como funcionava –, houve um espaço para o pessoal do CASD (Pacheco) falar conosco e passar a visão deles sobre a CV. Achavam que devíamos colocar esforços em ações político-sociais em vez de levantar grana para uma atividade extremamente elitista. Bem... eu já não tinha grana, e levantar grana da maneira proposta me pareceu muito difícil; achei que seria um enorme esforço e eu acabaria não conseguindo de qualquer maneira. Eu mal tinha grana para viver e ainda estaria procurando levantar grana para ir para a Europa! Aquilo me pareceu sem sentido. Resultado: comecei a me envolver mais com as discussões sociais. Aproximei-me de um grupo de amigos comunistas (cujo partido então era proscrito) em Campo Grande, participei de campanhas para eleger comunistas infiltrados no MDB, atuei em campanhas em São José dos Campos, distribuía os jornaizinhos Voz da Unidade , e lia todos. Noves fora e sem muita delonga,

hoje eu me arrependo. Não do que eu fiz, que me agregou muito, mas do que eu não fiz, que foi ir para a Europa com a maioria dos meus amigos. Quantas histórias ainda isso rende, décadas depois! Gosto de ouvi-las e de sentir a união ainda mais forte que a viagem gerou no grupo. Hoje, para um “bixo” que me perguntasse, eu diria: “Vai!”. Para sobreviver naquela época eu contei com o soldo do CPORRA nos dois primeiros anos. No 3º ano, o que fazer?

Bolsa do CNPq. Consegui uma bolsa com a ajuda do Professor Vilhena, da Astronomia, para desenvolver uns cálculos de órbita de satélites artificiais. Tudo muito teórico. Mas tinha que apresentar o resultado e eu postergava, postergava... e o Professor Vilhena não sabia mais o que fazer para que eu avançasse. Chegou a pôr uma moça muito bonita (de cujo nome não me lembro mais, mas me recordo que era irmã do Kevin da Eletrônica), que estava fazendo mestrado, para trabalhar comigo como uma maneira de me incentivar, mas... nada! Foi um sufoco para ele, coitado. A família do 116 chegava a fazer promessa para que eu trabalhasse. No final, consegui fazer o relatório, entregar e ser aprovado. Tenho quase certeza de que o Vilhena ajudou a acochambrar.

Acho que o Professor Vilhena já faleceu. Para o 4º e 5º anos, conseguimos, o Moreau e eu, um estágio no famoso PMO – Divisão de Motores. Precisaríamos trabalhar 80 horas mensais, o que era impossível, mas o velho e bom Engenheiro Mandl nos quebrava o galho. Podíamos fazer coisas no H8. O salário era o dobro do que os estágios em geral pagavam na época. No 4º ano, também dei aulas por um período numa escola pública. Foi nessa

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época que tive que tirar o RG no Estado de São Paulo, que é o que tenho desde então. Era necessário ter RG de São Paulo para dar aulas em escola do estado.

No PMO, Moreau e eu fizemos grandes trabalhos. Lá fizemos juntos o nosso TG. Na época, estavam desenvolvendo um grande motor a álcool para caminhões e ônibus (época do Pró-Álcool, lembram-se?). Boas lembranças!

Um parêntese no tema: foi graças ao PMO que eu conheci a Valéria, minha esposa. Ela trabalhava no IFI em frente ao PMO, mas nunca tínhamos nos visto. Quando nos formamos, o Moreau e eu fomos ao PMO para nos despedir do pessoal, no dia 22 de dezembro. Eu iria informar que declinava da oferta para continuar lá e que aceitaria a oferta da Embraer. Eles tinham planejado um almoço de fim de ano na Churrascaria San Cristóvan, que até hoje existe (aos pedaços) no final da Avenida

Cassiano Ricardo em junção com a Rodovia Presidente Dutra. Aceitamos. Lá, a Valéria também estava em almoço de fim do ano com o pessoal do IFI – aí nos conhecemos.

O ITA

O ITA fez toda a diferença para mim!

Foi o que ditou o rumo da minha vida. Poderia até ter sido melhor se tivesse sido em outra faculdade, mas isso nunca saberemos. Eu sou do tipo que busca extrair o melhor com o que se tem. Isso pode ser bom por um lado, mas também me torna menos questionador.

Aprendi muito com todos os professores, independentemente do conceito que tínhamos de cada um deles. Acho que a grande demanda, a carga de trabalho, a

estruturação dos cursos e, principalmente, o nível dos alunos, tudo isso aliado à DC, faz a fórmula de sucesso. E acho que os iteanos valem quanto pesam.

Sempre tive muita facilidade para estudar, mas não estudava muito. No ITA, isso mudou. Foram gagás monstruosos.

Ser do ITA era ser respeitado como tal. Lembro-me de uma passagem, quando eu já trabalhava na Tectran (Grupo Avibras). Lá eram projetados e fabricados veículos rodoferroviários, pórticos e máquinas de movimentação para terminais portuários e os famosos veículos do Sistema Astros da Avibras. Esses veículos do Sistema Astros eram fabricados com aços especiais antibalísticos (SAC50). Um dia me chamaram na linha fabricação pois uma enorme tampa de aço da carroceria de um veículo lançador de mísseis, com vários reforços soldados, fletia como uma enorme cartolina. Ninguém entendia. Na hora eu me lembrei de uma aula do Kenkiti (creio que da Turma 78, que jogava bola pra caramba, mesmo pela PEA – o pessoal do futebol com certeza lembra dele), acho que de tecnologia de materiais, numa sala do MOF (elefante branco), na qual ele explicou sobre o processo de Shot Peening, do qual uma das funções seria o alívio de tensões superficiais de metais. Não dispúnhamos de Shot Peening na Tectran, mas tínhamos uma gigante câmara de jato de areia no processo de pintura. Eu simplesmente arrisquei e falei para aplicarem jato de areia na peça. Fizeram e a peça ficou extremamente rígida, como deveria ser. Todos me olharam quase como se eu fosse um bruxo. Estava toda a Engenharia lá, a maioria oriunda da indústria automobilística do ABC. Estava

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também o Luiz Pasquotto (Turma 81), um cara formidável. Obviamente escutei o coro de comentários: “Tinha que ser um cara do ITA!”. Essa é uma pequena passagem, mas ilustra muito bem o que sempre aconteceu. Sempre nos diferenciavam pela origem no ITA. Ah, a Engenharia Industrial incluiu o jateamento de areia no processo de fabricação desse enorme componente.

O PÓS-ITA

Formamo-nos e fui para a Embraer, como aconteceu com a metade da turma. Inicialmente, não me interessei muito em buscar uma oportunidade de ir para a Itália, pois trabalharia com os aviões militares. Quando resolvi ir, já era tarde. Não consegui, além do que era mais difícil para os Mecânicos. Foi o segundo grande erro, a segunda oportunidade perdida de criar histórias com os amigos da turma. As histórias que ouço, as boas lembranças, a união do pessoal, são impagáveis. Escuto tanto que, às vezes, tenho a impressão de que também fui.

Trabalhei por quatro anos na Embraer, no Departamento de Ensaios Estruturais – estáticos e dinâmicos. Foi uma excelente experiência, sob vários pontos de vista. Não posso deixar de destacar um dos ensaios mais severos que realizamos com o Brasília. Com o avião inteiro sob esforços e coberto de strain gages , as pontas das asas deveriam fletir cerca de 1,5 m como resultado da aplicação da “ ultimate load ” (150% da carga teórica que apareceria em voo) e, nessa condição, precisaria resistir por três segundos, pelo menos. O programa estava atrasado e o processo de homologação junto ao IFI e FAA ficava no fim da programação, então

era o que sofria reduções de prazos. Depois de semanas de preparação, o ensaio ficaria pronto de madrugada. Comunicamos a todos que precisariam acompanhar, incluindo os representantes do IFI, e todo o planejamento foi feito para a execução. Todo o time de estruturas da Embraer estava lá. Estava lá também o Guido Pessotti, com quem tive o prazer de interagir em muitas ocasiões de testes importantes. Eu era o centro nessa madrugada, o show man , comandando todo o ensaio. O avião (célula 2) todo equilibrado por cabos de aço e atuadores hidráulicos, como se estivesse voando dentro do laboratório (F45). Aplicamos a carga lentamente –suspense geral –, fazendo todas as leituras intermediárias dos strain gages , alcançamos a “ ultimate load ” – mal respirávamos de tensão –, e ouviu-se um enorme estalido: a estrutura suportou a carga máxima por 1,5 segundo somente. Não foi necessário repetir o ensaio. O pessoal do cálculo estrutural convenceu os órgãos homologadores de que o aumento da espessura de umas peças no diedro das asas era suficiente. Tudo isso dá uma ótima definição do significado de “tesão”! Épocas duras houve também. Fiz greve, dormi lá dentro, ocupamos a empresa. O viés político ainda pesava um pouco. Também assinei a moção que os engenheiros fizeram em repúdio à violência utilizada pelos guardas da segurança patrimonial da empresa contra um líder sindical (o Jair Meneguelli) que fez um comício no estacionamento, durante uma das greves. Anos depois, em conversa com o Ruy, soube que provavelmente eu não seria mais aceito de volta na Embraer por esse motivo. Se vetaram o Ruy, imagina eu ( hahaha )!

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A Embraer, estatal, era um cabidão de empregos. Vários militares, comissões para “assuntos estratégicos” etc. Tinha 1.000 engenheiros. Tinha 6.000 funcionários e fabricava quatro Brasílias por mês; 8.500 funcionários e fabricava quatro Brasílias por mês; 12.000 funcionários e fabricava quatro Brasílias por mês... Um grande exemplo de contraeficiência.

Nessa época recebi uma oferta para liderar o Departamento de Engenharia da Qualidade da Tectran, uma empresa do Grupo Avibras, então com 1.500 funcionários. Outra pegada: ágil, mão na massa, desafiadora. O que me chamou a atenção e me atraiu foi que a área de homologação pertencia à Engenharia da Qualidade. Eu simplesmente adorava os ensaios para homologação das viaturas do Sistema Astros e dos veículos rodoferroviários. Eu me realizava.

Tinha domínio total sobre os rumos do departamento e uma grande interface com a Engenharia de Projetos, a Engenharia Industrial e com as mesmas áreas da Avibras. Nessa época eu me certifiquei como CQE – ASQC (Certified Quality Engineer – American Society for Quality Control). O Pasquotto e o Flávio Coelho (ambos da Turma 81) foram da Avibras para a Engenharia da Tectran. Grandes pessoas, particularmente o Pasquotto. Com o Flávio Coelho, paraibano de origem, eu brincava, dizendo que ele era descendente de Duarte Coelho, da época das Capitanias Hereditárias – o primeiro governador de Pernambuco. Tristemente, o Flávio morreu superjovem, acometido de um tumor cerebral (olhem a cola do Akutsu funcionando de novo).

Mas, como tudo o que é bom, foi passageiro. Os principais clientes da Tectran eram o governo brasileiro, com os equipamentos portuários para a Portobrás, e a Avibras – e ambos não estavam pagando. A Portobrás encerrou as atividades em 1990, não sem antes ajudar a afundar a Tectran, razão pela qual saí de lá ao final de 1989, após três anos mágicos. A Avibras era a principal acionista da Tectran, e estava enfrentando problemas financeiros numa entressafra de venda de “equipamentos de defesa às nações amigas”. O Cícero Granja trabalhou ali comigo, por um pequeno período. Ele já nutria um viés pelo mundo automotivo – e estava, obviamente, entre os mais técnicos; um dos poucos a entender e dominar a metodologia de tolerâncias geométricas, por exemplo. Juntos, escrevemos uma apostila sobre o tema para auxiliar a área. Saindo da Tectran, época difícil, fui para a Johnson & Johnson, divisão de produtos médico-hospitalares. Uma grande empresa. Uma grande escola. Isso foi ao final de 1989, no auge de várias crises iniciadas com a crise do petróleo de 1982. Aqui faço uma pausa para uma reflexão importante. O ITA nos ensina o lado técnico. Saímos bons técnicos do ITA. Eu só valorizava as áreas técnicas. Tinha quase desprezo pelas áreas de administração, gestão, negócios. Eu me achava melhor por isso. Ledo engano! Eu não tive o mínimo de orientação neste sentido. Isso me fez perder talvez grandes oportunidades de desenvolvimento no começo da carreira. Fiquei num meio-termo perigoso. Anos mais tarde, comecei a derivar minha carreira para outras áreas, por aprendizado próprio, sozinho.

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Continuando sobre o tempo na J&J, lá desenvolvi também grandes trabalhos. Eu era “doido” para viajar para o exterior. Até então isso não havia acontecido. Então apareceu um grande projeto: transferir uma planta de suturas cirúrgicas de origem animal de Chicago para São José dos Campos, unindo com a planta existente e transformando-a em sourcing para o mundo ocidental. A última etapa de fabricação das suturas, quase cosmética, precisaria ser feita em Porto Rico por uma questão de incentivos para exportar para os Estados Unidos. Em ambos os países, Estados Unidos e Porto Rico, me receberam com Limousine. Tive que negociar com sindicatos nos Estados Unidos e provar que não tínhamos trabalho em condições degradadas na J&J no Brasil. Eles não conheciam o standard da J&J. Outro trabalho interessante: eu fiz a mudança de pranchetas de desenho com régua “T” para AutoCAD para toda a equipe de projetos (usando computadores rodando com Pentium). Uma inovação! Complicada foi a digitalização dos “trocentos” desenhos antigos.

Da J&J, depois de sete anos e meio, fui para a Avery Dennison do Brasil, a convite de um ex-diretor da J&J. Após um período com responsabilidades por Engenharia e Manufatura, assumi uma função regional, numa posição de Supply Chain para o Mercosul e, ao final, já como Plant Manager, aceitei um convite para uma mudança grande, que seria ir para a área de serviços, num grande operador logístico de origem inglesa – Exel Logistics. Uma superescola! Estabeleceu o novo standard de operador logístico no Brasil. Alguns anos depois, o grupo Deutsche Post adquiriu a Exel e eu

participei da fusão entre Exel e DHL – já a segunda fusão em minha carreira. Para sorte minha, no Brasil, a empresa adquirida foi a que fez o takeover das operações. Foram várias e ricas experiências até assumir a posição de Diretor Sr. de Operações. Tive um assignment internacional, por um ano, na Argentina, para ajudar a alavancar as operações no país. Foi uma experiência enogastronômica fantástica, além de um grande sucesso do ponto de vista profissional. Ao final, havia montado uma operação de alto standard e, o que eu mais gostei, a equipe ficou com a autoestima muito elevada (se bem que não é difícil ter um argentino com a autoestima elevada, hahaha ). Como resultado desse trabalho, pediram-me para fazer algo semelhante no Chile. Na época, eu me reportava para um gringo. Ele viajou até a Argentina e me pediu para ir ao Chile. Disse: “Apenas três meses”. É óbvio que eu não fui ingênuo de acreditar que seriam três meses, mas também não pensava que seriam três anos. Três anos de uma fantástica experiência. Viver no Chile, em Santiago, é ótimo – temos na turma o Márcio Swiba, que pode confirmar. Participei de um grupo de motos, fizemos ótimas viagens; mas eu também viajava muito sozinho de moto.

A gastronomia de Santiago com a influência peruana é algo imperdível. Sem falar nos vinhos. Fizemos muitas amizades por lá. Regressamos ao Brasil ao final do período. Já no Brasil fazia três anos (a Valéria tinha até ficado um pouco deprimida com a volta), quando recebi uma oferta de outra empresa, outro operador logístico – APL Logistics –, para uma posição de Managing Director para América do Sul, baseado em Santiago. E lá fomos nós para quase três

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anos no Chile! Novamente uma experiência muito boa, tanto no aspecto profissional quanto no pessoal. Foram muitos, muitos bons vinhos. Numa das muitas viagens ao Brasil, encontrei o Shinzato no avião. Outra vez, encontrei o C.H. Medeiros (Turma 85). Na virada de 2018 para 2019, o Sartô nos deu a honra de passar o réveillon conosco. Com a pandemia devido à covid-19, as coisas mudaram e retornamos ao Brasil e hoje me encontro justamente em processo de transição. Estou fazendo alguns trabalhos de consultoria, e tenho até um contrato um pouco mais longo, mas não tomo isso como definitivo, pois só é “definitivo enquanto dure”.

AS VIAGENS NO CHILE

A questão das viagens no Chile mereceria um relato à parte e ficará para uma roda com um bom vinho no encontro dos 40 anos. O sul do Chile é muito bonito, com grandes destinos turísticos. Para o norte, há o deserto de Atacama com seus apelos. E para todo lado (isso significa norte e sul, pois no Chile só tem estes dois pontos cardeais), há os bons vinhos. Fiz uma viagem muito interessante de moto para o sul do Chile.

Cruzamos para a Argentina e subimos para o norte pela famosa Ruta 40, até a altura de Mendoza, quando então cruzamos de volta para o Chile. Impagável!!! Os argentinos do interior, principalmente da região Andina, são muito amáveis. Eles mesmos torcem o nariz para os “ porteños ”. Até hoje faço parte do grupo de motos, remotamente. Preciso fazer mais algumas viagens como essa! Vou fazer!

O ITA (DE NOVO)

O ITA foi muito importante para mim e começou a influenciar os meus rumos mesmo antes de eu entrar na escola. Principalmente no começo da carreira, foi um diferencial. À medida que as carreiras evoluem, no período de maior maturidade profissional, o peso das experiências, das conquistas, dos resultados pesa muito mais que a formação, mas mesmo nesta situação faz-se a conexão: “É um profissional que obteve todas essas conquistas e resultados... Também, pudera, é um cara que lá no começo fez o ITA!”.

Vale ressaltar também, que essa importância some fora do país; ela só existe se há brasileiros envolvidos. Em situações no exterior, a influência do ITA é indireta, mas ainda forte. Digo indireta porque o iteano, em geral, se sente confiante e preparado. Essa autoconfiança ajuda muito no sucesso frente aos desafios. Até mesmo quando está numa escola no exterior, o iteano sente segurança em aprender e, em geral, acaba se destacando.

A fórmula? Uma escola com o prestígio de ser “acima da média”, muito atrativa para pessoas talentosas e de inteligência também acima da média, estruturada com uma carga de trabalho forte, com o H8 como um tremendo pano de fundo e a DC como mola propulsora da dedicação.

FECHAMENTO POÉTICO

Não sou poeta como alguns brilhantes que temos na Turma. Fiz algumas (poucas) poesias na época do ITA, a maioria com temas românticos e perdidas em meio aos meus papéis que ainda teimo em guardar, para desespero

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 71

da Valéria. Aliás, eu me aproximei da Valéria pela primeira vez através de um “Meio-Soneto de Amor”, escrito num guardanapo da churrascaria e entregue a ela pelo garçom. Esse, ela é quem o tinha guardado até anos atrás. Não sei mais...

Gostaria de fechar meu relato, porém, com algo que eu escrevi, a lápis, numa folha

de impressora de computador que usávamos como rascunho, que deixei pregada com durex em frente à minha mesa no H8 durante todo o tempo. Apesar de curta, transmite um pouco da minha visão: A vida é bela, Mas tem ostra que é fechada.

Pedra dura!

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Massaki

CELSO MASSAKI HIRATA

ANTES DO ITA

Era início de 1969. Eu tinha acabado de completar 8 anos. Era o quinto filho de uma família de dez pessoas. Meu pai tinha um bazar na cidade de Iguaraçu, norte do Paraná. Mudamos para São Paulo com a expectativa de termos uma vida melhor. São Paulo, no final da década de sessenta, vivia um boom econômico. Em Iguaraçu, meu pai tinha um sítio e um bazar. As geadas consecutivas causaram perdas enormes para a lavoura do café e para o comércio. Estávamos quebrados.

Antes de ir para São Paulo, moramos de favor na casa dos meus avós maternos em Arapongas – PR. Era um pequeno galpão. Tínhamos uma vida muito restrita. Numa tarde, lembro que fiquei paralisado olhando para uns caquis numa quitanda perto da casa dos meus avôs. Não entendia direito aquela sensação. Estava com muita fome. Isso me marcou. Ficou na memória.

Depois de cerca de um mês em Arapongas, mudamos para Jardim São Paulo, bairro da zona norte de São Paulo. Meu pai, com ajuda dos meus tios, comprou uma mercearia. Naquela época, a minha vida era estudar na escola municipal e ajudá-lo na mercearia. A escola era muito boa. Tinha bons professores e boa infraestrutura. Na escola, não tive dificuldades. Antes de entrar no primário,

graças ao meu pai, já sabia ler, escrever e fazer contas. Sempre tirei boas notas.

O problema na escola era o meu comportamento. Por várias razões, talvez por ser descendente de japoneses, ser de uma família pobre e vir do interior, tinha muita vergonha e era muito tímido. Não tive nenhum amigo até o 4º ano do ginásio (hoje 9º ano do ensino fundamental). Não falava com ninguém, exceto com meu irmão gêmeo. Sim, eu tenho um irmão gêmeo, o Sérgio. Éramos nerds (na época, o termo era esquisito ). Tinha muita dificuldade de me expressar.

Depois de alguns anos no Jardim São Paulo, a mercearia do meu pai faliu, quando um supermercado grande abriu a meio quarteirão de distância. Em 1972, eu quase com 12 anos, nos mudamos para a Liberdade, bairro oriental de São Paulo, onde viviam descendentes de japoneses, chineses, coreanos e migrantes do Nordeste. É um bairro com vida boêmia intensa, com muitos bares e boates. Meu pai comprou um bar-restaurante, com a ajuda de um tio (mais uma vez).

O trabalho era intenso. Todo dia, às 6h30 da manhã, chegavam de 6 a 10 caixas de refrigerantes e cervejas. Tínhamos de

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retirá-los e guardá-los na geladeira e depois repor os vasilhames na caixa.

Quando terminávamos esse serviço, era preciso atender os clientes que vinham atrás do café da manhã. Esse ciclo se repetia às 12h para o almoço e às 15h para o café da tarde. Havia muito movimento. Por volta das 17h30, começava a happy-hour . Meus irmãos e eu, além de servir, também ajudávamos nas compras, na logística do bar-restaurante. O estabelecimento encerrava as atividades por volta das 22h. No fim da noite, ainda tínhamos de lavar o bar-restaurante. Só então podíamos dormir. Era um sufoco só!

Aos sábados e domingos, o movimento ocorria por conta de jogadores de futebol de salão que jogavam na quadra do Corpo de Bombeiros que ficava em frente ao nosso bar. O Corpo de Bombeiros alugava as quadras. Comecei a jogar e a curtir futebol. Jogávamos numa área de terra batida ao lado da quadra. Havia uma molecada que orbitava na quadra. Comecei a ter amigos lá.

Naquele meio, na Liberdade, a maioria dos amigos eram adolescentes perdidos. Muitos vinham de famílias desajustadas. Vários não estudavam mais. Tinha um adulto que convivia com a gente, o Careca. Ele vendia relógios contrabandeados, carteiras de estudantes falsas e cometia outros delitos (hoje seriam pequenos, mas na época eram graves). Era um marginal, mas era nosso amigo. Para mim, aquela vida com aquelas pessoas era muito normal. De vez em quando, acontecia uma coisa mais grave, como uma morte. Mas tudo era absorvido como evento normal em pouco tempo. Vários se foram, incluindo o Careca.

Entre os clientes habituais do bar-restaurante, havia pessoas distintas também.

Tinha um técnico, o Akira, formado pela escola técnica Getulio Vargas. A escola tinha uma excelente reputação e ficava no bairro do Ipiranga. Eu queria ser técnico, pois era uma forma de sair daquela vida sufocante de trabalho, rotina que eu odiava. Tinha um jogador de xadrez que era sócio do Clube de Xadrez de São Paulo. Ele me levou para o Clube, perto da rua Aurora. Havia ali dezenas de jogadores participando de um torneio-relâmpago. Participei do torneio e perdi todas as partidas, mas fiquei impressionado com o Clube. Eu acompanhava as partidas do Mequinho e do Fisher pelos jornais. Gostava de jogar xadrez.

Em 1975, meu irmão e eu tentamos o vestibulinho da Escola Técnica Federal de São Paulo. Nós dois passamos. Tinha 400 vagas. Fomos estudar lá. Era uma escola admirável mesmo para os padrões de primeiro mundo, com uma infraestrutura admirável: laboratórios com equipamentos modernos importados, oficinas equipadas, salas de aula agradáveis e excelentes professores. Ficava no bairro da Santa Cecília. Toda segunda-feira, às 7h00 da manhã, antes de iniciar as atividades escolares, perfilávamos e cantávamos o Hino Nacional enquanto a bandeira nacional era hasteada. A Federal era outro patamar: os colegas vinham com uma educação forte de escolas particulares. Todos, com poucas exceções, eram de classes média e alta. Muitos faziam curso de inglês na União Cultural Brasil-Estados Unidos.

Depois das aulas na Federal, eu voltava, almoçava e continuava com a rotina de trabalho no bar-restaurante.

Chegou 1977, época das discotecas, e eu iria cursar o 3º ano na Escola Técnica

CELSO MASSAKI HIRATA 74

Federal. Minha mãe achou que meu irmão e eu deveríamos fazer um curso de engenharia. Talvez ela estivesse seguindo uma tradição da família japonesa de investir nos filhos mais velhos, uma vez que eles deveriam cuidar dos pais na velhice. Talvez ela quisesse ter alguém escolado na família. Eu nunca soube das razões, mas descobri que minha mãe era quem tomava as decisões importantes.

Solicitamos bolsas no curso preparatório Anglo-Latino E conseguimos um excelente desconto. O Anglo era um excelente curso preparatório e ficava a 5 minutos de onde morávamos. A localização foi muito importante.

Minha vida no ano de cursinho foi bastante intensa. Eu fazia a Federal de manhã e trabalhava à tarde até às 15h30. Depois, corria para a biblioteca da Associação Cultural Brasil-Japão, onde podia estudar um pouco. Ficava lá até às 18h. Tomava um banho, jantava e ia para o cursinho. Ficava até às 23h, voltava e dormia. No dia seguinte, acordava às 6h. Tinha de aproveitar cada minuto disponível para estudar. Felizmente, não tive nenhuma doença, com exceção de algumas gripes, naquele ano.

Minha classificação inicial nos simulados do Anglo não foi boa. No primeiro simulado, fiquei na posição 3.600ª. Sabia que com aquele desempenho não teria chances de passar no vestibular. Continuei estudando o que podia, sem muitas esperanças. Com o passar dos meses, fui melhorando, sempre aproveitando cada minuto para estudar.

No meio desse tumulto, não sei como conseguia achar tempo para jogar bola e ir dançar na discoteca. Entendi posteriormente

que essas diversões me ajudavam a manter a cabeça em ordem e o pique no estudo. No metrô, a caminho da Federal (que em 1977 se mudou definitivamente para o bairro do Canindé), tentava memorizar as fórmulas da trigonometria; no balcão do bar-restaurante, tentava memorizar os vários autores literários brasileiros; na biblioteca, eu fazia os exercícios de matemática, física e química. Com o passar dos meses, fui melhorando o meu desempenho e no último simulado, que foi um exame escrito (voltado para a USP) e não de testes, eu me classifiquei entre os cem primeiros da área de Exatas. Achei que tinha uma chance de pegar a USP/Poli. Tinha de ser a Poli ou nada! No vestibular do ITA, eu não tinha nenhuma expectativa. Não fiz o curso de desenho geométrico e geometria descritiva que era oferecido no Anglo, pois estava trabalhando. Quando fiz as provas do vestibular do ITA, fui mal na de desenho e lembro de não ter entregue a redação – entreguei o rascunho, todo rasurado, numa folha de papel pardo. Depois do exame de português, quis desistir do vestibular do ITA e por insistência da minha irmã, Cleuza, continuei fazendo as provas com o intuito de “ganhar experiência”. Como previsto, não fui aprovado na primeira lista de classificados do ITA. Nenhuma surpresa nem tristeza. Felizmente, passei na USP/Poli e com muita alegria fui fazer a matrícula.

Sou muito grato a todos os meus irmãos que, de certa forma, seguraram as pontas no bar-restaurante para que eu pudesse ter um tempo disponível e estudar. Fazer este agradecimento foi uma das minhas motivações para escrever este relato.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 75

ENTREI NO ITA

Era início de 1978. Estava esperando o primeiro dia de aula da Poli e, numa tarde, trabalhando no bar-restaurante ( as usual ), recebi um telegrama da Divisão de Alunos do ITA, informando que eu tinha sido aprovado e deveria me apresentar para realizar os exames médicos. Perdi o chão. Foi uma alegria só!

Meu irmão, nesse ano, foi aprovado na USP São Carlos. Não sei o que aconteceria se nós dois tivéssemos sido aprovados na Poli. Sempre estudamos juntos. Talvez eu tivesse feito a Poli. Ele acabou desistindo de São Carlos, fez mais um ano de cursinho e entrou no ITA no ano seguinte.

Fiz os exames médicos do ITA. Eu nunca tinha feito a medição de altura. O médico prontamente cravou 1,60m, quase sem olhar. Sempre usei essa medida como minha altura. Muitos anos depois, descobri que nunca tive 1,60m: tive, no máximo, 1,57m.

No ITA, em março de 1978, conheci meus colegas da Turma 82. O primeiro que encontrei foi o Luiz Cláudio, de Brasília. O segundo foi o Nishi, que tinha passado na Medicina USP, com o qual viria a dividir o apartamento 107 no H8. Não tinha ideia de como as amizades da turma iriam transformar a minha vida.

NO ITA

Como a maioria dos colegas, fiquei decepcionado com as aulas. Eram muito monótonas. Alguns professores não tinham didática; outros não tinham competência suficiente. Em algumas disciplinas, era um desperdício de tempo, visto que tínhamos de estar presentes às aulas. Muitos dos meus colegas dormiam. Situação difícil

de mudar. Havia colegas que estavam no ITA porque tinham passado no vestibular e nem sabiam de suas vocações.

Enquanto fazíamos o curso Fundamental, tínhamos de fazer o CPOR. Havia pouca opção de entretenimento social. Uma coisa boa era o cinema do CTA. Comecei a curtir os filmes suecos do Ingmar, acompanhando o Butti, o devorador de leite com aveia. No H8, com leituras esporádicas, conheci o Hermann, autor que Ardeo me apresentou... acho. Às sextas-feiras à noite, nós nos embebedávamos. Sinto-me um pouco culpado de ter levado o colega enxadrista de apartamento, que estava indo para o seminário, Sólon, para o mau caminho. Aos sábados, eu, Ardeo e Taka pegávamos carona com o Nishi, no possante Passat TS, para São Paulo. No meio do caminho, parávamos em Arujá para almoçar na casa dos pais do Nishi. Depois de passar uma semana comendo no H15, para nós, era um verdadeiro banquete!

Apesar de intensos, esses dois anos foram de certa forma de perda. Muitos colegas deixaram a escola, por razões diversas e inusitadas: falta de desempenho, falta de motivação, decepção, alternativa melhor, saúde, e descaso com o CPOR. Estávamos em ebulição e em formação ao mesmo tempo. Eu também poderia ter saído do ITA por alguma dessas razões. Éramos jovens, instáveis e cheios de incertezas. Na Turma 82, dos mais de 120 alunos que iniciaram, pouco mais de 80 se formaram. É uma das menores taxas de formandos do ITA. Talvez a menor.

No 1º ano do curso Profissional, depois de pegar a primeira e única segunda época, e talvez por estar mais maduro, decidi me dedicar à escola para concluir o curso. Deixei de dormir nas aulas.

CELSO MASSAKI HIRATA 76

Prestava atenção. Dormia cedo. Estudava antecipadamente. Segui o que o Shinzato, meu colega de quarto do apartamento 112, com sua disciplina de carateca praticava. Simples assim: um dá o exemplo, o outro segue. Funciona. Coisa óbvia, mas que me recusava a seguir enquanto estava no curso Fundamental. Acho que nós, jovens, temos certa necessidade de viver e testar os nossos limites e os do sistema. Mas o ITA não perdoava.

No curso Profissional, morei com colegas que se tornaram grandes amigos. Shinzato, Guigui, Segre (todos AER-82) e eu formamos o core do apartamento 112. Outros colegas, como o Granja e o Bói, saíram antes. Outros vieram. Até um “bixo”, Paulo Cunha, o PaCu (MEC-86), morou com a gente. Foi muito legal dividir o apê com o PaCu. O elo H8 é muito forte. Mais do que o elo ITA.

No 5º ano, escolhi como tema de TG um problema da área de pesquisa operacional no INPE. O TG era parte de um estágio que pagava bolsa (e eu precisava sobreviver). Também me interessei pelo assunto.

O meu orientador foi o Horácio Yanasse (ELE-77), recém-doutor pelo MIT. Foi a minha primeira referência profissional. No TG, tinha que fazer um script para rodar um software de programação dinâmica. Gostei de fazer o TG, que resultou num artigo para o Simpósio Brasileiro de Pesquisa Operacional. Foi o meu primeiro artigo científico!

Concluí o ITA em dezembro de 1982, sem muitas perspectivas para o futuro.

Eu também tinha passado no exame de seleção da Itaudata, uma empresa do grupo Itaú para desenvolvimento de sistemas bancários de TI. O boom da informática bancária brasileira estava acontecendo. Moureau, Márcio Mattos, Takahashi (todos da Turma 82) e eu fomos para a Itaudata em janeiro de 1983. O Afonso (Turma 82) já estava no Itaú porque tinha feito o estágio lá no 5º ano. Ficamos uns quatro meses fazendo o curso de análise de sistemas.

Aprendemos Cobol, Sistemas de Arquivos, TSO e MVS. O curso foi muito prático. Uma parte boa dele era o convívio social com os colegas. O grupo era bastante homogêneo, formado por engenheiros da Poli, da Unicamp, Federal de São Carlos, FEI, IME-USP e outras boas escolas. Foi muito divertido socializar com pessoal não-ITA. Também tinha outra coisa maravilhosa: a Itaudata ficava no centro, hoje velho, de São Paulo. O centro concentrava o comércio principal da cidade. Prédios bem bacanas, lojas, bares e restaurantes muito legais. Lembro do Mappin, da Mesbla, do Ponto Chic, do Guanabara e outros. Havia poucos shopping centers na cidade e o McDonald’s estava iniciando suas atividades no Brasil.

ITAUDATA E INTERFACE

Tinha uma oferta da Embraer para projetar sistemas de ar-condicionado de aviões. Ficaria um ano nos Estados Unidos.

Como eu tinha facilidade com programação, o curso foi tranquilo para mim. Antes mesmo de concluir, fui convidado para trabalhar no Departamento de Estudos Técnicos (DET) da Itaudata. No DET, eu desenvolvia utilitários para os sistemas de aplicação. A maioria dos sistemas era do tipo batch . Tive de aprender Assembly do IBM S/370 . Muito legal! Fiz alguns cursos na IBM. Por conta do meu trabalho e de um curso de programação estruturada na PG do ITA, comecei a gostar

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 77

de computação de uma maneira mais geral. Tive um líder de grupo na Itaudata, o Ciro Yoshikawa (ELE-72), que era muito fera em computação; sabia muito.

Em 1983, eu estava trabalhando no DET quando apareceu o Afonso (AER-82). Ele estava arregimentando um grupo de carona para fazer o curso de Mestrado no ITA. Queria também companhia para meter gagá. Esse esforço realmente precisava de um grupo para acontecer. Foi um revival do H8. Aceitei prontamente. Formamos um grupo de iteanos da Itaudata e íamos toda semana para cursar disciplinas no ITA. Fiz disciplinas, entre outros, com os professores Michal (no ITA) e Paulo Renato (no INPE). Bons tempos... Pós é outro esquema; muito mais interessante.

Em setembro de 1985, o Marino (Turma 78) me convidou para trabalhar com ele na Interface como consultor de Pesquisa Operacional. O Nojima (MEC-81) e o Moreau (MEC-82) também foram. Pouco tempo depois, o Marino saiu. Depois de alguns meses, não via muitos desafios e não percebia a real necessidade dessas consultorias para os clientes (não agregava valor ). Eu tinha concluído todos os créditos do curso de mestrado. Depois de nove meses na Interface, resolvi sair para fazer a minha dissertação e concluir o mestrado.

DE VOLTA AO ITA

Precisava ter tempo para trabalhar na minha dissertação. O professor Márcio Santos, do Laboratório de Processamento de Dados (que viria a ser a Divisão de Ciência de Computação) do ITA, prontamente me aceitou como orientando e como Professor Auxiliar . Como professor auxiliar, eu teria

tempo para me dedicar à dissertação. Meu salário de consultor caiu pela metade. Tudo para concluir o mestrado! Comecei quase que imediatamente no ITA (junho de 1986). Naquela época, não tinha concurso. Em setembro de 1987, concluí o mestrado.

Gostei muito do desafio de dar aulas, pois comecei a trabalhar a minha limitação de me comunicar. Tenho ciência de que os meus alunos sofreram como cobaias. Melhorei muito, mas tenho certeza de que não foi o suficiente. Para mim, ainda é um desafio.

O Curso de Engenharia de Computação e a Divisão de Ciência de Computação estavam em gestação. Vários professores – Celso Renna, Orion, Nei, Yano e Jony – vieram a se juntar com os professores da casa, Márcio, Ralha, Sakude, Jussara, Abdu e Felipe.

Depois de concluir o mestrado em Pesquisa Operacional, imediatamente me matriculei no doutorado, mas dessa vez em Computação, no ITA. Percebi que a Computação tinha muitos desafios. Queria fazer o doutorado no exterior. Tinha duas razões para isso: ter experiência de vida pessoal no exterior e obter o título de doutor fora do ITA, pois eu achava que tinha uma formação acadêmica endógena (queria quebrar o tal do inbreeding ).

DOUTORADO NO EXTERIOR

Tinha de obter um aceite de uma instituição de renome e conseguir uma bolsa de doutorado de uma agência de fomento. A agência só dá bolsas se for uma instituição de renome. Para obter ambos, você precisa ter uma rede de conexões para se fazer conhecido. Para mim, foi difícil, pois não tinha essa rede. Fui construindo aos poucos. O meu aceite para fazer

CELSO MASSAKI HIRATA 78

doutorado em sistemas de informação com o professor Ray Paul, na London School of Economics (LSE) foi resultado de uma conversa que tive quando ele veio ao Brasil dar umas palestras. Conheci de maneira mais informal o Ray Paul, num churrasco. Depois de muita luta, depois de ouvir o conselho da Kátia, com o apoio do Brig. Celestino, vice-diretor do CTA, através do Coronel Cunha consegui uma bolsa para fazer o doutorado no exterior. Era uma bolsa para instituições em áreas estratégicas (RHAE) do CNPq. Não conseguia bolsa no balcão do CNPq. O Brig. Celestino era marido da minha professora de inglês.

Conheci a Kátia no ITA em 1989, quando começamos a namorar. Ela era chefe do Departamento Pessoal (hoje RH) do ITA. Tinha vindo recentemente do IFI, um dos institutos do CTA. Ela me ajudou muito na busca pela bolsa, algumas vezes me aconselhando e outras me ouvindo.

Em setembro de 1991, uma semana depois de me casar com a Kátia, minha atual partner , estava embarcando para Londres, para fazer o doutorado em Information Sciences , Simulação Discreta, com Ray Paul, na LSE. A Kátia iria em dezembro, pouco antes do Natal. Quatro anos é muito tempo. Eu tive de construir uma nova vida, com novos amigos e novo ambiente e nova rotina que fossem agradáveis. Fui de coração aberto e isso ajudou muito.

Quando cheguei a Londres, fui acolhido pelo Afonso (AER-82). Fiquei uma semana no apê dele. Ele fazia doutorado no Imperial College. Convivi com Afonso por quatro anos em Londres. Participávamos das peladas no Hyde Park e fazíamos nossos coffee breaks nos cafés de South Kensington.

Na LSE, tive um amigo que era professor do ITA, o Abdu, que me ajudou na inserção na escola.

A LSE era escola forte em economia da Universidade de Londres. Information Sciences era uma área nova nas universidades. A escola tinha cursos e pesquisas fortes em áreas de economia, ciências sociais e políticas. Gostava muito da LSE por conta das discussões, das palestras e do ambiente acadêmico. Aconteciam ali muitos eventos, palestras e posicionamentos políticos. A escola tem um corpo docente e alumni internacional renomado. O restaurante era muito bom também (de novo, comida!).

Em meados de 1992, o meu orientador da LSE, professor Ray Paul, decidiu mudar de universidade para ser professor (que aqui, no Brasil, é Professor Titular). Ele queria me levar junto, mas eu queria ficar na Universidade de Londres.

O Afonso me deu todos os “bizus” para mudar para o Imperial College (IC). Depois de uma conversa com o professor Jeff Kramer, do grupo de sistemas distribuídos do IC, estava iniciando meu doutorado em setembro de 1992. O CNPq não concedeu extensão da bolsa. Tive três anos para concluir o doutorado.

O IMPERIAL COLLEGE

O IC é forte em física, matemática, computação, engenharia e medicina. Por conta dos cursos e da necessidade de laboratórios, o IC tem uma infraestrutura boa. Na época tinha um supercomputador que eu viria a usar nos experimentos da minha tese. O IC tem corpo docente e discente internacionais excelentes.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 79

A escola recebeu vários prêmios Nobel. É conhecida hoje, também, pelos modelos de previsão de contágio da covid-19.

O IC está localizado na melhor área de Londres. Fica entre o Museu de História Natural e Royal Albert Hall.

A VIDA EM LONDRES

A vida em Londres é cara. Através de um “bizu” do Afonso (de novo!), consegui alugar um apê espaçoso, equipado e superbem localizado, no bairro de Lambeth (SE11).

Com o tempo, me integrei à escola. No grupo do laboratório, havia iranianos, gregos, escocês, australiano, chineses, tailandês, etíope, italiano, alemão e turco. Aprendi a jogar squash . Usava a piscina e a sauna no inverno. Jogava futebol durante quase o ano todo.

Os colegas de doutorado de certa forma eram muito parecidos com os iteanos, meio mocados, quietos e tímidos. Acabei criando excelentes amizades.

Como Londres ficava geograficamente bem localizada no Reino Unido e no mundo, Kátia e eu viajamos muito, para cidades vizinhas (Cambridge, Oxford, Bath, Liverpool, Edimburgo, Inverness e Glasgow), e outras cidades no continente (Madri, Barcelona, Amsterdam, Paris, Praga, Roma, Veneza, Florença, Lyon…), e também para a América do Norte.

Em Londres, havia muitos eventos culturais, shows , eventos esportivos e musicais. Os lugares legais de Londres incluíam Camden Town, Notting Hill, Queen’s Walk (South Bank) e China Town. Gostava muito dos supermercados Sainsbury. Não tínhamos muita grana, mas conseguíamos curtir a cidade. Nesse

período, tive a experiência mais rica em termos culturais da vida: conheci e aprendi a fazer muitos pratos internacionais ( curries , moussaka , pasta ). Era muito fácil achar os ingredientes. Enfim, fomos muito felizes. Recomendo Londres a todos.

A MINHA TESE

O doutorado no IC consistia basicamente em elaborar uma monografia (documento de tese) e defender para uma banca com dois examinadores: um professor da Universidade de Londres e outro de uma outra universidade. O orientador não pode participar da defesa. Ele simplesmente hospeda o evento e depois, ou antes, leva os examinadores para almoçar. Os examinadores submetem um relatório sobre a monografia, pontuando as questões críticas antes da defesa para o escritório da Universidade de Londres. Não tem apresentação. Apenas a defesa oral. Os examinadores depois enviam o resultado da defesa, relatando se as questões pontuadas foram esclarecidas, para o escritório da Universidade de Londres. Expliquei tudo isso apenas para dizer que fiz a defesa e passei sem problema algum.

O meu único lamento é que a área do meu doutorado, parallel discrete event simulation , não teve tanto potencial de gerar resultados de pesquisa, apesar de parecer atraente. Escolher uma área que tenha bom potencial e escolher um bom orientador são essenciais para um bom doutorado.

VOLTA AO BRASIL COM TÍTULO DE DOUTOR E UM FILHO

Ter filho ou filha estava no nosso radar um ano antes. Kátia e eu planejamos ter

CELSO MASSAKI HIRATA 80

um filho antes de terminar o doutorado. William nasceu no dia 19 de julho de 1995 – um dia depois de eu submeter a monografia de tese. Depois da submissão, fiquei várias semanas aguardando a defesa. Nesse período, fiquei curtindo o filho e preparando a viagem de volta. Em dezembro de 1995, voltamos ao Brasil – pouco antes de o Santos FC ser roubado na final do Brasileirão, jogando contra o Botafogo. O nascimento do meu filho William foi uma experiência e tanto! O serviço de acompanhamento da gestação e o trabalho de parto foram excelentes. Eram serviços públicos. Sem luxo. Tudo de graça. Fiquei com uma excelente impressão do National Health Service. Alguns anos antes, o NHS tinha sofrido um processo de racionalização e de cortes supérfluos, pois os custos estavam muito altos para o Estado. A gravidez da Kátia era considerada de risco, mas tivemos apoio dos melhores especialistas e tudo correu maravilhosamente bem.

Já no Brasil, dois anos depois do nascimento do William, nasceu a minha filha Nicole. Junto com a Kátia e William, completamos o nosso time, que, com mais altos do que baixos, só dá alegrias.

PROCURANDO UM DESAFIO

Depois de retornar ao Brasil, de volta ao ITA, me colocaram vários desafios de gestão. Fui coordenador de área de Pós-Graduação (PG), coordenador de curso de PG (programa), chefe da Divisão de PG e finalmente Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa. Quando assumi a chefia, a Divisão de Pós-Graduação encontrava-se num caos completo (minha opinião). De

alguma forma, o desafio administrativo sempre me atraiu. Durante alguns anos, antes de assumir a chefia de divisão, fiquei estudando gestão. Lia livros de administração, planejamento estratégico, liderança e gerenciamento de projetos. Até fui professor de gerenciamento de projetos no curso de MBA ITA-ESPM. O professor Damiani (ELE-74) me apoiou nesse esforço. Eu e professor Yano (MEC-81) criamos o conteúdo da disciplina de design de soluções de e-commerce . Foi muito legal interagir com os alunos. Os alunos de MBA são ambiciosos e querem ser gerentes ou diretores. Vontade é um ingrediente importante para formação e complementação. Foi uma experiência muito prazerosa. Confesso que fiquei surpreso com os resultados obtidos em tão pouco tempo de investimento em gestão: um ano. As técnicas de gestão e relacionamento funcionaram.

Fiz uma gestão da PG bem focada em objetivos (da instituição), transparente, ágil e justa. Um indicador de sucesso era a formatura da PG: uma cerimônia com autoridades, onde os alunos recebem seus diplomas e históricos escolares, parecida com a da Graduação, mas mais difícil de gerir, pois cada aluno tinha um histórico diferente. Era tudo feito manualmente. Era um bom desafio. Antes de eu assumir, era um desastre. Diplomas e históricos errados, formandos sem diplomas e formandos que não apareceram. Um ano depois, zero erro (é possível!). Para se ter essa eficácia, aprimoramos a equipe, criamos processos e melhoramos a qualidade. Tudo isso, ainda sem o apoio do sistema computacional, que estávamos tentando licitar, e sem contratar ninguém. Pessoalmente, foi uma

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 81

experiência muito rica. Aprendi a trabalhar com limitações de toda ordem, mas criando motivação e capacitando a equipe.

DESAFIO DA PG

O principal desafio da PG é a qualidade. Hoje os programas de PG no Brasil são altamente competitivos. A qualidade passa pela admissão de alunos qualificados, engajamento dos professores em atividades de pesquisas de maneira a produzir resultados científicos de impacto, cooperação com empresas e cooperação internacional. A cooperação com empresas faz com que os professores e pesquisadores trabalhem em problemas relevantes e gerem resultados tecnológicos de impacto.

A cooperação internacional viabiliza e acelera o atingimento de objetivos, pois permite integrar pessoal com capacidades e recursos de forma complementar.

Seria difícil para o ITA se tornar a escola que é sem o apoio e a experiência dos professores e pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos, principalmente do MIT e da Universidade de Michigan.

A DC NA PG DO ITA

O primeiro reitor do ITA, professor Richard Smith, colocou a semente para se ter um código de conduta para os alunos do ITA. No final da década de 1960, Ten. Cel. Sobral foi convidado para fazer uma palestra sobre códigos de conduta militares.

A palestra motivou intensamente os alunos. Em Assembleia Geral, os alunos criaram o seu próprio código, a Disciplina Consciente (DC). A DC tem sido discutida e fortalecida ao longo destes anos e hoje

é um dos principais pilares que explicam o sucesso dos ex-alunos e da escola.

Como Pró-Reitor, incomodava-me o fato de os alunos da PG serem considerados alunos de outra categoria. O diploma que os alunos de PG recebem é da mesma escola que o dos alunos da Graduação, com o mesmo corpo de professores. Algumas vezes, eles fazem as mesmas disciplinas (as mais avançadas) e dividem a mesma sala de aula. Além disso, vários alunos de PG são oriundos da Graduação do ITA. A pergunta óbvia é: por que não ter a DC na PG do ITA? Houve um problema de plágio na minha gestão, que motivou para essa articulação.

Atualmente, a PG nas universidades é força motriz para as atividades de pesquisa da escola. As pesquisas hoje já são realizadas com base em códigos que não aceitam plágio. A PG provê um pessoal altamente capacitado para universidades, centros de pesquisas, empresas e órgãos do governo. É natural que a DC fosse colocada como uma proposta para os alunos da PG. Coloquei esse desafio para a APG (Associação de Pós-Graduandos) do ITA. A APG era, de certa forma, o órgão representativo dos alunos e respondeu a essa demanda.

Depois de várias conversas, em 22 de junho de 2009, em Assembleia dos alunos da PG, a DC foi aprovada com 161 votos a favor, duas abstenções e um voto contra.

A DC começou a existir. Eu sabia que para sobreviver dependia de um trabalho constante de fortalecimento e introdução aos novos alunos. Fiz várias palestras com intuito de disseminar e fortalecer a DC.

É óbvio que houve e ainda há muito ceticismo. De qualquer forma, o ambiente acadêmico e administrativo da escola

CELSO MASSAKI HIRATA 82

melhorou muito. Ficou mais leve e mais produtivo.

DOAÇÃO DE RIM

Em 2001, meu irmão gêmeo Sérgio foi acometido de insuficiência renal crônica. Após ser diagnosticado, ficou em UTI e entrou em hemodiálise.

A hemodiálise filtra o sangue com intuito de manter o balanço de sais e líquidos, controlar a pressão arterial e equilibrar o organismo. Pacientes em hemodiálise precisam de três sessões por semana, com duração de três a quatro horas. Além disso, têm sua qualidade de vida bastante reduzida, com restrições de ingestão de líquidos e alimentos, não podem fazer esforço físico e estão sujeitos a diversas complicações. Uma vida muito ruim... Eu tinha certeza de que faria a doação e me preparei física e psicologicamente para a cirurgia. O transplante foi no dia 14 de julho. Depois da cirurgia, fiquei apenas três dias hospitalizado. Na recuperação, em casa, caminhava um pouco pela manhã e assistia ao US Open à tarde e à noite –Guga estava voando naquela época. Depois de três semanas, eu já estava dando aulas

no ITA. As cirurgias foram um sucesso completo. O meu irmão? Bom, com o “novo” rim, ele voltou a correr a meia-maratona depois de alguns meses.

PESQUISADOR VISITANTE NA SUÉCIA

Depois de um longo período (2005-2015) dedicado à administração da PG do ITA, eu precisava arejar e dedicar-me mais à carreira de pesquisador. Decidi fazer uma visita de seis meses à Linköping University (LiU). A Saab desenvolve e fabrica o caça Gripen, comprado pelo Brasil, nas suas instalações da cidade de Linköping. Através de uma bolsa do CISB, que é financiada pela Saab, pude realizar a visita de seis meses.

A Suécia é um país pequeno, social-democrata, com governo parlamentarista único que coexiste com a monarquia. Tem um povo razoavelmente homogêneo. É uma sociedade quase utópica. Tem alguns problemas mas, no geral, funciona muito bem.

Uma característica do comportamento do povo sueco: eles evitam discussões imediatas, gratuitas e desnecessárias. Duas questões muito pessoais são a religião e a política. Indagar os suecos sobre essas

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 83
Gostei da LiU, da cidade e da Suécia.
Aprendi muito. Nesse período, fiquei tentando explicar o Brasil a eles e acho que, para eles, os meus relatos sobre o Brasil pareciam com um seriado da Netflix.

questões é extremamente rude. Lembro de um brasileiro (não fui eu) que perguntou a um sueco em quem ele tinha votado para a eleição do parlamento e levou um esporro fenomenal. E olhe que os suecos não são de dar esporro e odeiam causar barraco.

Gostei da LiU, da cidade e da Suécia. Aprendi muito. Nesse período, fiquei tentando explicar o Brasil a eles e acho que, para eles, os meus relatos sobre o Brasil pareciam com um seriado da Netflix.

AGORA, O QUE FAZER?

Sessenta anos completados, felizmente vacinado com todas as doses contra a covid-19 e outras doenças, continuo trabalhando como professor da Divisão de Ciência da Computação. Tenho tempo para aposentar, mas ainda não o fiz. Na ativa e vinculado ao ITA, sinto-me mais engajado para trabalhar. Tenho me

dedicado mais às atividades de pesquisa. Estou focado em orientar mestrandos e doutorandos e elaborar técnicas de análise e design de sistemas críticos. Meus hobbies atuais são jogar tênis, jogar futebol society e fazer mergulho livre. Gosto e acompanho o Santos FC, mas sem me estressar. Assim como no trabalho, a minha vida agora é curtir. Principalmente as amizades. A Turma 82 foi e é um elo importante de nossas vidas. Afetou a história de vida de muitos de nós. Tenho certeza de que todos nós, mesmo os mais “mocados”, puderam fazer seus elos. Cada um pôde ter a sua história. A partir de uma certa idade, toda a nossa felicidade vem das memórias. Só nos resta preservá-las e mantê-las . É um privilégio saber que muitas dessas lembranças ainda estão ao nosso alcance e podem ser registradas e compartilhadas.

CELSO MASSAKI HIRATA 84

GRÜEZI MITNENAND

Meu nome é Cesar Teixeira, mas na época dos estudos era mais conhecido como “Bói”.

Nasci em 1958 em Natal – RN e hoje vivo próximo a Zurique, na Suíça. Sou casado, mas não tenho filhos. Desde o mês de agosto de 2021 estou aposentado. Durante minha vida, tanto privada quanto profissional, passei por muitas e bem diferentes estações. Todas elas contribuíram para que eu pudesse levar uma vida feliz e rica em experiências. O ITA foi certamente um marco muito importante nesta caminhada.

MINHAS ORIGENS

De onde você vem? Essa questão pode nos ocupar de formas muito diferentes: ela pode tanto tranquilizar como desestabilizar. Tive até a chance de conhecer uma bisavó paterna que faleceu em 1969 – diziam que ela tinha mais de 100 anos. Eu, na época com uma idade tão tenra, não me interessava pela história dos meus antepassados. Nenhum de meus quatro avós puderam, tampouco, contar algo sobre a história de suas famílias. Assim, no momento em que comecei a me interessar por meus antepassados, defrontei-me com um vácuo. Há alguns anos comecei a elaborar uma árvore genealógica de minha família. Isso se tornou um desafio, já que no Brasil, num contexto de escravidão (1538-1888), os registros em cartório são

Bói

CESAR DE SOUSA TEIXEIRA

extremamente esparsos e incompletos. Para não mencionar o fato de que escravizados na época faziam parte do inventário (peças) dos seus “proprietários”. Enquanto a maioria dos imigrantes tenha tido a oportunidade de preservar e transmitir sua história, quase não há conhecimento genealógico sobre brasileiros escuros (mão de Deus de Ruy Barbosa?) e indígenas.

Para colocar um pouco mais de luz nesta escuridão, viajei aos locais de nascimento de meus avós para tentar obter mais informações sobre meu passado, e realmente consegui achar alguma coisa. Do lado materno tive mais sucesso do que do lado paterno.

Minha mãe nasceu em Santa Margarida – MG, e é a filha mais velha de uma grande família. Embora tenha sido criada em uma pequena cidade do interior, ela desfrutou de uma sólida educação. Seu pai era um tipo empreendedor: ele já possuía na época seu próprio carro e levava passageiros frequentemente ao Rio de Janeiro, como motorista de táxi. Mais tarde a família se instalou no Rio. Quando e por que os antepassados de meus avós foram parar em Santa Margarida pude descobrir a partir de um documento que uma professora

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local havia preparado para fazer a árvore genealógica de sua família. Por sorte, um dos membros de sua família também pertence à minha família, como acontece em muitas cidades pequenas, onde existe um grau de parentesco muito grande entre as famílias do local. A cidade foi fundada em 1866 por um padre “itinerante” após ter se estabelecido com seus 16 escravizados na região. As más línguas dizem que ele teria sido expulso da corte brasileira no Rio, porque sabia demais sobre as escapadas de D. Pedro I.

Obter informações sobre a família de meu pai foi mais difícil. Ele nasceu em Ilhéus – BA, também como filho mais velho. Sua família era bem pobre. Por isso, meu pai começou, ainda criança, com apenas 10 anos, a trabalhar como office-boy em um cartório. Mas como ele estava determinado a melhorar sua situação, inscreveu-se na FAB assim que completou 18 anos. Ele era sargento e, por trabalhar no magazine de peças para aviões, viajou por todo o Brasil. Meu avô trabalhava com contabilidade no cais.

Tanto a avó pelo lado materno como a pelo lado paterno eram donas de casa.

MINHA INFÂNCIA

Meus pais se conheceram no Rio e logo se casaram. Minha mãe acompanhou meu pai em suas andanças profissionais pelo país devido ao trabalho. Dois anos depois de mim, nasceu meu irmão, também em Natal. Logo depois nos mudamos para São Paulo, a grande cidade moderna, onde fiz a maior parte de minha escolaridade.

Frequentei os primeiros dois anos e meio do primário no Liceu Brasil. Naquela época íamos todos os anos a Ilhéus – BA, em um Gordini, para passar as férias de fim

de ano. Assim que meu pai se aposentou na FAB, meus pais decidiram mudar-se para Ilhéus, onde terminei o primário no Colégio Diocesano. No entanto, eles logo perceberam que só poderiam dar a seus filhos uma educação melhor em uma cidade grande e, como consequência, nos mudamos novamente para São Paulo. Lá fiz o curso de admissão do professor Lélio, para entrar no ginásio. Depois de passar no exame de admissão, frequentei os quatro anos do ginásio no Albino César, situado no bairro do Tucuruvi. Nessa época, matérias como História e Sociologia começaram a despertar meu interesse. No entanto, em vista de minha modesta origem, não me atrevi a seguir nessa direção. Seria mais sensato tirar o maior proveito possível de minhas aptidões matemáticas. E assim, no 4º ano do ginásio, comecei a me preparar para a próxima etapa: de manhã ia ao ginásio e à tarde ia ao cursinho preparatório para o exame de admissão na Etep em São José dos Campos. Para minha surpresa, fui escolhido como orador da turma na cerimônia de formatura do ginásio. Escrevi um texto e pratiquei o discurso. Quando chegou a hora, senti um grande nervosismo: falar diante de um grande público (sendo uma pessoa escura?) era para mim uma experiência inusitada. Tomei coragem e, no final, tudo correu bem. Em 1974 comecei o curso técnico na Etep. Lá aprendi não somente assuntos ligados à área técnica, mas também como lidar com um conhecimento em rede. Lembro-me de um professor de história (Payot) que nos ensinou como ler artigos de jornal: tínhamos que fazer resumos dos textos que líamos. Como na época havia pouco conhecimento geral sobre o que acontecia

CESAR DE SOUSA TEIXEIRA 86

no Brasil, só conseguia escrever “resumos” rudimentares. Quando penso hoje neles, tenho vontade de rir. Mas foi esse professor que despertou em mim um interesse que ainda hoje me impulsiona a acompanhar de forma crítica os acontecimentos mundiais.

COMO CHEGUEI AO ITA

Quando estava no 3º ano tive, pela primeira vez, um contato direto com o mundo do ITA, na pessoa de um ex-iteano. Na época ele ainda estudava no ITA e era nosso professor na Etep. Com ele aprendemos conceitos básicos de eletrônica – era um fã dos produtos da B&O. Como consequência, apesar de não ter feito a devida preparação, resolvi prestar o exame de ingresso ao ITA no final daquele ano. Como era de se esperar, minha primeira tentativa não tinha como ser bem-sucedida. Em retrospectiva, sei quão ousada foi aquela decisão! Mas não me deixei desencorajar: no ano seguinte consegui uma bolsa no cursinho Anglo em São José dos Campos para me preparar adequadamente para a próxima tentativa, sem que necessitasse sobrecarregar meus pais financeiramente. Alckmar, Arthur, Moreira, Rogério e outros eram meus colegas de curso.

No final do ano fiz as provas de novo. Foi uma montanha-russa de emoções: comecei bastante confiante, mas após a prova de desenho tive a impressão de que ali tinha perdido a corrida. Pensei até em desistir. Mas meus pais me encorajaram a ir até o fim. Assim fiz, mas partindo do pressuposto de que a situação estava perdida. No dia da publicação dos resultados simplesmente fiquei em casa, nem fui ao Anglo. Então o telefone tocou e não me lembro bem se foi

o Waldemar que me disse que o meu nome estava na lista do ITA. Minha primeira reação foi de incredulidade. Para tirar a dúvida, fui ao Anglo e... meu nome realmente estava na lista! Fiquei extremamente feliz.

Já no 1º ano percebi que minha formação não era bem-fundamentada, principalmente no que se referia a algumas áreas da matemática. Seguiram-se muitas e longas noites de estudo: tive que dedicar muitas horas para atingir um nível que me permitisse passar nas provas.

Durante o 3º ano, presenciei uma palestra de um iteano do 5º ano sobre sua viagem de moto que durou cerca de um ano para percorrer o caminho da América do Sul até aos Estados Unidos. Essa palestra deixou-me tão impressionado que comecei a sonhar como poderia também começar a explorar o mundo. Devido à minha formação escolar que foi centrada na Europa – e imagino que não tenha sido o único no Brasil – minha destinação preferida não eram os Estados Unidos, mas a Europa. Logo comecei a planejar.

Viajar pela Europa e lá permanecer por um ano requeria que interrompesse meus estudos. Como até então, apesar de todas as dificuldades, sempre tinha passado direto e nunca tinha trancado a matrícula, só teria que completar o 4º ano sem ficar para a segunda época. Uma das condições para pôr em prática meu plano estaria solucionada. A fim de poder financiar minha estada, no entanto, precisaria de fundos. Comecei a economizar onde podia e a usar todas as oportunidades possíveis para arrecadar dinheiro. A contragosto desisti do treinamento para obter o brevê de planador (Moreira tinha acabado de

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 87

comprar seu Pik). No 4º ano candidatei-me e completei um estágio no Inpe. Além disso, em nome do comitê da CV, visitei algumas empresas que ou eram lideradas por exalunos do ITA ou era onde muitos deles trabalhavam. Alguns se prontificaram a fazer uma doação para cobrir os custos da viagem à Europa. De outros nem vi a cara.

A VIAGEM QUE MUDOU MINHA VIDA

No começo de dezembro de 1981, eu estava dentro de um Hércules da FAB com os outros colegas da turma, a caminho da famosa Europa. Afinal, o sonho começava a ganhar contornos. Saímos do Galeão em direção a Lisboa com escala em Recife. De acordo com o programa oficial da CV, tínhamos que, em determinadas datas, estar em certas cidades para visitar certas firmas. No começo de fevereiro deveríamos estar em Frankfurt para pegar o voo de linha para o Brasil.

Em Lisboa o Mattos, o Zumba e eu passamos alguns dias na casa de parentes portugueses do Zumba, onde fui muito bem-recebido. Mas o que ficou na minha memória é que o Zumba tinha uma prima muito bonita. Depois disso, usei o Eurail-Pass e viajei sozinho por grande parte da Europa. No entanto, nas datas previstas no programa da CV eu me encontrava com o grupo e íamos visitar as firmas. A última vez que vi os colegas foi em Londres. Depois de lá, seguimos caminhos distintos.

Em janeiro de 1982, fui a uma agência de viagens da Lufthansa e mudei a data do voo para o Brasil para dezembro daquele ano. A partir daí não haveria mais volta: point of no return . Telefonei para meus pais pedindo-lhes que fossem ao ITA trancar minha matrícula. No dia em que

minha mãe estava no ITA para resolver minhas coisas, por acaso, ela encontrou com o Kenichi. Ele ficou surpreso em saber que eu só retomaria meus estudos em 1983, mas logo se prontificou a fazer o que fosse necessário para poder trancar minha matrícula. Muito obrigado, Ken!

As experiências na Europa, em sua maioria positivas, me deram uma paz de espírito e segurança que nunca havia conhecido antes: eu me sentia realmente respeitado. Comecei a gostar daquele tipo de tratamento e fiquei cada vez mais curioso para saber mais.

Nesse meio-tempo já havia definido meu próximo destino: um Kibutz em Israel. Durante a estada lá teria mais tempo para poder planejar com calma as fases seguintes da minha viagem. No começo de fevereiro de 1982 fui para lá com voo da Lufthansa. Quase no mesmo dia, um outro avião da Lufthansa estava indo para o Brasil, mas sem mim a bordo.

Permaneci cerca de dois meses no Kibbuz Degania Bet, próximo ao Mar da Galileia, colhendo bananas. O trabalho físico era uma boa mudança de ares em relação às atividades intelectuais do estudo. Lá conheci jovens de muitos países. A língua franca era o inglês, e conversávamos, entre outros assuntos, sobre viagens. Uma das dicas que me deram lá foi que, como estudante, era fácil ganhar dinheiro na Suíça.

Cerca de uma semana antes do começo da guerra do Líbano de 1982 – na época eu nem estava consciente dela – me pus a caminho da Europa. Primeiro de navio até a Grécia e depois de ônibus até a Suíça. Em Zurique, não consegui achar emprego algum, mas conheci um brasileiro

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que me informou da possibilidade de encontrar trabalho mais facilmente na parte francesa da Suíça. Nesse meio-tempo minhas finanças tinham atingido um nível tão crítico que tive que pedir ajuda a meus pais. Ao chegar à parte francesa da Suíça logo encontrei um bico para trabalhar com legumes e frutas. Lá trabalhei durante três meses e consegui economizar dinheiro para a continuação da viagem. Era fantástico pegar os abricots direto do pé e colocá-los não somente nos baldes, mas também na boca. Hmmm!

Em agosto estava de novo on the road . Decidi ir à Grécia para saborear os últimos raios de sol daquele verão. Na travessia da Itália para a Grécia conversei com um ítalo-brasileiro que me disse de forma bem clara que ele era italiano. Fiquei muito surpreso com sua afirmação, pois até então pensava que todas as pessoas que sabiam falar português do Brasil eram brasileiras. Comecei a pensar: “Quem são os brasileiros? O que é a identidade cultural brasileira?” A ideia do Melting Pot começou a se derreter como a neve ao sol.

A viagem continuou e meus cabelos cresceram. Provavelmente por causa da cor

de minha pele, foi muito difícil encontrar uma vaga em um Albergue da Juventude em Atenas: sempre diziam que estavam lotados. Fiquei irritado e pela primeira vez pensei que nem ali eu estava livre do racismo. Viajei muito de carona. Peguei os carros mais diferentes (Fusca, Citroën, Mercedes, Renault, Volvo etc.) e encontrei pessoas das mais diversas: jovens e velhas, pobres e ricas, com alto e com baixo nível de escolaridade...

Na viagem de volta ao Norte da Europa fui visitar um rapaz que tinha conhecido no Albergue da Juventude em Frankfurt. Ele vivia com seus pais na área rural na ex-Iugoslávia – em Sremska Mitrovica –próximo a Zagreb. Passei alguns dias com essa família adorável, e descobri que as notícias dos meios de comunicação sobre o país não tinham muito a ver com a realidade das pessoas lá. No dia de minha partida, a mãe do rapaz meu deu um pacotinho e fiquei muito emocionado quando descobri que era piquenique para a viagem.

Continuei a viagem de trem em direção ao Norte. Ao chegar à Suíça, dei uma parada e fui visitar colegas que tinha conhecido no famoso Festival de Jazz de Montreux. Passei alguns dias com eles.

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Com tantas experiências meu horizonte tinha se alargado de maneira muito expressiva. Além disso, estava experienciando uma liberdade que nunca havia sentido antes, e a leveza de espírito era fenomenal.

Como o Outono europeu já estava chegando e com ele um clima mais frio, comprei um Interrail Pass e fui à Alemanha, Holanda, Dinamarca, Suécia e Noruega. A intenção era de ir à Escandinávia e poder sentir o ABBA-Groove.

Com tantas experiências meu horizonte tinha se alargado de maneira muito expressiva. Além disso, estava experienciando uma liberdade que nunca havia sentido antes, e a leveza de espírito era fenomenal. A partir daí comecei a sentir de forma intuitiva que com minha cor de pele no Brasil nunca poderia ir muito longe, e me desenvolver plenamente. A sociedade brasileira, de alguma forma, sempre iria me bloquear. Afinal, na época, a abolição da escravatura não havia completado nem 100 anos. A mentalidade escravocrata provavelmente permaneceria durante muito tempo. Assim, me lembrei do provérbio popular que diz: “Se a montanha não vai a Maomé, então Maomé tem que ir à montanha”.

No dia 9 de dezembro de 1982, voei para São Paulo com o intuito de terminar o ITA e não mais viver no Brasil no futuro. Ao chegar no aeroporto de Viracopos fui informado de que minha mochila não tinha me acompanhado no voo: era como se ela não quisesse ir ao Brasil. No entanto, foram entregá-la alguns dias mais tarde.

VIA MALÁSIA ATÉ À SUÍÇA

Depois de me formar no ano de 1983, fui procurar emprego em uma firma que me enviasse para fora do Brasil. Encontrei o emprego na Schlumberger, que primeiro me mandou para Alagoas. Lá comecei a aprender os métodos e a conhecer as ferramentas

utilizadas na prospecção de petróleo em terra. A empresa planejava me preparar para me enviar para trabalhar em uma plataforma de petróleo na Malásia. A caminho de lá fiz uma escala de um mês na Inglaterra (Exeter) para melhorar meu inglês. Apesar de o salário para um sul-americano ser bom, ficar de piquete na plataforma era exaustivo demais. Não aguentei o baque e, depois de apenas seis meses, tive que mudar meus planos de maneira radical. O que fazer? Eu tinha a opção de ir ao Brasil via Estados Unidos ou via Europa. Como, na época, nunca havia estado nos Estados Unidos mas já tinha tido ótimas experiências na Europa, a escolha foi fácil. E, assim, em 24 de setembro de 1984, o avião que me levou de Cingapura via Dubai pousou em Zurique em um dia chuvoso e com tempo nublado. Desde então, esta cidade se tornou meu lar. Com o diploma do ITA no bolso, comecei a procurar emprego. Mas logo percebi que aqui as coisas para um estrangeiro não eram tão simples como para um estrangeiro no Brasil. À procura de emprego, fui parar no escritório que, na época, era responsável pela inspeção e entrega dos equipamentos para a usina de Itaipu (turbinas, geradores etc.). Lá conheci Walter Horn, um brasileiro que tinha muito orgulho de suas origens alemãs. Ele me deu muita força em meus primeiros passos em Zurique. Como ele também se interessava por História, contou-me coisas surpreendentes sobre o Brasil, como que os negros, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos ( 40 acres and 1 mule ), tinham sido simplesmente jogados na rua depois da abolição oficial da escravatura. Ele também era da opinião que no consciente coletivo da população

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brasileira os negros continuavam a ser vistos como coisas, como escravizados. Em suma, que a escravidão ainda não havia acabado.

Walter me recomendou que fizesse uma pós-graduação na ETH de Zurique (Escola Politécnica) e me deu um grande apoio durante minha candidatura a uma vaga. Tive que verter o plano de estudo da eletrônica do ITA para o alemão. Depois de passar em algumas provas, fui aceito para a pós-graduação em Mecatrônica.

Durante a pós trabalhei no Instituto de Mecânica, como assistente. No começo de 1989 completei a pós e com a experiência ganha fui para o mercado de trabalho.

Como a sociedade Suíça me agradou muito, tentei aprender o idioma o mais rápido possível e me adaptar à nova vida. Foi nessa época que conheci minha primeira esposa, Silvia.

Durante minha vida profissional trabalhei em várias firmas. No começo trabalhei com a venda de inversores de frequência na Antriebe AG. Já que a produtora desses equipamentos era na Áustria, tive a chance de conhecer a matriz em Viena. A seguir trabalhei na área de engenharia de controle e automação na Reishauer AG. Minha função era a de entender ( re-engineering ) e melhorar a malha de controle fechada das máquinas retificadoras para engrenagens, que eram vendidas mundialmente e utilizadas nas fábricas que produziam carros. Na próxima etapa fui trabalhar na Siemens, na área de controle de tráfego de trens.

A tarefa era avaliar a possibilidade de se usar um sistema de controle de tráfego de trens alemão recém-concebido para o uso na Suíça. Finalmente fui trabalhar

na Contraves Space AG, onde, durante mais de 20 anos, pude vivenciar muitas mudanças e trocas de donos. Atualmente a empresa pertence à Thales Alenia Space. Lá trabalhei em várias áreas. Comecei com a software-engineering e programação de on-board software para o controle de um telescópio. A seguir trabalhei com a software-engineering e programação de software para o teste de hardware destinado para o voo. Por último, trabalhei nas campanhas de teste ( environmental tests ) de hardware destinado para o voo, em estreito trabalho com os engenheiros de software .

Alguns dos produtos que ajudei a testar, e que mais tarde, acoplados a satélites, voaram com diversos foguetes, ainda giram em torno da Terra, produzindo e enviando dados.

Na minha vida profissional estive em contato com especialistas de/em vários países europeus. O trabalho em projetos tão diferentes contribuiu para que eu pudesse ter uma visão profunda em áreas muito diferentes, e assim pude ganhar muita experiência profissional.

Em agosto de 2021, pedi as contas e desde então estou aposentado. Agora me alegro de poder dedicar mais tempo a outras atividades de interesse.

Faz um ano que estou muito feliz no meu segundo casamento, com a Annemarie.

MINHA VISÃO DO BRASIL

Na Suíça pude aprender muito sobre o Brasil. Sobre aquilo que acontece atrás dos bastidores, e por que uma parte da História, da qual todos nós fazemos parte, durante muito tempo não foi contada e, hoje ainda, raramente é contada, pois não é mainstream . Isso me faz pensar muito.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 91

Aqui pude me desenvolver, ou seja, sempre pude encontrar momentos tranquilos para recuperar as forças e em seguida enfrentar novos desafios: como em uma escalada de montanhas. A Suíça me deu a chance de conhecer meus limites, tanto no campo profissional como no privado. Hoje me interesso muito por História e Sociologia e, especialmente, pelo racismo contra negros.

É claro que aqui nem tudo é perfeito. Mas o contínuo típico esforço suíço em tornar a vida melhor para a maioria das

pessoas que vivem aqui também me inclui. Eu posso participar de forma muito natural. E este sentimento bacana direciona meu olhar para o que aconteceu no passado, mas desperta desejos para o futuro. Espero que no Brasil se desenvolva uma sociedade mais inclusiva, que permita que o potencial de todas as pessoas, também as de pele escura e indígenas, possa se desenvolver. A comunidade iteana estaria em condições de fazer uma contribuição bem relevante. Em vista disso, sou grato por ser um ex-aluno do ITA.

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ITA

Kusniec

CHARLES KUSNIEC

40 anos depois...

Quando a gente nasce não vem junto um manual de instruções para a vida. Tampouco a gente tem consciência de como as coisas funcionam durante a vida. Não sabemos de onde viemos para a vida nem para onde iremos depois dela.

Sem eu perceber, os professores do ITA foram os meus últimos pais que se dedicaram a me ensinar. Os colegas de turma, os meus irmãos. Nunca mais eu frequentei uma escola ou curso acadêmico de qualquer assunto. O maior ensinamento do ITA foi aprender a aprender.

Fiz o primário e ginasial (ensino fundamental) no Scholem Aleichem. Não existe mais essa escola. Lá, eu era o menor da turma, o “tampinha”.

No ensino médio (então científico) minha mãe me levou para o Colégio Bandeirantes. Na matrícula da escola a secretária me perguntou: “Você quer fazer exatas, humanas ou biológicas?”. E eu, com todas as dúvidas dos meus 14 anos de idade, respondi: “Preciso decidir agora?”. “Sim”, respondeu ela, “todos os alunos têm que escolher uma das três opções”. Diante do meu silêncio e sem que eu soubesse o que escolher, ela sugeriu: “Charles, escolha biológicas, porque se depois você quiser ir para exatas ou humanas é mais fácil”.

Adorei a sugestão e fiquei aliviado. Orgulhoso de ter conseguido optar por biológicas fiz o 1º, o 2º e o último ano, tudo nas biológicas... Todos da minha classe iriam ser médicos, veterinários ou algo do ramo.

Assim, no vestibular me inscrevi para o Cescem de medicina e não para o Mapofei ou para outros que não fossem de biologia. Afinal, todos os meus amigos estavam indo fazer o Cescem. Depois de me dar conta de que eu estava indo ser médico sem exatamente ter decidido o que eu queria, perguntei a mim mesmo:

– Por que você vai ser médico?

– Eu sei lá?

– Então o que você quer fazer da vida?

– Bem, eu adoro música, adoro som... Por que não faço uma faculdade para entender como funcionam os equipamentos de som?

– Puta ideia, Charles! É disso que você gosta e isso o que você quer.

– Mas... que profissão estuda os equipamentos de música?

– Acho que é engenharia de eletrônica...

– Sério? O que é isso? Quais são as escolas?

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Então descobri que a melhor escola de engenharia de eletrônica do Brasil é o ITA em São José dos Campos. E mais: descobri que ela é de graça! E mais: que ela fornece casa e comida de graça. E mais: que ainda se ganha um dinheirinho por fazer o serviço militar.

A essa altura, podendo sair da casa de meus pais para fazer aquilo que eu mais queria fazer abriu-me um objetivo que eu me empenhei com todas minhas energias para alcançar.

Claro que não sabia a matéria de desenho descritivo necessária para o vestibular do ITA. Ainda, a física e a matemática que eu tive em biológicas foram mais fracas que as dos outros. Assim, fiz um ano de cursinho, recuperei o que faltava e só prestei o vestibular do ITA. Nem o da Poli eu fiz. Eu sabia que iria entrar...

Entrei em 1977, na Turma 81. Os dois primeiros anos foram muito difíceis para mim. Era uma adaptação de tudo. Ademais, como judeu, eu tinha muito receio de não ser aceito num colégio militar do Brasil daquela época. O mundo todo ainda discriminava muito os judeus e sempre tive parentes próximos em Israel. Em 1972 ocorreu o massacre nas Olimpíadas de Munique. Em 1973 Israel perdeu a guerra do Yom Kipur, e em junho 1976, alguns meses antes do meu vestibular do ITA, ocorreu o sequestro do Airbus (voo AF 139) da Air France, que terminou com a inédita e ousada Operação Entebe feita por Israel.

Assim, eu só senti que realmente entrei no ITA no dia do exame médico. Isso porque, no primeiro dia de convocação, estávamos todos numa sala para medir peso e altura. Depois um militar fardado sentado ali com

uma máquina de escrever sobre a mesa, chamava um por um de nós. Quando fui chamado, ele me perguntou o meu peso e eu respondi. Depois perguntou-me a altura e respondi. Em seguida, ele perguntou:

– Cabelo? – ele me olhou e ele mesmo respondeu: “Loiro”. E datilografou na ficha.

– Olhos? – ele me olhou e ele mesmo respondeu: “Verdes”. E datilografou na ficha.

– Cor da pele? – ele me olhou e ele mesmo respondeu: “Branca”. E datilografou na ficha.

E por fim:

– Religião? – ele mesmo respondeu, já datilografando sem me olhar: “Católica”.

Eu continuei mudo e estático. Quem era eu para dizer que não sou católico?

Num mundo tão confuso em relação aos judeus, vou contestar o militar e dizer agora que sou judeu? Foi nesse silêncio que eu falei para mim mesmo: “Entrei no ITA”.

No final do 2º ano, dei um jeito de trancar a matrícula pelo CPOR. Isso me daria um fôlego para pensar se era esse o meu caminho. Ao mesmo tempo não seria um trancamento por causa das matérias do ITA e minha ficha continuaria limpa. Assim, com a matrícula trancada, fui trabalhar com meu pai na loja que ele tinha no Bom Retiro. Fiquei uns seis meses trabalhando com ele.

Até hoje eu me lembro do último diálogo que tivemos antes de eu recomeçar as aulas do ITA:

– Pai, nós dois nesses últimos seis meses ganhamos muito dinheiro. Por que em vez de voltar para o ITA eu não continuo trabalhando com você e a gente pode fazer uma empresa grande?

Ele fez um silêncio e me respondeu:

– Não.

CHARLES KUSNIEC 94

Eu, surpreso, perguntei:

– Por quê?

– Porque se você não voltar para o ITA agora, você nunca mais vai ter a possibilidade de se formar engenheiro. Mas, para voltar a trabalhar onde quer que seja, você vai ter a sua vida toda pela frente...

Foi profunda essa resposta. Até hoje eu me lembro desse diálogo. Ele foi um grande pai, verdadeiro.

Assim, com toda a vontade e certeza, voltei para o ITA para fazer Engenharia de Eletrônica na Turma 82.

Estou eu de volta ao ITA, e uma das matérias, se não me engano, era Circuitos Elétricos. Oba! Agora vou aprender eletrônica! Estudo essas coisas pela primeira vez na vida. Estudo bastante e acho que vai dar tudo certo.

Então, na primeira prova de Circuitos Elétricos, eu tiro 2 ou 3. Algo assim. Cacete!!!

Que merda!

Estudo mais para a segunda prova e tiro 3 ou 2. Puta merda! Fudeu! Assim eu vou ser expulso do ITA... O que está havendo?

Não é possível! O que está acontecendo?

Chego até meu amigo Volpi e pergunto:

– Babalu, como você conseguiu acertar os exercícios dessas duas provas e teve notas boas acima de 6,5 e eu, que também estudei, não tirei nem metade da sua nota?

E o Volpi me pergunta:

– Mas você estudou pelo livro da prova?

– Livro da prova? Que livro da prova?

– Charles, esse é o Professor Martins (acho que era esse o nome dele) que nos deu aula na ETEP (Escola Técnica de Eletrônica em São José dos Campos).

Ele ensina por um livro, mas na prova ele faz perguntas do outro livro.

– Você tem esse livro?

Quando o Volpi me mostra o livro eu vejo ali todas as perguntas das duas provas explicadas.

Então, eu me dirijo ao professor, explico que nunca havia feito escola técnica. Eu não me lembro qual foi a solução, mas eu consegui recuperar nas outras provas e passei com a média mínima: 6,5. A vida não tem manual de instruções. Tudo acontece. O ITA nos ensina a nos virar.

Durante o curso do ITA eu já havia entendido como os equipamentos de som funcionavam, e os computadores pessoais estavam começando a aparecer mundialmente. Não demorou muito para eu me desinteressar dos equipamentos de som e mudar para a computação. Foi muito fascinante.

No final do 4º ano eu já queria começar a trabalhar como estagiário em alguma empresa de informática.

A única coisa que eu não sabia era que todas as empresas brasileiras de informática bem-sucedidas eram as que mais faziam contrabando. As estrangeiras eram impedidas de atuar no Brasil por causa da lei da reserva de mercado. Hoje eu vejo o quanto isso saiu caro para o Brasil como nação. Alguns poucos ganharam muito dinheiro, mas desenvolvimento verdadeiro de alta tecnologia de hardware praticamente não existiu. Isso porque “As facilidades enfraquecem. As dificuldades fortalecem. Tudo que vem fácil, vai fácil”.

Bem... vou eu para o meu primeiro estágio/ emprego na área de eletrônica/informática, na empresa Flexidisk. Fiz o 5º ano como estagiário e no dia seguinte de nossa

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 95

formatura fui contratado como engenheiro.

Orgulhoso do meu diploma, tinha a função tecnológica de “nacionalizar” os HDs da Shuggart/Seagate de 5, 10 e 15 MB. Isso era o top da época.

Quando fui visitar pela primeira vez a fábrica da Seagate no Vale do Silício, nos Estados Unidos, meu queixo caiu... A estrutura, infraestrutura, pessoal, recursos, tudo era astronomicamente maior e melhor que no Brasil. Eu pensava: “Como pode o Brasil querer fazer isso lá? Para quê?”.

Não era possível acompanhar as empresas dos Estados Unidos. Elas estavam andando em cima dos ombros de um gigante. As empresas brasileiras estavam se arrastando no meio da bandidagem do Brasil. Era óbvio que quem estava em cima do gigante conseguia ver e andar mais longe.

Eu voltava para o Brasil e dava desgosto (e vergonha) de ver a mediocridade brasileira.

No final, a nacionalização de hardware era para inglês (digo, SEI – Secretaria Especial de Informática) ver: 90% contrabando e 10% montado no Brasil.

Hoje eu vejo que quem realmente soube fazer nacionalização de forma altamente eficaz e competitiva foi a China. Temos que reconhecer que os chineses souberam dosar trabalho com pirataria obtendo sucesso como resultado. Pirataria com engenharia reversa, contrabando e suborno, combinados com estratégia coletiva como nação resultou em hoje estarem competindo com Inteligência Artificial e Computação Quântica. Em Comunicação Quântica já são os pioneiros. Os fins justificaram os

meios. O Brasil ainda está evoluindo da dança da garrafinha para o funk da Anitta. Meu sonho de recém-formado era trabalhar na IBM. O que poderia ser melhor naquela época para um engenheiro formado pelo ITA que gostava de trabalhar com informática? Afinal, ficar brincando de ser engenheiro de mentirinha em empresas brasileiras não dava futuro...

E não é que a IBM anuncia vaga para engenheiro com experiência em hard disks para um plano inicial de dois anos de trabalho no Japão e depois mais dois anos em São José (não dos Campos) na Califórnia? Parecia que a vaga fora feita para o meu perfil. Aplico para essa vaga, faço todos os testes técnicos, psicológicos, escritos e orais. Passo em todos. Em seguida vou para uma série de entrevistas lá na IBM e passo em todas. Finalmente eles me fazem uma proposta para me mudar para o Japão e depois para os Estados Unidos com tudo pago, para mim e toda a minha família. Tudo certo. Era o sonho da minha vida...

Mas um detalhe que não estava no roteiro do manual de instruções da vida: minha mulher não queria ir para o Japão de jeito nenhum. Tínhamos acabado de ter nossa primeira filha e nada de ela aceitar a ideia de irmos para o Japão. Nem eu ameaçando ir sozinho mudou a cabeça dela. Voltei para a IBM e disse “não”. Eles não desistiram tão fácil. Ligaram-me inúmeras vezes, aumentaram a proposta de salário e até se propuseram a falar com minha mulher para tentar convencê-la. E ela nem quis falar com eles...

Como já disse, quando a gente nasce, não vem junto um manual de instruções

CHARLES KUSNIEC 96

para as situações que a vida nos cria... Certamente perdi uma grande experiência para nossas vidas. Permaneci trabalhando em empresas brasileiras de fundo de quintal que fingiam estar desenvolvendo computadores – tudo pirataria e engenharia reversa burra. No mínimo a nossa pirataria deveria ter a genialidade chinesa...

Tentei fazer minhas empresas. Várias sociedades, mas tudo era cópia (malfeita) das empresas americanas. Se era para copiar, por que recusei a IBM?

Meio que perdidamente, os anos 1980 foram marcados para mim como os anos em que eu recusei ir para a IBM. Senti-me um perdedor.

A fila anda e a vida segue. Aprendi com um amigo que a cabeça tem que ser maior que o corpo.

Creio que em 1988-1989, sem saber o que fazer da minha vida profissional, estava eu em casa, numa manhã de domingo, lendo jornal e revistas sobre ideias do futuro dos computadores. Acabei cochilando e acordei com um insight : “Eu não sei qual é o futuro dos computadores, mas tenho certeza de que eles acelerarão o tempo e diminuirão as distâncias”. Fui ao INPI e registrei a marca “ACELERANDO O TEMPO E DIMINUINDO DISTÂNCIAS”. Isso era

ousado para aquela época. Muitos anos depois a GM queria usar esse slogan Seguindo meu insight , era certo que estava faltando comunicação entre os computadores para isso acontecer. Para mim, era óbvio que, se eu quisesse pegar a onda dos computadores/ informática, o próximo passo seria sem dúvida a comunicação de dados.

Fiquei uns sete meses fazendo meu programa de comunicação de dados, que chamei de VIDEOJET. Fiz em linguagem PASCAL e era revolucionário para a época porque (1) discava automaticamente, (2) navegava automaticamente, (3) gravava automaticamente toda a navegação e (4) desligava automaticamente. Eu só precisava comprar uma vez os emuladores de terminais e uma placa modem para cada cliente. Meus primeiros clientes foram os escritórios de advocacia. Eles tinham que pagar um estagiário para ficar quatro horas numa fila nos tribunais para conseguirem ter acesso a apenas um processo. Quando eu mostrava que bastava eles programarem os números de todos os processos do escritório no meu programa e todos os dias eles teriam em poucos minutos o status de todos os processos gravado, em alguns casos eles nem me deixavam tirar

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 97
Acabei cochilando e acordei com um insight:
“Eu não sei qual é o futuro dos computadores, mas tenho certeza de que eles acelerarão o tempo e diminuirão as distâncias”.

de volta a demonstração. Pagavam na hora. Eu me lembro que o meu custo era $100 e eu cobrava $2.500 e eles achavam barato! Eles só percebiam o valor do preço quando constatavam que o meu sistema era o preço de um computador PC completo na época.

Todos os escritórios de advocacia tinham o meu sistema. Fiquei tão famoso nesse meio que um dia fui parar no último andar do Fórum João Mendes numa sala de apresentação onde estavam dezenas de Juízes e Desembargadores para conhecer o meu sistema. Sala lotada, todos se maravilharam. Ao final, recolhendo minhas coisas, aparece uma pessoa pedindo para falar comigo. Ele se apresenta como Juarez da Telesp, e me pergunta:

– Sr. Charles, seria possível mudar o seu sistema para acessar conta corrente de bancos?

Eu respondo:

– Óbvio que sim!

– Então eu vou lhe apresentar um cliente em Osasco.

Eu pensei: “Em Osasco? Que escritório de advocacia grande querendo acessar suas contas correntes pode ter lá?”

Mas o cliente que ele estava me apresentando era o Banco Bradesco! Era o próprio Banco que estava interessado em prover um sistema de acesso dos seus clientes às contas correntes.

Fui falar com a diretoria de tecnologia do Banco, entendi o que queriam e uma semana depois voltei com o sistema pronto. Foi o primeiro Home-Banking do Bradesco (e do Brasil), que se chamou TeleBradesco Residência. Talvez até um dos primeiros no mundo, pois o Brasil era o país com a melhor tecnologia bancária do mundo.

Em 1994 havia 500 mil clientes usando diariamente o meu home banking . Era um tremendo recorde para um mundo ainda sem internet e um país onde a linha telefônica de Alphaville chegava a custar US$10.000,00 com uma lista de espera de dois anos.

Nessa época o Bradesco tinha muitas reclamações de falhas, pois alguns clientes não conseguiam ter acesso às contas pelo meu sistema. Quando me reportaram isso, eu falei que o problema era do modem que o cliente estava usando. O banco disse ter consultado o pessoal do modem e eles diziam que o problema era do meu software . Assim, ficou decidido que a partir de então comprariam modem e software de um só fornecedor. Como o vendedor do modem não tinha como prover o software , com um sorriso de orelha a orelha fiquei responsável por vender a solução completa.

Eu sabia que não poderíamos usar os modems baratos de Taiwan, pois embora fossem um sucesso na Europa devido ao preço baixo, as instalações das linhas telefônicas no Brasil eram malfeitas, com muito ruído e, por isso, precisavam de um tratamento de sinal, o que certamente aumentaria o custo do modem. Você quer comparar a qualidade das instalações das linhas telefônicas da Suíça com as do gato-Brasil? Melhor pagar mais caro por uma coisa que funciona do que pagar a metade do preço por algo que não funciona. Custo Brasil.

Foi buscando os modems de primeira linha com DSP para tratamento de sinal existentes no mundo que eu entrei em contato com a USRobotics em Chicago. Eram os mais baratos de todos com DSP.

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Então eles me disseram que já tinham um distribuidor no Brasil e que, como vendiam muito pouco aqui, não queriam ter outro.

Fui até o distribuidor que, muito desanimado, me disse ter em estoque umas 200 peças, mas que não as vendia fazia dois anos. Pedi a ele umas amostras, levei ao Bradesco, fiz uns testes, homologuei tudo e o Banco me mandou um pedido de compra inicial de 2 mil peças. Os donos da distribuidora não acreditavam! E ficaram meus sócios. Fizemos uma grande parceria e nos tornamos o maior distribuidor USRobotics no Brasil.

Mas o melhor ainda estava por vir. Quando começou a internet, a USRobotics lançou uma linha de rack de modems chamado Total Control, em que todos eles poderiam receber chamadas de clientes remotos. Isso era uma maravilha para a época, pois evitava de ter que ficar montando prateleiras de modems para receber chamadas. Era o melhor sistema de acesso remoto da época. Mesmo sendo o melhor, faltava um programa de gerenciamento para monitorar e avisar em tempo real qualquer mau funcionamento. Imagine milhares de conexões e você ter que ver uma a uma manualmente!

Foi aí que eu desenvolvi um sistema de gerenciamento e estatística para o Total Control. Não é que meu segundo grande cliente me aparece indicado pela própria USRobotics por causa do meu programa de gerenciamento? E quem era? A IBM! Sim, a própria IBM do Brasil que revendia o Total Control para seus clientes corporativos queria comprar o Total Control, mas com nosso programa de gerenciamento que a USRobotics não tinha.

A IBM dos Estados Unidos, que sempre revendia para IBM Brasil, ficou maluca quando teve que renunciar às vendas para nós. Ninguém tinha o nosso programa. Nunca me esqueço: a primeira vez que vi um cheque de 1 milhão de dólares foi da nossa primeira venda para a IBM Brasil...

Quando apresentei o Total Control com meu programa para os bancos, todos eles começaram a migrar para meu sistema. Logo depois da IBM, vendi para o Itaú; depois para o Noroeste, Citibank, Unibanco, e todos os outros grandes bancos da época. Era uma maravilha vender para bancos! Dias antes do vencimento da fatura já aparecia no extrato bancário o crédito a entrar da venda. Nunca tinha visto isso antes. O gerente da minha conta corrente já me ligava para dizer que eu estava liberado para usar o dinheiro antes do crédito efetivo. Como era bom ser paparicado! Alguns anos antes o mesmo gerente tinha fechado a minha conta pessoal porque dava prejuízo para o banco. O mundo gira e dá voltas...

Melhor ainda era ter um produto para o qual o comprador não consegue achar concorrente... Naquela época, o departamento de compras das grandes empresas era muito forte e poderoso. Lembro-me de fazer homologações nos setores de informática dos bancos, mas na hora do pedido o comprador não emitia. Eles sentavam-se em cima. Então eu fazia cara de paisagem e ficava aguardando o pessoal técnico me ligar para saber se eu já tinha entregado a mercadoria. Um ou dois dias depois de eu dizer que ainda não tinha recebido o pedido de compra, apareciam no meu fax pedidos e mais pedidos. Era

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 99

bom ter um diferencial para vender... e não precisar pagar caprichos de ninguém.

Com o início da internet no Brasil, nós conseguíamos vender modems para os usuários e os provedores. As maiores vendas foram de modems xDSL da PairGain para as empresas de telefonia. No início dos anos 2000 já tínhamos uma base instalada de mais de 1 milhão de modems.

A primeira rede de internet da Telesp, que hoje é Telefônica, foi planejada, vendida e implementada por nossa empresa. Tudo com nossos softwares e equipamentos da Ascend, que foi comprada pela ATT/ Lucent e parece que hoje é Alcatel.

Eu via minha profecia de acelerar o tempo e diminuir distâncias ser implementada com a internet.

Em 2002 separamos nossa sociedade e eu continuei, sozinho, com a empresa.

Em 2005 separei da minha esposa Gisele. Não sei o que foi pior: ter recusado a oportunidade da IBM ou ter me separado da Gisele. A vida não vem com manual de instruções.

Em 2006 me encontrei com uma bomba-relógio. Em janeiro conheci Cristina. Em maio ela me disse que estava grávida. Em dezembro fizemos nosso casamento. Em janeiro de 2007 tive meu único filho homem e a única coisa maravilhosa desse casamento. Só comecei a tomar conhecimento da encrenca em abril de 2007, com fatos totalmente fora do meio em que eu vivia...

Meus problemas familiares começaram a me afetar profissionalmente. A gente faz planos e o acaso dá risada!

Não existe sucesso profissional sem tranquilidade familiar. Nós somos seres indivisíveis. Não conseguimos

atuar positivamente num setor da vida quando no outro estamos explodindo. Fui arrastando minha empresa até 2014.

Em março de 2014 minha mãe falece e então eu descubro que nossa vida se divide em duas etapas: a primeira até quando nossa mãe está viva e a segunda depois que nossa mãe se vai.

Em agosto de 2014 minha irmã se foi.

Em setembro de 2014 meu pai foi internado e nunca mais saiu até seu falecimento em janeiro de 2019.

Outras coisas familiares pesadas ocorreram em 2014.

De forma tardia, em novembro 2014 mandei embora todos os funcionários.

Foi quando eu aprendi: “Atrás de um GRANDE homem sempre tem uma GRANDE mulher! Atrás de um pequeno homem não tem mulher alguma!”.

A última coisa que passou ou passa pela minha cabeça é me aposentar. Alguma coisa eu tenho que fazer. Tenho que ter uma meta. Tenho que ter um objetivo. E mais: tem que ser algo disruptivo. Caso contrário estou morto.

Percebendo que profissionalmente nada mais será como antes, a fila andou, o mercado mudou, as regras mudaram, eu, que antes tinha entre 30 e 50 anos agora com 55, pensei o que eu queria e poderia fazer com o resto de minha vida profissional. Constatei na prática que não existe atleta de 50 anos nem filósofo de 20.

Então me lembrei que no meio do turbilhão de 2013-2014 assisti a um vídeo no YouTube onde matemáticos respeitados estavam explicando por que 1+2+3+4+5+...=-1/12 e que o primeiro a escrever sobre isso foi o famoso Ramanujan.

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Isso mesmo: a soma de todos os infinitos números inteiros positivos era um número finito e ainda negativo!

Pensei comigo mesmo: “Que merda é essa? Já não chegam as bagunças e os problemas familiares... e agora vêm matemáticos respeitados dizer que a soma de todos os números inteiros positivos resulta em um número finito e negativo?

A que aula eu faltei? Cadê o Volpi para me dar o livro certo dessa matéria?”.

No final de 2014 eu decidi estudar matemática dali para frente. E mais: teria que ser algo relacionado com os números primos. Afinal, é isso que pode me levar a descobertas inéditas. Meu pai me encaminhou para fazer o ITA, lá eu estudei matemática de verdade, sempre gostei e tenho curiosidade de entender o que são os números primos e suas consequências. Eu tenho que honrar o meu pai.

Assim, desde 2014 tenho me dedicado a estudar Teoria dos Números. Realmente é fascinante. A primeira descoberta que eu fiz é que existe D’us. Isso porque nós, seres humanos que estudam matemática, no máximo descobrimos aquilo que D’us inventou. Nunca acredite numa pessoa que diz que inventou uma fórmula ou um conceito matemático. Ela, no máximo, descobriu aquilo que D’us já inventou desde sempre.

Durante esses anos eu tive sonhos com D’us:

D’us me pergunta:

– Você sabe o que é o zero?

Lá do alto da minha sabedoria, respondo de pronto:

– Claro que sim! Zero é o nada!

D’us me pergunta:

– Você sabe o que é o infinito?

Impotente, respondo:

– Não!

D’us me pergunta:

– Se você acha que sabe o que é o zero, por que você acha que não sabe o que é infinito?

Agora, em 2022, meus irmãos da Turma 82 estão preparando uma festa de 40 anos de formados do ITA. Brilhante a ideia do Guilherme, de cada um fazer um relato de sua vida profissional!

Eu me sentia despreparado para fazer este relato sem que tivesse no mínimo um viés positivo de que algo novo eu possa ter descoberto em Teoria dos Números nesses últimos anos. Nós fizemos o ITA para sermos vencedores e não conseguia escrever este relato sem uma perspectiva.

Só estou escrevendo agora porque na semana passada enviei para o jornal NNTDM – Notes on Number Theory and Discrete Mathematics a primeira minuta da primeira parte da Prova da Conjectura de Goldbach. É aquela que diz que todo número par positivo pode ser escrito como sendo a soma de dois números primos. Espero passar nessa prova como passei na prova do ITA sem fazer a da Poli. O tempo vai dizer se o que descobri é ou não disruptivo. Truco!

PEQUENO MANUAL DE INSTRUÇÕES PARA A VIDA

Uma pessoa não pode fazer o certo em uma área da vida enquanto está ocupada em fazer o errado em outra. Viver é um todo indivisível. Pelo tamanho do dedinho você sabe o tamanho do gigante. Os excessos são mais prejudiciais do que as faltas. Não tem

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 101

como ter paz de espírito quando a gente pensa no inferno! Ter paciência é difícil porque o mais difícil é a gente se aguentar. O melhor lugar do mundo para se viver é sempre ao lado de quem te faz bem e feliz! Para viver, precisa-se de muito amor, trabalho, paciência, persistência... Para morrer, precisa-se de nada! Procure ser feliz com seu caminho na vida. Considere

que o acaso também é responsável pelo nosso destino, mais do que nós mesmos gostaríamos que fosse. A vida não é justa. No que a mentira e a verdade são iguais?

Elas são iguais porque as duas doem. No que a mentira e a verdade são diferentes?

A verdade dói apenas uma vez.

A mentira dói todas as vezes que nos lembramos dela.

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Christophe

CHRISTOPHE SIX

Este relato do nosso saudoso Christophe é um resumo de sua belíssima história de vida narrada pela sua amiga Marly Amoroso

Lima, elaborado a partir de transcrição de trechos do texto completo da autora, com 32 páginas, disponível na versão eletrônica do Álbum. PADRE CHRISTOPHE:

UM CAMINHO PARA DEUS

“Dá-me tua paz e eu te dou a minha”, assim dizíamos nos e-mails que trocávamos, numa história bonita que não terminou com a morte.

Desde o princípio de nossa amizade percebi nele um caráter sólido, excelente formação intelectual e religiosa herdada de seus pais, franceses, católicos praticantes. Extremamente discreto, jamais me falou sobre sua qualificação profissional. Somente anos mais tarde tive conhecimento de seu currículo

diferenciado: graduado como engenheiro no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), trabalhou posteriormente durante cinco anos na Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica) na França, fez pós-graduação em Administração de Empresas, primeiro em Paris e depois nos Estados Unidos (MBA).

Num dado momento de sua caminhada, percebeu que a profissão, o status e o dinheiro não constituíam o objetivo principal de sua vida. Sentia a necessidade de encontrar respostas mais claras a seus apelos interiores. Com uma mochila nas costas, partiu em busca de algo novo que pudesse preencher o vazio existencial que começava a instigá-lo.

Viajou durante dois anos. Sua busca religiosa o levou a Israel, onde visitou lugares de referência bíblica, acampando pelo caminho e participando da missa todos os dias. Viajou pela Argélia, percorrendo o deserto de Tamanrasset, conhecendo a ermida do Padre Charles de Foucault. Percorreu o norte da África, a Índia, visitou Madre Teresa de Calcutá (hoje “Santa”) e alguns centros religiosos do hinduísmo. Passando também pelo Nepal, chegou a uma das fontes do Rio Ganges, na base do Annapurna (uma das dez montanhas mais altas da Terra) na cordilheira do Himalaia.

Durante sua busca espiritual, viajou também pela estrada Panamericana, visitando missionários franceses e rezando em igrejas e santuários. Em Guadalajara (México), no santuário de Zapopan, percebeu

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o quanto a Igreja necessitava de sacerdotes, e sentiu que poderia ser um deles.

Foi ordenado sacerdote em 29 de julho do ano 2000, iniciando então sua vida consagrada em busca da vontade do Senhor, que se transformaria no objetivo principal de seu caminhar.

Padre Christophe sentia um forte desejo de conhecer outra forma de servir a Deus entre os mais humildes, os mais pobres, ainda não vitimados pela escravidão do dinheiro. Desejava ser livre descobrindo o Brasil dos excluídos no Norte do país.

Chegou à Amazônia em 20 de junho de 2005, após dez dias de viagem, cansado, ansioso, mas confiante no seu projeto. Algum tempo depois recebi notícias que me preocuparam muito. Alojara-se numa palafita, dormitório comunitário, repousando em redes, juntamente com pobres e prostitutas – estas com quartos particulares para receber os clientes, porém não tão isolados, que produziam ruídos a noite inteira –, um ambiente de promiscuidade que o fatigava e o impedia de descansar. Nessa experiência não possuía nem mesmo um local em que pudesse celebrar a Eucaristia.

No mês de setembro de 2006 fazia parte de uma equipe itinerante que se movimentava facilmente com suas mochilas e redes nas costas. Alojavam-se em qualquer lugar, sempre acolhidos pelo responsável das comunidades indígenas, tuxaua (ou seja, “o chefe”), comendo e bebendo do que comiam e bebiam ali. Durante esse tempo, visitou diversas comunidades, dando-lhes instruções sobre o direito dos indígenas que a Constituição de 1988 reconhecera. Viajava muito. Em 18 de outubro de 2007, respondendo a um dos meus e-mails em que eu lhe perguntava sobre sua saúde, partilhando com ele alguns assuntos espirituais, começou suavemente a me escrever:

“Agradeço sua preocupação e partilha. Muito me ajuda a comprovar o que está se passando. Estou confiante em Deus e sinto até consolação, apesar da realidade que se anuncia esses dias. Queria uma vida mais contemplativa e eis que a estou recebendo de forma imprevista, tornando-me mais sensível à dor dos outros, mais livre para rezar, cuidar da saúde e receber o carinho de muitas pessoas. Também rezo muito

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Foi ordenado sacerdote em 29 de julho do ano 2000, iniciando então sua vida consagrada em busca da vontade do Senhor, que se transformaria no objetivo principal de seu caminhar.

ao Pai para que me confirme na busca. Vou passar por uma experiência da qual espero muitas graças e compreensão da vontade de Deus. Está se confirmando que tenho câncer nos dois pulmões e os exames estão procurando detectar as origens para definir melhor o tratamento (as células são pouco diferenciadas, sinal de que podem provir de outros órgãos e não dos pulmões). Os médicos recomendam que eu vá para São Paulo e já estou a caminho, devendo ser internado em Jacareí agora sábado para fazer alguns exames antes de iniciar a quimioterapia. Ainda não dei a notícia completa a meus pais, que estão na França. Peço discrição nestes dias. Tenho muito apoio dos meus irmãos e irmã. Uma coisa boa é que teremos mais oportunidade de nos encontrar! Abraços e continuemos confiantes nas mãos do Senhor, agradecendo pela vida que ele nos dá para o dia de hoje, festejando São Lucas.”

Acabei de ler o e-mail totalmente chocada, estarrecida!

O tratamento começou no hospital de Jacareí, onde a família morava, com condições de dar a Padre Christophe os cuidados especiais de que necessitava. Seus pais chegaram da França, cuidaram dele com carinho, dando-lhe todo amor de que precisava para restabelecer suas forças.

Meses mais tarde os médicos lhe comunicaram que os tumores malignos estavam estabilizados. Escreveu-me sobre sua decisão de voltar a Itaici para completar o tratamento.

Em setembro de 2008 viajou para a França, a fim de se fazer presente na cerimônia dos votos de um amigo que

ingressava na Ordem dos Carmelitas Descalços. Prosseguiu posteriormente a viagem com seus pais, compartilhando com eles o mesmo quarto nos hotéis onde permaneciam, podendo dessa forma aproveitar de uma intimidade amorosa, motivo de grande alegria para ele, conforme me revelou mais tarde.

Em março de 2010 saímos juntos para visitar o Santuário de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, em Campinas.

De 30 de novembro a 8 de dezembro de 2010 Padre Christophe me acompanhou num retiro espiritual de oito dias em Itaici. Em sua última mensagem, em 13 de dezembro de 2010, escreveu-me:

“Essas noites tenho pensado em você... Sabe como ou por quê? Na insônia estou lendo e descobrindo o Alceu Amoroso Lima nas suas cartas que estão no livro que você me emprestou: João XXIII . Está muito interessante sentir o clima da Igreja, os medos dele e suas esperanças. É um homem de fé que não deixa de ter suas raivas e desolações... Ele escreve bem na época em que nasci, o que me permite entender certas coisas que até agora me escapavam sobre a Ação Católica e Pio XII, o clima do pré-Vaticano II, etc. No meio desses grandes problemas, vem a ternura do avô que ganhou uma neta Silvia... e vê nisso algo muito importante”.

Encontrei-o no hospital na sua última semana de vida. Estava muito mal e respirava com a ajuda de aparelho de oxigênio. Perguntei-lhe no que poderia ajudar. Respondeu-me com a simplicidade de sempre: “Não é necessário, isso faz

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 105

parte...”. Pressenti que seria aquele o nosso último encontro. Não sabia o que lhe dizer.

Seus pais chegaram no dia seguinte e ficaram junto dele até o fim. Rezavam o terço com Padre Christophe muitas vezes ao dia, como sempre costumavam fazer. O testemunho de Deus, a fé e a coragem que eles – Padre Christophe e seus pais – deram, emocionaram a todos: médicos e enfermeiros do hospital.

Por ocasião da unção dos enfermos, ao receber os Óleos Santos, Padre Christophe confessou-se pela última vez, sabendo que brevemente estaria junto ao Pai, a quem havia entregado sua vida.

Padre Christophe não queria morrer; amava a vida. Aceitou, no entanto, com tranquilidade a morte, desejando fazer, pela última vez, a vontade do Senhor. Na véspera de sua partida, seus pais e irmãos escutaram-no dizer que sua morte abriria caminho para muita gente... Prometeu também rezar pelos jesuítas e por todos nós.

Emocionou-me muito o testemunho de Véronique (a mãe) durante o velório. Disse-me ela: “Não chore. Christophe está bem; ele está no céu; eu já entreguei meu filho a Deus”.

Na homilia da celebração da missa comemorativa do décimo aniversário de sua ordenação, em Jacareí, um ano e meio antes de seu falecimento, em pleno processo do câncer que o consumia, Padre Christophe elencou as cinco etapas que

mais marcaram sua vida: sua ordenação na paróquia onde havia vivido e rezado na infância (Jacareí); a estada em Roma no Colégio Pio Brasileiro, onde se alojavam os padres da América do Sul, quando tomou conhecimento da vitalidade e da força da Igreja nesse continente; a Jornada Mundial da Juventude, na Polônia, com a presença do Papa João Paulo II, em que participou como sacerdote, ocasião em que se sentiu sensibilizado pela vitalidade da fé e do compromisso dos jovens; sua missão na Amazônia entre os pobres e excluídos; a doença que lhe permitiu crescer na intimidade de um Deus de amor a quem se entregara e desejava fazer conhecer pelos outros.

Era o dia 4 de janeiro de 2011...

Pronunciando suas últimas palavras –“Jésus, aide-moi!’’ (Jesus, ajude-me!), Padre Christophe Six partiu, aos 51 anos, buscando a liberdade plena no encontro de Deus e da felicidade eterna.

A meu grande amigo, dedico o que escrevi com ternura, esperando que aprove as pequenas indiscrições... O essencial é o invisível que guardo em meu coração.

A primeira versão desta história foi escrita em francês, em homenagem aos pais de Padre Christophe e também por ser a língua em que tantas vezes nos comunicávamos nos e-mails trocados, que me deixaram uma imensa saudade.

CHRISTOPHE SIX 106
Marly Amoroso Lima

Granja

CÍCERO MATTHIESEN GRANJA

Na nossa idade, qualquer esboço de biografia seria extenso demais e interessante de menos. Por isso procurei focar meu relato de vida na importância que o ITA e iteanos tiveram no meu destino.

MINHA VIDA APÓS ENTRAR NO ITA

Foi em dezembro de 1977 que algo aconteceu que iria causar um grande impacto no resto da minha vida. Vivíamos uma era muito anterior à internet e as listas de aprovados nos vestibulares eram divulgadas em jornais.

Num belo dia, durante o café da manhã, minha mãe veio toda feliz me trazer a lista dos aprovados no ITA, publicada um ou dois dias antes da data prevista. Aquele foi um momento muito festivo para mim e minha família, mas houve algo em particular que ficou bem gravado na minha cabeça. Minha mãe me disse: “Há um monte de amigos seus aí nessa lista também!” Fiquei surpreso com esse comentário. Revi a lista, nome por nome, e disse que havia, de fato, um colega do ginásio e colégio (Cláudio CRAF) e, além dele, apenas mais dois colegas do curso de desenho do Anglo (Segre e Negão). Esses dois, na verdade, eu havia conhecido superficialmente e não podiam ser chamados ainda de grandes amigos.

Minha mãe me respondeu que ela nem sabia

quem seriam esse monte de amigos, nem eu podia saber naquele momento, mas que com certeza assim se tornariam ao longo dos próximos anos. Eu, com o tempo, iria descobrir que ela estava coberta de razão. Como vocês sabem, eu fiz parte dos vinte por cento da Turma 82 que não concluiu o curso no ITA. Um desempenho insuficiente nas provas do 3º ano me fez ser desligado no meio do ano. Tive que prestar vestibular de novo e entrei na Unicamp, onde encontrei vários colegas da turma que tinham seguido o mesmo caminho. Formamos até uma república só de ex-iteanos da Turma 82 em Campinas: Alckmar, Arthur, PV, Horioka, Laerte e eu. E ainda hospedamos o Loures temporariamente. Foi uma mudança e tanto sair das restrições do CTA para a vida animada de uma universidade!

O que foi melhor? Estou convencido de que as duas experiências – ITA e Unicamp – foram fundamentais na minha formação como adulto. Se pudesse voltar atrás, eu não iria querer abrir mão de nenhuma delas.

Em Campinas, as festinhas de república, a facilidade muito maior de conhecer meninas e a tranquilidade de saber que se fosse reprovado numa matéria eu não

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seria desligado tornaram minha vida mais leve e alegre. Liberdade total! Não que não exigisse também muita dedicação e estudo, mas era bem mais tranquilo saber que não havia motivo para pânico. Ah, e a média mínima exigida nas provas era 5,0 e não 6,5 – isso fazia uma grande diferença.

Mas foi no ITA que convivi intensamente com o resto da turma. Morávamos juntos, comíamos juntos, estudávamos juntos. Essa convivência intensa deixa marcas boas, desenvolve amizades sólidas, cria laços de solidariedade e lealdade mútua que não se veem em ambientes universitários.

Mesmo morando em Campinas, minha ligação com os amigos de São José dos Campos continuou ativa.

Com o Mussio, vejam só, eu mantinha correspondência pelo sistema antigo, através de cartas (!) manuscritas (!). Com outros colegas, eu saía na “caça às meninas” nos sábados à noite. Com outros torcedores tricolores, sendo o Fábio Segre meu companheiro mais frequente, fui muitas vezes ao Morumbi numa época em que o SPFC tinha um histórico de conquistas e vitórias bem mais frequentes que hoje em dia. Ficou marcada a noite

da final do Campeonato Paulista de 1980, contra o Santos, em que o Ary e eu apanhamos da Torcida Jovem do Santos na saída do estádio. Não faz mal: fomos campeões! Foi meu presente de aniversário daquele ano, que começou à meia-noite no momento de festa de uma das várias conquistas celebradas junto à turma.

Por sinal, a mais importante conquista são-paulina ocorreu anos mais tarde, justamente no dia da reunião da foto da turma, em São José dos Campos, em 2005: foi quando o tricolor conquistou seu terceiro título mundial. Eu, Segre e Márcio Mattos torcemos e celebramos juntos, acompanhando o jogo na TV do saguão do hotel.

Não foram só os fortes laços de amizade que ficaram para sempre. O contato com os amigos da Turma 82 acabou gerando também laços permanentes na minha vida familiar. Explico: foi o Bruce quem me apresentou a Fátima, num feriado no Guarujá, e, desde então, entre namoro e casamento, já se passaram quase 40 anos, com poucos tapas e muitos beijos. Além disso o Paulo Volpi havia, alguns anos antes, conhecido a Denise, minha irmã.

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Estou convencido de que as duas experiências – ITA e Unicamp – foram fundamentais na minha formação como adulto. Se pudesse voltar atrás, eu não iria querer abrir mão de nenhuma delas.

Mais tarde se casaram e, infelizmente, perdemos minha irmã ainda jovem, mas um casal de filhos do Paulo são meus sobrinhos e nós dois sempre seremos cunhados.

Formado na Unicamp, meu primeiro emprego foi na Embraer e voltei a São José, onde reencontrei tantos amigos, indo trabalhar na área de testes estruturais, na qual já estavam o Carmo e um colega da Unicamp (o lobby em dobro deve ter ajudado na seleção). Aluguei um apartamento com o Ruy e o Coccolin (veterano nosso) com um grau de conforto muito maior que o da república em Campinas. Afinal de contas, já era engenheiro. O apartamento tinha até uma linha telefônica!

Foi um período gostoso de solteirice, com muita interação com colegas do ITA, começando pelo futebol semanal, onde – dizem as más línguas – nunca me destaquei pelas minhas habilidades na quadra, mas que, junto com a cervejinha pós-jogo, sempre tornava minhas segundas-feiras bem mais interessantes.

Embora o Ruy e eu pouco nos conhecêssemos antes disso, o fato é que nossa coabitação deu muito certo. Nos cinco anos em que moramos na Praça Melvin Jones nunca rolou estresse. Pelo menos não me recordo de nenhuma discussão digna de nota, nenhuma DR, e isso é admirável! Nasceu ali mais uma grande amizade.

Da Embraer fui levado pelo Shinzato para a Orbita e de lá fui, depois, levado pelo Carmo para a Tectran. Saí das duas empresas no momento em que cada uma delas estava falindo, mas juro que em nenhum dos dois casos isso aconteceu por culpa minha. Nos meus últimos meses da Tectran os funcionários

recebiam, em vez do salário, cestas de alimentos, que carregavam para casa.

Foi quando resolvi me casar e sair do país. Mentira! A Fátima e eu já tínhamos planejado isso bem antes, mas toda a situação de crise ajudou para que nos convencêssemos de que era mesmo a decisão certa no momento certo. Foi assim que nos casamos, no final de 1989, compramos nossas passagens para o Canadá já com os vistos de imigrante no passaporte, pusemos tudo à venda, vimos nossas economias serem confiscadas pelo Collor em março de 1990, e viajamos para Montreal no mês seguinte.

Dessa vez era o país que parecia estar falindo e, de novo, garanto que não foi culpa minha. Eu já estava ficando craque em pular do barco afundando.

Graças ao Collor e aos salários não pagos da Tectran, chegamos no Canadá com pouco mais de dois mil dólares no bolso para começarmos a vida, e ainda tendo que correr atrás de emprego.

Mais uma vez o destino e minhas conexões iteanas me ajudaram. Por uma grande coincidência, chegamos em Montreal no exato momento em que o Enderson lá estava concluindo seu curso de MBA e planejando uma viagem de férias para a Europa com a namorada canadense (mais tarde, esposa) antes de voltar ao Brasil. E assim arrumamos um belíssimo apartamento mobiliado (dela, não dele) para morar enquanto o Enderson e a Heidi viajavam e nós definíamos nosso futuro no novo país.

Não posso reclamar nem um pouco da sorte. Em menos de três meses arrumei

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 109

emprego na Bombardier, graças à minha experiência de trabalho na Embraer. Foram seis anos muito bem vividos em Montreal. Até o sufoco financeiro inicial encaramos com o bom humor típico da juventude. Aprendemos muito, amadurecemos, e de quebra fiz meu MBA aos poucos, enquanto trabalhava.

Nossos planos sempre foram de retornar ao Brasil depois de alguns anos. Na verdade, fomos pensando em ficar três ou quatro anos fora, mas acabamos ficando, ficando... e no sexto ano batemos o martelo: iríamos voltar. Mas – coisas do destino – no mesmo momento a Boeing, numa fase de intenso desenvolvimento de novos projetos, ofereceu contratos de trabalho por um ano para engenheiros canadenses com experiência na indústria aeronáutica. Para compensar o fato de ser um trabalho temporário, estavam oferecendo o dobro do salário do mercado. Para quem já estava mesmo se desligando do emprego, como eu, portanto sem nada a perder, o timing era perfeito. E foi assim que, em vez de voltarmos direto para o Brasil, fizemos uma escala que seria de um ano em Seattle, mas que acabou prorrogada pela Boeing para 18 meses.

Seattle, uma linda cidade, foi mais uma experiência excelente na nossa vida, em todos os sentidos. O que veio a seguir, mais ainda. Planejamos retornar ao Brasil de carro. E assim fizemos. Já tinha um jipinho, removi os bancos traseiros, enchemos o carro com material de camping e partimos. Foi uma viagem de 23.000 quilômetros, que durou cinco meses, feita sem pressa, cruzando dez fronteiras. Uma grande aventura que só é possível ser feita num momento da vida em que não

temos outros compromissos, como, por exemplo, emprego com férias datadas. Ao longo da viagem compartilhamos nosso diário de bordo com muitos dos amigos da Turma 82, fazendo uso de uma tecnologia novíssima naquele ano de 1997: um “ e-mail itinerante”, com uma conta que podia ser acessada de qualquer ponto do planeta (e para isso estavam começando a surgir os cybercafés).

Não vou recontar aqui os detalhes da viagem, mas só comentar que o momento mais complicado aconteceu quando furei dois pneus ao mesmo tempo na passagem do carro por cima do mato num ponto em que, dias antes, as chuvas haviam destruído a estrada asfaltada. Com apenas um estepe, e dois pneus rasgados, no meio do nada, a situação parecia desesperadora, mas tudo terminou bem. Hoje, agradeço ter passado por essa experiência, pois foi um momento de amadurecimento. Não é à toa que dizem que o sucesso nos diverte, mas a adversidade nos ensina muito mais.

Chegamos de volta ao Brasil da mesma forma que havíamos chegado ao Canadá oito anos antes: tendo que correr atrás de emprego e sem nenhum rumo definido, mas pelo menos dessa vez tínhamos mais do que dois mil dólares no bolso. Na verdade, a única regra que eu havia combinado com a Fátima era que não iríamos morar em São Paulo.

Adivinhem o que aconteceu! Ela, sempre bem relacionada, foi mais rápida do que eu e, em três semanas, arrumou emprego em São Paulo como primeira funcionária brasileira da Decathlon, que estava chegando ao Brasil em 1998. Isso graças ao francês que ela aprendera em Montreal.

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Por isso acabei aceitando uma vaga de engenheiro de projeto de motores diesel na Mercedes-Benz, onde trabalho até hoje. O trabalho na Mercedes me fez viver mais um ano fora do país, dessa vez em Stuttgart. Claro que aproveitamos para conhecer o máximo possível da Europa, incluindo um mergulho gelado num fiorde da Noruega. Foram os mais longos 30 segundos de toda minha experiência aquática.

Enfim, só deixei de ser de fato engenheiro cinco anos atrás, quando passei a gerenciar projetos no time de PMO. Estou curtindo muito essa nova função, que me obriga a ter uma visão geral de todas as atividades e um contato intenso com as áreas envolvidas.

Mas minha vida profissional está agora chegando ao fim. Salvo alguma surpresa improvável de última hora, já está combinado com meu diretor que devo parar e me aposentar no final deste ano às vésperas do encontro de 40 anos da Turma.

O que virá a seguir? Não descarto nada, mas não me passa pela cabeça a ideia de continuar preso a outro emprego fixo. É mais provável eu me dedicar a um trabalho voluntário. E, claro, viajar bastante enquanto estiver com boa saúde. Já previno os amigos que moram perto ou longe de que correrão o risco de serem visitados a qualquer dia do ano.

Este texto já se alongou bem mais do que eu pretendia, mas quero deixar registrada a presença constante da Turma 82 na minha vida. Além do que já contei, vou guardar para sempre na memória a alegria que eu tinha em receber na casa dos meus pais, nos fins de semana, os colegas do Nordeste que não podiam, como nós, paulistas e cariocas,

viajar para casa com frequência. Foi o caso principalmente do Maia e do Auri.

Depois de casado, sempre senti a mesma alegria em receber os amigos nas casas onde morei no Brasil e no exterior. E não foram poucos.

Também visitei muito, começando pela viagem pelos aviões da FAB nas férias do 1º para o 2º ano, quando visitei o Reis de Souza em Recife, o Maia em Fortaleza e o Vinagre em Belém. Fui com o Abe e o Jonas, nessa excursão da FAB também, conhecer a família do Auri em Massapê –CE, mas ele mesmo nos deu o cano e não apareceu na cidade antes de seguirmos viagem ( rs ). No fim da nossa viagem, em Manaus, acabamos encontrando com o Schalka, que se hospedou, como nós, no Colégio Militar da cidade.

Ainda no tempo de estudante, viajei com o PV pelos Estados Unidos e com o Bói para a Bahia. Passei um carnaval em Casa Branca, na casa dos pais do Mussio. Quando estudante, fui várias vezes às casas do Bruce no Guarujá e em Paraty. Acampei em Campos do Jordão com Segre, Shinzato, Guigui e Negão, onde escalamos a Pedra do Baú. Acampei novamente em Campos de Jordão anos mais tarde com a mesma turma, mais o Dirceu, e dessa vez com a Fátima junto.

Passamos um réveillon no Ceará junto com o Maia, o Ribeiro Neto e o Enderson (além do Tadeu, da Turma 83). Passamos outro réveillon em Floripa, na casa do Alckmar.

Poderia continuar relacionando muito mais encontros com os amigos da Turma,

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 111

mas vou parar por aqui. Foram todos muito bons e lembro com carinho de cada um deles.

Quanto aos grandes encontros, estive presente em praticamente todas as reuniões da Turma realizadas a cada cinco anos (só faltei na dos 10 anos). Ajudei a organizar o primeiro encontro em Atibaia e me lembro de envelopar carta por carta numa época em que ainda não existia e-mail Sempre acompanhei atentamente a troca de mensagens da turma, primeiro por e-mails , e, nos anos mais recentes, pelo WhatsApp. Não escondo minhas posições de centro-esquerda, mas não costumo entrar

muito em discussões políticas. Só não me contenho na hora de denunciar as fake news , venham de onde vierem. Especializei-me nessa função e percebo com satisfação que a Turma evoluiu muito nesse quesito, pois vejo muito menos necessidade de corrigir falsas notícias hoje em dia no nosso grupo. É isso. Agradeço à Turma pelo papel que teve e ainda tem na minha vida, incluindo os grandes amigos e os simplesmente amigos. Desafetos, felizmente, acho que não tenho.

Só não perdoo o Sakumoto, que nunca me deixou ganhar dele uma partida de xadrez. A todos, um grande abraço.

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Tornavoi

DIRCEU TORNAVOI DE CARVALHO

Fui inaugurado praticamente junto com Brasília, mas em Marília, uma rima inevitável.

Ao fazer carreira no Banco do Brasil, meu pai mudou-se com a família para várias cidades, em Minas e em São Paulo, durante minha infância e adolescência.

De Marília só conheci mesmo o hospital (espiritualmente, já que nem havia aberto os olhos ainda), pois minha família morava na pequena cidade de Pompeia, a cerca de 20 quilômetros de distância, terra da famosa empresa de implementos agrícolas Jacto, fundada pelos Nishimura, que existe até hoje indo muito bem obrigado, até onde sei.

Muita gente pensa que o sobrenome Tornavoi é italiano, mas na verdade é russo – ou melhor, ucraniano, da terra de meus avós maternos que vieram ao Brasil fugindo da revolução bolchevique 10 anos depois de ela ter se iniciado, em 1927 portanto.

Até entrar no ITA em 1978, sempre morei em cidades pequenas, exceção feita ao ano de 1977 passado na cidade de São Paulo para fazer cursinho no Anglo, onde fiquei conhecido como “Questão”, por ser um pentelho que sempre fazia perguntas aos professores naquela sala com mais de cem alunos.

Tive uma infância e uma adolescência bem felizes, em meio à natureza, caçando passarinhos, pescando e, a partir dos

13-14 anos, jogando basquete, uma vez que nunca fui bom de futebol.

Aos 15 anos tive minha primeira experiência internacional: fui fazer intercâmbio em Glendale, na região de Phoenix, Arizona, onde passei um ano com uma família que morava no meio do deserto e frequentei a High School mais próxima, à qual eu chegava com o ônibus escolar. Foi onde aprendi bem o idioma, o que me rendeu primeiro emprego assim que voltei ao Brasil. Aos 16 anos virei professor de inglês na escola Fisk, que havia acabado de inaugurar uma filial em Guaíra, cidade do interior paulista onde minha família residia na época. Um ano depois estava de partida para São Paulo para dar início à jornada que me levaria ao ITA.

Passei apenas um ano no ITA, mas 1978 foi extremamente marcante. Fiz amigos que permanecem até hoje, tanto é que estou aqui, fazendo este relato e me sentindo parte dessa confraria de altíssimo nível.

Foi com certeza um dos anos mais intensos de minha vida. Fui discípulo de veteranos comunistas que me apresentaram a Marx, Engels e ao jornal

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O Movimento , do qual me tornei divulgador e vendedor, como devem se lembrar.

No H8 fiquei no apartamento 119 com os colegas Charlão, Edmur, Brucutu, Schalka e Claudio. Era um microcosmo da diversidade que havia naquele lugar estranho e ao mesmo tempo encantador.

Foi também a minha primeira experiência como representante político junto ao Centro Acadêmico. Os debates nas reuniões noturnas foram muito ricos e os embates também. Um dos que me marcaram profundamente foi sobre a transformação da discoteca Tokita em um ambiente cultural com música brasileira, em vez dos “Embalos de Sábado à Noite’’ como era. Fui voto vencido nesse embate e aprendi que um representante precisa ser humilde sempre, mas em especial quando suas opiniões pessoais divergem das de seus representados.

Nessa dimensão política da experiência ITA houve também o caso da reativação da União Estadual dos Estudantes. Lembro-me de uma reunião com colegas de outras faculdades do Vale do Paraíba ocorrida, se não me engano, em Guaratinguetá, em um lugar bem “mocado”, com esse objetivo. No dia seguinte, ou dois dias depois, fui chamado pelo Reitor, que disse ter informações sobre minha participação

naquele evento, o que me rendeu um fim de semana de gancho e ameaças à minha permanência no ITA caso eu permanecesse no mau comportamento. Como bem sabem, “o Sexo leva ao Tóxico, o Tóxico leva ao Vício e o Vício leva ao Comunismo”. No ITA também encontrei grandes músicos. Junto com Fernandes, Marcão e Michael formei uma banda que compôs diversas canções. Naquele ano participamos do festival de música de São José dos Campos e fizemos bonito (pelo menos em nossa opinião) mesmo sem ter levado prêmio algum. Os ensaios e jam sessions que fizemos na sala da sinuca ou próximo dela – não me lembro bem – foram memoráveis. No local havia um piano tocado pelo Michael, e o maior desafio, para o grupo, era fazê-lo começar e parar no momento certo. Talvez se lembrem que Fernandes e eu formos convidados a tocar na formatura do CPOR de vocês, mesmo ambos já tendo deixado o ITA. Estávamos morrendo de medo de ser presos por conta do repertório que preparamos e só com uns tapas de vodca nos bastidores conseguimos nos soltar no palco. Em tempo, amarelamos ao não executarmos a versão pornô do “pela estrada afora lá vem o Pereira...” – mantivemos o Chapeuzinho Vermelho para delírio da galera.

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Naquele ano participamos do festival de música de São José dos Campos e fizemos bonito (pelo menos em nossa opinião)
mesmo sem ter levado prêmio algum.

Por fim, houve o grupo dos cristãos com o qual fiz meus primeiros estudos sobre o livro Jesus Cristo Libertador , do Frei Leonardo Boff. Havia vários colegas que se reuniam nos fins de semana na capela para esses estudos, dos quais me lembro apenas do Fernandes, com quem já tinha afinidade musical e tive longo relacionamento pós-ITA, em Campinas.

Ao fim de 1978 entrei em profunda crise existencial. Do lado de fora começava-se a respirar os ares de fim da ditadura, com o fim do governo Geisel e a indicação de Figueiredo como sucessor, prometendo passar a bola para os civis ao fim de seu mandato. Do lado de dentro do ITA os mandatários não queriam nem saber disso. Eu queria respirar aqueles novos ares, conhecer novas realidades e ideias, e ampliar a vivência política e intelectual para muito além da formação técnica que o ITA poderia me proporcionar. Sem muito alarde, prestei o vestibular da Unicamp e, no começo de 1979, mudei de endereço.

Em Campinas, frequentando a Unicamp, logo me vi envolvido com o DCE. Fazíamos reuniões em uma casa que era destinada aos estudantes fora do campus . Naquele lugar havia atividades diversas, como música e teatro. Foi lá que conheci o amor de minha vida, Eneida, que comecei a namorar no ano seguinte, e com quem me casei em 1985.

Tivemos dois lindos filhos e vivemos todos com muita harmonia e amor até hoje.

Meus anseios políticos logo cederam lugar aos desejos profissionais e pessoais.

Continuei meus estudos na engenharia mecânica e retomei as aulas de inglês para pagar as contas.

No fim de 1979 ressurgiram na minha vida os também ex-iteanos Luiz Antônio Fernandes, Luiz Cláudio, Alckmar, Horioka e Arthur. Moramos juntos em uma república por algum tempo e fundamos o Curso e Colégio Integral, no início de 1980.

Essa foi uma experiência sensacional que durou oito anos para mim. A empresa saiu do nada para um empreendimento que foi bem-sucedido durante mais de 30 anos.

Em 1988 a sociedade foi parcialmente desfeita com a saída dos quatro sócios que já estavam em atividades profissionais paralelas ao Integral. Luiz Antônio e Luiz Cláudio permaneceram à frente da empresa enquanto os demais seguiram seus próprios caminhos.

No início de 1985, logo após minha formatura, comecei a trabalhar em uma metalúrgica de Valinhos chamada Equipamentos Clark que, depois de minha saída em 1992, veio a ser vendida para o concorrente e até hoje opera sob a marca Eaton.

Nos pouco mais de oito anos em que permaneci na empresa, exerci vários cargos nas áreas de novos produtos, planejamento de produção e comercial. Nos últimos anos, fui chefe de um departamento com cerca de 150 funcionários sob meu comando direto, um desafio que virou pesadelo quando a crise de 1990 forçou as demissões que tive que fazer.

Eu havia feito um curso de pós-graduação na Fundação Vanzolini, ligada à Poli-USP de São Paulo no fim dos anos 1980, e estava encantado com os novos conhecimentos em administração e em marketing.

Por influência dos professores da FEA-USP que lecionavam naquele curso da

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Vanzolini, fiz o processo seletivo e entrei no mestrado no início de 1990, ano em que o fatídico plano Collor entrou em vigor, bagunçando ainda mais o já tumultuado ambiente econômico daquele momento.

Demorei dois anos para equacionar a vida profissional junto à empresa e deixá-la para me dedicar aos estudos de mestrado que ficaram dormentes durante esse tempo. Eu já era casado e nossa primogênita havia nascido em 1991, quando pedi demissão e encerrei minha carreira na multinacional que me ensinou muito. Nos anos seguintes colaborei com meu orientador de mestrado em seus trabalhos de extensão universitária na FEA-SP, em especial na parte de pesquisa de mercado, e depois juntei-me a uma empresa de consultoria de marketing, com a qual também fiz vários trabalhos interessantes. Talvez o mais desafiador e mais longo deles tenha sido a estruturação da Reebok (calçados esportivos), que começou a sua operação no Brasil por volta de 1994. Eu era o cara que fazia o meio de campo entre a área comercial e a área de sistemas de informação. Trabalhando com uma equipe multidisciplinar, montamos todos os processos de administração de vendas, canais de distribuição e trade marketing

A FEA-USP de Ribeirão Preto havia sido inaugurada em 1992 como uma extensão da FEA São Paulo. A contratação de professores seguia as necessidades curriculares e, como as disciplinas de marketing começavam apenas no 3º ano, ao fim de 1993 fiz o concurso para tornar-me professor, começando com esse trabalho no início de 1994, ano do nascimento de nosso caçula.

Fui terminar o mestrado apenas no fim daquele ano. Hoje em dia, na USP, não se contratam professores que não tenham terminado o doutorado; portanto foi uma oportunidade que existiu apenas porque não havia quadros com formação completa em abundância como existem hoje. Eu estava no lugar certo na hora certa.

Daí segui minha carreira acadêmica, emendando o doutorado, que terminei ao fim de 1999, com uma passagem pelos Estados Unidos para fazer o que se denominava “bolsa-sanduíche”. Foi um ano muito importante na minha vida e na de minha família, passado na Vanderbilt University em Nashville, Tennessee. Minha filha, na época, tinha 7 anos e o meu caçula 4. Lá tive meus primeiros contatos com os cursos de MBA, dos quais fui assistente e aluno de várias disciplinas. Seguiu-se a livre-docência conquistada em 2004.

Depois disso tive uma experiência na Europa, como professor da InHolland University, em Haalem, na Holanda. Foram sete meses, entre julho de 2003 e fevereiro de 2004, durante os quais atuei como professor visitante. O inusitado dessa experiência foi que houve um intercâmbio com um professor daquela instituição que veio ao Brasil lecionar no meu lugar durante esse mesmo período. Ficamos um na casa do outro com nossas famílias, cuidando dos respectivos cachorros, papagaios, carros etc. Até hoje essa família é nossa grande amiga, a filha deles ficou em casa anos depois para um estágio na medicina, viajamos em férias juntos etc. Somos praticamente irmãos.

Tirando os congressos acadêmicos, que me levaram por curtos períodos para diversas partes do mundo, as experiências

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profissionais internacionais depois da Holanda foram na Bélgica, onde também fui professor visitante durante duas ou três semanas em dois anos consecutivos, na Universidade de Ghent, e na Universidad de La Frontera, em Temuco, Chile.

Neste ano de 2022 completo 28 anos como professor da USP em Ribeirão Preto e pretendo me aposentar em julho, se Deus quiser.

Durante esse período participei da consolidação da escola que, como disse, havia sido fundada dois anos antes de minha entrada. Fui professor desde a primeira turma de graduandos em Administração de Empresas. Tenho muito orgulho dessa trajetória na qual ajudei a formar quase três mil alunos de graduação e mais de mil na pós-graduação stricto sensu e lato sensu .

Lembro-me com carinho das quatro empresas e organizações que fundei, ou ajudei a fundar: o Colégio Integral no

início dos anos 1980 e uma pizzaria que tive no fim daquela década em Campinas; a fundação da FEA-USP Ribeirão Preto, chamada Fundace, hoje consolidada, e, por um curto período, uma empresa de pesquisa de mercado da qual fui coordenador técnico, que não existe mais desde 2013.

Em vias de me aposentar tenho, junto com minha esposa, o plano de nos mudarmos para São João da Boa Vista, cidade natal dela, e lá buscar novos desafios pessoais e ver o que a vida ainda nos reserva. Fico muito honrado em ser convidado a participar desta iniciativa de memória da Turma 82, mesmo tendo passado tão pouco tempo juntos. Considero isso uma generosidade enorme de vocês, meus colegas e amigos, e fico na expectativa do nosso encontro presencial ao fim deste 2022, celebrando os 40 anos de formatura dessa gloriosa turma.

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Edmur

EDMUR ZAMBELLO

“Era um menino pobre, nascido no interior de São Paulo, filho de um operário soldador e de uma costureira. Entregava marmitas em portas de fábrica, construía miniaturas de ônibus e caminhões em madeira, vendia as enciclopédias Barsa e Delta Larousse de porta em porta. Cursou tão e somente escolas públicas e sonhava alçar voos mais altos...”. Esse relato me faz lembrar os finais de tarde ouvindo o Cantinho da Saudade, na voz de Fiori Gigliotti, junto com meu falecido pai, quinzista de coração e que me levava a muitas partidas do XV de Piracicaba no Estádio Roberto Gomes Pedrosa e, depois, Barão de Serra Negra.

A minha saga por estudar começou na 7ª série, quando outros dois colegas sempre tiravam notas altas (as notas mais baixas eram MB!) em todas as matérias e eu era apenas um aluno mediano. Comecei a estudar bastante e, confesso, foi muito difícil alcançá-los. De fato, o início da minha trajetória competitiva começou quando consegui um emprego de datilógrafo no cursinho pré-vestibular CLQ (depois franqueado do Objetivo), onde preparava apostilas e simulados para os alunos que disputavam vagas nos vestibulares Cescem, Cescea e

Mapofei, e tinha contato frequente com sua excelente equipe de professores, em sua maioria formados em Agronomia na Esalq. A minha maior paixão era resolver e, muitas vezes, pedir ajuda aos mestres para resolver as questões mais difíceis de Física, Matemática, Química e Desenho Geométrico dos vestibulares do ITA e do IME. Assim, passei o colegial todo estudando muito e já poderia sonhar em ingressar em uma renomada escola de Engenharia. Fiz gratuitamente o semi-intensivo nesse mesmo cursinho quando ainda estava no 3º colegial, juntamente com o tiro de guerra (por isso marchava conforme os mais altos padrões do Exército e acabei ganhando o apelido de PA) e o trabalho de meio período como datilógrafo. Até hoje digito sem olhar para o teclado e com todos os dedos, o que me credenciaria a abrir a única escola de datilografia do Brasil.

Prestei somente o vestibular do ITA, no final de 1976, e, felizmente, não tive êxito, passando então a pertencer à gloriosa Turma 82 e não à sua antecessora, onde entraram Paulinho Silveira e Newton Barroso.

Encarei o intensivão no ano seguinte e passei a disputar as primeiras posições nos simulados com o quase imbatível Charlão e alguns outros. Passei em Mecânica na USP São Carlos e efetuei a matrícula, mas aguardava ansiosamente o resultado do ITA.

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Não passei em primeira chamada, mas não tardou e veio a boa notícia por telegrama.

Chegando ao H8, fui acomodado no 119 juntamente com Charlão, Tornavoi, Craf, Brucutu e Schalka. Era “energia máxima”!

Não muito tempo depois, mudei-me para o 111, que era o extremo oposto. Às 22 horas quase todos se preparavam para dormir e o então parceiro de fundo, Christophe, rezava diariamente antes de dormir.

Os meus anos no fundamental foram muito tensos e sempre achei que nunca iria conseguir me formar. Matérias muito teóricas de MAT com os professores Almir e Cristina, de Química com o Weiss, de Física e por aí vai. Chegando ao profissional, a coisa ficou mais prática, sendo que na Infra parecia uma família reunindo os alunos e os mestres.

Durante o curso ministrei aulas de Química no CASD, Desenho Geométrico no Anglo e no CLQ de Piracicaba. Já no primeiro ano do profissional, passei a dar aulas no curso Universitário, nas unidades Caçapava, Jacareí, São José dos Campos e também em São Paulo, nas unidades Augusta, Pinheiros e Mooca. Não sei como conseguia conciliar o ITA com a

carga horária de aulas. Minha inseparável companheira por muito tempo foi uma Honda CG-125 laranja, igualzinha à do Bruce. A danada me levava para quase todos os lugares. Digo para “quase” todos os lugares porque durante o CPORRA vestia o uniforme de milico nas férias e viajava de carona nos aviões da FAB, ficando hospedado nos cassinos. Isso mesmo: cassinos! Alojamento ou hotel nas bases aéreas, com direito a refeição e tudo mais. Chegou o final de 1982 e também a hora de escolher o primeiro emprego. Por ter feito o TG sob encomenda da Infraero, recebi proposta para trabalhar em Brasília junto com o Marco Carmignani (Turma 81). Mas a escolha foi feita em um coquetel que o Citibank promoveu no Novotel de São José dos Campos. Fui admitido como trainee juntamente com Schalka e Bortman. Por lá passei quatro anos, trabalhando inicialmente no backoffice centralizado das agências e logo depois migrei para TI, trabalhando em inovação com Nelson Saba (Turma 81) e Virgílio Veloso (Turma 76). Lá convivi também com outros iteanos da Turma 80: Conrado Engel, Celso Portásio, PP Longuini, Adalto Pereira, e Jacinto Mendes (Turma

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Passei em Mecânica na USP São Carlos e efetuei a matrícula, mas aguardava ansiosamente o resultado do ITA. Não passei em primeira chamada, mas não tardou e veio a boa notícia por telegrama.

73), Elton Cruz (Turma 69), Mauro Carvalho (Turma 77) e Kazuo Myiajima (Turma 71).

Em 1981 conheci a Iza nos corredores do ITA. Ela fazia Computação, mas abandonou para cursar Ciências Contábeis. Nos casamos em outubro de 1983 e em 1986 veio o Marcel (homenagem ao francês do 111) e, onze anos depois, veio a Lilian. Em 1987, fui para o Pão de Açúcar trabalhar em automação comercial junto com dois santistas da Turma 81: Hélio Simão e Paulo Rodolfo.

Em meados de 1988 segui para uma nova jornada de conhecimento, trabalhando com suporte ao ambiente online do mainframe IBM (CICS) no Banco Francês e Brasileiro, onde já estava o icônico Carlos Barbosa (Turma 81).

Nos dez anos seguintes fui gerente de suporte em informática no Banco Noroeste, que foi depois comprado pelo Santander.

Depois, mais dez anos no ABN AMRO, onde reencontrei o Afonso, que atuava na área de riscos, e PP Longuini (Turma 80), na controladoria. Trabalhei com arquitetura de TI, processos de software e gestão de

serviços de TI. Em 2005 tive a oportunidade de trabalhar por sete meses em Amsterdam por conta do outsourcing global de TI.

Em 2009 fui para a SAP para atuar em pré-vendas de soluções para bancos, onde o general manager era o educadíssimo Verdi (Turma 82).

Em 2012 ingressei na Oracle para trabalhar em desenvolvimento de negócios para instituições financeiras.

Em 2017 conduzi a implantação de um escritório de projetos na MC1, empresa de automação de força de vendas para o varejo.

Tenho, desde 1992, uma chácara em Santa Bárbara d’Oeste, a aproximadamente quinze quilometros de Piracicaba, onde costumo ir com muita frequência. É o meu reduto para praticar alguns hobbies , como manutenção geral, jardinagem, marcenaria, serralheria e, obviamente, descansar um pouco.

Meu filho Marcel é economista, trabalha como analista de ações ( equity research ) e casou-se em abril de 2022. A Lilian formou-se em Medicina Veterinária em 2020 e exerce a profissão.

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Gusella

EDSON GUSELLA JUNIOR

Relendo o Álbum do Chacal, é curioso e divertido notar que alguns traços, muito bem capturados pelo Akutsu e pelos amigos do 103, me acompanham desde sempre.

É. Não dá pra acreditar, mas no dia 18-02-1960, lá na…, quer dizer, é lá mesmo, em Valparaíso – SP, quando o médico deu o conhecido tapinha, a peça em vez de chorar, riu. E não foi baixo, o que é pior. Riu do mesmo jeito que faz quando entra no 103 à uma hora da manhã, contando e explicando tudo. Só não acorda o Catarina, que tá morando na cidade. Falando em explicação, quem arriscar perguntar-lhe alguma coisa estará fatalmente condenado a ouvir tudo o que ele pensa a respeito, com rodeios, risos, exemplos e equações. Isso tudo, é claro, intercalado com os “viu?”, “certo?”, “viu?”. Embora não tenha sido possível obter esta informação Orientação Educacional, é de se supor que antes de entrar no ITA ele era fanático pela “Coruja Colorida”. Ou

então gosta muito do sol nascente porque... arrego meu, eta gaga madrugadão (com fone de ouvido e acessórios).

Para alegria do esporte brasileiro, uma vez por semestre, lá vai o Gusellão tentar praticar alguma coisa. O fato é que ele precisa eliminar o álcool absorvido durante a semana. Apesar de o armário dele estar mais bem-equipado que bar de baile, no H8 ele fica pouco mesmo.

E já é mais amigo do Sancho Pança que o próprio D. Quixote. Mesmo assim, ele não dispensa os coloridinhos do triângulo da perdição.

Será que é isso? Deve ser. Aí está o nosso amigo Gusella. HA! HA! HA!

Esse desejo de compreender para depois explicar (à exaustão) como funciona faz parte da minha mente analítica de engenheiro. Desnecessário dizer a tragédia que era isso na infância: eu

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Esse desejo de compreender para depois explicar (à exaustão) como funciona faz parte da minha mente analítica de engenheiro.

desmontava todos os meus brinquedos para saber como eles eram por dentro e como funcionavam. Outro traço que também continua presente é o “bar do armário”, agora numa versão mais sofisticada na forma de uma pequena adega sempre cheia de vinhos. Quanto às cachaças e os whiskeys , eles ainda continuam num armário.

Fiz o colegial em Valparaíso e o cursinho em Araçatuba. Comecei o semi-intensivo quando estava no segundo semestre do 2º colegial. No fim do ano, passei em Física na USP e fui o garoto-propaganda do cursinho. No ano seguinte, passei na Unicamp e no ITA. Meu sonho era ir para a Unicamp, mas meu pai me “convenceu” a ir para o ITA, dizendo que me daria um carro se eu fosse estudar lá.

Uma anedota da época de cursinho: fui o primeiro colocado num dos simulados, quase no fim do ano, em 1977. No dia seguinte ao da publicação do resultado, Julião, professor de física, entra na sala e pergunta quem era o Gusella e, como era de praxe, começou a procurar nas primeiras fileiras, na turma do gargarejo, porém só foi me ver com a mão levantada na turma do fundão, junto com os largados. Ele olhou bem, quase incrédulo e perguntou: “Você se senta sempre aí?”. “Sim”, respondi. Aí veio a pérola: “É, do fundão dá para ter uma visão panorâmica da lousa...”.

No 2º ano do ITA algo despertou em mim, como uma porta que se abre e fecha por dentro, à qual não se tem acesso. Eu passei a ter acesso a uma nova dimensão (no sentido dos espaços multidimensionais de Álgebra Linear): a do apaixonamento, de viver momentos de abertura em que tudo na vida fica lindo e maravilhoso.

No início do 4º ano tive uma crise existencial. O mundo do ITA e do H8 ficou pequeno. A visão do H-montão por detrás do muro vazado do H8 virou a de um preso atrás das grades. Tranquei a matrícula no ITA para não voltar mais. Depois de voltar a colocar os pés no chão, resolvi que terminaria o curso de engenharia elétrica na Unicamp, para onde fiz transferência, e fui me juntar a outros colegas da Turma 82. Junto comigo foram o Ribeirão e o Chamon. Depois de formado comecei a trabalhar no INPE, em 1984, na equipe de projeto da Carga Útil do primeiro Satélite de Coleta de Dados – SCD-1. Comecei como projetista de circuitos de RF e, ao final, era o responsável de engenharia desse subsistema. O SCD-1 só foi lançado em fevereiro de 1993. Em 2017 ele completou 24 anos de operação, tendo dado mais de 100 mil voltas ao redor da Terra, e acredito que ainda esteja funcionando. Nada mal para o primeiro satélite projetado e construído no Brasil. Também no INPE fiz mestrado em Telecomunicações Espaciais.

Em 1987 saí do INPE e fui trabalhar como gerente de engenharia numa fábrica de antenas e equipamentos de antena coletiva em Itaquaquecetuba. De forma não continuada, fiquei lá até 2005. Também fui professor de Telecomunicações na Faculdade de Engenharia da Universidade de Mogi das Cruzes – UMC, de 2001 a 2013. Contribuí com a formação de muitos engenheiros que estão no mercado hoje.

O mesmo traço investigativo que me levou à engenharia também me levou à psicanálise lacaniana em 1997 e ao curso de Formação em Psicanálise, que terminei em 2000. Esse meu interesse tomou a mente humana como

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objeto. Daí passei a me maravilhar com a descoberta freudiana do inconsciente. Descoberta simples de enunciar, mas profunda e nada trivial: entre dois eventos aparentemente não relacionados pode existir uma conexão que não passa pela consciência. Descobrir essas conexões é tão fascinante e viciante quanto o trabalho de detetive ou de montar quebra-cabeças.

A formação de psicanalista foi um processo. Depois de terminar o curso e de um certo percurso em análise – sim, para se tornar um analista também é necessário se analisar – criei coragem e comecei a analisar.

Trabalhei como psicanalista por 10 anos, quando também era professor de engenharia. Pode parecer uma mistura estranha, mas não é de todo estranha. A psicanálise lacaniana está fortemente assentada em lógica.

Também foi necessário aprender um pouco da linguagem médica. Fiz como ouvinte cursos de psicopatologia e psicofármacos.

Até achei que deixaria a engenharia de uma vez por todas... só que não.

2013 foi o ano de fechar um ciclo e começar um novo. Fui para a Telebras em Brasília, onde estou hoje e voltei a trabalhar com satélite, só que desta vez com satélite de comunicações. Fiz parte da equipe que acompanhou a fabricação do SGDC na

França, na empresa Thales Alenia Space, onde fiquei aproximadamente um ano e meio.

Quanto à gargalhada, ela foi se tornando menos frequente com o passar dos anos. A certa altura da vida, percebi que essa gargalhada sem compromisso vinha do mesmo mecanismo que me impedia de me comprometer com determinadas responsabilidades ditas sociais, para as quais, como engenheiro – Dilbert explica –, eu permanecia alheio. Com o tempo vieram os filhos e os netos. Tive dois filhos e uma filha. Do primeiro filho já ganhei duas netas e um neto, que me dão muita alegria e me fazem voltar no tempo em que meu próprio filho tinha a idade do neto.

O que vem pela frente?

Já estou aposentado pelo INSS, mas pretendo continuar trabalhando por mais alguns anos com engenharia na Telebras. Não tenho definido o que farei quando deixar de trabalhar como engenheiro. Tenho vontade de voltar a trabalhar como psicanalista e continuo me aprimorando nessa área. A viagem pelo interior da mente humana é a mais fascinante que já realizei e continuo a realizar.

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Enderson

ENDERSON GUIMARÃES

“Um homem vale o que tem na cabeça, não o que tem no bolso. Pode-se perder o que está no bolso, nunca se perde o que está na cabeça”. Ouvia isso do meu pai duas ou três vezes por semana, todas as semanas, durante a minha infância. Essa era sua filosofia básica. Ele, que teve uma educação de terceiro ano primário, saiu de casa sem documentos e sem dinheiro aos 14 anos, educou-se, tornou-se policial rodoviário e criou uma família de quatro filhos. Aprendi com ele o poder da educação, o poder do aprendizado contínuo.

Minha mãe era a disciplinadora, e não me lembro jamais de vê-la ociosa. Estava sempre ocupada, sempre trabalhando, e sempre tinha algum pequeno negócio para ajudar no orçamento familiar.

Mas não foi só estudo. Eu cresci em Rancharia, uma pequena cidade no sudoeste do Estado de São Paulo. Passava meu tempo jogando futebol na rua, no que não era muito bom, mas que compensava com muita vontade, jogando basquete no time da escola, no que eu era razoável, e lutando judô no ginásio municipal, no que eu tinha bastante talento.

Meu pai era um grande entusiasta do judô. Ele era faixa preta, e foi a força motriz, junto com alguns amigos, na criação de uma academia de judô pública e gratuita em Rancharia. Eu tinha 12 ou 13 anos quando ela foi aberta, e resisti em entrar, provavelmente por rebeldia, ou querendo fazer meu próprio caminho. Porém, todos os meus amigos ingressaram na academia e, depois de uns oito meses, eu também fiz o mesmo. Na minha primeira semana, fui derrotado implacavelmente por todos. Poderia ter desistido, mas então comecei a mostrar alguns dos meus traços básicos de personalidade: resiliência, teimosia e determinação. Comecei a treinar com os adolescentes das 7h às 9h e ficava para os adultos treinando das 9h às 11h. Eu era literalmente o saco de pancadas dos adultos. Depois de seis meses venci a maioria dos adolescentes, depois de um ano ganhei de todos os adolescentes, e depois de três anos derrotei a maioria dos adultos também.

A escola não exigiu de mim muito esforço para cumprir o desejo de meu pai. Felizmente, estudar sempre foi fácil para mim e, além disso, nossa escola pública era bem fraca, assim como os professores, com algumas exceções. Entre as exceções estava Izabel. Ela era minha professora de matemática da 6ª série... e eu a adorava. Era dura, exigente e não aceitava

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desculpas. Eu mal podia esperar pelas suas aulas. Ela tinha grande entusiasmo pelo ensino e pela matemática e tocou a todos nós com a importância do esforço, do trabalho árduo, de cumprir as obrigações, sem desculpas... na verdade não muito diferente da nossa vida profissional; afinal, é assim que se constrói a credibilidade.

Meu pai adorava livros. Tínhamos livros em todo lugar, e ele era o cliente mais querido de todos os vendedores de livros (caixeiros-viajantes). Comprava tudo que lhe ofereciam. Eu e Carlos, meu irmão mais velho, folheávamos todos os livros quando eles chegavam. Era muito divertido abrir as embalagens, abrir os livros e percorrê-los na nossa descoberta de novos mundos.

Como era bom em matemática e ciências em geral, era natural dizer que me tornaria engenheiro e, no final da adolescência, era hora de me preparar melhor para ingressar numa boa escola. Depois de uma jornada tortuosa, acabei em uma pensão na Liberdade, em São Paulo, fazendo minha preparação no Anglo (cursinho pré-vestibular). Não me lembro como ou onde ouvi falar do ITA pela primeira vez, mas gostei da ideia de uma escola que oferecesse alimentação, livros, residência e até salário nos primeiros dois anos, e assim o ITA passou a ser um dos meus objetivos.

No final do vestibular, depois de comparar minhas respostas com as fornecidas pelo Anglo, estava confiante de que havia passado, o que acabou sendo verdade. Eu estava dentro, era um “iteano”, e não tinha ideia do que isso significava.

Os cinco anos de ITA passaram rápido, com boas memórias: os “gagás”, as melações, o truco, as peladinhas, as velvas, as guerras

d’água, as OIs e as amizades. Tenho imensa gratidão ao H8 e à minha turma, com uma menção especial ao Akutsu, um grande amigo sempre presente; ao Outi, meu parceiro nos laboratórios de física e química, com sua imensa paciência e generosidade, emprestando-me suas anotações para que eu estudasse antes de tantas provas; e aos meus parceiros no 103, no 109 e no 107, que suportaram a mim e às minhas idiossincrasias.

Entramos adolescentes e saímos adultos. O ITA realmente transformou nossas vidas. Aprendemos a resolver problemas, aprendemos a viver em comunidade, aprendemos a ajudar uns aos outros e aprendemos... a não ser intimidados por nada. Aqueles anos foram realmente transformadores. Isso nos ajudou a construir e fortalecer nosso caráter, elemento tão importante na liderança. Nas palavras do General Norman Schwartzkopf: “Liderança é uma combinação potente de estratégia e caráter. Mas se você tiver que ficar sem um, fique sem a estratégia”. Eu não poderia concordar mais. Depois de cinco anos, finalmente era engenheiro. Foi um momento difícil da minha vida profissional. Até então era fácil: estudar, tirar nota, passar para o ano seguinte... E agora? Não tinha ideia do que realmente queria fazer: aquilo no que era bom ou aquilo que me faria feliz... Foi um momento de experimentação. Fiquei alguns meses na Embraer e não gostei. Não podia me imaginar fazendo aquilo nos anos que viriam. Mudei para a Johnson & Johnson, trabalhando com administração de vendas, o que achei entediante, mas pude perceber alguns elementos que me

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interessaram. Em seguida, voltei ao ITA, lecionando por um ano, vislumbrando um potencial mestrado. Novamente, isso não me interessou. Finalmente, acabei na HP como engenheiro de vendas, vendendo sistemas de computador e soluções de software para manufatura e gerenciamento financeiro.

Na HP tive a boa orientação de Decio Westfalen, uma velha raposa que me ensinou que não se tratava do que eu estava vendendo, que não se tratava de divulgar meus produtos... era tudo sobre ouvir, entender os problemas que meu potencial cliente tinha e só então oferecer uma solução que, por acaso, tinha nossos produtos.

Gostei de aprender sobre questões de negócios, problemas enfrentados por empresas de vários setores diferentes, lidando com todas as facetas de uma organização. Ficou claro que eu era mais um generalista do que um especialista, que gostava de ter uma visão geral dos negócios e depois encontrar o rumo certo a seguir. Estava claro que os negócios eram a direção que eu deveria seguir.

Depois de alguns anos na HP, decidi que deveria fazer meu MBA e, com isso, ter uma experiência internacional e melhorar meu inglês, que era ruim – na melhor das hipóteses. Millioni, nosso professor de Pesquisa Operacional no ITA, me contou sobre uma bolsa que o Rotary International oferecia a candidatos selecionados em todo o mundo para serem Embaixadores da Boa Vontade. Candidatei-me e, após um longo processo, fui um dos três brasileiros selecionados.

Eles me pediram para sugerir três lugares no mundo onde eu gostaria de ir e atuar como um Embaixador da Boa Vontade

do Brasil. Isso significava ir a eventos organizados pelos Rotary Club locais e falar sobre o Brasil, espalhar uma boa mensagem sobre nosso país e nossa cultura, aumentando assim o congraçamento internacional. A bolsa incluía viagem, hospedagem, alimentação e taxas escolares para qualquer curso de pós-graduação que eu decidisse fazer (tive que fornecer um comprovante de aceite de uma universidade local antes da concessão final da bolsa).

Montreal, ligada à Universidade McGill, foi um dos lugares que indiquei, e foi o lugar que eles escolheram para me enviar. Assim, em julho de 1988 saí do Brasil, primeiro para Nova York, para um mês de estudo intensivo de inglês, e depois para Montreal.

O Canadá e Montreal me receberam de braços abertos. Aluguei de uma senhora polonesa um apartamento mobiliado no subsolo de sua casa. O contrato foi meia página de seu caderno, onde ela escreveu as condições do aluguel. Sem testemunhas, sem fiança nem adiantamento, apenas confiança! O marido dela, sabendo que eu era estudante, trouxe-me uma escrivaninha e uma TV preto-e-branco, “para eu me manter a par das notícias”.

Quando me mudei para o Canadá, não havia documento com foto (a única exceção era o passaporte). Fiquei surpreso e intrigado com isso. Eu parei um policial na cidade e perguntei a ele: “Como você sabe quem eu sou se não tenho um documento de identidade com foto?”. Sua resposta: “Eu pergunto”. Que lugar! Um país com fortes valores morais, com DC (Disciplina Consciente)! Adorei, mas devo dizer que fiquei bastante desapontado quando, vários

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anos depois, as fotos foram introduzidas na carteira de motorista e no MediCard.

Os dois anos de MBA foram tranquilos: ampla perspectiva de negócios, alguns bons professores, curso não muito difícil, mas interessante e abrangente. Além disso, aprendi a jogar squash (jogava três ou quatro vezes por semana), era membro da equipe de atletismo da McGill (era um dos piores se não o pior membro, e também o mais velho), e pela primeira vez na vida fui um craque no futebol, já que conseguia chutar a bola!

A bolsa do Rotary cobria apenas um ano e, para financiar meu segundo ano, consegui um emprego como professor assistente de economia. O trabalho consistia em corrigir e dar nota a todos os exames e trabalhos de cerca de 60 alunos. Como remuneração, eu tinha seguro-saúde coberto pela McGill e um desconto de 90% nos meus custos do MBA. Um bom negócio, do meu ponto de vista.

Uma particularidade da Universidade McGill, localizada em Quebec, é que, embora as aulas sejam em inglês, os alunos podem escrever seus trabalhos ou exames em inglês ou em francês. É uma escolha pessoal. Avaliar as provas e trabalhos em inglês foi tranquilo, porém fazê-lo em francês foi uma aventura... in dubio pro reo: se eu não tivesse certeza do que estava escrito, avaliava como correto... Ah, se os alunos soubessem!

No último semestre, comecei um relacionamento com uma colega estudante, Heidi, que se tornaria minha esposa e parceira.

Com o fim do MBA, minha intenção era voltar para o Brasil, mas como passei a compartilhar minhas decisões com a Heidi, as escolhas tinham se tornado mais complexas. Voltei por um tempo, mas,

depois de muita discussão e ponderação, decidimos que seria melhor para nós, como casal, morar em Montreal.

Então lá estava eu, aos 30 anos, começando tudo de novo em Montreal. Consegui um emprego em Marketing na Johnson & Johnson Consumer Sector e... tive sorte! Perdi vários chefes e a J&J me deu mais responsabilidades e promoções, e assim, depois de cinco anos, eu era o diretor de marketing da empresa no Canadá.

Naquele período, tivemos nosso primeiro filho, nosso brilhante e precoce Keven, e obtive minha cidadania canadense. Eu tinha, e tenho, grande admiração pelo Canadá e pelos seus valores, e queria votar no referendo sobre a separação de Quebec. Tenho orgulho de dizer que sou canadense, não por nascimento, mas por escolha.

Depois de sete anos na J&J, comecei a sentir uma “coceira”. Com o sucesso do Plano Real, comecei a pensar que viver alguns anos no Brasil seria bom para Keven e Heidi, que poderiam aprender o idioma, vivenciar um pouco da cultura e conviver com minha família. A ideia era morar de três a cinco anos no Brasil e depois voltar para o Canadá. Heidi comprou a ideia e um novo capítulo começou.

Acabei na Philips Electronics como VP de Marketing para a América Latina de todo o grupo e da maior divisão, Consumer Electronics. Depois de alguns anos, a Philips me encarregou de administrar a divisão de iluminação. Assumi bem no meio da crise energética no Brasil, no início dos anos 2000. Houve racionamento de energia, com fortes incentivos para soluções de economia de energia, incluindo iluminação, o que provocou uma mudança radical no

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mix de produtos. No meu primeiro mês de trabalho, as vendas caíram 80% em relação ao ano anterior. Essa foi uma maneira bem interessante de começar um novo trabalho. Eu tinha uma equipe jovem que provou ser muito boa e resiliente. Nós nos unimos e tivemos que aprender rapidamente como gerenciar a situação. Surpreendentemente, entregamos o resultado naquele ano. Tive a melhor experiência possível de gestão de crises, trabalhando em equipe e usando a criatividade e a iniciativa de todos para encontrar soluções.

Nosso segundo filho, Ian, um menino feliz e doce, nasceu nesse período, em São Paulo. O engraçado é que Keven, que nasceu em Montreal, fala muito bem o português, enquanto o português do Ian é “duvidoso”, e ambos se consideraram holandeses por muito tempo. Isso mudou um pouco nos últimos anos, à medida que eles se acostumaram a viver em Montreal.

Depois de um ano e meio no trabalho, tive uma grata surpresa. O CEO da Philips me perguntou se eu gostaria de ser o novo chefe de marketing global do grupo. Eu disse que sim, com apenas um pedido: queria continuar administrando algo, e ele me deu o negócio VidiWall, uma pequena operação global de grandes displays para arenas esportivas e outdoors eletrônicos.

Era outubro de 2002 e lá fomos nós para Amsterdã, com família e gatos. A ideia de voltar para Montreal foi adiada por um tempo.

Embarcamos em um projeto para reposicionar a Philips que o CEO comprou, e o que começou como um reposicionamento de marca se tornou um reposicionamento da empresa, incluindo como fazíamos

negócios e desenvolvíamos produtos. Foram anos intensos de trabalho, viagens por toda parte, proselitismo, trazendo pessoas para a jornada, administrando sem autoridade formal. Fui favorecido com um orçamento de mais de um bilhão de euros por ano para me apoiar. Lançamos uma campanha global, introduzimos um novo mecanismo de desenvolvimento de produtos para aproximar os consumidores de nossos engenheiros e nos divertimos muito fazendo isso.

Minha família e eu realmente gostamos de nossos anos na Holanda. Nós admiramos os holandeses: sua franqueza, atitude sensata, sua praticidade e até mesmo seu pão-durismo são bastante cativantes. Gostávamos de “simplesmente pular na bicicleta e ir”, não importava se fazia sol, se chovia ou nevava; dos sanduíches simples com leite azedo para os almoços; e da paixão por hóquei de campo e patinação no gelo. É um lindo país, com uma força e influência muito maiores do que seu tamanho faz supor.

Após cerca de quatro anos administrando o VidiWall e o marketing global, Kleisterlee, nosso CEO, me perguntou se eu gostaria de estabelecer e administrar uma incubadora de empresas para a Philips, ou seja, se eu gostaria de me tornar um Venture Capitalist interno. Por perspectiva, a Philips foi um dos inovadores de tecnologia mais prolíficos do mundo na segunda metade do século 20. Na época dessa oferta, a Philips estava arrecadando mais de 500 milhões de euros por ano apenas em licenciamento de propriedade intelectual (IP). O objetivo era criar mais negócios a partir de nosso IP em vez de licenciá-los para que outros o fizessem.

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Eu tinha pouca ideia do que o trabalho implicaria, mas pensei que seria uma grande oportunidade de aprendizado e mergulhei de cabeça. Foi o trabalho mais divertido que já tive. Precisei aprender sobre ele, montar uma pequena equipe para gerenciá-lo, e então “abrir a loja” e começar a criar mágica. Algumas das tecnologias que vi à época ainda não chegaram ao mercado, pelo menos não ainda em escala.

Tivemos que aprender que estávamos ali para matar ideias. Se a iniciativa não passasse pelas condições predeterminadas que tínhamos para cada fase, ela era encerrada – nada de mortos-vivos!

Incubamos várias ideias; algumas foram absorvidas pelas divisões de produtos da Philips, algumas vendemos para empresas como Amazon e Logitech e algumas começaram a caminhar sozinhas. Uma dessas ideias, que começou com uma pessoa da Philips Design, prosperou e a empresa abriu o capital em Nova York em maio de 2021. A história de sucesso “da noite para o dia” levou cerca de 12 anos para obter uma avaliação de pouco menos de US$ 1 bilhão. Era agosto ou setembro de 2007 quando um Head Hunter me contatou sobre uma oportunidade de administrar uma grande organização no setor de semiduráveis. Começamos uma conversa, ele me apresentou à Electrolux e, depois de alguns meses, eles me ofereceram o cargo de CEO do Negócio de Grandes Eletrodomésticos para Europa, Oriente Médio e África. Era um negócio de US$ 7 bilhões, com 26 fábricas em toda a Europa, cerca de 30 mil funcionários e responsável por 80% da P&D do grupo. Eles fizeram uma grande aposta ao me selecionarem. Eu nunca tinha gerenciado

nada dessa magnitude. Foi uma grande aposta para mim também. Eu seria o quarto CEO em cinco anos – a empresa estava perdendo dinheiro, era muito complexa, com uma gestão conturbada e cheia de feudos.

Eu não pude resistir! O retorno a Montreal foi adiado ainda mais.

A empresa estava em crise. Tive que entender rapidamente quais eram os problemas em nível granular, qual era nosso modelo de negócios, qual seria o objetivo final, como chegar a ele e qual equipe nos levaria até lá. Foi uma transformação em grande escala, e fizemos isso em três anos muito intensos.

Assumi o cargo em janeiro de 2008, e quando estava colocando a transformação em marcha houve a grande recessão de 2008, com o colapso do Lehman Brothers. Isso praticamente parou o mercado de construção residencial na Europa, o que afetou significativamente nossa indústria e adicionou mais um elemento à transformação.

Reconstruí a equipe em torno de um grupo que acreditou em nossos planos, mudando praticamente todos do meu time executivo (exceto dois) e renovando 70% das 100 principais posições, realocando principalmente pessoas da própria empresa. Terminamos com uma redução de 34% do pessoal administrativo, fechamos quatro fábricas para ajustar a demanda com a oferta, e reduzimos a complexidade em 56% com o reforço dos pontos em comum entre países e com o uso de modularização no processo de desenvolvimento de produtos.

Em um mercado que teve uma redução de mais de 15% em unidades, nosso resultado em 2011 vs . final de 2008 foi um aumento

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do EBIT de -3% para +7%, com um aumento do retorno sobre o patrimônio líquido de 39 pontos percentuais. Esses resultados foram alcançados com o aumento de participação de mercado no canal “Kitchen Specialists”, o mais lucrativo, e cedendo participação no segmento de baixo preço, o menos lucrativo.

Meu trabalho era em Bruxelas, mas Heidi e eu decidimos que a família deveria ficar na Holanda. Achamos que seria melhor para as crianças, que tinham uma ótima escola e um ambiente agradável, ao qual estavam acostumadas. Minha vida itinerante começou.

Foi um período de grande aprendizado, e tudo envolvia liderança. A liderança vem em várias formas e formatos, mas para mim as características que ajudaram na jornada foram:

• Credibilidade. Diga o que você faz; faça o que você diz. Se você se comprometer com algo, entregue-o. Você tem apenas uma palavra e apenas uma chance de perdê-la. O que você faz é mais importante do que o que você diz. Como disse Steve Covey: “You cannot talk yourself out of something you behave yourself into”. Cumpra o seu compromisso, a sua palavra, … sempre!

• Ouvir ativamente . Você não aprende falando, você aprende ouvindo. Faça perguntas, de novo e de novo, vá fundo, preste atenção. As respostas estão na organização, nas pessoas que a compõem. Deixe seu ego de lado, aprenda a apreciar os fatos e a verdade, mesmo que isso faça você se sentir desconfortável.

• Tomar decisões , às vezes sem todas as informações necessárias. Tome

as decisões difíceis, e às vezes as desagradáveis. Tenha a coragem de tomar uma posição. “Não conheço o segredo do sucesso, mas o caminho certo para o fracasso é tentar agradar a todos.” Não tente agradar a todos. Tome uma posição!

• Ter o objetivo final em mente. Ajuda muito, na tomada de decisão, saber qual é o destino final, o que se quer realizar. “Não há ventos favoráveis se você não sabe para onde quer ir”, disse Sêneca, há muitos anos… Saiba para onde vai; se não souber, descubra!

• Ter caráter . É tudo sobre como você se comporta, sobre integridade. A liderança é um dom dado por quem segue, e você tem que conquistá-la todos os dias…

Hora de ir para casa! Os três a cinco anos longe do Canadá se tornaram mais de 15. Em meados de 2011 a família, por vários motivos, voltou para casa em Montreal, e eu fiquei para trás. Isso desencadeou outra mudança na minha vida profissional. Durante toda a jornada, Heidi foi uma grande parceira, segurando a barra, estabelecendo as conexões em cada nova comunidade em que nos mudamos, cuidando das crianças, sacrificando sua carreira profissional e, nesse meio-tempo, fazendo trabalhos beneficentes, principalmente quando morávamos no Brasil, cujas ações ela continuou mesmo depois que nos mudamos.

No final de 2011, assumi o cargo de Presidente de Operações Globais e me tornei membro do comitê executivo da PepsiCo.

Indra, a CEO, queria trazer novas ideias para a empresa, um novo conjunto de olhos para

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impulsionar um aumento significativo na produtividade. Meu mandato era melhorar a taxa de produtividade de US$ 300 milhões por ano para US$ 1 bilhão por ano. A PepsiCo tinha ótimas pessoas, e eu montei uma equipe e um plano para ir em busca do alvo. Ao iniciarmos a implementação, a Indra me deu um novo desafio. Ela queria que eu voltasse para a Europa como CEO do Setor Europeu e Africano. Era um negócio de US$ 14 bilhões, 90 fábricas, cerca de 500 centros de distribuição, 53 mil pessoas e o setor mais complexo da PepsiCo, com categorias que incluíam laticínios, iogurtes, petiscos, sucos, cereais e refrigerantes. Era um negócio bem-sucedido, gerando mais de US$ 1,5 bilhão de caixa todos os anos, mas que tinha um baixo retorno sobre o capital investido (ROIC) devido a uma grande aquisição paga em excesso na Rússia, e com baixo crescimento em geral. Meu objetivo era gerar um crescimento de dois dígitos e aumentar o ROIC em pelo menos 10 pontos.

Não havia uma crise, mas foi uma espécie de transformação. Tinha um bom time, mas preso a velhos hábitos, e um ambiente resistente a mudanças. Meu desafio era ganhar a confiança deles, estabelecer minha credibilidade e fazer com que eles olhassem para o negócio de uma forma diferente. Não mudei ninguém, mas ajustei a composição da minha equipe direta.

Em resumo, implementamos um novo modelo operacional baseado em categorias setoriais, impulsionando a estratégia, inovação e marketing , enquanto as regiões focaram na execução. Com isso aumentamos significativamente nossa produtividade e utilizamos os recursos gerados para aumentar a inovação e impulsionar o

crescimento e os ganhos de participação de mercado.

O plano foi muito bem-sucedido. Tivemos ganhos de participação em 25 das 31 células medidas (célula definida por uma combinação de categoria/ mercado); melhoramos a satisfação de nossos clientes em oito dos treze países nos quais mediamos esse índice; alcançamos o maior nível de inovação dentro do sistema PepsiCo, com mais de três pontos percentuais acima da média da empresa; e aumentamos significativamente o fluxo de caixa, com redução do ciclo de conversão de caixa em 20,5 dias.

Em 2013 e 2014 fomos a empresa de grande escala com melhor desempenho na Europa (em comparação com concorrentes relevantes no setor de alimentos e bebidas), medido pelo crescimento de receita e lucro.

Com os bons resultados, no final de 2014 a Indra me pediu para voltar a Nova York e assumir o cargo de Presidente da PepsiCo. Assumi as Categorias Globais, Operações, TI, Estratégia, Centro de Excelência do Franqueado e a parceria da Unilever em chá. Mudei-me com o objetivo de implementar algumas das mudanças que fiz na Europa na empresa em geral.

Eu vinha de mais de dez anos consecutivos de alta intensidade, alta pressão, ligado 24 horas por dia, sete dias por semana, vivendo metade da minha vida em aviões. Então aconteceu... Meu pai faleceu, o que me afetou mais do que eu jamais pensei. Senti-me entorpecido, e simplesmente não conseguia produzir. Isso me levou a uma reflexão profunda.

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Após seis meses como presidente da PepsiCo, surpreendi a todos ao sair. Mudei-me para uma organização muito menor, com vendas de US$ 3,5 bilhões, no setor educacional. A Laureate Education International era então a maior provedora mundial de Ensino Superior, com mais de um milhão de alunos em 25 países, 80 instituições e mais de 200 campi

A Laureate tinha sua força no mundo em desenvolvimento, onde fazia um bom trabalho, oferecendo boa educação, gerando ótimos resultados para os alunos e aumentando suas possibilidades de sucesso. O foco estava na educação prática. Eu queria fazer algo que desse aos adolescentes as mesmas oportunidades que eu tive. Queria voltar à filosofia do meu pai: “A pessoa vale o que tem na cabeça”. E me convenci de que era isso que eu deveria fazer.

Entrei para fornecer supervisão “adulta”, ajudar a empresa a ser boa em ser grande, substituir o fundador como CEO e abrir o capital da empresa (fazer o IPO).

Ao entrar, encontrei a empresa em situação muito pior do que me fora apresentada, devido à forte desvalorização das moedas onde ela tinha seus maiores negócios (estava altamente alavancada em moeda forte, enquanto sua receita estava em moedas fracas). O conselho era altamente disfuncional e o fundador começou a

resistir à aposentadoria. Fiz a melhor sopa que pude com os ingredientes que tinha.

Em torno de dois anos, arrumamos o balanço patrimonial, trazendo a alavancagem de mais de seis vezes o EBITDA para menos de 4 e planos em curso para chegar a 3; concluímos 80% da integração de back-office ; iniciamos a implementação da integração do middle/ front office , alavancando a tecnologia digital em todo o ciclo de vida do aluno; e apesar dos fortes ventos contrários em vários de nossos principais mercados, entregamos sólidos resultados financeiros e sólidos resultados educacionais. E tornamos a empresa pública, abrindo seu capital.

Após o IPO, tive uma reunião com o conselho de administração, na qual apresentei o que queria fazer e o que precisava para realizá-lo. Após várias reuniões, não conseguiram se comprometer com o que solicitei. Eles queriam liquidar a empresa, vendê-la em pedaços. Deixei a empresa.

Eu não estava pronto para me aposentar. As coisas acabaram evoluindo naturalmente. Envolvi-me mais no trabalho de Conselhos de Administração e comecei a trabalhar com Private Equity como consultor em aquisições. Hoje, março de 2022, além do trabalho de Private Equity, estou em três conselhos: duas

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Os esforços de mudança geralmente falham porque os indivíduos ignoram a necessidade de fazer mudanças fundamentais em si mesmos.

empresas públicas nos Estados Unidos, AutoZone e Darling Ingredients, e uma empresa privada, a Refresco, na Europa.

Voltei para Montreal, para ficar perto dos meus filhos, ou devo dizer homens, e porque gosto muito da cidade: não muito grande, com tudo o que se poderia pedir de entretenimento, comida, conveniência para viajar etc.

Ainda há uma longa jornada pela frente, e me vejo ativo enquanto tiver energia e vontade para continuar aprendendo. Do ponto de vista profissional, quando olho para trás, ao administrar negócios, aprendi que se você não correr riscos, se não inovar, alguém o passará. Às vezes fazemos coisas porque somos pressionados pela necessidade, e fazemos outras coisas porque achamos que estão certas. Mas, não importa o motivo, tudo começa conosco...

Alguém disse uma vez: “Todo mundo quer mudar o mundo, mas ninguém quer mudar a si mesmo”. Bem, a transformação começa em nós mesmos. Temos que olhar no espelho e nos perguntar o que temos

que mudar, o que temos que fazer de diferente para que nossa mudança seja uma realidade, uma realidade bem-sucedida.

Os esforços de mudança geralmente falham porque os indivíduos ignoram a necessidade de fazer mudanças fundamentais em si mesmos. Uma nova estratégia, novo modelo operacional ou nova organização ficará aquém de seu potencial se não considerarmos, ajustarmos ou mudarmos a mentalidade e a capacidade das pessoas que a executarão. Porque se não mudarmos nosso comportamento, se não fecharmos a lacuna entre o que dizemos e o que fazemos, não teremos sucesso.

Tive a sorte de estar envolvido em muitas indústrias e funções diferentes. Tem sido uma grande jornada, uma jornada de aprendizado contínuo, como meu pai sempre pregou: uma jornada de muitas mudanças, mudanças impulsionadas pelo meu desejo pelo novo, pelo aprendizado, pela transformação. Afinal, como disse Winston Churchill: “Melhorar é mudar, ser perfeito é mudar continuamente”.

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Hayashi

ERNESTO YO HAYASHI

Aproveitei que meus colegas de turma estão escrevendo relatos para o Álbum de 40 anos de formatura e, incentivado pelos amigos de longa data que têm paciência de manter a patrulha em dia, resolvi escrever algumas linhas também. Confesso que a língua portuguesa nunca foi o meu forte, portanto perdoem-me pelos erros linguísticos. A língua portuguesa sempre foi um trauma. Na primeira tentativa de entrar no ITA não passei pois não consegui tirar a nota mínima em português (mas tinha passado na USP-São Carlos e lá fui eu fazer um semestre...) e na segunda tentativa no ITA, foi a minha menor nota! Enfim, santo processador de texto que corrige boa parte dos meus erros!

Para escrever tudo isto aqui, peguei os álbuns do Chacal e o de formatura, para tentar me posicionar naquele cenário dos anos de ITA. Por sorte acabara de encontrar os álbuns dentro de uma das caixas que eu trouxe da casa de meus pais em São Paulo após a partida de minha mãe em 2017, e que estava ainda fechada desde quando eu tinha ido para o Japão em 1989. Da dedicatória na primeira página do álbum do Chacal observo que no próximo álbum teremos outros queridos

amigos que já se foram. A mensagem do querido e saudoso professor Lacaz, com a frase “O ITA é um verdadeiro cadinho, que favorece, sem que os alunos o percebam, seu desenvolvimento humanístico, pela troca de ideias e sentimentos oriundos de várias raças e religiões, tudo ativado pelo seu alto grau de inteligência... aquela de que fala o educador espanhol, de acostumar o aluno à estupidez humana...”. E do álbum de formatura, a introdução do nosso querido e saudoso amigo Christophe, que já concluiu todos os afazeres na Terra e está lá, em outra constelação, a descrição de cada turma das engenharias. Foi ótimo ler e relembrar para agora escrever um pouco da minha jornada. Minha infância em uma família japonesa supertradicional, imigrantes que batalharam muito antes de conseguir se estabelecer do outro lado do globo, não muito diferentes de outros imigrantes nipônicos. Muito trabalho, muito suor e foco na educação dos filhos. Seis irmãos (quatro homens e duas mulheres), sendo eu o quinto, e o último dos homens. Todos começaram a trabalhar cedo. Como o mais novo dos homens, tive um pouco mais de moleza e comecei a trabalhar relativamente tarde (aos 12 anos), ajudando nos trabalhos da gráfica do meu pai. Ainda tive a sorte de fazer o primário em uma escola da igreja protestante, cuja mensalidade meus

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pais já conseguiram pagar, mas tinha de acordar todos os dias às 5h30 da manhã, andar cinco quadras para pegar o bumba caindo aos pedaços, ir até o final da linha e andar mais umas cinco ou seis quadras!

Naquele tempo o Jardim da Saúde, em São Paulo, era um “subúrbio”, cheio de terrenos baldios, campinhos de várzea, algumas minas d’água e muitas ruas de terra, onde empinávamos pipas nas férias e jogávamos bola. Numa dessas peladinhas consegui ser atropelado, cair sentado no para-choque do Ford e ser catapultado para a calçada. Tinha queimado uma das minhas sete vidas! Ainda moleque, as ruas foram asfaltadas. Era um paraíso para os carrinhos de rolimã e, numa daquelas descidas malucas, passei embaixo do ônibus que estava parado no ponto e entrei com tudo na sarjeta, indo parar na calçada. Saí com uns poucos arranhões e uma vida a menos. Minha história com o ITA começa nos longínquos anos 1960, quando a minha paixão por aviação desmoronou, ao ir a uma consulta com o oftalmologista e descobrir que já tinha mais de 2 graus e não poderia ser piloto de caça (como naqueles filmes de guerra dos anos 1950-1960!). Daí em diante, os caminhos de alguma forma me direcionaram para cursar engenharia aeronáutica no ITA. Não sei o porquê nem quem me influenciou, mas os meus pais sempre me incentivaram, dizendo ser aquela a escola top de engenharia, do Ministério da Aeronáutica, da qual sairia oficial da aeronáutica, tinha soldo, e era gratuita! Estranho que eu não era assim tão vibrador em relação à engenharia, tampouco o histórico dos meus familiares e parentes indicavam ter eu propensão

genética para tal. Sou o primeiro, o único e provavelmente o último a prestar, entrar, sobreviver e se formar no ITA na minha geração, entre primos e filhos. Nenhum dos meus irmãos, primos ou filhos destes logrou entrar, entre os que prestaram. Acho que ninguém se esforçou para entrar na “escola de louquinhos”, como as minhas filhas gostam de referenciar. Acho que as condições financeiras da nossa geração acabaram dando muita chance e moleza na criação e educação dos filhos. O ginásio fiz no Colégio Estadual de São Paulo, lá no Parque Dom Pedro. Escola pública, onde os “grandes políticos” de São Paulo estudavam, e ainda mais longe para chegar. Acordava às 5 horas. Pegava um bumba lotadaço carregado de peões que iam trabalhar nas fábricas do Ipiranga. Ia literalmente pendurado na escada de entrada do ônibus, de tão lotado – e isso quando conseguia entrar! E assim foram os quatro anos de ginásio e os três de colégio. Nessa época eu voltava da escola e começava a ajudar a imprimir cartões de visita no prelinho, num barracão no fundo da casa, pois meu pai tinha perdido a gráfica e estávamos em “recuperação financeira”. Tinha então 12 anos. Quando meu pai e irmãos conseguiram estabelecer uma nova gráfica, comecei a trabalhar como entregador, cortador-bloquista e impressor offset. Tinha lá os meus 14 anos. Em paralelo, ainda treinava judô à noite, competia e também me lesionava! Anos depois disso, o judô me ajudou a contribuir um pouco no pentacampeonato de judô por equipes nas Olimpíadas Internas do ITA, e daí surgiu uma panela que até hoje existe: as dos pentacampeões da Turma 82.

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Fiz o cursinho junto com o 3º colegial, junto com o curso de inglês e o trabalho na gráfica. Em 1976 prestei a antiga Fuvest para a USP e também o ITA. Não passei no ITA mas passei na USP-São Carlos, onde existia o curso da mecânica-aeronáutica, que frequentei no primeiro semestre de 1977. O Brasil vivia muitos movimentos estudantis e a escola vivia em greve patrocinada pelo centro acadêmico tomado pelos estudantes-profissionais - (tinha gente que estava no 8º ano na escola e ainda no 4º do curso!) que ficavam nos períodos de greve enchendo o caco de cachaça, jogando sinuca e truco e discutindo mais com palavras de ordem do que efetivamente com ações lá no CA. Com a minha família pagando o meu sustento e esse tempo inútil vendo o dinheiro investido ser mal utilizado, conversei em casa e decidi trancar a matrícula e tentar novamente o ITA. Interessante que no 2º ano de cursinho cruzei com o Mussio, que teimava em me acordar nas aulas. Acho que fomos os únicos da turma do intensivo (2º semestre) a prestar o ITA, e os professores não botavam muita fé! Problema deles, pois, por milagre ou não, nós dois passamos! Lembro-me que um colega que morava próximo ao cursinho me ligou dizendo que havia visto o meu nome na lista. Fui até lá para ver, pois não tinha visto nenhuma lista no jornal... e eis que... lá estava o meu nome! Por coincidência, encontrei o Careca (apelido do professor de matemática), que gritou no corredor: “Não acredito! Você só dormia nas aulas...”. E então pude ver, naquele momento, o peso que era entrar no ITA. Havia muitos bons da turma A, melhores em desempenho nos n-simulados e que lá prestaram e praticamente nenhum havia passado.

Sou registrado oficialmente com o nome Ernesto Yo Hayashi, mas meu apelido dos anos de ITA (Negão, “Jaysel” em homenagem ao sobrenome de um general e presidente homônimo) acabou me acompanhando junto a este grupo e também na vida profissional. Alguns ainda me chamam assim quando nos encontramos! Hoje em dia seria discriminação colocar certos apelidos, mas tudo bem entre nós; afinal somos de uma geração resiliente e desbravadora e não nos importamos com pequenices ou com o “carinho” dos colegas ao nos colocar tais apelidos. Não tenho problemas psicológicos ou sexuais decorrentes desse fato!

Meus anos de ITA não foram fáceis. Minha propensão a dormir em aula levou um “professsssor” a me avisar que iria me ferrar já na terceira aula. Outros foram compreensivos e até me acordaram, como o Veloso de LPD, durante a prova. Mas também tive a oportunidade de vivenciar a vida em uma comunidade ímpar e, assim, participar de um panelão chamado Turma 82!

Os problemas de saúde me acompanhavam já antes de entrar no ITA e assim por diante. O judô de tantas alegrias já tinha me detonado o joelho, a lombar e o ombro ainda na adolescência. Por incrível que pareça, achava que não iria passar no exame de aptidão física/saúde do ITA/CPOR!

Uma meningite no final do primeiro semestre do 2º ano quase me levou a óbito ou incapacidade total (fiquei só meio-gagá!) e aqui agradeço ao grande amigo Outi, por ter me levado em seu fusca, mesmo tendo exames no dia seguinte, ao Posto Médico à tarde e depois ao Hospital (Maternidade!) do CTA para atendimento à noite, onde me internaram, enquanto todos ainda metiam

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gagá para o exame no dia seguinte. Por obra do destino, na manhã seguinte já no limite da minha tênue linha da vida, quando já estava tomando doses de morfina, o obstetra da maternidade do CTA detectou a doença, com direito a punções na coluna e um passeio de ambulância ao isolamento de doenças contagiosas no Hospital das Clínicas – Emílio Ribas. De acordo com o médico-residente que estava lá nas Clínicas e era amigo do meu irmão, a meningite bacteriana é uma das que mais sequelas deixam, quando não mata. Depois, no 4º ano, uma infecção intestinal após comer na estrada durante uma visita à Rolls Royce me acompanhou o resto dos anos de escola. E lá se foram mais umas vidas! Embora tenha sobrevivido à meningite, isso me fez terminar o 2º ano com 4 Is e um inferninho. Recordo-me também que essa meningite desencadeou algumas reações entre os colegas, principalmente os de apartamento, após a declaração de emergência no meio do exame pela grande psicóloga da escola. Sorry , amigos, pelo susto! Voltei no segundo semestre ainda na “condição de repouso absoluto”, tendo de fazer praticamente todas as segundonas e depois passar no Conselho, que teria me desligado se não houvesse a intervenção do

mestre Faleiros, que era o meu conselheiro. Peguei 4 Is, fora o inferninho. Daí para a frente, liguei o “foda-se”, resolvi não trancar e, se quisesse o destino me mandar embora, assim seria. Os outros três anos e meio foram “o” inferno! Resumindo, foram sete Is nas mais de 14 segundonas (dois foram acochambrados nos dois Conselhos), dois inferninhos, mais coisas do tipo 3 Ds seguidos nas primeiras provas com o Ortega, o Maldade, que deixou a gente de “DP” moral para fazer parte do trabalho de doutorado dele que os queridinhos da Mecgay não quiseram pegar, provas intermináveis do Rizzi, Marreco, Bernardão etc. e um pentacampeonato de judô por equipes – do qual agradeço aos meus amigos de equipe (Enderson, Akutsu, Ary, Taka, Guerrinha e o Nishi) por terem carregado o piano. Agradeço também ao Kats, meu companheiro de 114 e de TG, que simplesmente dominou a apresentação do TG com a eloquência de costume. Comecei no 114 e mudei-me para o 115 no profissional. Se existe o “ Summa cum Laude ”, o meu foi “Suma-se sem laude”...

Sempre acreditei em reza brava. Lembro da minha mãe rezando desesperadamente para que eu conseguisse me formar!

E não é que fé de mãe funciona?

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Sempre acreditei em reza brava. Lembro da minha mãe rezando desesperadamente para que eu conseguisse me formar! E não é que fé de mãe funciona?

E acredito na amizade dos colegas que me aturaram e me incentivaram ao gagá extremo e que perdura até os dias de hoje, dada a persistência do Guigui, Massaki, Afonso, Swiba e outros para escrever estas linhas! Muitas amizades me abriram portas ao longo dos anos, assim como abri a porta para muitos outros que vieram a fazer parte da nossa história no decorrer deste tempo. No fim do ano da formatura prestei um exame para uma bolsa de estudos de mestrado no Japão e, nesse ínterim, a Embraer começou o processo de seleção de novos funcionários. Já formado, a Embraer me contratou para a engenharia de ensaios em voo, com a promessa de ir para a Itália no programa AM-X ainda no primeiro ano. No meu caso, iria em agosto. Em fevereiro fui comunicado pelo consulado do Japão de que havia passado para o mestrado, mas resolvi escolher a dolce vita italiana no lugar do suposto “rigor” do gagá nipônico – diga-se, de passagem, que cinco anos de gagá-desespero no ITA haviam acabado com os meus neurônios! Na Embraer, fizemos de cara o primeiro curso de ensaios em voo, para aprendizado rápido. O curso, normalmente dado nos Estados Unidos, Inglaterra e França e que durava seis meses, no Brasil foi intensificado e reduzido para dois meses. Eu, Marcel, Katsanos, Suguita, Adalto e outros passamos estudando, voando, reduzindo dados noite adentro, finais de semana... E eu continuava a dormir nos voos e nas aulas e depois ficava no gagá...

Logo depois fui para a Itália. Foram dois anos de trabalho sem muita cobrança por resultados, mas bons aprendizados no assunto de ensaios com os italianos.

E muitos bons aprendizados extratrabalho:

viagens, moto, esqui, bebedeiras... enfim, Europa e umas poucas garotas além das minhas vizinhas e suas amigas, que me convidavam para ir às discotecas às quintas e sextas. Tempos difíceis se comparados com os tempos de Brasil, pois orientais em Torino nos anos 1980 eram coisa rara. Nesse período aprendi a gostar ainda mais dos vinhos italianos e dos destilados escoceses, aos quais não tínhamos acesso no Brasil. Isso me lembra dos tempos das meiguinhas com suco de laranja durante as peladinhas atrás do H8! Vários da turma estavam na Europa e vez por outra nos encontrávamos em algum lugar para esquiar, beber, andar de moto, ir a shows e viagens. Conheci uma boa parte das capitais europeias, mas espero ainda passar mais tempo em algumas localidades para apreciá-las melhor. Isso fez com que certos membros da turma ficassem ainda mais próximos e certas panelas ficassem ainda mais fortalecidas. Gostava de dirigir no limite pelas estradas com a moto ou com a Lancia Delta “Maria Benzina”. Velocidade, adrenalina e talvez essa tendência kamikaze ... isso, sim, era bom! Era jovem, solteiro, saudável e com verdinhas no bolso! Possivelmente queimei mais uma ou duas vidas entre tombos de esqui, de moto e bebedeiras. Voltei para a Embraer em 1985 nos ensaios em voo. Naqueles tempos heroicos, o engenheiro de ensaios não tinha toda essa parafernália computadorizada à disposição como hoje em dia. Era o A13, um registrador fotográfico que registrava até 13 parâmetros em mV ou mA em uma bobina de papel fotográfico, mais o tempo e o ponto de ensaio em código Morse que o engenheiro ia identificando, que dava

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conta do recado! A Embraer ainda estava nos primórdios da estação de terra com telemetria, nada comparável com o que existe hoje. Na maioria dos voos só existia comunicação com a terra via rádio! Os ensaios em voo ainda estavam engatinhando em termos de tecnologia embarcada, de terra e transmissão de dados. Difícil de acreditar como se faziam aviões na base de réguas de cálculo, HP 21-41 e pranchetas de projeto com papel vegetal e nanquim naqueles tempos. Sem falar nas cópias sépia dos documentos e desenhos, relatórios escritos a mão ou a máquina de escrever e Fax, telex... sem PCs! Lembro-me que o Nastram, CAD etc., na engenharia, eram uma assombração em implantação. E agora temos programas que rodam no PC de casa... Voltando aos ensaios em voo, eu passava muito mal em alguns voos e achava que era devido ao fato de o engenheiro ter de ficar anotando uma série de parâmetros enquanto o piloto fazia as manobras. Mas não! Fui saber durante um exame após uma pane no “meu giro” que me deixou com sintomas de labirintite, que eu tinha um problema latente e que a tendência era piorar se continuasse nos ensaios, aliados ao envelhecimento natural. Comecei a procurar alternativas e, assim, prestei novamente o exame de bolsa para o Japão, pois já haviam se passado os cinco anos nos quais eu não poderia prestar, por ter desistido dela anteriormente. Fui para lá em outubro de 1989. A bolsa contemplava seis meses de curso de japonês e de um e meio a cinco anos de pesquisas, mestrado ou doutorado. Fiquei três anos e meio estudando japonês, pesquisando e mestrando... além de ter conhecido a minha esposa, uma japonesa “da gema”.

Taifus (tufões), terremotos, sake e estrangeiras já nas primeiras semanas na universidade de línguas estrangeiras. Estrangeiros/as estranhos/as (hoje estariam classificados e rotulados como nerds e toda a gama de gêneros) eram uma coisa comum em se tratando de estrangeiros a fim de estudar no Japão naqueles tempos, tudo basicamente na língua japonesa. Algumas coisas de difícil compreensão até para o japonês comum, tipo teatro kabuki , Noh e kagurá , escrita antiga, música antiga que nem os japoneses conheciam. O mundo não era globalizado. O interessante é que naquela época a maioria das universidades japonesas não tinha aulas em inglês ou material bibliográfico que não fosse em japonês. Devo lembrá-los de que não existia nem internet nem Google. Para os estrangeiros com cara ocidental, o Japão é uma maravilha. Todos sabem que a pessoa não é japonesa (tá na cara, né?) e, portanto, não é obrigada a saber nada nem seguir a cultura local – tudo lhes é dado de “mão beijada”; os professores acochambram deslizes que não acochambrariam para os de “cara oriental”. Já para descendentes de origem nipônica ou outros asiáticos semelhantes, o tratamento é inverso: exigem que saibamos e que sigamos a etiqueta local e nada nos é dado sem cobrança. Sem falar da discriminação com os trabalhadores dekasseguis – estrangeiros que vão ao Japão fazer os trabalhos pesados, insalubres e perigosos, e com os quais, vez ou outra, nos confundiam até que nos apresentássemos como bolsistas do governo japonês.

No Japão as festas até hoje têm horário para começar e para acabar. Lembro-me do primeiro Natal no Japão. Os bolsistas tinham chegado em outubro, já frio, com direito

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aos últimos taifus do ano e as primeiras experiências com terremotos. Organizamos uma festa para começar às 19h e sem horário para acabar... Papo rolando solto com outros bolsistas, eis que um senhor bem velhinho chega às 22h45 em ponto e declara: “O fim de festa será às 23!” Naturalmente ninguém acreditou. Às 23 em ponto a luz do salão foi cortada, o velhinho falou que iria trancar o salão, colocou todos para fora, trancou e foi embora. Os “ gaijins aliens ” (no cartão de identidade dos estrangeiros estava escrito “Alien Registration Card”) ficaram com aquela cara de quem foi atropelado pela cultura terráquea local!

Essa minha primeira vida nipônica foi um choque cultural, pois meus pais vieram para o Brasil em 1933-1934, quando o Japão, embora fosse uma potência militar, não tinha espaço e trabalho para todos –além do crash de 1929, que tinha deixado muitos japoneses sem nada. O Japão tinha qualidade de vida muito inferior à do Brasil, que logo se tornou uma alternativa para a imigração oficial. O Japão, após a derrota na Segunda Grande Guerra, foi muito desfigurado culturalmente e “comportamentalmente” em relação ao que os meus pais diziam. Fui chamado de imperialista por uma garota japonesa quando fiz o tradicional banzai para a bandeira e a foto do imperador Hiroíto, ao qual estava acostumado nas comemorações de início de ano nas associações aqui no Brasil – ele havia falecido e seria sucedido pelo príncipe-herdeiro Akihito naquele longínquo 1989, começando então a era Heisei . Muita coisa aconteceu naqueles anos em que estive no Japão: o Muro de Berlim caiu, a URSS ia desmoronando, o Collor foi eleito...

Ainda na universidade de línguas estrangeiras descobri que a japonesada não estudava tanto nas universidades quanto estudava no pré-primário, primário, ginásio e colégio. A triagem nesses cursos é tão intensa que quando entram na universidade a grande maioria relaxa, um ou outro se mata, e vez por outra um estuda – e esse normalmente é um “gagazão”! Aquela dureza e marcialidade nas universidades no pré-guerra dos meus pais, quando o professor andava com uma vara de bambu para acordar ou punir o aluno, deixando-o em pé no corredor carregando dois baldes metálicos de água e passando vergonha pela punição, havia deixado de existir. Foi um bom período para conhecer mais profundamente algumas culturas orientais às quais eu não estava acostumado, além das europeias e da norte-americana – tailandesa, chinesa, indonésia, coreana e outras são realmente diferentes das culturas ocidentais e também entre si; é mais ou menos como comparar um siciliano com um sueco na Europa. Depois de seis meses estudando japonês e cultura japonesa e estrangeiras, fui para a Universidade da Província de Osaka, como pesquisador no departamento de engenharia aeronáutica. O laboratório já tinha ajudado no desenvolvimento do Navigator dos automóveis que equipavam alguns carros de luxo como opcional na casa de 10K dólares, usando os poucos sinais de GPS disponíveis, na época ainda bem imprecisos para uso comercial. Hoje qualquer celular/carro tem. Além disso, eles estavam desenvolvendo helicópteros não-tripulados (leia-se: um precursor dos drones), rádio-guiados e controlados por um programa no notebook (Toshiba T-100)

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com uma interface via sinais de rádio para fazer a triangulação utilizando torretas instaladas no local que eles estavam desenvolvendo para aerofotogrametria, cartografia e pulverização de plantações. Os sinais de GPS não eram disponíveis para uso geral civil naquele tempo. Eles já estavam anos à frente em termos de aplicação prática de alguns conceitos, o que infelizmente não continuou na mesma toada até os nossos dias, com o advento da internet e os chineses e coreanos “desenvolvendo” tecnologia. O Japão era um mundo high-tech comparado com outros países, inclusive os Estados Unidos. Muitos equipamentos eram/são vendidos apenas no mercado doméstico. Não acredito que fiz meu mestrado num Macintosh com 2M RAM e 20M HD e muito menos que usamos cartões perfurados no 1130 nos tempos de ITA. Tudo evoluiu muito rápido nessa nossa curta existência terrestre!

Infelizmente o foco do laboratório na universidade de Osaka não era o que eu havia proposto no meu application para a bolsa, e resolvi procurar outras universidades, pois queria abrir meu horizonte profissional para além de engenheiro aeronáutico. Falar sobre globalização não era uma coisa comum como é hoje em dia. No Instituto Tecnológico de Nagoya encontrei um professor que estava pesquisando as empresas automobilísticas japonesas quanto às formas de gestão global, e expliquei o que estava procurando. Ele imediatamente viu a possibilidade de me colocar na sua pesquisa, mas focando as estratégias de globalização. E assim o tema do meu trabalho de mestrado virou a “Globalização da indústria automobilística japonesa”.

Muita coisa acontecia nos laboratórios, onde o dinheiro governamental abundava e muitas empresas iam recrutar os alunos ainda no início do último ano. Mas, ao contrário das universidades americanas e europeias, muito pouco do conhecimento gerado era transferido imediatamente para as empresas.

No laboratório eu era considerado um gagá e um escroto, pois não deixava a molecada e o professor fumar no laboratório, mas era adorado pela secretária e as meninas do 4º ano e do mestrado que não fumavam. Ganhei muitos chocolates e outros mimos no Valentine’s Day.

A vida de bolsista não era muito fácil. Tudo era muito caro e eu fazia muitos bicos para complementar a renda. Dei aulas de português (!!!), trabalhei como intérprete na prefeitura, na Interpol e na secretaria da educação. Foram experiências interessantes em termos de viver naquela sociedade que um dia foi a dos meus antepassados e que, de certa forma, havia me formatado através das figuras dos meus pais e parentes.

Terminei o mestrado e não quis fazer o doutorado, pois já estava com 34 anos e não via a vida acadêmica como opção, além do que tinha arranjado uma namorada japonesa suficientemente “apaixonada” para arriscar a vir morar na Terra Brasilis ! E olha que em 1994 o Brasil era “a” zona: inflação galopante, dinheiro curto, nada funcionava, faltava tudo e tudo era muito caro! Nunca pensei que me casaria com uma mulher de origem nipônica, muito menos com uma “original”. Hitomi e eu estamos casados já há 28 anos e temos duas filhas universitárias (Cybele Ayaka, de 26, e Celine Sae, de 24 anos). Ela é mais ou

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menos paciente! Portanto, “quase” sempre lhe dou razão. E espero que continue assim por pelo menos mais algumas décadas.

Voltei para o Brasil e para a Embraer meio a contragosto, pois tinha um contrato assinado com ela, que me obrigava a retornar. Fui para a área de planejamento geral, onde pude logo de cara ver que a Embraer-Estatal era um caos. Não havia nem planejamento nem controle de custos decente. Fiz algumas apresentações para o pessoal da área sobre planejamento estratégico, unidades de negócio etc. Recordo que, trabalhando nos programas da Boeing e do Douglas, resolvi checar quanto custava cada componente fornecido e descobri que o custo era quase o dobro do orçado. Ninguém se importava muito com a margem negativa do negócio. Implantei, então, uma gestão de custos “meio manual” e conseguimos colocar os custos dentro do previsto. Numa época em que tudo aumentava diariamente, o salário não havia sido corrigido como prometido, e a Embraer estava a caminho da privatização. Tão logo completaram-se os dois anos, houve um plano de demissão voluntária pré-privatização na Embraer, eu aderi a ele e saí na loucura, sem emprego. Duas semanas depois, descobri que minha mulher estava em uma gravidez de alto risco. Graças ao Todo-Poderoso, pude ficar em casa com ela durante toda a gravidez. Ela não falava português e não existiam celulares em profusão como hoje em dia.

Lembro-me de que fui um dos sorteados pela antiga Telesp e consegui um celular nesse período, e assim, tendo um canal de emergência, fui fazer um curso de meio-

-período de auditor fiscal, que me deu boas noções de direito e contabilidade. E assim, como estava escrito nas estrelas, nasceu a minha primeira filha. Uma semana depois do seu nascimento, já iniciando a procura por recolocação, em plena sexta-feira recebi uma ligação de uma empresa de RH perguntando se teria interesse em trabalhar na Vasp. Agendei a entrevista para a segunda-feira seguinte com o recrutador, o superintendente (iteano), o diretor da engenharia e o gerente, e comecei a trabalhar na semana seguinte em uma área na qual não tinha experiência prática nenhuma. Na Embraer aprendi como se fazia engenharia de desenvolvimento e produção. Nos anos de Vasp aprendi o outro lado da moeda, aquela que faz toda a rede da cadeia que a precede fazer sentido: fazer dinheiro fazendo o avião decolar de forma segura, no horário planejado, com um monte de passageiros/carga, para uma viagem de muitas horas, custos operacionais controlados e lucratividade esperada pelos investidores. Eu tinha sido contratado como coordenador de engenharia de manutenção dos MD-11, pois era engenheiro aeronáutico, sendo que nunca tinha trabalhado na área de manutenção de operador comercial. Novamente muito gagá no assunto, mais aplicação dos conhecimentos! Também pude notar o quão importante é a experiência e a responsabilidade das pessoas na condução das atividades de manutenção da frota, o amor e profissionalismo ao que fazem, principalmente quando o ambiente empresarial é muito ruim. A vida das empresas aéreas não é fácil, principalmente abaixo da linha do Equador!

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Minha segunda filha nasceu no ano seguinte, ainda no ciclo Vasp. A empresa voava para muitas localidades no exterior, incluindo o oriente/Japão. Assim, minha esposa pôde viajar com as duas meninas pequenas (uma com 10 meses e outra com 2 anos e 4 meses). Só uma japonesa para aguentar 36 horas de viagem com duas pequeninhas! Não pude ir junto, embora tivesse a passagem em mãos, pois pouco antes dessa viagem encontrei o Jorge Ramos (Turma 81), que era gerente de programa na Embraer. Ele estava voltando de um longo período de afastamento para recuperação de saúde e me perguntou se estava interessado em retornar à Embraer, que naquele momento, 1998, estava em grande recuperação, com projetos novos e havia implantado o sistema de gestão por programas. Ele estava precisando de uma pessoa que conhecesse bem a parte de planejamento de programas e aviação. Voltei, então, para a Embraer, onde pude desenvolver muitos conhecimentos, multiplicar conhecimentos e inclusive fazer coaching em planejamento e cotação de programas para algumas turmas do programa de especialização em engenharia. Também pude auxiliar o falecido Sidney Lage (acho que da Turma 77, que deu aula para os aeronáuticos no ITA) na estruturação do programa de especialização em gestão de programas. Também tive a oportunidade de fazer o PEC FGV-Embraer, onde aprendi muitas coisas que me ajudaram posteriormente na Embraer e muito mais fora dela. Meu penúltimo trabalho foi a estruturação do programa KC-390, que ora está em produção. Fiquei quase quinze anos nessa segunda fase Embraer, até o dia em

que o diretor financeiro de onde eu estava estruturando um projeto estratégico me chamou e me informou que o projeto importantíssimo havia sido cancelado e eu estava na rua... Ali percebi que a volatilidade das decisões no top management é um problema nas grandes empresas, principalmente quando os interesses individuais se sobrepõem às necessidades da empresa. Foi a primeira demissão na minha carreira.

Abri, então, uma empresa de consultoria na área de energia solar e estava prospectando alguns potenciais clientes quando um amigo me telefonou perguntando se eu estaria a fim de trabalhar como consultor na Embraer –terceirizado e, naturalmente, ganhando a metade e sem nenhum benefício. Foram outros dois anos como consultor terceirizado na área de certificação de aeronaves, o que também me deu muito conhecimento nessa área. A empresa tinha vários contratos já assinados com a Embraer até que a FAB suspendeu os pagamentos dos contratos e, consequentemente, com a empresa para a qual eu prestava serviço. A área de defesa só vai bem se o país de origem compra e mostra aos outros países que o produto é bom. Assim foi com o Bandeirante, o Tucano e o KC-390. Quando o governo não investe no projeto, não compra o produto, o negócio em geral afunda.

Voltei a prestar serviços na área de energia solar, prospectando prefeituras dispostas a investir em usinas FV. Aí tive contato com políticos locais e pude entender um dos porquês de este país não ir para a frente: nada se consegue sem “pingar” nos amigos dos políticos. Se não houvesse tanta politicagem e picaretagem,

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o Brasil poderia estar em situação melhor –inclusive na área de energias alternativas.

Em meados de 2017, um conhecido me chamou para criar uma empresa para desenvolver um avião. Não tínhamos dinheiro e cada um daria um tempo do dia para tocar as atividades. Entrei como sócio e fiz os trabalhos iniciais para a prospecção e entendimento do cenário para aquele avião. Revisei os requisitos e especificações e refizemos a concepção do avião, sondei empresas potenciais para parcerias e compras. Conseguimos criar a empresa na incubadora dentro do DCTA. Ainda hoje está lá funcionando e espero que tenha sucesso. Infelizmente as coisas desandaram entre os sócios e eu resolvi procurar outros ares.

Eis que, novamente, um colega me liga e me propõe prestar consultoria no Japão – antes, porém, passaríamos por avaliação feita por uma equipe japonesa que viria nos sabatinar. Não sabia qual era o escopo do trabalho, apenas que era para mostrar os nossos currículos e áreas de conhecimento. Acho que o fato de ter estudado engenharia aeronáutica no ITA, mais o mestrado no Japão, e de ter trabalhado por anos em gestão de programas na Embraer – e certamente de ter feito uma boa apresentação em conjunto com os colegas consultores – pesou na avaliação. Eles queriam uma consultoria na área da produção – e eu não era da produção!

Muito me ajudou a convivência com os outros membros do grupo na preparação. Fomos para lá por dois meses e a avaliação do nosso trabalho foi muito boa e elogiada.

E, assim, fomos convidados a voltar por mais dois anos. Havia centenas de estrangeiros trabalhando na engenharia, mas apenas nós seis na área da produção que estava

iniciando a preparação para entrada em produção. Difícil acreditar que meia dúzia de brazucas iriam ensinar alguma coisa para os mestres da produção! A empresa sabia como desenvolver e produzir aviões da defesa japonesa, componentes como subcontratadas, mas não sabia como seria a certificação de uma OEM no ramo aeronáutico de aviação comercial. Estive lá por dois anos. Minha esposa japonesa ficou no Brasil “cuidando” das minhas filhas universitárias.

A vida das mulheres no Japão continua difícil: trabalham muito, sem o devido reconhecimento. Melhorou bastante se comparada com os meus tempos de mestrado, quando a moça que fazia doutorado servia o chá para os estudantes homens do laboratório. Agora, cada um se vira. Embora os pais e o irmão da minha esposa sejam japoneses e vivam no Japão, ela não quer viver lá, mesmo sendo por um período definido. Japão, para ela, só se for para passear. Para isso, é um lugar maravilhoso com muita beleza natural e artificial, muita comida gostosa e bebidas do mundo inteiro em qualquer lugar, além da organização, segurança e tecnologia. Minhas filhas não puderam ir no começo, devido às aulas, e quando quiseram, a covid-19 as impediu. Espero que quando se formarem elas tenham a possibilidade de conhecer a terra dos antepassados – muito bonita para se visitar e culturalmente riquíssima; e, se tiver dinheiro, um ótimo lugar para gastar!

O Japão de hoje é difícil de entender. As cidades são limpas, organizadas até demais e muito seguras. Pode-se voltar de madrugada com baixíssimo risco de ser assaltado. Perde--se celular, carteira, dinheiro, cartões

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de crédito, e a chance de reavê-los é grande, principalmente se forem encontrados por um japonês. Mas, ao mesmo tempo, muitos japoneses não querem se expor, então é grande a probabilidade de encontrar o objeto perdido no mesmo lugar em que o perdeu, pois com a profusão de câmeras de vigilância, quem o encontra e o leva à polícia corre o risco ser processado por roubo, se o dono achar que está faltando algo. Mesmo para ajudar alguém na rua, o medo de serem processados por alguma banalidade – como assédio sexual, ao ajudar uma mocinha bêbada se levantar e tocar em alguma parte do corpo que ela julgue ser assédio –faz com que qualidades dos japoneses como empatia e solidariedade deixem de existir nas grandes cidades. O “politicamente correto” está acabando com algumas características boas da humanidade.

Os serviços públicos, embora caros, funcionam bem no Japão. Trens e ônibus param e saem com precisão de segundos.

Os hospitais em geral são bem equipados e seus profissionais bem-remunerados. Mas nas escolas o respeito ao professor está deixando de existir devido ao “politicamente correto” de tirar a autoridade do professor em classe. Tem professor apanhando de aluno, em depressão e pedindo demissão por não conseguir dar aulas; ou com medo de ir à polícia e ser acusado de assédio moral pelos pais politicamente corretos. O orgulho de ser professor está sendo trocado pelo medo. E aí os jovens vão se perdendo...

O povo é tão processual e educado que quando há desastres naturais, como terremotos, furacões, tsunamis etc., não se veem casos de vandalismo. É um trem nos trilhos, difícil de mudar de rota. Mas

o trem vem descarrilando, como dizem alguns economistas, desde o estouro da bolha em 1989, depois piorado com o caso Lehman Brothers em 2008. A economia do país está ruim (a dívida externa é de quase o PIB e a interna em torno de 2,5 vezes o PIB), a população genuinamente nipônica é decrescente, pois o pessoal não “procria” em níveis sustentáveis há décadas, e a quantidade de imigrantes é crescente, assim como na Europa, criando guetos e problemas sociais. Os jovens japoneses não querem mais trabalhar nas grandes corporações que sustentaram o país pois acham que têm de trabalhar demais, além de não terem perspectiva de carreira meteórica, pois nelas a carreira ainda é por senioridade – e se acham suficientemente competentes para se tornarem milionários da noite para o dia antes dos 30! Preferem ir trabalhar em empresas tipo pontocom ou trabalhar como terceiros sem qualquer segurança de emprego. Com a pandemia da covid-19, muitas empresas pequenas fecharam, muitos jovens contractors ficaram sem emprego e descobriu-se também que não tinham qualquer poupança. Resultado: estima-se que existam mais de 5 mil pessoas sem teto andando de terno e gravata na região de Tóquio, algo impensável anos atrás. A vergonha de ser demitido faz com que muitos não retornem para casa ou até mesmo se matem.

Minha segunda longa permanência no Japão foi bem diferente, comparada àquela de trinta anos atrás. Vivenciar dentro da indústria, interagir com as pessoas no ambiente de trabalho foi uma experiência interessante, pois alguns aspectos da cultura

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japonesa são tão fortes que em muitos casos acabam atrapalhando a velocidade na tomada de decisão e no andamento das ações de acordo com o que o meio atual exige (comunicação rápida, tomada de decisão em vários níveis, AI, IOT etc.). Diria que é uma das maiores causas de o Japão estar ficando para trás quando comparado com a velocidade dos avanços da China e da Coreia.

Voltando ao trabalho, o desenvolvimento de engenharia do projeto estava muito atrasado quando a covid-19 atacou. Todas as negociações para alongar os contratos de consultores foram canceladas após a suspensão do programa e estamos todos de volta à Terra Brasilis !

O momento agora é de cuidar da família e me preparar para procurar novos desafios.

Os anos de ITA, na minha condição, de alguma forma me deram resiliência

e capacidade de sobreviver. Estamos envelhecendo e a melhor forma de manter o cérebro é usando-o, estudando e trabalhando, mantendo os neurônios ativos! E as amizades são indispensáveis para poder discutir, falar baboseiras, e às vezes “ bullyinar ” alguns colegas. Vivendo e aprendendo! Estou na sétima e última vida e espero viver com saúde, família e amigos por muito tempo.

Este texto e os exemplos dos meus colegas de turma que já transcreveram suas experiências me ajudam a rever alguns aprendizados e experiências do passado, e espero que sirvam para calcar e alavancar os próximos desafios.

Grato à Comissão paciente e incansável da Turma 82 por esta oportunidade, além da patrulha positiva sobre os atrasados! Kanpai! Banzai!

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ANTES DE COMEÇAR – 2021

O desafio parecia enorme e comecei este relato para não perder amizades de longa data. Mas, uma vez iniciado, não conseguia parar e foi surpreendentemente motivante registrar tantas recordações. Agora o desafio é seu, caro leitor, digerir por completo estas 5.000 palavras. Para os bravos que concluírem a missão, vamos tomar uma assim que pudermos. Para os que fracassarem, vamos tomar uma para esquecer as desventuras da vida.

Mas quem é o público-alvo deste texto? Certamente vários colegas da turma, além de: familiares? “bixos/bixetes” sedentos(as) pela fórmula da felicidade? o comitê sueco de análise do prêmio Nobel de Literatura?

Na dúvida, vou poupar os familiares dos detalhes sórdidos e oferecer aos “bixos” 20 dicas de sobrevivência que podem ajudar em caso de extrema necessidade. Quanto ao comitê sueco, meus contatos estão com a “Comissão dos Relatos”. E vamos em frente.

ITA – 1970 A 1982

O ITA entrou na minha vida de forma definitiva por volta dos 10 anos de idade, quando fiz uma visita ao prédio do BEG (Banco do Estado da Guanabara), convidado por um tio (na verdade, primo) da Turma 55 – Luiz Galante, que era o responsável pela área de computação do banco. A experiência

Segre

FABIO MATTOS SEGRE

foi tão impactante para os olhos e ouvidos (o elevador falava!) que, naquele momento, decidi o que queria fazer da vida: estudar no ITA e trabalhar com computação. Sete anos depois o vestibular chegou e com ele um dos primeiros dilemas importantes da vida: computação ou ITA? Sim, porque na época somente a Unicamp oferecia um curso de Ciências da Computação e era um curso técnico. Esse dilema foi rapidamente resolvido quando contei ao meu pai que pretendia fazer computação na Unicamp. Sabendo que era um curso técnico, ele me aconselhou a buscar uma base sólida de conhecimento em um curso de engenharia e depois fazer uma pós-graduação no tema de meu interesse. As palavras dele foram mais ou menos assim: “Porra nenhuma que vai fazer um curso técnico, vai fazer uma graduação séria e ponto final. E pode voltar para o quarto para estudar!”. Sábia orientação. E foi o que fiz. Tive a oportunidade de ter uma conversa parecida com minha filha quase 30 anos depois, também com sucesso.

Então restava somente escolher qual curso no ITA, o que também não foi difícil. Frequentava o Colégio Objetivo,

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matriculado no “curso profissionalizante em eletrônica” e algumas experiências foram relevantes para a decisão: 1. o amplificador que montei no 2º ano, que só o japonês da assistência técnica da esquina conseguiu fazer funcionar; 2. os modelos Revell de aviões da 2ª Guerra Mundial; 3. umas aulas extras de aerodinâmica no próprio Objetivo; 4. algumas visitas ao Aeroporto de Congonhas nas tardes de domingo. A opção vencedora foi Engenharia Aeronáutica.

Assim, com muito gagá e um pouco de sorte, no início de 1978 eu chegava a São José dos Campos para me juntar à gloriosa Turma 82.

As histórias desses cinco anos de ITA já foram diversas vezes contadas em prosa e verso, então não vou investir muitas palavras aqui. Muito sangue, suor e lágrimas para conquistar o diploma, uma cultura consolidada para resolução de problemas e amizades fortes para o resto da vida –mas se tivesse que mudar alguma coisa neste roteiro seria minha postura mocada durante os cinco anos. Tivemos uma enorme oportunidade de conviver com pessoas excepcionais e me arrependo de não ter conhecido com mais profundidade outros colegas da própria turma e de outras turmas.

Enfim, meta cumprida: eu me formei engenheiro aeronáutico no ITA. E agora?

Dica aos “bixos”:

1- Conheça o maior número de pessoas possível. Faça um grande networking e o mantenha vivo.

ITÁLIA – 1983 A 1984

A Embraer iniciava sua participação no programa AM-X em conjunto com a AerMacchi e Aeritalia e parte do pacote de

trabalho requeria enviar engenheiros para a Itália. Em paralelo, o Brasília demandava engenheiros experientes, então nada mais natural que buscar no ITA engenheiros recém-formados para cumprir com essa obrigação. Assim, muitos colegas da Turma 82 foram contratados pela Embraer para participar do programa na Itália.

Eu fui um desses engenheiros, talvez o primeiro da Turma 82. Como o “meu pacote de trabalho” iniciava em 06 de janeiro de 1983 e, por estatuto, a Embraer só poderia enviar funcionários ao exterior após um mês de contrato, entrei na Embraer em 06 de dezembro de 1982, ainda não-engenheiro, pois a formatura e o Crea só vieram em 09 de dezembro de 1982. Assim, por três dias fui auxiliar de engenheiro e depois promovido a engenheiro. Imagino ter tido a promoção mais rápida da história da Embraer.

Um outro detalhe importante relacionado a esse pacote específico de trabalho foi a forma de cumpri-lo. Tinha uma duração de dois anos e, para atrair mais iteanos para sua área, o chefe da seção dividiu o pacote em dois. Portanto, dois iteanos foram contratados para executá-lo: eu e o grande amigo Guigui. Mas... quem iria no primeiro ano? Resolvemos tirar na sorte pela Loteria Federal: se final par em determinado sorteio eu iria, se final ímpar, o Guilherme. Ainda me lembro do número, 26, carneiro, e assim eu embarquei no dia 04 de janeiro de 1983 rumo a Varese – Itália. Este acordo entre mim, o Guigui e o chefe de seção ainda merecerá mais um parágrafo. A Itália em uma palavra? Intensa. Foi como um prêmio. Depois de seis anos de muita ralação (considerando o vestibular), finalmente me encontrava em conjunção

FABIO MATTOS SEGRE 148

perfeita de local, dinheiro, idade e tempo. Além disso, muitos colegas da turma embarcaram nesse “trem”, então o leitor pode imaginar quantas boas, digo, ótimas histórias construímos juntos. Esse tempo de Varese serviu para criar novas amizades duradouras na própria Turma 82 (por incrível que pareça – mas já falei que era um cara mocado) e esse foi um grande subproduto da experiência italiana.

No inverno, esqui, no verão, passeios de moto, uma namorada aqui outra ali, vinho sempre em todas as estações e muitas viagens pela Europa com o Chupetão (meu carro, um velho Ford Capri branco, um Mustang europeu!), o Chupetinha (carro do Ruy, um Fiat 127 branco), o AlfaSud do Tim (branco também, mas outro patamar) e os carros do Butti e do Eça (que não eram brancos, mas sempre tem gente “do contra” querendo fugir do padrão).

No outono, na falta de esqui ou moto, resolvi fazer aulas de asa-delta. Depois de concluído o rápido curso, comprei uma asa usada e fui para o primeiro salto. Cheguei na área de decolagem com o instrutor e outros colegas de curso já no meio da tarde e ele rapidamente nos pôs a montar as asas, pois iria anoitecer. Estávamos prontos e alinhados para o grande momento da decolagem quando apareceu uma forte neblina e o voo ficou impossível. Começamos a desmontar as asas. Percebi que, na pressa de montá-la, havia trançado uns cabos e minha asa estava torta. Não sei o que teria acontecido em voo, mas fiquei feliz por não ter descoberto. Dias depois fiz o primeiro voo e outros sem grandes sustos. Uma experiência quase divina – aqueles que já tiveram essa oportunidade sabem do que

estou falando. Voar pendurado na asa, com uma paisagem exuberante em 360º, nada embaixo de você, o vento passando, o silêncio de um voo sem motores, enfim acho que é o mais próximo do que chamam de “sensação de liberdade”.

Então fiz o voo mais longo e emocionante de todos... após quase uma hora, me aproximei da área de pouso mais alto do que deveria e comecei a fazer “oitos” para baixar a altitude. Em determinado momento a asa estolou e eu perdi totalmente o controle. Havia um pequeno bosque de árvores grandes em um canto e foi para lá que a asa decidiu ir. “Pousei” na copa dessas árvores, a uns 10 metros de altura! Lá estava eu, no topo das árvores, vivo e ainda com todos os ossos intactos. Mas como descer dali?

Então, como num passe de mágica, os galhos e a asa foram quebrando, pouco a pouco, e a asa foi descendo suavemente até que encostei os pés no chão. Simples assim. Da asa pouco sobrou, mas o Fabio ficou inteiro, sem qualquer arranhão. Dessa experiência criei a teoria da “bisnaga da sorte”: todos nós, antes de nascer, recebemos de Deus uma bisnaga da sorte que pode ser usada como o dono desejar. Alguns a usam para ter sucesso financeiro, outros para virar grandes empresários etc. e outros nem usam. Eu usei boa parte da minha nesses eventos aéreos.

Depois de quase um ano de aventuras na Itália, a hora de partir estava chegando. Ao menos foi o que pensei. Em dezembro recebi a notícia, do escritório central da Embraer na Itália, de que iria ficar mais um ano e cumprir todo o pacote de trabalho. Mas e o combinado com o chefe da seção?

Fui conversar com o gerente geral em Turim e a posição era esta: os italianos

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 149

não queriam perder tempo em integrar um novo engenheiro e aquilo não era um problema meu. Fim de papo. Não me pareceu uma solução razoável e sugeri que, se era um problema de adaptação, poderia ficar mais um ou dois meses e garantir a integração. Ou então voltaria no prazo inicialmente previsto. Então ouvi uma frase que ficou cravada em minha cabeça: a Embraer teria que gastar mais dinheiro com esses dois meses e eu deveria pensar nas criancinhas do Nordeste que iriam passar fome por conta disso. Ai, ai, ai, que dureza! No trem de volta para Varese, fiquei pensando no novo emprego que teria que procurar em breve. Pelo menos algumas criancinhas do Nordeste seriam poupadas.

Por fim minha tese vingou, fiquei mais dois meses, os amigos Guilherme e Otto chegaram no início do ano e em março de 1984 retornei ao Brasil. Minha contribuição mais relevante para o programa foi o desenvolvimento do modelo matemático e simulação do paracaudas do AM-X para ensaios de estol, escrito no velho e bom Fortran. A computação estava retornando à minha vida.

E conquistei minha segunda caricatura! (a primeira foi desenhada pelo Afonso, no ITA). Como as imagens foram vetadas, o leitor terá que confiar na minha descrição (a versão com imagens está disponível no

álbum virtual) e lá aparece a patente no braço esquerdo derivada do apelido “Sargentão”. Foi adquirida no campo de batalha com muito trabalho e total sucesso no cumprimento da missão: tirar a galera da cama aos sábados e domingos de inverno, para poder chegar cedo nas estações de esqui e dispor do maior tempo possível na montanha.

Dicas aos “bixos”

2- Nem sempre dá para confiar no seu chefe – se você não confia nele, troque de chefe.

3- Nem sempre o chefe do seu chefe e você têm os mesmos interesses. Então busque ter patrocinadores no mesmo nível que possam te apoiar.

4- Gaste sua bisnaga da sorte com coisas que realmente valem a pena. Por exemplo, voar de asa-delta.

EMBRAER, O INÍCIO – 1984 A 1993

Voltei! Mas o retorno à vida normal foi traumático. Depois do “ano-prêmio” na Itália, retornar ao Brasil e me transformar em um mero mortal foi bem difícil. Havia atingido a meta de me formar no ITA, havia passado um ano extraordinário na Europa... e agora? Qual a próxima meta? Não me questionei à época, mas deveria tê-lo feito, afinal, a minha carreira profissional estava começando naquele momento e talvez

FABIO MATTOS SEGRE 150
Gaste sua bisnaga da sorte com coisas que realmente valem a pena. Por exemplo, voar de asa-delta.

a resposta, qualquer que fosse, tivesse minimizado a insatisfação que viria.

Em 1984 a Embraer contava com aproximadamente seis mil funcionários e estava crescendo. Chegou a ter o dobro em 1990, ano da primeira grande crise. Certamente havia muita oportunidade em andamento, mas o que eu percebia à minha volta era estagnação: alguns colegas de seção com mais de 10 anos de casa fazendo a mesma coisa; as mesmas chefias nas mesmas seções e gerências e o mesmo todo-poderoso diretor técnico. Uma sensação ruim de ter poucas oportunidades de crescimento, certamente um reflexo de estar navegando pela carreira sem um objetivo definido. Só não era pior que o cigarro de palha que o novo colega, sentado na mesa à frente, insistia em apreciar ao final de cada almoço. Tempos que não voltam mais! Depois ele parou de fumar, somos bons amigos até hoje e, pelo que saiba, a saúde dele vai muito bem, obrigado.

O ano passou, as “Diretas Já” passaram, a ditadura acabou, o Tancredo morreu, o Sarney assumiu para seis anos de mandato (!), os amigos voltavam da Itália e logo saíam da Embraer. Poucos da Turma 82 restaram. Tentei prospectar algumas opções de emprego, mas nada que fizesse os olhos brilharem. Comecei a fazer os créditos no ITA para um mestrado em (adivinhem?)...

Ciência da Computação – e isso foi positivo.

Em 1986, o grande Engenheiro Ozires Silva saía da Embraer para assumir a presidência da Petrobras, marcando o fim de uma era na indústria aeronáutica brasileira. Tive pouco contato com ele, mas guardo muita admiração. Por outro lado, chegava um engenheiro grego-inglês-brasileiro, ótima

pessoa e muito competente, contratado para montar um grupo de simulação de sistemas e estava procurando interessados. Vi nisso uma boa oportunidade de realizar um trabalho que exigisse mais computação e migrei para o novo grupo, junto com o Sartô, que logo partiu para outras praias. Esse foi um ano cheio: casei-me e no ano seguinte o meu filho nasceu. Novas funções de tudo quanto é lado, na Embraer e em casa. Já tinha concluído os créditos do mestrado, mas a tese ficou distante.

O ano de 1990 chegou com o Collor na presidência. A crise brasileira também era acentuada na Embraer, ocasionando quatro mil demissões, tensão e pouco dinheiro para investimentos. O chefe grego resolveu voltar para a Inglaterra e eu assumi a liderança do grupo de simulação. Nosso grupo havia sido “contratado” para desenvolver um simulador de voo no Rig Aviônico do CBA-123. Foi um belo desafio, implementado em um PC, modelos escritos em C no sistema operacional QNX (muitas inovações). Durante esse projeto, conheci o chefe da seção de ensaios em solo, que viria a ser meu sócio anos depois – um capítulo sobre isso adiante.

Minha filha nasceu e um ano depois me separei. Nessa mesma época, a Embraer começou a participar de um programa do governo denominado RHAE (Recursos Humanos para Áreas Estratégicas), contemplando bolsas no exterior para mestrado e doutorado. Em um cafezinho com o coordenador desse programa, expus meu eventual interesse em participar. Em princípio, as bolsas para a primeira turma já estavam definidas, porém devia ter sobrado um pouco de sorte na minha bisnaga, sei

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lá, o fato é que ele tinha uma bolsa sem dono e estava procurando candidatos. Consegui a vaga e em setembro de 1993, praticamente 10 anos após o ano italiano, embarquei para a Inglaterra para dois anos de mestrado na LUT – Loughborough University of Technology (ponha o dedo no meio do mapa da Inglaterra e encontrará).

Dicas aos “bixos”

5- Corra atrás dos sonhos. Mas lembre-se que a persistência e a estupidez são vizinhos sem muro.

6- Procure definir pelo menos três grandes metas na sua vida: profissional, financeira e pessoal. Crie indicadores para verificar o andamento. Altere se achar necessário, mas não deixe a vida correr solta, ao Deus-dará. Ela passa e os sonhos ficam para trás.

7- Cafezinhos são importantes, coisas acontecem por lá... Participe!

(Cafezinho em home-office não vale).

8- Nem sempre quem fuma cigarro de palha é “do mal”. Por trás da fumaça pode ter uma ótima pessoa. Explore!

MESTRADO NA INGLATERRA – 1993 A 1995

Loughborough (se diz Lofb-rá ou, se preferir seguir o modelo Wikipedia, ˈ l

ʌ fb(ə)rə) é uma pequena cidade no interior da Inglaterra, com uns 50 mil habitantes à época. Já a LUT é grande, com 10 mil alunos (1/3 de uma Unicamp de hoje). Foi muito revigorante voltar aos “bancos escolares”, especialmente numa universidade desse porte – experiência que não tivemos no ITA. No primeiro ano letivo fiz os créditos do mestrado na forma de um MSc em Engineering Design , além de

cursos de degustação de vinhos e cervejas, futebol, dança de salão, trilhas e passeios históricos pela Inglaterra e Escócia. Meu TCC foi – adivinhem – um aplicativo de software , o TDesign, escrito em C++, que buscava integrar diversos métodos voltados às primeiras fases de desenvolvimento de um projeto. Hoje são chamados de métodos de ideação e seleção de ideias. O ano de 1994 foi carregado. Logo no início, o Plano Real, que para mim passou meio despercebido; em maio, a morte do Senna. Lembro que estava saindo da biblioteca quando me informaram. Muita comoção por lá também. E entre um período letivo e outro, o Brasil sagrou-se tetracampeão mundial de futebol. Assistir à Copa em território inglês foi uma experiência única e celebrar o título na Trafalgar Square, inesquecível!

No 2º ano letivo virei aluno-pesquisador com direito a computador, mesa e sala, junto com um escocês e um mexicano. Minha segunda maior conquista nessa fase foi conseguir entender o que o escocês falava, feito que alcancei no final da temporada. Ainda em 1994 tive o meu primeiro contato com a internet, no início com fóruns de discussão e depois com e-mail . Que inacreditável foi receber uma foto anexada à mensagem! E antes de a Embraer ser privatizada no final do ano, um colega engenheiro de Embraer passou três meses na LUT em um “intensivão” de Engineering Design – tivemos a oportunidade de escrever e publicar um artigo em conjunto sobre o uso de métodos de engenharia na indústria inglesa – dessas nossas discussões nasceu a semente do que hoje é reconhecido como um dos grandes

FABIO MATTOS SEGRE 152

diferenciais da Embraer: a metodologia de Desenvolvimento Integrado de Produtos.

Levei o TDesign para campo (embora já estivéssemos bem no meio do campo – na verdade campos, muitos campos de canola), convidando diversas empresas inglesas a aplicar o software e medir variações de eficiência e eficácia no processo de desenvolvimento de produto. Já chegando ao final da temporada inglesa, aquele chefe de seção de ensaios em solo da Embraer, de férias na Inglaterra, foi me visitar e trouxe com ele o rascunho de um plano de negócios para uma empresa de aprendizagem mediada por tecnologia, fruto de uma especialização nos Estados Unidos, que estava cursando. Era uma ideia bem inovadora, ainda mais com a chegada da internet. Eu gostei da “tecnologia”, de “aprendizagem” só sabia ser aluno, agradeci e seguimos cada um seu caminho: ele em direção à Escócia e eu rumo ao Word para escrever a tal tese de mestrado. Em agosto de 1995 o EMB-145 realizava seu primeiro voo e eu defendia a tese, ambos com sucesso e dentro do tempo previsto (ufa!). Assim conquistei meu MPhil ( Master of Philosophy ) em Engineering Design , além de uma forte alergia que trago comigo desde então (zero saudade dos campos de canola).

Naquele ano também fui presidente da Organização dos Estudantes Internacionais, com mil alunos representados, de todos os cantos do planeta. Mas essa é uma outra história e adianto que minha carreira política parou por aí.

Para encerrar este capítulo, breves recordações de viver no coração do antigo “império onde o sol nunca se põe”: dirigem do lado contrário e criaram um sistema de unidades de medidas para enganar os

potenciais invasores; a escala de notas escolares também é própria: embora nominalmente vá de 0 a 10, praticamente é de 4 a 7, sendo que acima de 7 é Distinction ; amam a monarquia – quanto mais sórdidas as notícias, maior a paixão; produzem ótimas cervejas locais; são práticos e com pouca burocracia; acreditam no que você fala; estão sempre preparados para as quatro estações do ano em um mesmo dia; estão bem avançados na igualdade dos sexos; culinária sofrível – referência é a torta de rim com carne ou o orgulho nacional, fish&chips –mas o kebab é ótimo; têm um sistema de saúde público que funciona; são “meio-racistas” do jeito deles: o status máximo é ser próximo da nobreza e o status mínimo é ser estrangeiro (não nascido na Inglaterra).

Ah, e uma última curiosidade: no voo de volta encontrava-se o Ilmo. grande amigo Dr. Afonso de Campos Pinto, que também retornava para casa com seu PhD depois de uma vitoriosa passagem pelo Imperial College e pronto para se tornar um empreendedor e professor de sucesso. Lamentei não o ter encontrado na terra da Rainha.

Dicas aos “bixos”

9- Estude sempre. Parafraseando Descartes, “continuo a descobrir coisas novas, logo existo”.

10- Não se deixe abater pelo frio que faz lá fora. Nos próximos minutos tudo pode mudar.

EMBRAER, PARTE 2 – 1995 A 1997

Voltei! De novo! Reencontrei a Embraer privatizada, com muitas novidades.

A entrada do Maurício Botelho deu ares modernos à gestão; saía o Enginneering

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 153

is king e entrava o Result is king . A metodologia de Planos de Ação e Planos Estratégicos transformou a empresa, mas logo após a privatização a situação ainda era complicada, com o Brasília em declínio e o EMB-145 ainda em desenvolvimento (depois ERJ-145). Fui designado para esse programa, com a função de acompanhar a evolução do desenvolvimento dos sistemas dentro do Departamento Técnico, com visibilidade semanal junto à diretoria. Tarefa importante para agilizar a certificação, mas árida e espinhosa para mim. Em 1996 a aeronave foi certificada e fez o primeiro voo comercial em abril de 1997.

Meses tensos e incertos foram esses. A empresa continuava com muitas dificuldades financeiras e fazia demissões.

Comecei a pensar no tal do Plano de Negócios da empresa de aprendizagem mediada por tecnologia. Hum, por que não? Diziam que o mundo “lá fora” era muito selvagem e que a “mãe Embraer” nos protegia. Mas resolvi encarar o desafio e as madrugadas e os finais de semana viraram dias de trabalho para a futura empresa. No início de 1997 a Embraer lançou um Plano de Demissão Voluntária e muitos engenheiros aderiram, incluindo meu sócio e, em maio, eu também.

Quando saí, a Embraer contava com 2.800 funcionários. A partir de então, o ERJ-145 abriu seu caminho pelos céus do planeta e puxou um incrível crescimento da empresa, transformando-a no terceiro maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo, chegando a 18.000 funcionários em 2010.

Dica aos “bixos”

11- Em decisões importantes, converse com pessoas de sua confiança e ouça

opiniões diferentes. Considerar diversas perspectivas sempre oferece reflexões de grande valor.

STARTUP MENTOR TECNOLOGIA – 1997 A 2010

Começamos a pôr em prática o Plano de Negócios. A ideia era revolucionar a educação básica, iniciando pelos professores. Éramos cinco sócios, dois efetivamente mão-na-massa (eu e o colega da Embraer), tendo investimento originário da clássica tríade Family, Friends and Fools . Montamos um pequeno escritório e fomos à luta. Ao caminhar pela vida real, ficou claro que esse mercado não existia (começou a existir agora, quase 30 anos depois, por conta da pandemia). Muitas madrugadas e finais de semana escrevendo o PN e não fomos validar nossa percepção de mercado. Cazzo ! Os meses passando, as contas chegando e nada de receita; e agora? Começamos a olhar para o mercado corporativo, e o gancho veio por meio de um conhecido consultor de RH que prestava serviços em pesquisa de clima organizacional. Fizemos uma parceria, desenvolvi um sistema (ClimaSoft) para agilizar a coleta e análise dos dados e a engrenagem começou a girar. A passagem de aprendizagem formal básica para aprendizagem corporativa foi feita com relativa facilidade e no final do ano conquistamos os primeiros clientes deste modelo: Embraer e Telemig.

O mundo selvagem começou a sorrir para nós. A internet comercial se consolidava e nossa proposta de aprendizagem mediada por tecnologia parecia ser colírio para os olhos de grandes empresas com profissionais espalhados pelo Brasil.

FABIO MATTOS SEGRE 154

Um novo jargão apareceu no mercado e caiu como uma luva para nós: e-learning Investimos pesadamente em marketing , no desenvolvimento do nosso LMS ( Learning Management System – TreineSoft) e em pessoas – formamos muitas(os) instructional designers (em geral, mulheres).

Tudo ia bem. No lado pessoal, encontrei minha atual esposa, Cecilia, em um curso de dança de salão. Fui mostrar para ela um passo mais ousado de rock&roll que havia aprendido nas aulas inglesas, derrubei-a de bunda no chão e foi “paixão-ao-primeiro-tombo”. São quase 25 anos juntos. Pela Mentor, a marca se fortaleceu, éramos reconhecidos nacionalmente e conquistamos o Top-of-Mind Brasil.

Mas a roda da fortuna gira e onde tem muito peixe tem tubarão. O sucesso do e-learning nas grandes empresas começou a despertar a atenção de muitos competidores, derrubando os preços. Some-se a isso um tal de Bin Laden, que explodiu as Torres Gêmeas em Nova York. A Embraer cancelou nossos contratos, assim como outras empresas, a demanda caiu e acabamos por nos endividar para manter a engrenagem girando. Saímos de um mundo de inovação para um de commodities em um mercado retraído. E uma nova fase da Mentor começou, bem mais sombria.

Quando o FHC passou a faixa presidencial para o Lula, tínhamos 25 funcionários, um belo escritório de 150 m 2 , um belíssimo portfólio de clientes e alguns vícios empresariais que um setor como esse, muito competitivo, não tolera. Demoramos a tomar as ações necessárias para manter a empresa saudável. As dívidas cresceram e somente em 2004 realizamos a ruptura que era

devida: adequação do quadro de funcionários (demissões), mudança de escritório, terceirização, caça aos custos e às bruxas, otimização dos processos e um forte aperto na vida dos sócios. Felizmente a economia mundial crescia, a brasileira também e, com isso, fomos lentamente recuperando o terreno perdido. Ao final de 2006 as dívidas estavam razoavelmente controladas, porém o relacionamento entre os sócios azedou. Promovi a ideia de vender parte da Mentor e realizar uma reestruturação acionária, uma vez que estávamos com uma empresa enxuta, reconhecida e com (ainda) ótima lista de clientes. No início do segundo trimestre de 2007 conseguimos uma proposta concreta e aceitável para todos, então só faltava assinar e... só que não! Na última hora dois sócios desistiram e o negócio foi por água abaixo. Decepção total! Em julho a crise do subprime chegou, o mundo foi chacoalhado novamente e todo o esforço de venda da empresa foi perdido. A marolinha resultante da nova crise começou a balançar os clientes. O crescimento estagnou, não tínhamos dinheiro para investir, o relacionamento com os sócios estava muito difícil, a vida pessoal bem limitada, a Mentor já não encantava. O feitiço tinha sido quebrado. Comecei a olhar para os lados e procurar alternativas. Será que ainda dava para espremer um pouquinho de sorte da bisnaga? Sim! Em um domingo, almoçando com a Cecilia no shopping , encontrei o “velho” parceiro de artigo da LUT, naquele momento diretor da Embraer. Trocamos um pouco de conversa, que foi se consolidando nos dias seguintes e transformou-se em uma oferta para retornar. Então em novembro de 2010, 13 anos depois

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e com muita satisfação, retomei o caminho da Av. dos Astronautas em direção à Unidade Faria Lima (hoje Unidade Ozires Silva).

O tempo de Mentor me trouxe maturidade empresarial, resiliência e criatividade para enfrentar as adversidades, experiência e paciência para lidar com funcionários, clientes e parceiros. Também aprendi a gostar de cachaça. Tivemos bons e maus momentos, sucesso e fracasso. Foi uma grande experiência. E agradeço muito aos amigos que me apoiaram nessa fase: Luisão (Embraer), Ruy, Shinza (TAM), Schalka (Votorantim), Hirdes (Pipe-Fapesp).

E aproveito o espaço para agradecer ao Afonso (Maps), já na fase de consultoria (próximos capítulos, não perca!).

Dicas aos “bixos” empreendedores

12- Sempre ouça e sinta o mercado – tire a bunda da cadeira e vá a campo – nada é mais importante.

13- Procure errar rápido para poder acertar rápido.

14- Lembre-se que custo é como unha: está sempre crescendo e você precisa estar sempre cortando.

15- Tenha sócios que sejam complementares às suas competências – e tenha um plano de saída formalmente descrito no contrato social.

16- Busque sempre contratar os melhores – eles fazem a diferença.

17- Domine os aspectos financeiros de sua empresa – by heart , como diriam os ingleses.

o grupo de Desenvolvimento de Novos Negócios. O objetivo era encontrar oportunidades de negócio complementares à aviação e que fizessem o ponteiro financeiro da empresa se mexer. Foi um trabalho desafiador e muito prazeroso e tive a chance de navegar por oportunidades em helicópteros, sistemas, internet das coisas, agro, espaço, petróleo. Também foi uma grande experiência de vida compartilhada com pessoas ótimas – padrão Embraer.

A partir de 2014 ficou claro que a empresa teria dificuldades para cruzar o “vale da morte”, ou seja, o intervalo de tempo entre o phase-out da família E-Jets e a entrada em mercado da nova família E2. O foco foi todo direcionado ao core-business e a área de novos negócios dissolvida. Em 2015 fiquei disponível no mercado.

Foi a primeira vez em toda essa jornada que não desenvolvi qualquer aplicativo de software . E fui feliz!

Dica aos “bixos”

18- Procure entender a real motivação das pessoas que trabalham com você – isso pode salvar sua vida.

TRABALHO EM ANDAMENTO – 2015 A ...

EMBRAER, FINAL – 2010 A 2015

De volta aos braços da “mãe Embraer”, permaneci por quatro anos liderando

Em 2015 o Brasil passava novamente por um momento delicado, com muitas notícias de corrupção no governo e protestos por todo o país, atingindo o clímax no impeachment da Dilma em agosto de 2016. A economia, que já vinha mal das pernas, ficou de joelhos. Assim, aos 55 anos, vesti o chapéu do consultor, criei a Alfa2, inicialmente com o Guigui e depois com um ex-colega de Embraer, e é o que faço até hoje. A Alfa2 se especializou em gestão estratégica, de inovação e

FABIO MATTOS SEGRE 156

finanças. E como a carne é fraca mas o cérebro ainda funciona (há controvérsias), desenvolvi um aplicativo de software em Angular e Firebase denominado Scalei! para permitir que pequenos empresários também possam se beneficiar de um planejamento estratégico robusto.

Agora temos o grande desafio da pandemia e assim é a vida, com grandes e pequenos desafios, dilemas, emoções, vitórias e derrotas, mas sempre com muita vontade e muito amor, à

esposa, aos filhos, aos netos e a esta grande família, que é a Turma 82. Dicas aos “bixos”

19- Só a inovação salva! E ela acontece em diversas formas (disruptiva, radical, incremental). É importante saber o que se quer alcançar e usar as ferramentas certas com as pessoas certas para não jogar o investimento no lixo. Last but not least...

20- “Bixo” sempre foi “bixo” e nunca vai deixar de ser “bixo”! Fim.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 157

Fuad

FUAD SOBHI AZZAM

Peço vênia e paciência para começar falando dos meus pais. Ele, “Seu Azzam”, nasceu na época de nossa Semana de Arte Moderna em Akko, uma cidade portuária de 4.000 anos. Estudou mecânica e se tornou Head Instructor A da Aramco entre 1950 e 1957 (as distâncias lá são pequenas e o idioma é padrão). Depois de muita areia, o braço esquerdo queimado com gasolina e muita animosidade por parte de seus alunos de religião diferente (ele era católico apostólico ortodoxo), e não podendo voltar a casa em função das guerras em sua cidade, foi morar no Líbano. Casou-se em Beirute com “Dona Fadwa”, de Sakhnin, também de minoria cristã. A ela, filha de um diretor de escola de primeiro grau da cidade, não havia sido apresentada a oportunidade de aprender a ler ou escrever, mas apenas de cuidar da casa e dos irmãos menores. Vieram de navio para o Brasil, onde um irmão de meu pai já havia se estabelecido. Ao chegarem, meu pai abriu um posto de gasolina com mecânica, e uns 10 anos depois mudou para o ramo de hotelaria (minha mãe cansou-se de lavar roupa de mecânico!) – tudo a partir de um punhado de ouro e joias que haviam trazido na bagagem. O Brasil era mesmo a terra da oportunidade.

Nasci em 1960, em São Paulo. Meu primeiro idioma foi o árabe, visto que meus pais ainda não falavam português direito (a bem da verdade, nunca chegaram a falar direito). Meu pai, ex-Aramco, decidiu que eu precisava aprender inglês e me colocou, aos 9 anos, para estudar com professora particular (depois não parei mais de estudar). Um ano antes de entrar no ITA, aos 16, eu dava aulas de inglês em escolas de idiomas (Yázigi e CCAA).

Claro que, como todos da escola, sempre tive facilidade e gosto pelo estudo. Nos anos 1970 não tínhamos tanto acesso à informação como hoje, mas eu absorvia as poucas coisas que me caíam no colo. Sem muita condição de apoiar e procurar boas escolas (por absoluta falta de tempo do meu pai e de conhecimento de minha mãe), meus pais sempre me apoiaram quando pedi para estudar na União Cultural Brasil-Estados Unidos, quando me candidatei a bolsa no curso técnico do Liceu Eduardo Prado (onde se entrava burro e saía tarado – essa era a brincadeira), ou para fazer o curso técnico de eletrônica por correspondência das Occidental Schools. Como curiosidade, cursei o ginásio na escola estadual “Vocacional” Oswaldo Aranha (que não era mais vocacional na minha época, mas mantinha o bom ensino). Passei no “vestibulinho” e tive como colega

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mais próximo o Renato Busatto Neto, que fez ITA também na minha turma e até compartilhamos o apartamento inicial no H8, com Akutsu, Gusella, Enderson e Verdi.

Aos 17, fiz cursinho no fabuloso Anglo, sem estudar o curso opcional “Desenho para o ITA”, que era dado aos sábados.

Meu objetivo era estudar engenharia na Poli (Escola Politécnica da USP). Como eu nunca tinha prestado vestibular de verdade, planejei fazer um “treinamento” prestando o do ITA, já que estava marcado para uma semana antes do da Poli. A surpresa foi que passei, mesmo sem ter estudado desenho.

Acredito que isso deveu-se a uma “conjunção astral”: pelo que fui informado, antes do meu vestibular, os exames de desenho do ITA eram questões para desenhar mesmo, com esquadro e compasso – e eu, sem preparo, não teria chance; sequer tinha levado esse material – e nos anos posteriores seriam de múltipla escolha com necessidade de explicar/justificar. Porém, apenas naquele meu ano o exame foi de múltipla escolha sem necessidade de justificar – e resolvi tudo com contas de trigonometria. E, claro, fui bem também nas outras matérias.

Fui um aluno regular, com altos (além do inglês, fui monitor de computação Fortran IV) e baixos (travei em Física Tossiana, o que me custou o desligamento da escola no 2º ano, no Dia da Pátria de 1979). Meu professor “Mentor” ou algo parecido era um zero à esquerda – estou esperando contato dele até agora. Só hoje, também dando mentoria, entendo que eu deveria ter procurado uma substituição para ele. Naquele ano de 1979 eu estava pensando em outras carreiras, querendo voltar para São Paulo (onde tinha vaga segurada na USP), e

conversava e fazia testes com uma psicóloga do ITA. Minha surpresa foi, ao conversar com o reitor na época do desligamento, ele me repetir um monte de informações que eu havia conversado com a psicóloga (que, acho, era filha de algum militar de lá), para me justificar que lá não era bem meu lugar. Acho que ele simplesmente não queria ter o trabalho. Hoje vejo que, além de tudo, é um tremendo desperdício de dinheiro (e soldo) você simplesmente deixar um possível bom engenheiro ir embora assim, sem muito esforço.

Nunca fui um porra-louca (40% na escala mocado/porra-louca); mesmo assim acabei protagonizando uma aula-trote em um professor nosso, repetida em todas as quatro turmas. Não tenho nenhum orgulho disso hoje, pois havia outras abordagens possíveis para discutir a baixa qualidade daquele ensino, mas é parte da história, então tenho que mencionar. Também tive a honra de ser convidado para ser o apresentador do Show do Chacal (não lembro se era esse o nome) da Turma 82 – tinha que ser alguém de fora da turma, porque todo mundo tinha medo naquela época. De fato, o show foi filmado cem por cento do tempo dentro do teatro do ITA. Falando de interesses artísticos, também ajudei a divulgar show da Elis Regina em 1979 em São José dos Campos e fui barman da Tokita (boate dos alunos, que ficava dentro do ITA). Escrevi um livro/caderno de poemas com dois colegas de turma, Alckmar (que seguiu carreira literária) e Wagner, com capa desenhada pelo saudoso Abílio – este teve um chilique quando ficou sabendo que eu havia dado um exemplar para um querido professor de química, Cecchini, que eu nem sabia

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que havia sido reitor do ITA. Participei como técnico de som de algum concurso de música local, com o Eça e outro colega, de turma mais antiga. Fiz algumas tarefas simples, ajudando a cuidar do laboratório de fotografia dos alunos do ITA. Dei aulas de inglês em um cursinho de Jacareí, mas não calhou de conversar com o CASD.

Naquela época de vestibular do ITA, passei no vestibular da Poli também, e fiquei me rematriculando enquanto fazia ITA. Tomava pau nas matérias da Poli, mas não havia jubilamento na época (isso não é muito legal, mas eu tinha realmente vontade de voltar para São Paulo). Acabei concluindo Engenharia Química em 1984 (não tinha nota suficiente para concorrer por eletrônica, pois pedi aproveitamento das matérias do ITA para não ter que fazer os dois anos do básico novamente). Formei-me em 1984. Enquanto fazia a Poli, ainda dava aulas de inglês à noite e/ou aos sábados.

Trabalhei com pesquisa em uma fundação da Poli, depois na P&D da Dedini de Piracicaba (onde fui coautor de uma patente de processo de deslignificação de bagaço de cana), depois em pesquisa na Ultrafértil (que era da Petrobras/ Petrofértil), e depois trabalhei com Qualidade em fábrica de peças automotivas do meu tio – tudo isso em cinco anos.

Em 1989 abri minha escola de inglês, que em um ou dois anos se transformou em agência de tradução. Bom de inglês, bom de português, bom de terminologia técnica, mas sem nenhum treinamento administrativo, a empresa demorou muito a se estabilizar e decolar. Aproveitei a onda do Protocolo de Quioto desde seu início em 1997-1998, até o fim dele em 2012, e traduzimos muito, mas nessa época também abri a área de tradução para a indústria farmacêutica (meus três irmãos, todos médicos pela USP, me ajudaram no trabalho e nos contatos com clientes).

No ano 2000 prestei concurso para tradutor juramentado, e fui aprovado, ainda exercendo o ofício.

Tardiamente, aos 50, casei-me e tive um maravilhoso filho (não necessariamente nessa ordem). Junto com o casamento com minha amada Regina vieram duas maravilhosas filhas (aliás, todo mundo está aqui em casa hoje, neste domingo frio de outubro, em São Paulo).

Minha empresa só começou a se organizar melhor quando fui fazer uma Pós-Graduação em Administração de Empresas na FIA. Aos 52 anos, fui o único da turma a tirar todas as médias A e também o único com cem por cento de presença. Mas o importante sempre é aplicar o que se aprende, e acho que isso eu tenho conseguido, e é gratificante

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Éramos adolescentes afiados. Hoje somos cinquentões e sessentões muito produtivos –isso no topo de muitos anos de experiência.

e recompensador. Aos 60, a janela para estudar começa a se fechar, principalmente a motivação de custo/benefício.

Em 2016 implementei a ISO-9001 em minha empresa de tradução, achando que o maior benefício seria em termos de vendas – não tão surpreendentemente, o maior benefício foi mesmo de qualidade (oh, céus!).

Em 2018 adquiri um concorrente da área, que já foi incorporado, e decidi fazer rebranding . O rebranding mostrou-se trabalhoso, mas muito útil, porque no ano que vem teremos presença fora do Brasil –teria sido antes, mas a pandemia atrapalhou muita coisa.

Éramos adolescentes afiados. Hoje somos cinquentões e sessentões muito produtivos – isso no topo de muitos anos de experiência. Pessoas dessa faixa precisam, é claro, se adaptar ao novo, mas gerenciam um valor moral, intelectual e econômico respeitável, inclusive do PIB. Os que se aposentam, ativos, acabam inventando algum empreendimento, às vezes com os filhos. Não sei o que acontecerá daqui

a dez ou vinte anos – mas acho que só vou parar quando alguém me disser que já não estou funcionando direito e mais atrapalhando do que ajudando... Memórias do ITA? Todas boas. Amigos, saídas para nos divertirmos na cidade, assistir a aula do CPOR sem ter dormido, dois apartamentos diferentes no H8, um carro de 1952 que comprei com a ajuda do saudoso Christophe, excentricidades e o jipão do Fendel, aulas grátis de francês no H8 com um colega, atravessar o lago que nunca tinha água, noites estreladas do campus (CTA), visita ao observatório/telescópio, viagens pelo Brasil de Hércules e Bandeirante ficando na casa de amigos, dormir na marinha de Vila Velha e na delegacia de Ilhéus, rejeitar a dobradinha do refeitório e voltar para comer pão com qualquer coisa no alojamento, eventos... – a lista é grande!

Agora temos o WhatsApp (ativíssimo!) da Turma e encontros anuais. Boas memórias, estendendo-se até hoje – e que assim permaneça enquanto duremos.

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Kienbaum

GERMANO DE SOUZA KIENBAUM

A VERDADE E O CONHECIMENTO

Os conceitos capazes de unir os ateus, os ideólogos, os religiosos, os filósofos e os cientistas

O navio a vapor Werra atraca no Porto de Santos na véspera do ano-novo, em 31 de dezembro de 1923. A bordo está a família Kienbaum: meu avô e minha avó com seus filhos jovens e outros ainda crianças, entre eles meu pai, Theophil (o Amigo de Deus), com 21 anos de idade, em busca de oportunidades para iniciar uma nova vida e se estabelecer em definitivo no além-mar. Assim começo a descrever minha “trajetória” rumo ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), embora eu só tenha nascido décadas depois, e dado entrada no ITA no início de 1978.

Aproveito a oportunidade, no entanto, para homenagear meu pai, in memoriam , por sua coragem de ter se aventurado a vir para o Brasil, um país até um pouco misterioso e desconhecido naquela época, mas que atraía nacionais de todas as partes do mundo por suas condições favoráveis, em contraste com os horrores e as privações das economias europeias arrasadas pela Primeira Guerra Mundial.

Por razões de saúde de um dos filhos pequenos, a família retorna à Alemanha pouco depois, deixando Theophil sob os cuidados de um tio no interior do Paraná. Como bom alemão, o jovem trilhou seus estudos em engenharia mecânica e se identificou com a terra prometida (ou cerveja preferida) em São Paulo, onde passou a trabalhar como mecânico de manutenção de máquinas na Cervejaria Brahma. Quando um dia a Boa deixou de lhe parecer interessante, mudou-se para Recife para trabalhar na Número 1, a Cervejaria Antarctica, da qual foi funcionário até sua aposentadoria, que teve que ser antecipada por motivos de saúde.

Em 30 de junho de 1957, nasce o segundo filho do Amigo de Deus, formando uma dupla com a primogênita Sofia (Amiga da Sabedoria). O destino estava traçado até nos nomes dos personagens: o futuro engenheiro e pesquisador Germano (o Autêntico, o Verdadeiro) era fruto de Theophil (Amigo de Deus, mas que se dizia ateu convicto) e tinha como irmã Sofia (Amiga da Sabedoria). E tinha também uma mãe chamada Elisa (Consagrada a Deus), uma fervorosa religiosa, amante e frequentadora da Igreja Católica.

Estimulado pelo ambiente familiar, onde se dava um verdadeiro choque cultural entre um alemão engenheiro e poliglota com uma

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ex-empregada doméstica interiorana e semianalfabeta (da qual tenho orgulho pela sua simplicidade, honestidade e ensinamentos sobre o lado prático da vida), passou a buscar a Verdade e o Conhecimento como se fossem dogmas religiosos, ignorando a dicotomia existente entre Ciência e Religião. Germano dedicou-se aos estudos de Ciências Exatas para saciar sua sede de saber científico, sem prejuízo de sua curiosidade pelas Ciências Humanas e pela Espiritualidade, como complementos de toda a Sabedoria do Universo, pois ele já intuía que somente as três juntas teriam o condão de revelar o segredo mais bem guardado do Universo: “Deus Existe?”.

Antes de ingressar no ITA fui agraciado com algumas oportunidades de aprendizado normalmente fora do alcance dos filhos de famílias pobres nordestinas, oportunidades essas às quais me agarrei com afinco. A primeira delas foi um concurso de redação oferecido pelo Centro de Turismo de Portugal no Brasil, para premiar um rapaz e uma moça de cada um dos estados do Norte e Nordeste que fizessem a melhor redação sobre o tema “A vida e a obra de Camões”. Com apenas 16 anos, eu ganhei o concurso pelo Estado de Alagoas: uma viagem de quinze dias a Portugal, incluindo passagens aéreas e estadia pagas, para conhecer as principais cidades históricas da terra de Camões, na companhia de guias turísticos.

A viagem me proporcionou mais do que a oportunidade de lazer, conhecimento da cultura, e a vivência de momentos inimagináveis para um jovem de 16 anos que nunca havia posto o pé fora de casa, pelas limitadas condições financeiras da família e sua dedicação integral aos

estudos. Afinal, eu não passava de mais um morador de uma região pobre do Brasil, sem grandes chances de uma educação de qualidade em boas escolas públicas ou privadas, nem oportunidades de trabalho futuras bem-remuneradas. A viagem a Portugal abriu minha visão para o “mundo lá fora”, o que me levou a me candidatar no ano seguinte à Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar), porta de entrada para a formação de pilotos da Força Aérea Brasileira (FAB), onde consegui ingressar no início de 1974 na chamada Turma de Prata, a turma dos vinte e cinco anos de criação da Escola.

Durante os três anos da Epcar, eu já me preparava e sonhava realizar o exame para entrada no ITA, considerado um dos vestibulares mais difíceis do país, onde a concorrência se situava em torno de quinze a vinte candidatos por vaga, aparentemente bem menos do que os cinquenta candidatos por vaga dos pretendentes à Epcar todos os anos, porém na prática mais difícil, pela qualidade dos candidatos, muitos deles oriundos de dois ou três anos de cursinho especializado na preparação para o vestibular daquela instituição.

Na época vivíamos em pleno regime militar e os alunos da Epcar que estivessem aptos a seguir carreira na FAB ingressavam na Academia da Força Aérea (AFA), em Pirassununga – SP, para quatro anos de formação como tenente aviador. Quem não fosse aprovado no exame médico para a AFA podia até mesmo se candidatar para uma das vagas reservadas para militares que quisessem ingressar no ITA, cuja aprovação se dava de maneira bem mais fácil, devido à concorrência bem mais limitada. Não foi,

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porém, o meu caso. Após ter sido aprovado no exame médico, apesar dos meus esforços em contrário, só me restou a opção de seguir na carreira de aviador, seguindo para a AFA, caso contrário teria que pedir baixa e esperar mais um ano para tentar o vestibular do ITA.

Entrei na AFA em 1977, tendo comigo a certeza de que eu realizaria o exame vestibular do ITA naquele mesmo ano, “custasse o que custasse”. E o custo era alto. Para me inscrever para o vestibular, de novo devido ao regime militar da época, eu necessitava pedir baixa (exoneração) da carreira de piloto – até mesmo para me inscrever para prestar o vestibular do ITA. Foi o que fiz em setembro de 1977, retornando para Penedo – AL, onde moravam meus pais, para estudar sozinho durante os meses seguintes que antecediam o exame do ITA, realizado no início de 1978.

Comparo minha coragem na época, em arriscar fazer o exame de admissão ao ITA, na condição de único exame vestibular para o qual me inscrevi naquele ano, depois de estudar sozinho durante mais de três meses utilizando coleções de livros de Matemática, Física e Química, e aprendendo Desenho Geométrico como matéria nova, com a coragem de um trapezista capaz de executar seu número sem rede de proteção, mesmo sabendo que, se acontecesse, a queda poderia ser fatal.

Depois do salto triplo mortal carpado bem-sucedido, lá estava eu a mais de três mil quilômetros de casa mais uma vez, pois minha família continuava morando em Penedo – AL, cidade que um dia já hospedou o Festival de Cinema Brasileiro, antes que este passasse a ser realizado em Gramado – RS.

No 1º ano do ITA eu me sentia como se tivesse entrado num mundo desconhecido, que eu imaginava estar cheio de espécimes mais inteligentes e mais bem posicionados na escala social do que eu, pois a maioria vinha de famílias com condições financeiras melhores que a minha, e tinham tido sua vivência acadêmica em escolas e cursinhos de elite das mais diversas regiões do país. Mas eu também tinha um trunfo, ou quem sabe um fardo adicional a carregar, que era ter tido vivência militar, incomum a quase todos eles. Isso fez diferença ao longo dos dois primeiros anos do ITA, por ser obrigatória a realização do Curso de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), que terminava com a obtenção da patente de segundo tenente da reserva da FAB, ou com o ingresso na carreira de oficial da ativa no quadro de oficiais engenheiros a partir do 3º ano, para uma permanência que se estenderia por um período de mais cinco anos após a conclusão do curso de engenharia do ITA. O meu histórico parecia indicar que eu optaria pela carreira de oficial da ativa, pela vivência anterior e pela necessidade de me manter com meus próprios recursos, já que meus pais na época ainda ajudavam minha irmã a se manter na faculdade em Aracaju – SE, onde realizava o curso de graduação em Química Industrial. Uma das memórias marcantes para mim dessa época era a discriminação que sofriam aqueles que flertavam com a ideia de entrar para a carreira militar, como se estivessem traindo os ideais de liberdade para se tornarem “aproveitadores das benesses” fornecidas por ela. Internamente eu tinha certeza de que jamais optaria pelo quadro

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de oficiais e, para minha surpresa, vi que muitos daqueles que criticavam essa eventual opção dos colegas se tornaram oficiais da ativa, embora essa carreira fosse claramente bem menos promissora do que a daqueles que concluíam o curso em suas respectivas áreas na condição de civis.

No dia 2 de outubro de 1981 o meu pai veio a falecer e eu fiquei bastante abalado emocionalmente, o que me levou a tirar notas ruins e a atrasar a realização do meu Trabalho de Graduação (TG) durante o primeiro semestre do ano seguinte, culminando com meu trancamento para o segundo semestre de 1982, que seria meu último ano no ITA. Durante o período em que fiquei afastado por um ano, eu atuei como funcionário em tempo integral na Divisão de Sistemas Bélicos do IAE (ESB/ IAE). Esse período de “descanso” foi muito importante para que eu pudesse voltar com nova disposição ao ITA no segundo semestre de 1983, recuperando meu desempenho anterior com boas notas e concluindo o curso de Engenheiro Aeronáutico no final daquele ano. Quanto ao estágio realizado na ESB/ IAE, seus resultados foram apresentados em meu Trabalho de Graduação (TG), intitulado “Análise de Trajetória Bidimensional de um Veículo Autoguiado”, do qual me orgulho até hoje, por ter tirado o bug de um programa em Fortran, de mais de dez mil linhas, resolvendo um problema para o qual uma equipe de vários engenheiros daquela Divisão não conseguia encontrar a solução. Devido ao trancamento no último ano, os cinco anos do ITA para mim se converteram em seis, sendo quatro anos e meio como aluno da Turma 82 e meio ano como aluno da Turma 83. Pelo longo tempo que pertenci

à Turma 82, eu me considero também um pouco membro dela ou, no mínimo, um “convidado de honra”. Torço para que a honra seja recíproca, mas mesmo que estivesse sendo visto como um penetra, de minha parte a honra é sincera, porque ela é fruto da minha admiração pelos colegas da Turma 82, com os quais convivi durante muito mais tempo do que passei na Turma 83, com a qual me formei um ano mais tarde. Na dúvida, se me perguntam se eu sou 82 ou 83, respondo que, se eu fosse um software fabricado pelo ITA, eu seria versão T82.1, com base no cálculo do número de dias passados em cada uma delas e, se fosse um hardware , meu ano de fabricação foi 82, mas meu modelo só foi lançado em 83. E é assim que preencho meu crachá nos encontros de iteanos nos Sábados das Origens dos quais participo: “Kienbaum T82/T83”.

No grupo de WhatsApp da Turma 82 do qual participo, em preparação para o encontro de confraternização de 40 anos de conclusão do curso, frequentemente deparo com os “causos” contados pelos colegas sobre sua experiência no ITA e a sua vida profissional depois de formados. Puxando pela memória, vou contar dois “causos” que aconteceram comigo, e que envolvem o nosso professor de Física da época, chamado Tossio Matsushigue (cujo nome espero não estar errando, porque todos nós o chamávamos apenas de Tossio), “causos” estes que talvez não sejam do conhecimento de muitos dos colegas.

O primeiro deles refere-se a uma suposta lenda, que não presenciei e, portanto, não posso afirmar que tenha sido verdade. Reza a lenda que, durante uma aula de Física, um aluno teria perguntado ao professor Tossio:

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“Professor, é verdade que o senhor provou que Deus (não) existe?”. Em resposta, extremamente revoltado com a pergunta, o professor teria jogado o apagador contra o quadro-negro e saído da sala, sem emitir qualquer palavra ou explicação.

O segundo “causo” também envolve o professor Tossio, mas este é fidedigno, pois aconteceu comigo. Física era a matéria com a qual eu tinha menos afinidade, e Tossio era talvez o professor mais durão dentro do quadro docente do período fundamental do ITA, correspondente aos dois primeiros anos acadêmicos. Minhas notas em Física eram apenas suficientes para ir passando, apesar de conseguir ir muito bem nas demais matérias. Para minha surpresa, um dia o professor Tossio se dirigiu a mim pessoalmente e profetizou: “Você não será um bom engenheiro, porque seu pensamento é muito abstrato!”.

Muito tempo depois é que eu vim a entender o que estava por trás da afirmação dele. Ele obtinha acesso (indevido e ilegal) aos resultados do exame psicotécnico dos alunos, realizados para a entrada no ITA e, com base na análise desses resultados individuais, ele fazia algum tipo de prejulgamento do referido aluno (estou assumindo aqui que o meu caso não teria sido o único). Se a intenção era melhorar o “critério de avaliação” do aluno no tocante à matéria de Física, ou a capacidade geral dos alunos de se tornarem “bons ou maus engenheiros” em suas carreiras futuras (ou as duas coisas juntas), eu nunca fiquei sabendo, pois não perguntei.

O professor Tossio se enganou, não quanto à questão do pensamento abstrato em si, mas quanto ao fato de eu não ter

vocação ou capacidade para me tornar um bom engenheiro. Se considerarmos engenheiros apenas os que atuam com a “mão na massa” em suas respectivas áreas de formação, eu realmente pouco desempenhei a função de Engenheiro Aeronáutico no sentido mais literal do termo. A meu ver, porém, Engenharia é antes de tudo empregar a criatividade na busca de soluções inovadoras, e elas não precisam ser do tipo hardware ; podem ser do tipo software , ou até mais sofisticadas e, genericamente, podem ser chamadas de “Conhecimento”.

A “Engenharia do Conhecimento” não conhece limites. Filosoficamente podemos dizer que ela começou com a simples observação da Natureza, com a busca de explicações para os fenômenos naturais e –por que não? – dos fenômenos sobrenaturais também. Matéria e Espírito formaram a primeira e se mantêm ainda hoje como a maior divisão (ou seria amálgama?) de todo o conhecimento existente, a dividir os estudiosos de todas as áreas de pesquisa dos ramos de Ciências Exatas e Humanas. Não seria exagero dizer que no início de tudo havia apenas a Espiritualidade como explicação para todos os fenômenos, naturais e artificiais, e que foi sendo substituída pela Filosofia e depois pelas Ciências propriamente ditas, sem que as anteriores deixassem de existir e de ser cultivadas ao longo da evolução da espécie humana.

O objetivo e o conteúdo comum que unificam todos os ramos das Ciências estão relacionados com a busca incansável dos homens pela “Verdade” e pelo “Conhecimento”. Dessa forma, de uma maneira de se expressar extremamente abstrata, podemos dizer que a Verdade e o

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Conhecimento são os dogmas que unem os ateus, os ideólogos, os religiosos das mais diversas crenças, os filósofos e os cientistas numa única comunidade de pensamentos. Após uma vida profissional inteira dedicada à pesquisa científica, concluo que fui, sim, um bom engenheiro. Um Engenheiro do Conhecimento, é verdade, especialidade que na época do professor Tossio sequer existia como área de atividade, mas que atualmente pode ser entendida como a ocupação principal de todo engenheiro que se preza, independentemente da área de estudo na qual ele obteve sua formação original ou na qual ele veio a se especializar depois de formado.

Na carreira de “Engenheiro do Conhecimento” realizei meu mestrado no Inpe, em Análise de Sistemas e Aplicações, no antigo Departamento de Informática, que posteriormente passou a se chamar Laboratório Associado de Computação e Matemática Aplicada. Em 1992 iniciei meu doutorado na Universidade de Passau, na Baviera, Alemanha, como bolsista do CNPq. Meu doutorado, entretanto, só fui concluir no Reino Unido, na Universidade de Brunel, situada em Uxbridge, um bairro majoritariamente habitado por indianos nos subúrbios de Londres, distante quase uma hora de metrô do centro da cidade. A mudança de planos e de localidade para

a conclusão do doutorado foi decorrente de desentendimento com meu orientador alemão, professor Schmidt, que queria que eu desenvolvesse como tema de pesquisa a retirada de bugs de um programa de simulação desenvolvido por um chinês, chamado Cheng Yang. Eu já havia sanado um “ bug brasileiro” em um programa sofisticado de engenharia ainda como aluno do ITA, aquele que resultou no meu TG de conclusão do curso de Engenharia Aeronáutica, por isso achei que a cura de um “ bug chinês” não era algo digno de uma tese de doutorado em Ciência da Computação.

Concluí o doutorado na Universidade de Brunel em março de 1995 e retornei ao Brasil para dar continuidade às minhas atividades no LAC, desenvolvendo pesquisa e aplicação de simulação em apoio a projetos de outros departamentos do Inpe e participando como professor dos cursos de Computação Aplicada e depois de Engenharia de Sistemas do Departamento de Engenharia e Tecnologia de Sistemas Espaciais (ETE). Em 9 de junho de 1995, recebi mais um sinal que mudou minha maneira de ver o Universo: minha filha Gabriela (a Enviada de Deus). Ela veio para ser minha fiel escudeira na área de Ciências Exatas e a fiel escudeira da mãe, Fátima (a Mulher Perfeita), nas questões relacionadas às Ciências Humanas e à vida social. Não

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Após uma vida profissional inteira dedicada à pesquisa científica, concluo que fui, sim, um bom engenheiro.

que eu não dividisse também com ela meus melhores momentos de lazer. Aliás, sempre que ela está presente é ela a primeira a rir das minhas piadas, o que me leva a acreditar que é possuidora de uma inteligência privilegiada, embora os outros geralmente digam que isso apenas mostra um grau maior de familiaridade e/ou amizade. Seja qual for a razão, a descontração nesses momentos de confraternização com os familiares e amigos fica garantida e é o que verdadeiramente importa.

Em 2014, durante o governo de Dilma Rousseff,, foi criado o Programa Ciência sem Fronteiras, que oferecia bolsas para pósdoutorado e doutorado no exterior, oportunidade que aproveitei para submeter uma proposta para realização de trabalho como pesquisador visitante, visando a obtenção do grau de pós-doutor na área de Ciência da Computação, na Faculdade de nome School of Business and Economics da Universidade de Loughborough, no Reino Unido. Minha proposta tinha um tema dentro da área de Ciência da Computação, mas que eu iria explorar como pioneiro, pois a ideia era mesclar quatro áreas de conhecimento, a Engenharia de Sistemas, o Gerenciamento de Projetos, a Gestão de Processos de Negócios e a Simulação de Sistemas, numa visão transdisciplinar para apoiar o desenvolvimento de projetos de engenharia de satélites.

O tema foi batizado de Ciência e Tecnologia Transdisciplinares de Processos e mais tarde veio a se constituir numa espécie de nova disciplina ministrada anualmente no programa de pós-graduação de Engenharia de Sistemas do Inpe, a partir do meu retorno em 2015 e até o momento

de minha aposentadoria em junho de 2017. Até hoje continuo atuando como colaborador externo da PG do Inpe, em temas relacionados à área e à “disciplina” inventada por mim, que passou a se chamar Transdisciplinary Process Management (Gestão Transdisciplinar de Processos), com publicações de artigos em congressos e algumas dissertações de mestrado e teses de doutorado de orientandos já concluídas ou ainda em andamento.

Trabalhei no Inpe por trinta e dois anos, tendo me aposentado por tempo de serviço aos sessenta, conforme o regulamento vigente dos funcionários públicos na época, e fazendo uso do tempo da carreira militar realizada na Epcar e na AFA, na última das quais permaneci apenas durante o primeiro semestre de 1977. Minha aposentadoria, apesar de voluntária e em condições normais de saúde, se deu na verdade de modo praticamente forçado, pois após meu retorno do pós-doutorado em início de 2015 eu havia sido diagnosticado com câncer renal avançado, tendo sido operado naquele mesmo ano, num procedimento de laparoscopia denominado nefrectomia total, para extração completa do rim direito.

Em meados de 2017 foi constatada a metástase do câncer renal, que atingiu o pulmão e outros órgãos da cavidade abdominal, tendo, no entanto, como principal consequência uma metástase da vértebra L4 da coluna, que exigiu uma operação complexa, chamada artrodese, com a implantação de parafusos e pinos de titânio para evitar o colapso da vértebra, realizada em 4 de julho de 2017, dia em que se celebra a independência americana. No meu aniversário do dia 30 de junho de

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2017 eu já me encontrava internado para a cirurgia, tendo ganhado um pequeno bolo de presente do corpo de enfermeiras do hospital A. C. Camargo, especializado no estudo, ensino, pesquisa e tratamento de câncer das mais diversas especialidades. Se eu ainda tivesse alguma dúvida sobre a importância da Ciência na vida das pessoas, ela teria deixado de existir, porque eu passei a sobreviver desde então com um único rim e sob tratamento de quimioterapia oral e imunoterapia, o qual continuo atualmente, e que me acompanhará pelo resto da vida, qualquer que seja o significado da expressão “resto da vida”.

A importância da Ciência fica ainda mais explícita para mim, por saber que a minha irmã Sofia, dois anos mais velha que eu, faleceu aos cinquenta anos de idade, em 2005, do mesmo patógeno que eu, sendo que o câncer dela atacou os pulmões e os médicos alemães que a trataram na época não dispunham dos remédios que eu estou usando no Brasil, que só vieram a ser aprovados para tratamento ambulatorial a partir de 2012. Como aposentado, ainda me aventurei a abrir uma empresa na área de TI, à qual dei o nome de Kienbaum-Engesis, sendo a sigla Engesis o acrônimo de Engenharia, Gestão e Simulação de Sistemas. Proposta para ser uma startup incubada e sediada no Parque Tecnológico (PQTEC) de São José dos Campos, não foi aprovada para instalação nas dependências do PQTEC porque, superando todas as expectativas, consegui comprar uma sede própria e engajar um grupo de colegas pesquisadores e ex-alunos da Epcar e da AFA, na forma de uma Sociedade Ltda.

com cotas de participação, que funcionou durante o ano de 2019 e início de 2020.

Para aqueles que me perguntam se a empresa foi fechada por causa da covid-19, minha resposta é que a covid-19, ao contrário, apresentou-se como uma oportunidade para impulsionar ainda mais a empresa, que era totalmente planejada para execução de trabalhos virtuais, numa antecipação em um ano da mudança que o Brasil viria a sofrer a partir de fevereiro de 2019, com a chegada da pandemia. A covid-19 não foi a razão do fechamento da empresa; o câncer renal e sua metástase foram a razão principal, que passou a requerer maiores cuidados a partir da mudança de tratamento de quimioterapia oral para imunoterapia.

Atualmente dedico-me a alguns “passatempos”, alguns não remunerados, como a atuação como colaborador da PG do Inpe e a publicação de artigos científicos na minha área, e outro bem-remunerado, mas pouco frequente, que é a tradução juramentada de documentos do português para o inglês e vice-versa, serviço que realizo desde o ano de 1998, após ter sido aprovado em concurso realizado na Junta Comercial de São Paulo (Jucesp), onde obtive colocação entre os trinta melhores classificados, num universo de 3 mil aprovados no idioma inglês.

Meus tempos de doutorado na Alemanha e Reino Unido, no período de 1992-1995, me deram fluência nos idiomas inglês e alemão, sendo que para o último não possuo habilitação como tradutor juramentado, apenas aprovação em alguns exames realizados no Goethe Institut em São Paulo, do formato Großes Deutsche Sprach Diplom, exame de proficiência para

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qualificação de professores estrangeiros da língua alemã. Aqui abro um parêntese para uma homenagem póstuma ao nosso saudoso colega Thomas Renatus Fendel, com quem dividi um “cursinho de alemão” nas dependências do H8, que atraiu alguns interessados da Turma 82, e talvez ainda faça parte das memórias de alguns integrantes da turma.

Poderia continuar a escrever sobre outras memórias, como a elaboração de uma redação em francês ainda durante a Epcar, com o título “Un doux souvenir”, na qual eu descrevia o prêmio ganho no concurso em Alagoas e a viagem feita a Portugal em 1973, tendo obtido também destaque no concurso, embora não houvesse premiação para o ganhador, ou sobre algumas poesias que escrevi numa fase romântica de minha adolescência, e que vim a publicar depois com a participação de outros autores, entre elas uma chamada “Paraíso”.

Tomo consciência, entretanto, do texto enorme que vai se formando, e percebo que minhas memórias têm pouca relação com minha vida no ITA propriamente dita, além de pouca semelhança com as experiências profissionais dos demais colegas da Turma 82 e da Turma 83. Percebo também que fui antes de tudo um ermitão neste universo de ex-iteanos, e que preciso concluir com alguma mensagem que possa ser útil para a preservação das memórias e para a integração de todos, incluindo aqueles que se sentem também ermitões como eu neste universo, representado pelas experiências vividas no ITA ou pela própria existência espiritual, convivência social e carreira profissional vivenciadas depois de formados.

“DEUS EXISTE?”

Para encerrar, portanto, volto para a grande indagação e algumas pistas que podem ajudar a desvendar o segredo mais bem guardado do Universo. Uma resposta simples a essa questão sintetizaria toda a Sabedoria do Universo e criaria um amálgama capaz de unir a todos – os ateus, os ideólogos, os religiosos de todas as crenças, os filósofos e os cientistas – em torno daquilo que é realmente relevante em nossas vidas, relegando a segundo plano os problemas menores, e abrindo caminho para uma vida mais feliz, em paz e harmonia, e mais produtiva e bem-sucedida. Naturalmente não tenho a pretensão de dar uma resposta definitiva para a questão que enfureceu o professor Tossio (“É possível provar que Deus existe?”), mas em desafio ao professor, que julgou que eu não daria um bom engenheiro, e se revoltou, provavelmente por achar que um engenheiro de verdade não teria interesse nem capacidade de contribuir para a resposta a uma questão tão fora de sua área de conhecimento, eu gostaria de fazer algumas reflexões, na qualidade de Engenheiro do Conhecimento. Espero com isso que estas reflexões possam ajudar cada um a responder sozinho à questão acima e a encontrar seu melhor equilíbrio, valorizando mais as pequenas coisas da vida, e deixando de lado os grandes problemas que nos afligem, e que em nada contribuem para a felicidade ao longo do caminho, nem para a grande realização pessoal ao fim da jornada.

Na última página desta minha história, sintetizo minhas reflexões de toda uma vida dedicada às Ciências, em busca da Verdade e

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do Conhecimento, que nos dias de hoje estão sendo destruídos de uma forma anacrônica, levando a humanidade a regredir séculos na história, e a substituir todos os ideais da evolução humana em comunidade pela mediocridade dos interesses individuais e das benesses deles decorrentes.

A VERDADE E O CONHECIMENTO

Dez reflexões para a união de ateus, ideólogos, religiosos, filósofos e cientistas

0 – O Paradoxo (a semente do Dissenso) e a Tautologia (a semente do Consenso) são coisas inerentes ao Universo (Natureza) , embora seja discutível se eles decorrem apenas das limitações humanas para raciocinar e explicar por completo este Universo (Natureza).

1 – A Existência Espiritual não precisa estar materializada em um corpo , ela pode ter o mesmo sentido de uma Probabilidade, mas nem por isso deixando de ser real, apenas assumindo diversos formatos de acordo com uma distribuição probabilística de Somatória Um, o Universo Espiritual.

2 – Se Deus existe apenas como Espírito, ele é equivalente ao Universo Espiritual , no mínimo igual à soma de todos os espíritos do Universo/Natureza ou, mesmo se extrapolar esse limite, equivalente à distribuição de probabilidade chamada de Somatória Um, o Universo Espiritual.

3 – A Existência material requer a presença de um corpo , caso contrário os entes em observação seriam apenas probabilidades

parciais ou “seres metafísicos”, componentes do Universo Espiritual.

4- Os seres vivos se distinguem de outros seres materiais pela presença simultânea e indissociável de espírito (alma) e de matéria (corpo) , o que lhes dá a capacidade de refletir e decidir (inteligência, livre-arbítrio) e de agir, transformando de forma consciente o Ambiente (Universo/Natureza) a sua volta.

5 – Ainda que em alguns casos seja impossível se distinguir “de fora” a diferença entre um ser vivo e um autômato (ciborgue), que possua “inteligência artificial embarcada”, se Deus existe, Ele é um Ser Vivo e não apenas um Ciborgue (se não Ele seria inferior aos humanos!) .

6 – Se Deus também possui um Corpo, seu Corpo é no mínimo equivalente a toda a Massa/Energia do Universo. E se ele tem ao mesmo tempo Corpo e Espírito, ele é no mínimo equivalente à Natureza. Neste caso, seria verdade que “Deus é toda a Natureza e toda a Natureza é Deus!” (Panteísmo)

Corolário: Se é verdade que Deus é equivalente à Natureza, fica implícito também que a Natureza é um Ser Vivo.

7 – Para aqueles que não se satisfazem ou não concordam com as sete

reflexões feitas acima (itens de 0 a 6), e continuam a questionar a Existência de Deus, só resta admitir esta oitava reflexão, a de que há um Ser Superior, além do Universo (Natureza), e somente esse Ser Superior seria capaz de provar a Existência ou Inexistência de Deus.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 171

Como corolário, esse Ser Superior seria o próprio Deus para quem nEle acredita, e seria a Negativa de Deus para quem nEle não acredita. Desta forma, Deus existiria para aqueles que nEle creem e não existiria para aqueles que nEle não creem (!) .

8 – Todas as oito reflexões anteriores são verdadeiras e elas formam um Universo fechado (n axiomas verdadeiros com n variáveis), conforme o Teorema da Incompletude de Gödel, a menos que alguém consiga provar o contrário . Esta nona reflexão, que corroboraria todas as anteriores e complementaria a prova da Existência ou Inexistência de Deus, pode ainda substituir qualquer uma das anteriores, mantendo a validade do conjunto. Desta forma, as oito reflexões, e mais esta nona, representariam uma Tautologia (!), equivalente a um teorema matemático já provado, embora elas pudessem ser usadas para provar, alternativamente,

tanto a Existência quanto a Inexistência de Deus (um Paradoxo!). 9 – Qualquer reflexão adicional seria totalmente inócua e dispensável, assim como qualquer uma das nove reflexões anteriores consideradas isoladamente, mas que antes foram consideradas necessárias e suficientes para a prova completa da Existência ou Inexistência de Deus (novo Paradoxo). Mesmo inócua e dispensável, esta décima reflexão poderia substituir qualquer uma ou todas as outras anteriores (!), de uma maneira extremamente mais simples: Deus é como uma seta, apontando no sentido da evolução consciente do Universo/Natureza. Se o Universo/Natureza está em evolução consciente, o Criador existe; e, enquanto o Criador existir, o Universo/Natureza estará em evolução consciente. Corolário : Se Deus existe, Ele tem consciência de sua própria Existência e busca Se aperfeiçoar continuadamente.

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“Você foi desligado da Engenharia Aeronáutica...”

Calma!!! Esse não é o fim da história, mas o começo.

Nem bem as aulas haviam começado, fui chamado à Divisão de Alunos, sendo recebido com essa sentença. Em milésimos de segundo, repassei as avaliações físicas aplicadas, contabilizei minhas ausências, analisei meu comportamento e não consegui encontrar um motivo para ser desligado, já que ainda não havia feito nenhuma prova. Então, ela, tranquilamente, continuou:

“...e foi matriculado em Engenharia Eletrônica” . Talvez esse tenha sido o hiato que soou ser o mais desagradável em minha vida de estudante.

Escrever sobre a vida no ITA é como resgatar do fundo do armário um quebra-cabeça em que faltam muitas peças – mas algumas ainda chamam a atenção, destarte, ater-me-ei a essas, antes que também desvaneçam.

Meu sonho era a bioengenharia, para o que planejava cursar medicina, após a engenharia. Dando início ao projeto, no primeiro vestibular, passei no Mackenzie e cheguei até a entrada com os documentos para a matrícula, mas resolvi dar meia-volta e insistir em alternativas, o que me deu a possibilidade de escolher o ITA, no

GILBERTO PEVERARI SIMÕES

ano seguinte, muito por conta de tudo o que ouvia a respeito dele no colégio.

O 109 era composto, na época, por Afonso e Fantinato, Yamagata e Helbert, Segre e eu. Fui apresentado à Juliana (que me fez cortar a feijoada do cardápio por muitos anos), ao Queen, ao Renaissance e ao Tarancón; tive algumas aulas de tênis; fiz caminhadas noturnas ao som de “A Cova Dela”; emprestei algo que não podia; fui às aulas fantasiado de Formiga Atômica; bati o carro indo para a primeira prova de Física; joguei a dinheiro; correspondi-me com uma neozelandesa pelo IYA; recebi degustação da TIME usando um pseudônimo nipônico; passei pelo primeiro luto por um colega; fui barbeiro; fui o despertador do apartamento; tomei banho em box sem divisória, sem nunca deixar cair o sabonete; aprendi novos significados para “gagá”, “melar” e “bodoso” e que polegar também é dedo; vi colegas não resistirem à tentação de amassar minhas ombreiras engomadas, estivessem elas dentro do meu armário ou em meus ombros; vi um colega babar no caderno e outro dormir sobre a mesa; fui repreendido por “mexer nas partes durante a apresentação da tropa” e voltei ao Objetivo para ganhar livros e fazer

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propaganda do curso que nos possibilitara entrar no ITA (na verdade, ouvir o Afonso discorrer sobre o ITA nos microfones, sendo o dia mais memorável aquele em que fomos à classe de seu irmão Aecto).

Além da frase com que iniciei este relato, lembro-me de outras daquele tempo, que me provocam reflexões até hoje:

• “Se, apenas por um momento, eu pudesse levar meu corpo em direção à minha alma, eu não estaria aqui [...]” (escrita na mesa do Fuad)

• “Bicho... Álgebra Linear você engole tudo, vomita na hora da prova e esquece!” (de um chacal altruísta, na fila do banco)

• “Digamos que alguém vá lá e dê um beijo no expositor; ou vá lá e mate o expositor. Estou dando os limites, vocês se situem...” (do Ten. Cel. após uma revolta dos alunos durante uma exposição sobre sobrevivência na selva)

• “Rá-tá-tá-tá-tá!” (de um finado Ten., surpreendendo-nos, saindo de uma depressão no terreno, segurando um toco de madeira como se fosse uma metralhadora)

• “Também pela prova de Física.” (que valeu detenção a todos que assim justificaram sua falta à instrução do CPOR, devido ao uso do “também”)

• “Por isso eu gosto de dar aula aqui: eu sei que minha aula é uma porcaria, porque essa não é minha especialidade, mas eu peço na prova e o pessoal faz!” (de um professor substituto)

E, talvez, a mais significativa para mim:

• “Estamos no Brasil e, aqui, o que não se escreve não vale nada.” (do mesmo Ten.

Cel., ao justificar o descumprimento de um acordo estabelecido entre nós)

Há outras expressões de – conforme a data em que foram proferidas – colegas e ex-colegas de turma, que seria melhor esquecer, já que nem aprendizado trouxeram.

Voltando às boas lembranças, tenho de falar das viagens semanais para São Paulo, em que compartilhávamos o meu fusquinha e várias histórias de vida.

A gasolina já foi mais barata, mas essas trocas nunca deixaram de ser caras.

Após breve passagem pela Turma 83, fui desligado pela segunda vez. Agora, pra valer.

Ao saber que alguns ex-colegas tinham ido para a Unicamp, decidi juntar-me a eles, no que foi chamado de H8-D, e acabamos formando uma república de oriundos da Turma 82: Cícero, Arthur, Horioka, Laertes e Alckmar (que eu soube, mais tarde, graças ao Cícero, que é meu primo). Além disso, de quando em quando, encontrava outros colegas como Catarina, Milton Santos, Charlão, Luiz Antônio, Luiz Cláudio, Dirceu, Michael, Auri. Sem esquecer da banda de garagem do Afonso, das orquídeas do Ernesto, das instalações de antena do Bruce, do retorno do Fábio da Itália (fomos a uma casa de chorinho na Henrique Schaumann), de um encontro casual com o Adinho no Shopping Ibirapuera e outro com o Bói na Estação

Rodoviária, recém-chegado da Alemanha (um tanto apreensivo, por seus pais terem se mudado e não o terem informado) e do desenvolvimento de um programa para o CLP da turbina eólica do Fendel.

A vida em Campinas tinha mais charme do que em São José dos Campos. Troquei o violão pelo órgão e o inglês pelo alemão.

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Para preencher a grade, cursei Cálculo 5 com uma turma da Matemática e era disputado pelos grupos nos laboratórios de Física, que fiz com a turma da Química. Almoçava na Engenharia de Alimentos e depois curtia apresentações na Faculdade de Música. Outra vibe !

Parte chata para quem lê, mas extasiante para quem viveu, a diversidade de experiências começou nos quatro anos de estágio, entre a Novik (alto-falantes), Texas Instruments (semicondutores, onde estavam Arthur e Charlão) e Unicamp (sistemas), em Controle de Qualidade, Engenharia de Produtos e de Processos. Eram muitos os buracos no horário, devido às equivalências de matérias e os pré-requisitos.

Já formado, tive oportunidade de me desenvolver em várias empresas e diferentes ramos de atividade. Em Campinas, na Elebra Telecom e, de volta a São Paulo, foram: Eletrocontroles Villares (onde trabalhei com Cícero de Barros Santos, da Turma 67), Aços Villares, Cegelec (onde trabalhei com William Kamada, da Turma 82, e Saburo Terayama, da Turma 83), Alstom, Schneider e Siemens, o que me proporcionou experiências em times multiculturais e estadas no Japão e na Alemanha. De Engenheiro de Automação a Head de PMO, passando por Gerente de Qualidade e de Projetos, em clientes como J.P. Morgan, Copel (Companhia Paranaense

de Energia), CMSP (Metrô de São Paulo), Metrovías (Metrô da Argentina), Petrobras (plataformas de petróleo e refinaria), PSA (Peugeot Citroën), Votorantim Celulose e Papel, CSN, Usiminas, Gerdau, Acesita e –já por minha empresa – thyssenkrupp (o correto é assim mesmo, em minúsculas).

Falando em viagem, não posso deixar de contar um diálogo ocorrido na que o Cícero e eu fizemos aos Estados Unidos, de ponta a ponta. Imaginem dois estagiários em São Francisco, na fria noite do dia 31 de dezembro de 1982. Não tendo onde passar o réveillon , deitamo-nos cedo, em um aposento do YMCA. À meia-noite, ao som de carros buzinando em um viaduto próximo, o Cícero me confidencia:

– Pevê, está sendo muito legal viajar com você.

Tocado pelas circunstâncias e pelas palavras, respondi ternamente:

– Cícero, ...eu não posso dizer o mesmo. Segurei a risada o quanto pude, até que ele retrucou, com a voz embargada:

– F... da p...!

Aí, rimos um pouco e dormimos, porque tínhamos muito a caminhar no dia seguinte.

Durante esses últimos 40 anos, fui a alguns encontros da Turma, inclusive um, na casa do Schalka, que havia sido cancelado e eu não sabia. Desse e do primeiro, eu não gostei muito, mas não me deixei abalar,

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 175
A vida em Campinas tinha mais charme do que em São José dos Campos. Troquei o violão pelo órgão e o inglês pelo alemão.

porque nossa conexão é mais forte do que isso. No da versão atualizada da foto, eu fui. Houve um outro, mais para encontro de república, na casa do Laertes, com o Arthur e o Cícero, que foi muito agradável! Conflitos de agenda não me permitem estar em tantos virtuais quanto gostaria.

Informações pessoais: Nasci em Lucélia, no oeste paulista, casei-me com uma química em 1988 e dessa “reação” nasceu um futuro Administrador, em 1991. Tive um câncer que, ao ser retirado em 2004, levou junto quatro dos cinco adutores da coxa direita, mas não afetou minha mobilidade. Como voluntário, fui Diretor da Administração Geral e de Comunicação em uma entidade beneficente, além de palestrante e formador de expositores. Há alguns anos tenho participado, com minha esposa, de grupos de estudo sobre autoconhecimento e comportamento humano.

Em resumo, o que aprendi em sala de aula, seja no ITA, na Unicamp, na USP ou na FGV, faz parte dos alicerces que me sustentam como técnico. Por minhas vivências, acredito que não somente nessas instituições de ensino, ou nas organizações em que trabalhei, haja profissionais abaixo e acima das expectativas, que acabam nos servindo de referência. Aproveito a deixa para

reverenciar dois que, além de professores, pude conhecer como orientadores: Carl Weis e Marcos Botelho. Daí, creio ser importante ressaltar que praticar o que se aprende além dos procedimentos ou do conteúdo a ser apresentado em sala de aula, ouvir o que é dito e perceber suas intenções, e manter a boa convivência e as trocas sinceras é o que erige melhores profissionais. Como prova das marcas indeléveis que o ITA deixou, acabei “ganhando”, além de um colega de república, um colega de trabalho, um “cunhado”, um duplo compadre, um companheiro de viagens anuais e – mais importante – um grande amigo, tudo isso concentrado em um colega de faculdades: Arthur Oliveira. Que outros frutos renderam essa amizade? Uma “irmã”, dois sobrinhos e um afilhado, além de inúmeros momentos de compartilhamento, gostosos risos em momentos alegres e suportes insubstituíveis em momentos difíceis. A experiência esteve (e espero que continue) sempre presente – cqd.

Ah! O sonho da bioengenharia, apesar das matérias de extensão cursadas, acabou ficando para uma próxima, porque estou feliz com meu redirecionamento mais para a linha da psicoengenharia.

Abraços a todos!

GILBERTO PEVERARI SIMÕES 176

DEPOIS DA TEMPESTADE

Cresci na Penha, em São Paulo. Estudei em escolas públicas no tempo em que elas começavam sua caminhada para a indigência. Em 1973 apoiei o golpe do Pinochet, pois o Estadão o apoiou. Em 1975 era contra a ditadura. Entrei no ITA e algum tempo depois tornei-me comunista. Formei-me no ITA e algum tempo depois tornei-me socialdemocrata e larguei o comunismo. Sou até hoje, mas sem partido. O PT chafurdou no pântano da corrupção e o PSDB foi para a direita, tem até o Dória! Duas décadas depois de formado descobri ser bipolar, transitando entre o monstro da depressão e o abismo da euforia. Por estar deprimido quase não me formei no ITA (duas dependências), não aceitei uma proposta do Luisão de fazer doutorado no exterior com apoio da Embraer e nem ao menos acabei o mestrado. Por outro lado, a euforia me atrapalhou também, quando ocorreram minhas demissões na Voith e na IBM, dois ótimos empregos.

Ironicamente, minha euforia ajudou-me nos meses finais na EDS: estava muito ativo e realizador, um doente tão útil quando o inocente útil da mente doentia dos militares. Quando soube que eu iria sair, meu chefe na época perguntou-me o que queria fazer

Sartô

JOÃO ALEXANDRE SARTORELLI

e quanto iria ganhar. Oferta tentadora, mas eu tinha conseguido uma vaga na IBM, onde sempre desejei trabalhar.

Na IBM foi bizarro. Estava muito agitado, cheio de ideais; até fiz um mural, recordação do mural do H8. A minha gerência representava os produtos de engenharia da Dassault na América Latina (por exemplo, CATIA, usado na Embraer). Mas a partir de 2003 ela passou a atuar diretamente na América Latina e só manteve a parceria com a IBM nos Estados Unidos e no Canadá. Minha gerência perdeu o sentido. O pessoal de vendas foi demitido e o pessoal técnico foi para outras áreas. Fui convidado para ir para uma área de software . Mas estava eufórico e impaciente, fui mal-educado e perdi a chance. Para piorar a situação, um colega (meio maluco), que ia ser demitido, teve filhas gêmeas e sobrou para mim. Depois da demissão uma prima, que é psiquiatra, soube da situação e indicou-me para um colega, que me acompanha até hoje. A demissão virou licença por motivos de saúde. Depois da licença tive um mês para conseguir uma posição na IBM. Pouco tempo. A gerente da área de software me recebeu com hostilidade. Não consegui

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me explicar. Foi uma pena, mas a IBM foi uma boa experiência e a vida seguiu.

Meu inglês até os trinta anos era muito precário. Eu não conseguia falar ao telefone, apesar de ler sem dificuldade. O inglês na escola pública era muito ruim e aprendi a ler inglês lendo. Estudei dois anos com meu ex-cunhado, que agora é vice-presidente da Air Canadá – um inglês impecável, o dele. Em 1993 aprendi a nadar e em 1994 estudei um mês em um curso Berlitz nos Estados Unidos. Depois desse curso, pude dar palestras e conversar em inglês, além de assistir filmes sem legendas (com exceção aos filmes de rappers ). Mas o mais interessante nessa estada lá foi quando comprei um livro, Como ganhar dinheiro com internet , com tecnologias como Gopher, Veronica, que já não constavam na edição do ano seguinte, tragadas por uma tal de Web.

Tive contato na Voith com internet e e-mail desde 1994. Era uma ligação discada para o Rio e nosso provedor era a IBase, ONG do Betinho, irmão do Henfil. Se não me engano em 1995 meu colega Brujas baixou um navegador. Nunca me esqueço do primeiro sítio visitado por mim, colegas e gerente. Não foi Biblioteca do Congresso Americano, catalog.loc. gov, ou Nasa, www.nasa.gov, ou Asshole, www.trump.com. Foi www.playboy.com!

Durante os tempos de Voith, estudei alemão de 1991 a 1996. Em 1997 tive a oportunidade de ficar duas semanas na Alemanha e incrivelmente consegui me comunicar (ainda bem). O sábado de partida coincidiu com um encontro da Turma 82. Fui na metade do encontro e depois embarquei para a Alemanha.

Também em 1997 criei uma página da Turma na internet: https://turma82.tripod.com/ .

Em 1998 fui chefe do setor de CAD na Voith. Inicialmente trabalhei sozinho – meu chefe se demitiu e os dois colegas pediram demissão. Não foi fácil. Depois chegaram dois colegas terceirizados. E, finalmente, fiquei eufórico e perdi o emprego. Passei o ano de 1999 desempregado. Ainda bem que no primeiro semestre concluí minha pós-graduação em administração num instituto da FEA-USP. Fiz isso porque meu antigo chefe da Voith dizia que devia ter feito uma pós-graduação em administração. Achei uma boa ideia. Li boa parte da biblioteca da FEA e descobri que ciência da Administração é ciência do bom senso. Outro aprendizado num curso foi ter participado de um jogo de empresas. A competência é fundamental, mas o mais importante é a sorte. E saber qual o seu mercado. O mercado da Kodak, por exemplo, não era o de máquinas fotográficas com filme, papel fotográfico e química para revelação. O mercado dela era o de máquinas fotográficas. O seu modelo de negócio sucumbiu com as máquinas digitais. E o irônico é que a Kodak foi pioneira no mercado de câmeras digitais. Mas seu setor de papel fotográfico e produtos químicos para revelação era muito lucrativo e não admitia a câmera digital, que os tornaria obsoletos. Como os tornou. Mais um caso de falta de destruição criativa. Nesse ano de 1999 frequentei um escritório em Osasco, onde um amigo sediava um provedor de internet, com servidor e máquinas. Poderia ter ideias, criar sistemas, testá-los na internet. Mas eu tinha 39 anos e não 23! Perdi a chance de ficar rico ou quebrado.

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Quando estava na Voith, houve uma oferta na área de sistemas na TAM. Não fiquei sabendo, mas percebi que a comunicação é fundamental. Assim, em 2002, criei o grupo de e-mails da Turma. Depois da IBM, quase comecei um mestrado de Informática no Mackenzie.

O professor Omar, que conduzia o programa de mestrado, aceitava meus créditos do mestrado do ITA. Mas não comecei. Tinha uma proposta de projeto do Schalka, um trabalho PJ com o Sauer, que foi meu gerente na Embraer, e uma indicação do Zappa para trabalhar como terceiro na Petrobras. Era carteira assinada, e fui aceito. E o Zappa só soube que eu estava desempregado pelo grupo de e-mails ...

Houve o encontro de 25 anos da Turma, que resultou numa grande quantidade de fotos. Assim, procurei um espaço e, na época, o mais adequado era o Flickr: http://www. flickr.com/photos/turma82 – um espaço pago anualmente, que um ano ou outro eu paguei, mas a maioria das anuidades foi paga por diferentes colegas. Devemos mudar para o Google Drive, que tem espaço suficiente.

Em 2008 criei a página Wiki da Turma: http://www.aeitaonline.com.br/wiki/ index.php?title=Turma_de_1982

Foi uma boa decisão, porque é um local estável (Aeita) e de qualquer forma as páginas (e imagens) podem ser exportadas para outro computador. Ela substituiu a página criada no Tripod em 1997.

Para todo colega que falece, crio uma página com texto e imagem.

Espero que o colega que leia este texto aceite essa singela homenagem no futuro.

Temos os colegas:

http://www.aeitaonline.com.br/wiki/ index.php?title=Carlos_Helbert_de_Lima

http://www.aeitaonline.com.br/ wiki/index.php?title=Christophe_Six

http://www.aeitaonline.com.br/ wiki/index.php?title=Jos%C3%A9_ Lu%C3%ADs_Andrade

http://www.aeitaonline.com. br/wiki/index.php?title=Juliano_ Bittencourt_Joppert_J%C3%BAnior

http://www.aeitaonline.com.br/wiki/ index.php?title=Paulo_C%C3%A9sar_ Steinkirch_Souza

http://www.aeitaonline.com.br/wiki/ index.php?title=Thomas_Renatus_Fendel

Uma página bem visitada é a de caricaturas do Afonso:

http://www.aeitaonline.com.br/wiki/ index.php?title=Caricaturas_do_Afonso

Fiz um ano de teatro em Ipanema, na Casa de Cultura Laura Alvim. Minha professora, Suzanna Herz, preocupava-se com a cena. A ideia básica era saber de onde vínhamos e para onde iríamos. Havia construções rápidas de cena, um método interessante. No curso havia mãe e filha, com quarenta e poucos anos e vinte anos, respectivamente. Houve uma cena de sexo de um colega com a filha, na presença da mãe. Encenaram como se fosse sexo de verdade, exageraram. A professora, constrangida, explicou que no teatro há sugestão, o sexo é representado e não executado. Atuei no teatro Miguel Falabella com uma boa plateia, palco com equipamento adequado e os camarins, onde podia ver as colegas se trocarem (a parte boa do teatro).

O interessante é que quando estamos no palco com luz a plateia é quase invisível;

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 179

só percebemos o colega em cena. Cumpri meu papel com dignidade. Mas evitei que o teatro acolhesse outro Alberto Roberto.

Depois do ITA, além do teatro, fiz um ano de dança ( jazz ), em 1983, e também alguns anos de canto, na década de 1990. Como um pato (espero que nenhum pato se ofenda com isso) danço mal, canto mal e atuo mal, mas podem me convidar para um papel na Broadway. Porém meu terreno é o da literatura, em especial a poesia. Obtive o 1º lugar no concurso

“Prata da Casa” da Petrobras na categoria “Poesia” em 2007, com o poema abaixo:

Um dia deixarei de escrever os teus sonetos

E há tempos sei que o tempo chegaria.

Amei-te tanto entre a paixão

e o desconcerto, Amei-te em abraços e ausências e todavia.

Teus gestos tão suaves ao nascer do dia,

O chá servido no modo mais correto, Tua nudez matinal, tua pele macia. Tão devagar me acerco e nada mais peço.

Nas tuas formas brancas de fúria e encanto Encontro a luz que alimenta o verso

E nele as palavras do mais finito canto.

E como se apagam toda chama e todo afeto

E como em poesia é tudo farsa e desencanto

Só me resta escrever teu último soneto.

Também fiquei em 1º lugar no concurso “Prata da Casa” da Petrobras na categoria “Crônica” em 2012. Colocar o texto da crônica neste meu relato seria pura encheção de linguiça. Já livrei o querido leitor dos meus poemas..

Fora as atividades literárias na Petrobras, em algumas ocasiões fui instrutor do AdolescenTI, em que ensinei blog a adolescentes em situação de risco de comunidades cariocas. No último curso, uma aluna chegou atrasada por causa de um tiroteio na Maré, pediu desculpas e eu respondi que a vida dela era mais importante do que a minha aula. Fora essa ocasião pitoresca, as aulas me deram um retorno muito grande e creio que eles ficaram bons em Wordpress, que é melhor que o Blogger do Google.

Uns bons anos depois de formado, o Mané, da Turma 81, perguntou-me por que não entrei na política. Respondi que não tinha estômago. De qualquer forma, participei de quatro Cipas na Petrobras, representante eleito pelos empregados. Tive a maior votação na última participação e as reuniões eram tão bostejativas como as do CR. Gostei, e quando estiver de novo em um prédio, me candidato.

Publiquei um único livro de poesias: A vereda das horas . Foi em 2021. Diria que a repercussão foi entre aqueles que foram ao lançamento, em São Paulo. Para os curiosos, tenho um blog de poesia: http://alexsartorelli.blogspot.com/ .

O incrível é como o cenário tecnológico muda. Darwin iria adorar ver a vitória dos que melhor se adaptam. Em março de 2009, 80% dos membros da Turma 82 estavam presentes no grupo de e-mails Migraram para o WhatsApp (criado em 2014), e o email quase não é mais utilizado. O grupo de Facebook (criado em 2012) tem poucas atualizações e o Twitter (criado em 2010), o Instragram, o Tik Tok e o Tinder são ignorados. Atualmente a rede

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social mais usada pela Turma, depois do WhatsApp, é o LinkedIn: https:// www.linkedin.com/in/sartorelli/

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Organizava encontro de iteanos no Rio, quando isso era possível, e sou um dos administradores do grupo da ITA-NET no Facebook, além de continuar cuidando da wiki da turma e pensando na transição do Flickr para outro local.

Há palavras que não suporto: unicórnio , disrupção , agregar , mindset , sinergia , share , budget , inovação , patamar , superação . Só servem para jogar o bingo corporativo em reuniões intermináveis.

Estudo filosofia sem método. Sucumbi à dificuldade do texto de Hegel.

Já fiz dois cursos de alguns dias sobre Kant. Atualmente leio A crítica da razão pura , de Kant, numa boa tradução inglesa e no original alemão. Penso em fazer um doutorado na UERJ, que é perto de onde moro. O leitor deve estar intrigado e perguntando “Porra, Sartorelli, e a sua vida profissional?”. Para mim a vida intelectual vale mais que a profissional. Mas é claro que levei o trabalho a sério. Apesar de ser engenheiro aeronáutico, sempre trabalhei com informática. Para ser sincero, sou muito mais ligado em computadores, literatura e arte do que em aviões. Nada contra Santos Dumont.

Na Embraer gostei muito do ambiente, dos colegas bem motivados apesar dos problemas que sempre enfrenta uma firma que produz aviões. Acho que não ganhava tão bem e quando trabalhei lá não tirei férias no exterior. Mas o ano que passei na Itália em 1984 foi inesquecível, com o contato com o país onde nasceram todos os avós de meu pai. Foi interessante trabalhar com italianos, muito profissionais e com um senso de humor impagável.

Tive trabalhos bem interessantes, numa gerência de apoio computacional à engenharia e numa gerência de sistemas, onde trabalhei com softwares de simulação, documentação de software embarcado e finalmente implantei o CAD.

Quando a Embraer estava na véspera de demitir um terço do pessoal em 1990, uma amiga minha me indicou para seu pai, Christian, que era diretor da Voith e de uma turma antiga do ITA. Precisavam de um engenheiro que soubesse CAD, inglês e alemão. Eu sabia CAD e inglês, não alemão. Mas tinha feito ITA e fiz um bom trabalho de implantação de software de CAD/CAE/CAM para duas divisões: turbinas e máquinas de papel.

Em homenagem ao Christian, criei uma página para ele na wikita: http:// www.aeitaonline.com.br/wiki/index. php?title=Christian_Moth_Nielsen .

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 181
Para ser sincero, sou muito mais ligado em computadores, literatura e arte do que em aviões. Nada contra Santos Dumont.

7 Na EDS trabalhei no Centro Tecnológico da General Motors. Vi modelos em tamanho real em argila. Na verdade, só vi o pano que os cobria. Trabalhei com sistemas de CAD/CAM da fábrica de São Caetano e da fábrica de São José dos Campos. Uma vez me ligaram domingo à noite: havia um problema com um software de manufatura e, se não fosse resolvido, a linha de montagem do Corsa iria parar. Fui para São Caetano e não consegui resolver. No dia seguinte, coloquei em linha um técnico de São José dos Campos, o americano responsável pelo software em uma cidade e dois outros em outra cidade. A solução paliativa foi dar privilégios maiores para o operador enquanto o problema não fosse solucionado. Depois foi. Uso esse episódio como exemplo em entrevistas sobre se consigo trabalhar sob pressão. Bem, bastava ter feito no ITA as provas irracionais do Tossio.

Na IBM trabalhei em pré-vendas de soluções de engenharia. Em informática só não trabalhei em vendas. Era um trabalho de fazer apresentações e participar da criação de ambientes de demonstração mirabolantes. Foi muito bom o contato com os americanos e as semanas de início de trabalho nos Estados Unidos. Além, é claro, de duas semanas em Paris para um curso da Dassault, em 2002. Tentava falar em francês e respondiam em inglês. Bem diferente da Paris em 1982. Aliás, fui roubado por um batedor de carteira na estação Argentina do metrô. Para treinar o francês, fiz um BO com um policial que era a cara do inspetor Clouseau.

Na Petrobras inicialmente trabalhei como terceirizado no Cenpes – Centro de Pesquisa. Gostei de trabalhar com reparo de

um software de ancoragem de plataforma FPSO. Foi feito pela PUC. O modelo físico estava ótimo, mas o módulo de banco de dados, sem qualidade. No Cenpes aprendi que a turma da universidade não tem noção das normas de um ambiente corporativo. Outro trabalho foi a troca dos computadores de uma planta-piloto, uma minirrefinaria. Os diversos componentes eram controlados por um computador Digital, obsoleto fazia tempo. Foi trocado por microcomputadores. Como os operadores queriam usar a rede Petrobras, criou-se um problema de segurança. Mas foi solucionado.

Durante os anos iniciais do Cenpes, meus colegas petroleiros (empregados diretos) insistiram para que eu prestasse concurso. Fiz em 2007. Como um iteano médio, passei e iniciei em 2008.

Empregado direto, comecei a trabalhar com o portfólio SAP. O SAP é o principal software da Petrobras, que usa muitos módulos, por exemplo, projeto, compras, logística, recursos humanos, acho que quase todos. E a Petrobras cometeu um grande erro: alterou muito. Cada nova versão do software é um projeto. De qualquer forma, interagi com diversas gerências ligadas aos diversos módulos do SAP, o que me deu uma boa ideia desse software de Chucrutes. Eu cometi um grande erro: não tentei usar meu alemão.

Talvez tenha agido corretamente, porque na Petrobras poucos sabem inglês, e quem soubesse alemão não encontrei.

Depois trabalhei em duas gerências de apoio técnico. Lembro que trabalhei com Gestão do Conhecimento e, por esse motivo, criei comunidades no Conecte, que seriam equivalentes, hoje, à

JOÃO ALEXANDRE SARTORELLI 182

comunidade no Facebook. Para aprender, criei inicialmente duas comunidades: uma de poesia e outra de alemão. Fui bem contestado numa reunião da minha gerência. Argumentei em minha defesa que estavam previstas comunidades de ambiência, as quais melhoram o relacionamento entre empregados com interesses afins, além de eu trabalhar com as comunidades na hora do almoço. Ainda não tinha surgido a diretoria de transformação digital e alguns colegas se aposentaram nos últimos anos. Em janeiro deste ano mudei para a gerência de Engenharia Submarina, gerência interessante para um engenheiro aeronáutico que sempre trabalhou com

informática. É uma área interessante e de importância na Petrobras. Devem ser meus últimos anos na empresa, finalmente na área produtiva. Como sou muito exigente comigo mesmo, acredito que poderia ter tido uma carreira profissional mais proveitosa e criado e lido muito mais. Ou feito uma carreira acadêmica. Ou emigrado para os Estados Unidos. Ou criado uma empresa Web. Mas fiz o que era possível dentro de minhas limitações intelectuais e psíquicas. Não tenho queixas. Se descobrisse o bipolarismo no início da carreira, minha vida profissional e também a pessoal teriam sido bem diferentes, provavelmente melhores. Ou não.

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João Moreira

JOÃO ROBERTO MOREIRA NETO

1960-1978

Nasci no Rio de Janeiro em 1960. Meus pais, Luiz e Isis, se mudaram em seguida para São José dos Campos. Por coincidência, meus pais alugaram uma casa dos pais do nosso Guilherme. Nós brincávamos juntos, e o Gui ainda lembra disso. Meu irmão Alberto nasceu em 1962. Em 1964 a casa na Rua Fernão Dias ficou pronta e nos mudamos para lá. Meu pai tinha dois irmãos, os tios Carlos e Hermes, e sempre me falava da formação do tio Carlos (Turma 59, vulgo Miné) em eletrônica. Meu pai gostava muito de música e tinha um equipamento valvulado na forma de um armário. Ele sempre me pegava com as válvulas na mão. Eu tinha uns 6 anos quando ele me trouxe uma lâmpada com o soquete preso em um fio vermelho e perguntei a ele o que era. “É um circuito”, ele respondeu. A partir desse dia comecei a fazer vários desenhos e me apaixonei pela eletrônica. Em seguida ele comprou o kit do “Engenheiro Eletrônico” da Philips e me ajudou no que pôde para podermos montar as diversas aplicações. Depois conheci o engenheiro de eletrônica da Marinha, Luis Carlos, colega de trabalho do meu tio Hermes, que se hospedou em casa e, à distância,

continuou me apoiando com conhecimento e componentes. Aos 14 anos comecei o colegial na Etep, que foi uma escola sensacional!

Creio que o escopo do curso era mais rico que o da maioria das escolas técnicas do mundo. Na Etep conheci o Rogério, o Paulão e o Carrara (ficamos no 113 mais tarde) e o Mussio, que estava duas ou três turmas à frente. Ainda na Etep fiz estágio no IAE e tive meu primeiro chefe, Paulo César Ceragioli, que hoje tem a RFCOM. Meu pai teve quatro filhos engenheiros eletrônicos formados no ITA: Alberto (Turma 84), Luiz (Turma 08) e Guto (Turma 10), e eu. Luiz e Guto são do segundo casamento.

1978-1983

A fase do ITA foi emocionante. Conheci colegas maravilhosos, aprendi muito e só fui ter uma visão periférica e mais real da vida através deles. E me arrependo de não ter ficado mais no H8, pois sempre dava uma fugida para a casa dos meus pais. Estudei com os colegas de quarto Rogério e Carrara e sempre fiquei impressionado com a inteligência dos dois. Eles são excepcionais! Sofri muito nos dois primeiros anos, mas os três últimos foram prazerosos. Eu me identifiquei muito com as aulas do professor Darcy Domingues Novo. Tomei conhecimento do voo a vela através do Luís

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Carlos no 2º ano, comecei a frequentar o CVV-CTA e pratico até hoje. No final do 2º ano procurei o professor Forneris, que tinha um laboratório de espectroscopia a laser no Departamento de Física e oferecia bolsa de iniciação científica do CNPq. Ele necessitava de vários equipamentos eletrônicos para melhorar seu laboratório e acabei desenvolvendo uma parte deles. Outra parte foi desenvolvida pelo meu irmão Alberto. No final do 4º ano o professor Forneris me sugeriu concorrer a uma bolsa de doutorado, que acabou sendo aprovada em 1983 para o Instituto de Alta Frequência do centro aeroespacial alemão, DLR, próximo a Munique. Ivanira e eu nos casamos em 12 de março de 1983 e estamos unidos até hoje. Partimos em outubro de 1983 para a Alemanha. Devo mencionar que Rogério e eu criamos uma start-up no começo do 4º ano e começamos a desenvolver, por conta própria, um sistema de banco de dados de consulta de RG a ser vendido ao SPC, que ficou pronto no começo de 1983, mas não conseguimos emplacar. Logo em seguida, Alfred Volkmer (Turma 61), diretor técnico da GTE, nos procurou para desenvolvermos uma central telefônica empresarial totalmente digital. A GTE era famosa na época pelas centrais mecânicas. Quando parti para a Alemanha,

tínhamos realizado a primeira apresentação do protótipo. Rogério concluiu o desenvolvimento e produziu as gigas de teste para a linha de produção da GTE.

1983-2001

Quando cheguei ao DLR e visitei meu orientador na Universidade Técnica de Munique – TUM, percebi que havia várias pendências a serem resolvidas antes de poder me inscrever como doutorando: não tinha a proficiência mínima em alemão nem os requisitos mínimos acadêmicos. A proficiência era mandatória, pois os excelentes livros da TUM eram (muito bem) escritos por professores alemães. Inglês só se falava no DLR, com os estrangeiros de passagem. Ainda em 1983 defini o tema da tese na área de Radares de Abertura Sintética – SAR, no DLR e na TUM. Estudei alemão dia e noite e consegui passar no exame em agosto de 1984. Aí tive que fazer prova das matérias de “medidas” e “eletromagnetismo” do Fundamental, de todas as 18 matérias do Profissional e ainda fazer o TG. Tirei L nas duas matérias do Fundamental e me perguntaram sobre o nível universitário no Brasil. Eu disse que essas matérias já eram ensinadas no colegial, inclusive as leis de Maxwell. E era pura

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A fase do ITA foi emocionante. Conheci colegas maravilhosos, aprendi muito e só fui ter uma visão periférica e mais real da vida através deles.

verdade, pois tive essas matérias na Etep! Fiz as 18 provas do Profissional em um semestre e ainda consegui um MB. Comparando o ensino do ITA com o da TUM, digo que o do ITA era melhor, pois continha muito mais aulas de laboratório. O ensino da TUM é muito parecido com o das universidades públicas do Brasil. Havia salas com 1.200 alunos no Fundamental. No Profissional as salas eram de 100 a 200 alunos. Havia apenas seis ou sete laboratórios no curso inteiro. Concluí a TUM em 1985 e dei foco integral ao doutorado. Pertenci a um grupo de 10 engenheiros que iniciou o projeto do radar em nível de componente, executou a construção, a integração em um Dornier Do-28 e mais tarde em um Do-228, os voos testes e o processamento e visualização das imagens – ou seja, a cadeia inteira do radar.

SAR gera imagens semelhantes à de uma câmera fotogramétrica, mas apresentando outros atributos além de ser independente da luz solar e das condições atmosféricas. Ele pode ser utilizado para fins de defesa como também de cartografia. Especializei-me no ramo da aquisição e produção cartográfica com SAR, colaborando com a Universidade de Zürich-Irchel, em Zurique. Acabando a bolsa do CNPq em 1987, o DLR me contratou como pesquisador. Concluí o doutorado em 1992. Desde 1985 mantive contato com pesquisadores do Inpe e fizemos vários desenvolvimentos conjuntos e publicações. Desde 1989 trabalhei com o grupo de radares da Nasa/JPL e o ápice foi a participação nas missões SRL-1 e SRL-2 do Space Shuttle como líder do grupo de interferometria SAR, quando fornecemos os primeiros mapas tridimensionais, em 1994. Essas missões foram precursoras da missão SRTM,

que gerou o primeiro modelo de elevação global. O nicho mundial para a produção cartográfica com SAR era muito grande e decidi, junto com um amigo e colega de trabalho do DLR, fundar a Aero-Sensing Radarsysteme GmbH em março de 1995. O DLR deu todo o apoio, fornecendo um consultor sênior, área de escritório no próprio DLR para alugar e nos presenteou com 50 horas de voo e a propriedade de todo o software desenvolvido por mim. Foi uma mão na roda! Meu sócio era advogado e cuidava da gestão e administração da empresa. Eu podia me concentrar apenas na parte técnica, o que faço até o dia de hoje. Em 1 de fevereiro de 1996 iniciamos a operação com um time de oito engenheiros e conseguimos desenvolver nosso primeiro SAR, o AeS-1, em menos de seis meses. Era o primeiro SAR aerotransportado para cartografia nas escalas de 1:5.000 até 1:50.000 no mundo, e operava na banda X próximo a 10 GHz. Em dezembro de 1996 fui procurado por um Major da Diretoria do Serviço Geográfico – DSG, do Exército Brasileiro em uma conferência de sensoriamento remoto em Buenos Aires. Em dois meses ele já estava na Alemanha conosco, onde permaneceu por três meses. A partir daí a DSG passou a enviar engenheiros para períodos de 18 meses. Por influência da DSG incluímos a banda P em UHF ao AeS-1 para levantamento da topografia do solo da floresta. Conheci de perto os engenheiros do IME, que têm uma formação espetacular. Em 1997 integramos o AeS-1 em um Aero-Commander pressurizado e executamos um mapeamento em várias ilhas da Indonésia. Em 1998 integramos em um Turbo-Commander e executamos o

JOÃO ROBERTO MOREIRA NETO 186

mapeamento da área da Transposição do Rio São Francisco e, em seguida, 260.000 km 2 na Venezuela. Em 1999 ganhamos uma licitação mundial da Defesa Civil da Itália de um SAR com 0,5 m de resolução a ser integrado em seu Lear Jet. Éramos o único fornecedor da Europa e ganhamos por técnica e preço das empresas americanas, pois não tinham autorização ITAR para fornecer a resolução de 0,5 m. Alenia foi a empresa contratada para receber nosso radar. Aprendemos muito com eles na parte de documentação e processo de aceitação. Em 2000 fizemos um voo de demonstração na Floresta Nacional de Tapajós à DSG e ao Inpe, que aprovaram os mapas topográficos na escala de 1:50.000 para o levantamento do Vazio Cartográfico da Amazônia. Em janeiro de 2001 a nossa única concorrente canadense, Intermap, propôs a compra da empresa e na mesma semana o diretor da DSG, General Armindo, me propôs voltar ao Brasil e abrir uma empresa direcionada ao mapeamento da Amazônia. Nesse momento, já tínhamos três filhos: Fabio, nascido em 1988, Laila, em 1989 e Shaila em 1995. Foi uma decisão difícil, mas optamos então por voltar ao Brasil. Foi para nós a última chance! Rogério, a única pessoa que eu conhecia e que teve a visão desse negócio no Brasil, me apoiou a retornar e a criar a divisão de radares na OrbiSAT.

2001 foi um ano intenso pela mudança e pela viabilização do negócio no Brasil. Aqui tivemos o apoio do BNDES, que aprovou o empréstimo de R$ 4.5 milhões com apenas a segurança pessoal do Rogério, do Benedito e minha. Nessa transição, quatro funcionários da Aero-Sensing vieram comigo. A participação deles foi fundamental para o desenvolvimento do

novo radar na OrbiSAT. Alberto chegou no DLR com Mestrado em 1986 e teve uma fase de adaptação mais tranquila. Ele acabou permanecendo no DLR e é diretor do Instituto de Alta Frequência, desde 2001.

2001-HOJE

Chegamos ao Brasil em novembro de 2001 e já começamos a trabalhar no novo projeto e na contratação de mais oito engenheiros na nova sede em Campinas. Tivemos apoio também da equipe de mecânica e da infraestrutura da OrbiSAT de São José dos Campos. Havia muita mão de obra de excelente qualidade por causa da crise do .com. Desenvolvemos o OrbiSAR-1, um radar de nova geração com as lições aprendidas do passado e conseguimos fazer o primeiro voo em um Turbo-Commander em 7 de setembro de 2002. A pressão no desenvolvimento apareceu, pois ganhamos uma licitação do Banco Mundial em abril de 2002, tendo a EADS como prime . Tratava-se do mapeamento da segunda parcela de 260.000 km 2 da Venezuela. O sistema voou para Caracas antes do Natal. Esse projeto arrancou a divisão de radares na Orbisat: o US$ foi para 4, a moeda da Venezuela enfraqueceu fortemente e a equipe desenvolvedora do radar em 2002 foi toda para a Venezuela e passou a ser a executora do projeto em 2003. Produzimos 518 mapas topográficos na escala de 1:50.000 em 2003 e concluímos o projeto pontualmente. De 2004 a 2008 fizemos diversos mapeamentos às mineradoras, onde a maior parte das áreas era na região da Amazônia. Em 2005 o Centro Tecnológico do Exército – CTEx nos procurou para fazer o desenvolvimento do radar de busca e vigilância antiaérea

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de baixa altura Saber-M60. O projeto iniciou-se em março de 2006 e tivemos reforço local de engenharia dos cinco melhores alunos recém-formados do IME e de um Major especializado em requisitos e do reforço à distância de um grupo de engenheiros seniores do CTEx liderados por um excelente gerente de projetos. A equipe se uniu e conseguimos entregar os protótipos experimental e operacional em funcionamento já na LAAD de 2007. Em 2008 recebemos o contrato da DSG para o mapeamento de 1,1 milhão de quilômetros quadrados na área do Vazio Cartográfico da Amazônia, e construímos o segundo radar: o OrbiSAR-2. Em paralelo ao contrato da DSG seguiram os contratos de desenvolvimento do radar secundário do Saber-M60, do radar secundário de longo alcance Saber-S200, do radar de vigilância terrestre Sentir-M20 e do radar de busca e vigilância antiaérea de média altura Saber-M200. Em 2011 a Embraer comprou majoritariamente a divisão de radares, havendo a cisão da OrbiSAT, e passou a se chamar Bradar S.A.

Trabalhei e aprendi muito com o Maurício Aveiro e os CEOs seguintes da Embraer. Em 2012 a Embraer recebeu o contrato do Sisfron, onde a Bradar foi fornecedora do Sentir-M20 e do Sentinela COMINT, desenvolvido em conjunto com a Saab. Em 2018 a Bradar foi incorporada à Embraer e reestruturada. Os radares OrbiSAR-1 e -2 são operados pela Visiona, que continua a execução dos contratos da DSG.

Hoje a OrbiSAT/Bradar/Embraer já levantou mais de 1,7 milhão de quilômetros quadrados no Brasil e um total de mais de 400 mil quilômetros quadrados no exterior: Venezuela, Panamá, Colômbia, Equador, Suíça e Itália. Forneceu um total de mais de 150 sistemas terrestres às três Forças Armadas Brasileiras e ao exterior. Trabalhei com engenheiros formados em muitas partes do mundo. Eu diria que o nível dos engenheiros formados no ITA, IME e nas universidades públicas do Brasil é o mesmo dos das universidades dos EUA, Canadá e Europa. Todos utilizam água para cozinhar!

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A FAMÍLIA

Entrar no ITA foi um marco muito importante em minha vida, resultado não apenas de um esforço pessoal, mas também, daqueles que nos antecederam, que batalharam para deixar um legado através da educação dos filhos. Este relato é uma forma de homenagear aquelas pessoas que foram fundamentais na minha formação.

Meus avós paternos chegaram ao Brasil em 1919, sem filhos, e se instalaram na área rural da cidade de Registro. Lá tiveram seis filhos. Meu pai, foi o segundo, mas o mais velho dos dois filhos homens. Todos cursaram o primário (4 anos), exceto minha tia caçula, que teve um período educacional mais longo, e teve um papel importante de incentivo na minha vida escolar.

Em 1951, a família mudou-se para São Paulo, na região do Ipiranga, onde meu avô adquiriu uma casa com uma mercearia ao lado. A administração do comércio ficou a cargo dos filhos (Irmãos Tamaoki). À medida que iam se casando, a nova família se mudava para cidades vizinhas de São Paulo.

Meu pai, seguindo a tradição de filho mais velho, herdou a casa e a responsabilidade de cuidar de minha avó, então viúva.

A mercearia ainda existe e é hoje tocada por meus irmãos.

Meus avós maternos chegaram ao Brasil em 1920, já com duas filhas, e se instalaram

JONAS NOBORU TAMAOKI

também na área rural de Registro. Lá tiveram mais quatro filhos, mas, com o falecimento precoce de minha avó, meu tio caçula foi adotado por um casal amigo da família.

Devido a um problema de saúde, meu avô era impossibilitado de trabalhar na lavoura, que era então tocada por meus tios e tias, enquanto meu avô dava aulas de língua japonesa para a comunidade da colônia.

Embora tenham cursado apenas o primário, minha mãe e meus tios acabaram adquirindo fluência nos dois idiomas, talvez mais no japonês, língua usada para escrever seus diários, e os haikus ou haicais, poemas japoneses de 17 sílabas.

Com exceção de minha mãe e de meu tio caçula, que se mudaram para São Paulo, os demais continuaram em Registro, divididos entre a área rural e a urbana.

Na geração seguinte, meus primos começaram a sair do campo para estudar e trabalhar em outras cidades e estados.

Meus pais tiveram seis filhos – eu sou o terceiro de uma sequência homem–mulher bem alternada. A convivência com minha avó fez com que aprendêssemos desde cedo a falar em japonês. Mas como nosso contato com a língua portuguesa era muito

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Jonas

mais frequente do que foi o de meus pais, o “japonês” que falávamos era uma mistura das duas línguas e, certamente, incompreensível tanto para um japonês nativo, quanto para um brasileiro não nipônico.

O mais importante dessa convivência, entretanto, foi conhecer um pouco da história de minha avó e um pouco do que foi a história da imigração japonesa no Brasil.

Quando o retorno à terra natal se tornou um sonho inviável, eles investiram numa mudança de longo prazo, primeiro trocando o campo pela cidade e depois investindo na educação dos filhos e netos.

EDUCAÇÃO

Meu interesse por dispositivos eletrônicos me fez escolher, bem cedo, minha futura profissão – engenheiro eletrônico – e, ao final do antigo ginásio, hoje 9º ano, prestei o vestibulinho para o curso de Técnico em Eletrônica, na ETI (Escola Técnica e Industrial) Professor Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo. No 3º ano, graças a uma bolsa de noventa por cento que consegui, acabei me matriculando no curso Ceca Vestibulares, que ficava no centro de São Paulo. Parece que o Sakumoto também fez esse curso no mesmo ano e no mesmo período, mas não chegamos a nos conhecer na ocasião; eram muitos alunos na sala.

Minha meta era passar no curso de Engenharia Eletrônica de alguma instituição

pública, o que me deixava as opções Poli ou ITA. Como meu foco naquele ano era concluir o 2º grau, e da forma um tanto relapsa com que levei o cursinho, o resultado final era previsível: um fiasco nos dois exames que prestei.

No ano seguinte, optei por fazer mais um ano de cursinho (no Objetivo), em vez de fazer o 4º ano (estágio) para obtenção do diploma de técnico. O fracasso do ano anterior me fez enxergar que o esforço para passar numa das escolas tinha que ser bem maior. No final, após um sentimento de frustração ao não encontrar meu nome na primeira chamada de nenhuma das duas escolas, os sentimentos de alegria e alívio imenso vieram ao vê-lo no jornal, na segunda chamada do ITA.

No exame médico, uma das primeiras pessoas que conheci foi o Paulo Volpi, que também havia estudado na ETI Lauro Gomes, no mesmo período e mesmo curso, só que em outra turma (pelo menos!).

No curto período que passei no ITA (um ano e meio), fiquei no apartamento 120, e dividia o quarto com o Cícero, e o apartamento com Abe, Ricardo Jarsun, Mayoral e Auri (depois Mussio).

Conheci pessoas inteligentíssimas e maravilhosas, que pareciam aprender tudo por osmose, tal a facilidade com que colecionavam os Ls, e maravilhosas pela amizade que atravessa décadas após aquele ano e meio de convívio.

JONAS NOBORU TAMAOKI 190
Como um mocado convicto, não participei das grandes noitadas.

Como um mocado convicto, não participei das grandes noitadas. O fato mais memorável, talvez, tenha sido a viagem de um mês pelo Norte e Nordeste, na companhia de Abe e Cícero, visitando o Mainha em Fortaleza, a casa do Auri em Massapê, o Reis de Souza em Recife e o Vinagre em Belém. Lembro que no retorno tivemos a companhia do Schalka, mas não me lembro a partir de que ponto nos juntamos.

No 3º semestre, com a reprovação no CPOR-Aer, tive, automaticamente, a matrícula trancada no ITA. No ano seguinte, aprovado no curso de Ciência da Computação da Unicamp, acabei me desligando do ITA, mudando também minha futura profissão.

Em Campinas, entrei numa república já formada por não iteanos, mas, com a rotatividade dos integrantes, no 4º ano dividia a república com Riba, Tadeu (Turma 83) e Chamon, que se não me engano havia entrado no vaga deixada por Svoll.

VIDA PROFISSIONAL

Concluído o curso na Unicamp, em 1984 comecei a trabalhar no CPqD Telebras, onde permaneci por sete anos.

Em dezembro de 1990 desliguei-me da Telebras para trabalhar um período no Japão e, ao mesmo tempo, realizar o sonho de conhecer aquele país.

Naquela época, as empresas japonesas estavam migrando programas que rodavam em grandes computadores como IBM, FACON e outros, para rodarem em PCs –processo conhecido como downsizing . Como a demanda por mão de obra (analistas e programadores) era grande, havia empresas especializadas na prestação desse tipo de serviço. Uma delas começou a recrutar

descendentes de japoneses no Brasil, para prestarem serviço no Japão. Como a proposta casava com meus objetivos, candidatei-me e fui contratado pela empresa, viajando para o Japão em janeiro de 1991.

Após dois meses trabalhando nessas conversões, participei de uma entrevista em que o serviço requisitado era um pouco diferente. A NEC havia acabado de vencer uma licitação do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) para fornecimento de um sistema de supercomputação para execução de modelos numéricos de previsão de tempo, e precisava de um profissional, preferencialmente brasileiro, para ser treinado e prestar suporte local ao cliente, no Brasil. O lado cômico da situação era o sentimento: “Poxa! Acabei de chegar ao Japão e já querem me enviar de volta!” Mas…

Embora a NEC tivesse vencido a licitação, o governo brasileiro tinha dificuldade em aprovar o empréstimo internacional para concluir a compra, devido à moratória do governo Sarney. A aprovação veio apenas com a realização do evento ECO RIO92. Resolvido o imbróglio, em junho de 1994, três anos e meio após minha chegada ao Japão, eu voltava ao Brasil acompanhando o Supercomputador NEC SX-3, o primeiro Tupã do CPTEC, centro que foi inaugurado alguns meses depois.

A segunda geração do Tupã, em 2002, também foi fornecimento NEC: o Supercomputador NEC SX-6. Na ocasião, os mesmos processadores equipavam o Earth Simulator, o supercomputador mais rápido do mundo naquele ano. O sistema SX-6 marcou também o auge daquela arquitetura inaugurada pela NEC em 1983.

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Assim, no processo de aquisição da terceira geração do Tupã, entre 2009 e 2010, a NEC perdeu o contrato para a Cray Supercomputers.

Em 2011, encerrado o último contrato de manutenção da NEC com o INPE/CPTEC, e sem perspectivas de novos negócios na área dentro da empresa, acabei me desligando da NEC e fui contratado pela Cray.

Na Cray, dependendo da existência ou não de contrato com o INPE/CPTEC, comecei a trabalhar por períodos presencialmente no CPTEC ou em home office , atendendo a outros projetos da Cray, ligados a processos licitatórios dentro dos Estados Unidos ou do Canadá.

Em 2020, com a aquisição da Cray pela HPE (Hewllet Packard Enterprise), fui dispensado da Cray Computadores

do Brasil e contratado em seguida (em janeiro de 2020) pela HPE do Brasil.

No entanto, com a chegada da pandemia, sem contrato com o INPE/CPTEC, e com queda na demanda por novos sistemas de alto desempenho nos Estados Unidos, fui dispensado pela HPE em junho de 2020. Desde então, tenho trabalhado com prestação de serviço em HPC, ora para algum projeto do CPTEC, ora para a NEC, para divulgação do novo supercomputador da empresa, e nas horas vagas ou períodos sem contrato venho me preparando para a atividade que pretendo exercer depois de aposentado: a marcenaria para produção de pequenas peças, não necessariamente móveis. Mas, por enquanto, estou na fase de conhecer e aprender o uso de ferramentas.

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Matias

JOSÉ BORGES MATIAS

PASSEIO DE MAVERICK POR

UMA VIDA BandITA

Nascido simples, pé na terra, na Zona

Leste de São Paulo, de pais portugueses pouco alfabetizados mas que praticavam perfeitamente os valores do aprendizado, do trabalho, da religião, da família e dos amigos. Estudos foram feitos em escolas públicas, com professores exemplares e com amigos inseparáveis, que nas horas vagas jogavam bola na rua ou no Centro Desportivo.

Com pai leiteiro, não faltou na adolescência o ingrediente de trabalho, por vezes entregando leite durante toda a noite ou então fazendo de dia a cobrança das faturas mensais, de porta em porta. Muito bom para sentir o valor do trabalho e o zelo pelo dinheiro conquistado. E não é que a sorte ajuda quem madruga? Faltou leite na praça e a profissão valorizou por alguns poucos anos e deu até para a família me ajudar a comprar um Maverick! Como todo bom moleque, eu não trocava o brinquedo mas mudava o tamanho, e foi assim que passei do autorama de casa para o carro nas ruas. Na verdade, era para ser mesmo um Corcel, mais simples, lá da concessionária Souza Ramos onde meu pai tinha boas relações, mas um Maverick literalmente caiu do caminhão-cegonha durante o transporte

e a concessionária o recuperou e ofereceu ao mesmo preço... e eu nem reclamei!

Ir para o ITA foi uma decisão pouco antecipada. Ouvi falar da Poli e do ITA no meio do colegial. Era uma época com poucos recursos de orientação profissional e mais senso de destino, mas como eu gostava do estudo, do trabalho e da liberdade das ruas (não necessariamente nessa ordem...) esse desafio me chamou.

Ao comentar com meu pai sobre a entrada no ITA, ele me elogiou e me fez uma reflexão: “Você nasceu em 8 de dezembro e eu te registrei em 8 de janeiro para você ter mais um ano com chance de ficar livre do serviço militar, que tanto me sacrificou nas guerras de colônia em Portugal, e agora você me diz que prefere entrar em uma escola militar... Afinal quem é o português aqui?” Bem, tá certo, mas não dá exatamente para comparar o CPOR com guerras de colônia... e lá fui eu conhecer a Turma 82!

A Turma 82 e os colegas dos fundões do 101 sempre foram o máximo: cronometravam minhas corridas da cabine telefônica, tomavam o vinho que eu fazia no quarto antes de terminar a fermentação, lotavam o Maverick nas idas e vindas ao refeitório,

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bebiam socialmente (significando “entre sócios”) comigo no Jumbo, tomavam vinho Sangue de Boi com pastel de queijo na borda da piscina – dizem que isso resultou até em vômito no laboratório de hidráulica, mas não teve nada a ver. Assim como esses valorosos amigos, também a Instituição, com sua Disciplina Consciente, seu desafio e seu rigor foram um diferencial para a vida toda.

Fiz mestrado científico em Finanças e Marketing na FEA-USP e outro em Direção de Investimentos em Paris. Também iniciei, mas não concluí, um doutorado e um curso de Direito. Todos esses aprendizados sempre foram essenciais nas minhas atividades e fizeram parte de meus ativos nas negociações de carreira.

Estágios feitos no IAE, Engesa e Rhodia, hoje pertencente ao Grupo Solvay, onde acabei ficando por 36 anos, sendo 11 expatriado na Europa. Carreira em três etapas: 10 anos industrial (produção e projetos), 10 anos corporativos (Controladoria, Compras e Supply-Chain) e o restante em diferentes negócios da empresa, como plásticos, químicos, têxteis, energia, até assumir presidência da região em 2014. É claro que, com tantos anos na Europa, acabei por ter residência secundária

por lá, em Funchal, onde me divirto algumas vezes ao longo do ano. Uma aventura profissional interessante foi em 1994: empreender a Recipet, recicladora de garrafas PET para converter em fios de poliéster, garrafas de detergentes e resinas para banheiras, cascos de barcos. Naquela época era totalmente precursor e era preciso desenvolver cooperativas e trazer garrafas prensadas de todo o Brasil e da Argentina para processar e vender... com 20% de desconto sobre os produtos virgens pois “reciclado era pior”. Hoje em dia, os reciclados são vendidos 20% mais caro e “reciclado é melhor”.

Também a posição de cuidar de Compras de 8 Bi de euros/ano e Supply-Chain em 30 países foi marcante, tanto pela responsabilidade econômica como pela riqueza cultural. Falando em cultura, tem sido sempre ótimo trabalhar com os europeus, que adoram conceituar (mas não completam as complexas planilhas que fazem), os americanos, que são pragmáticos (por vezes passando por fora de alguns conceitos), os asiáticos super-realizadores e os latinos com muitas iniciativas e poucas acabativas. E no fim, ao se juntar os ingredientes, tudo se realiza.

JOSÉ BORGES MATIAS 194
Eu conversava com meus líderes e explicava que eu era “leiteiro de nascimento” e que só escritório e viagens internacionais me davam alguma indisposição.

Também sempre que possível busquei ter uma empresa em paralelo à minha função principal no Grupo. Eu conversava com meus líderes e explicava que eu era “leiteiro de nascimento” e que só escritório e viagens internacionais me davam alguma indisposição. E todos sempre me apoiaram, pois é óbvio que a experiência que se pode trazer de uma atividade paralela externa é maior do que outros riscos, em especial quando se desenvolve confiança na entrega de resultados. E foi assim que tive com amigos da Turma 82 e outros colegas a Casa do Telefone, a Normatec Engenharia, uma empresa de alimentação, outra de telecomunicação e consultorias em produtividade e formação de líderes.

Após 36 anos, distanciei-me dos bons amigos da Solvay/Rhodia em 2018 para abrir, com dois sócios, a Mastersenso, minha atual consultoria. Ela opera em especial na Estratégia e M&A, prestando serviços

à indústria nacional, à infraestrutura e ao agronegócio. Nestes três anos, a empresa já soma quase duas dezenas de bons projetos e muita diversão com os sócios e clientes.

Casei-me mais de uma vez, até aprender, e até que fiz algumas coisas certas, pois tenho duas filhas ótimas e formadas: a mais velha já tem a Alice e a mais nova ainda não está grávida... eu acho.

Falando do hobby de carros, continuo gostando deles, em especial da Jaguar, pela sua bela história. Compro o carro velho, renovo por alguns anos e saio para passear... e é claro que ele sempre quebra, mas o número do telefone do guincho está lá para isso mesmo. Lembro que também cursei pilotagem de aviões, mas essa coisa de aeronáutica é só para loucos mesmo.

Enfim, fora a parte ruim, uma vida cheia diversão e alegrias e... a propósito... alguém aí tem um Maverick para vender?

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 195

Cledi

JOSÉ CLEDI LIMA FIGUEIREDO

Iniciei a viagem neste mundo em 13 de julho de 1952, lá por Uruguaiana, uma pequena cidade com vilarejos distribuídos ao longo de vasto município, cujas atividades principais ainda são a agricultura intensiva de arroz e a criação de rebanhos bovinos e ovinos em larga escala. Situada no oeste do Rio Grande do Sul, divisa com a Argentina, e a 600 quilômetros de Porto Alegre.

Sou o primogênito de uma família numerosa de origem simples. Meu pai, por ser policial, era constantemente deslocado pelos diferentes vilarejos da cidade. Em função das idas e vindas da família, acabei indo morar com a avó do lado paterno, que me alfabetizou com o apoio de sua filha experiente na área, bem como me ensinou as operações matemáticas, incluindo a famosa tabuada de multiplicação. Além dos primeiros passos do ensino, minha avó também foi fundamental na educação, transformando-se na minha grande inspiração ao longo da vida.

Na minha geração, o ensino se dividia em primário (cinco anos), ginasial (quatro anos) e científico (três anos). Estudei o primário em escola pública e, após aprovação no exame de admissão, cursei o ginasial em

outro estabelecimento também público, onde continuei meus estudos na fase do científico. No 2º ano, um amigo de infância me relatou as condições da escola que estava cursando, com bons professores, uma grade escolar bem diversificada, além de moradia, alimentação e até um salário mensal. Tudo isso me encheu os olhos e acabei me inscrevendo no concurso, sendo então aprovado para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar – Epcar em 1970. Apesar de não ter aproveitado os dois anos já cursados do científico, para mim foi um grande ganho a nova situação.

A Epcar era exatamente como meu colega havia descrito. Por ser uma escola de formação militar, ensinava e exigia elevada disciplina e respeito à hierarquia, inclusive entre alunos de diferentes turmas. O ponto alto era a socialização, o espírito de grupo, a união e as amizades fraternas.

Não é necessário descrever o que isso significa e os resultados dessa união que se estabelece, pois é muito semelhante ao que acontece entre os iteanos no H8 e seus Aps.

Ao concluir o ensino na Epcar, fui julgado apto para a próxima etapa, um curso intermediário de um ano, dedicado à atividade aérea. Ao final, os aprovados poderiam optar pela matrícula na AFA ou ser convocados como oficial aviador pelo máximo de quatro anos e, a partir daí, seguir

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na profissão de piloto de avião no mercado civil.

Optei pela AFA, onde os dois primeiros anos eram dedicados aos estudos acadêmicos, com uma grade escolar semelhante ao fundamental de engenharia. À época, a formação do oficial da FAB estava em fase de transição e o currículo acadêmico das diferentes turmas se modificava com muita frequência.

No último ano, novamente foi dada ênfase à atividade aérea, empregando-se aeronaves mais avançadas. Aqueles que não lograram concluir essa fase foram redirecionados para outros cursos no CTA. Quatro se candidataram à engenharia e, após um curso de nivelamento, foram matriculados no primeiro ano profissional de engenharia de infraestrutura, seguindo assim a mesma metodologia utilizada à época pelo IME, em relação aos Oficiais das Forças Armadas. Os demais foram matriculados no Curso Superior de Tecnólogos em Computação, com duração de dois anos, que havia à época no ITA.

Ao concluir o curso na AFA, segui como Aspirante-a-Oficial Aviador para o estágio de especialização de duração de um ano em Natal – RN. Nesse período a tensão do dia a dia era amena, o que permitia a liberdade para curtir a vida. Em setembro de 1977 fui promovido a segundo-tenente.

Nessa oportunidade, envolvi-me em um acidente automobilístico extremamente grave, que me levou a uma internação de três meses no Hospital Central da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Consegui me recuperar das lesões sofridas, mas uma sequela impactou a visão de um olho, o que me fez dar adeus à carreira de aviador, porém fui considerado apto a seguir na função de Oficial da Aeronáutica.

Em seguida, entrei com requerimento solicitando inscrição no ITA, com base na situação dos meus colegas que se encontravam cursando o CTA. Obviamente que meu interesse foi pela engenharia, e por quê? Ora, “muitas coisas não precisam fazer sentido, basta valerem a pena”.

Estávamos já em 10 de fevereiro de 1978, quando o Departamento de Pessoal da Aeronáutica deferiu meu requerimento, em face da excepcionalidade do caso, devendo realizar o curso completo.

Dessa forma, de repente me vi dentro da Turma 82, em meio àqueles jovens, visitando os diferentes Institutos do CTA, como primeira atividade. Em um desses translados, sentou-se ao meu lado um adolescente, o que me chamou a atenção pois estavam ali o mais velho e o mais jovem da nova turma.

O primeiro semestre do 1º ano foi desafiador, pois não estava com resistência

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 197
Obviamente que meu interesse foi pela engenharia, e por quê? Ora, “muitas coisas não precisam fazer sentido, basta valerem a pena”.

suficiente para enfrentar a intensa rotina de aulas e rever as matérias ministradas para as várias provas, frequentemente realizadas. Casei-me justamente nesse período. No segundo semestre já me sentia mais integrado, conseguindo acompanhar a pesada jornada com mais energia.

O 2º ano iniciou com uma boa nova: nascia, em fevereiro de 1979, meu filho Rodrigo. Foi um período com várias atividades, porém foi possível conciliar as diferentes tarefas, apesar de exigir muito esforço, pois a grade escolar era bastante carregada, em especial no segundo semestre. Nesse período fui promovido a primeiro-tenente.

Fui matriculado no curso de engenharia de infraestrutura aeronáutica. Entretanto, ao longo do fundamental procurei me inteirar sobre as demais opções e nesse processo acabei me identificando com a engenharia de aeronáutica. Consegui a mudança, indo cursar então essa especialidade.

O 1º ano profissional era estimulante, pois eu começava a ter acesso às teorias relacionadas àquilo que um dia havia empregado na prática: o avião. Ao final desse período letivo, em novembro de 1980, nasceu minha filha Amanda.

O 2º ano profissional exigiu muito esforço, podendo ser destacado o segundo semestre como o mais intenso do profissional, devido à diversidade de matérias da grade escolar.

Sob minha ótica, o 3º foi o ano letivo menos estressante do curso profissional. Além disso, nessa fase final eu não tinha aquela expectativa do desafio de novos e desconhecidos horizontes, pois já pertencia aos quadros da Aeronáutica,

estando ali buscando uma especialização. Nesse período fui promovido a capitão. Ao concluir a graduação continuei no CTA, sendo classificado no IPD, alocado no setor de processamento de dados de ensaios em voo. Nesse período tive a oportunidade de coordenar um grupo com boa experiência em TI, onde eram empregados produtos tecnologicamente bastante avançados para a época, o que exigia da minha parte a realização de diferentes cursos relacionados a esses sistemas dedicados ao processamento de dados de ensaio em voo.

Em 1984 fui integrar a Representação do Ministério da Aeronáutica do Brasil na Itália, para o programa conjunto AM-X, pelo período de dois anos. Participei da fiscalização técnica das entregas intermediárias do projeto, além de acompanhar intensamente a equipe de ensaios em voo, com foco nas metodologias, processamentos e apresentação dos dados empregados pelas empresas, visando a transferência de conhecimento para o IPD. Na oportunidade encontrei vários colegas da Turma 82 trabalhando na Itália no Programa AM-X, pela Embraer.

Ao retornar para o CTA, ao final de 1986, fui promovido a major, sendo indicado para chefiar a Subdivisão de Métodos, setor responsável pela aquisição, processamento e apresentação de dados de ensaios em voo do IPD, permanecendo nessa atividade até junho de 1990, quando assumi a chefia da Divisão de Materiais-PMR do IPD.

A então PMR era uma unidade pouco conhecida, por não ser vista como atividade-fim do CTA, como a eletrônica, a aeronáutica ou a aeroespacial. Porém era de suma importância, por pesquisar e ter

JOSÉ CLEDI LIMA FIGUEIREDO 198

conhecimento na área de engenharia de material e possuir laboratórios bem-equipados, que permitiam precisas análises e laudos para os Parques de Manutenção da Aeronáutica e Cenipa. Havia excelente interação com os demais centros de pesquisas nacionais, bem como com universidades com especialidade na área.

À época as equipes eram compostas por doutores e mestres em metalurgia, química, física e engenharia de materiais trabalhando em projetos relacionados a fibra de carbono, materiais carbonosos estruturais, materiais cerâmicos estruturais e purificação de materiais metálicos, sendo essa uma aplicação-chave para o desenvolvimento fantástico da eletrônica digital.

Infelizmente, a falta ou a pouca interação com a indústria, como acontece com a maioria dos centros de pesquisas no Brasil, não permitia a transformação de resultados de laboratório em produtos finais. Um dos poucos desenvolvimentos da época que chegou à fase industrial foi o material cerâmico estrutural, hoje empregado em blindagem balística nas aeronaves A-29.

Em 1993 fui transferido para o Rio de Janeiro, a fim de realizar o Curso de Estado-Maior, com duração de um ano letivo, equivalente a MBA em Administração, porém específico para a gestão administrativa e o preparo e emprego da FAB. Na ocasião, fui promovido a tenente-coronel.

Ao concluir o curso, fui prestar serviços no Estado-Maior da Aeronáutica, em Brasília, no setor de planejamento da modernização da FAB. No período em que ali permaneci tive a oportunidade de participar da concepção de vários projetos sobre novos sistemas e melhoria

dos existentes, tais como aeronaves e seus sistemas de armas. Muitos estudos não tiveram sequência, mas aqueles projetos que hoje estão em fase de implantação ou recentemente concluídos estavam presentes nos trabalhos daquela época.

Permaneci no Estado-Maior da Aeronáutica até dezembro de 1998, quando fui promovido a coronel e, como o tempo de serviço já era suficiente, imediatamente solicitei minha passagem para a inatividade, encerrando assim um ciclo extremamente importante da minha vida. No início de 1999, fui participar do projeto Sivam, no Rio de Janeiro, com direito a carteira de trabalho assinada pela primeira vez. Nesse período fui trabalhar no acompanhamento e fiscalização dos contratos de aquisição das aeronaves plataformas dos sistemas de vigilância desenvolvidas pela Embraer, o EMB-145 SA (vigilância aérea) e o EMB-145 RS (sensoriamento remoto), quando tive a oportunidade de interagir com alguns colegas da Turma 82 do ITA, que trabalhavam nessa empresa. O projeto foi encerrado em 2004, ao ser concluída a entrega das aeronaves às organizações da Aeronáutica responsáveis por suas operações e logística associada.

Fui contratado, então, por uma Oscip detentora de termo de parceira com o Departamento de Controle do Espaço

Aéreo – Decea, onde tive a oportunidade de gerenciar alguns projetos bem atrativos, em especial o desenvolvimento de um protocolo de data link ar-ar, LINK-BR2, cuja validação teve a participação técnica da Embraer.

Finalmente, gerenciei um longo projeto iniciado em 2009, cujo escopo

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 199

consistia na implantação de um sistema de gestão da Informação Aeronáutica –AIM. Em janeiro de 2019 encerrou-se o meu ciclo laboral e, desde então, sou um aposentado curtidor do dia a dia.

Durante a graduação não residi no e pouco frequentei o H8, o que dificultava a interação com os colegas, pois o contato era somente em sala de aula. Da mesma forma, por estudar isolado, normalmente gastava mais tempo na revisão das matérias escolares, sem falar nas “melações” de provas e entrega de lista de exercícios que, ao tomar conhecimento, já era tarde. Estes relatos vêm realçar a importância do H8 para a socialização e integração plena da turma.

A identificação de fatores que contribuem para o resultado de uma carreira é complexa, pois as tomadas de decisões e ações subsequentes dependem das características inatas de cada pessoa e, de

forma significativa, do estado emocional em que ela se encontra em cada momento. Com base no que vivi e vi, posso mencionar, em especial para os jovens iniciantes, ser desejável priorizar ao máximo as atividades e ações relacionadas às respectivas escolhas, sejam profissionais ou pessoais, concentrando assim as energias para esse fim. Procurar sempre se superar em termos de resistência aos esforços, sem esmorecer diante de dificuldades ou da quantidade de tarefas a serem realizadas, mantendo o foco na meta a ser alcançada.

A formação profissional sólida, aliada a valores, princípios e ética, é essencial ao bom desempenho na vida adulta e fundamental para agregar valores a uma sociedade tão necessitada quanto a nossa. E tenha sempre em mente: quem mais pode ajudar você sempre será você mesmo!

JOSÉ CLEDI LIMA FIGUEIREDO 200

Zé Andrade

JOSÉ LUÍS ANDRADE

PERCURSO DO JOSÉ LUÍS ANDRADE

CONTADO POR CARLA, SUA ESPOSA

Recebi o convite do Vagner Ardeo para escrever sobre o percurso do meu marido, José Luís Andrade, e imediatamente disse “sim”. A história que posso contar começa em 26 de agosto de 1985, data em que eu entrei para a Esso Brasileira de Petróleo. Fui trabalhar na equipe de desenvolvimento do Sistema de Pessoal na vaga que ele havia deixado para ocupar um cargo mais alto em outra equipe de desenvolvimento. Apesar de estarmos em equipes diferentes, ficávamos na mesma sala. Minha mesa ficava em frente à dele e saímos para almoçar já no primeiro dia de trabalho. Começamos a namorar, em segredo, no dia 9 de novembro desse mesmo ano. Não era permitido nem mesmo qualquer grau de parentesco no quadro de funcionários da companhia.

Todos falavam que nosso diretor, Luís Silva, tinha ido ao ITA escolher os dois melhores alunos para trabalhar na área de TI. Aliás, a equipe de sistemas da Esso era formada por iteanos e pelo pessoal do IME, todos engenheiros. Eu, da área de TI e da PUC, fui a primeira a começar a “miscigenação” da equipe. Nessa mesma época, eu e o Zé Luís fazíamos mestrado na PUC, ambos na área de Engenharia de Software. Eu sempre ficava admirada com a capacidade do Zé. Por conta do trabalho, ele faltava a algumas

aulas e algumas vezes não tinha tempo para estudar para as provas. Eu fazia um resumo, passava para ele em poucas horas e ele ia tão bem como se tivesse participado de tudo. Sei que durante os anos no ITA essa não foi a realidade; os estudos eram intensos demais. Parece-me que depois do ITA tudo ficou mais fácil de ser aprendido.

Em 1986, o diretor da Esso, o mesmo Luís Silva que foi buscá-lo em São José dos Campos, foi para a Ceras Johnson e chamou o Zé para ser gerente do Centro de Informações da companhia. Ele ficou lá até 1988, quando se desligou para seguir a carreira de empresário. Foi o sócio-fundador do grupo de empresas Ksoft, com forte atuação nos setores de implantação e gerenciamento de redes locais e nos setores de treinamento em informática.

Casamos exatos sete anos depois do primeiro encontro, em 26 de agosto de 1992. Nessa época eu trabalhava na Xerox e, vendo o empreendedorismo do Zé, criei um braço do grupo Ksoft para o ensino de informática para crianças. Em novembro de 1995 nasceu nosso primeiro filho, o Bernardo, hoje cursando o 4º ano do PhD em Filosofia em Emory University, Atlanta – GA.

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Zé Luís foi um autodidata em economia, sua paixão, e em 1997 iniciou o processo de desinvestimento do Grupo Ksoft, vendendo algumas empresas e encerrando as atividades das restantes. Assim fundou, nesse ano, a empresa Credix Fomento Mercantil Ltda., com atuação no negócio de factoring e fomento mercantil. Em julho desse mesmo ano, nasceu nossa segunda filha, a Luísa, hoje cursando o 2º ano do mestrado em Teologia na Universidade de Notre Dame, South Bend – IN. Nossos dois filhos sempre se espelharam no exemplo de dedicação e estudo do pai. Ambos foram os primeiros alunos de suas turmas e sempre tiveram um brilhantismo acadêmico, como o pai, desde os primeiros anos de escola.

Em janeiro de 2010 fomos autorizados pelo Banco Central a abrir uma financeira, a Credix Financial, com o objetivo de dar apoio a micro e pequenas empresas. Zé Luís era um empreendedor nato e sempre tinha novas e ambiciosas ideias. Como expansão do negócio de antecipação de recebíveis, em meados de 2011 obtivemos o registro de funcionamento pela CVM do fundo de investimento Credix FIDC I. Nós éramos o único FIDC com sistema próprio, todo desenvolvido a partir dos modelos de credit score , criados por ele. Éramos uma referência no uso de TI no mercado de crédito e antecipação de recebíveis.

O brilhantismo do Zé não estava só na mente, mas principalmente em seu coração. Ele não se conformava em fazer qualquer desligamento de funcionários das empresas. Quando alguém não ia bem, mudava a pessoa de área até que conseguisse um local onde o funcionário pudesse se desenvolver e cooperar com a empresa. Sentia uma

responsabilidade imensa com as famílias que dependiam de nós. Isso também acontecia com alguns clientes. Vários foram apoiados, não só financeiramente, que era objetivo da empresa, mas também através de planos táticos e estratégicos para que o negócio pudesse se recuperar e ir em frente. Em alguns casos ele atuava, gratuitamente, como consultor do cliente. Contudo, se estamos falando em percurso, a sua maior marca foi o amor, carinho e cuidado que sempre teve comigo e com nossos filhos.

MENSAGEM DA COMISSÃO DO ÁLBUM PARA CARLA

Sentimos muito a perda do José Luís Andrade. Foi muito trágica para nós. Sabemos o quanto você e sua família amam o José Luís e que tem sido muito difícil. Adoramos que você, Carla, e sua família tenham compartilhado um pouco da história dele. Foi uma linda história de vida!

Nós nos lembramos da época de ITA em que o José Luís vinha até nós, sempre brincalhão e com aquele espírito sagaz. Era só alegria. Foi uma pessoa muito querida entre nós.

Sempre estaremos aqui para vocês. Por favor, façam e sintam-se parte da Turma 82 do ITA.

RELATOS DAS IRMÃS, FÁTIMA E LÚCIA

Segundo uma tradição sueca, uma criança nascida num domingo terá o dom de ver mais longe, de alcançar outro horizonte. Não somos suecos, somos filhos de portugueses, mas ele, o nosso Zé, nasceu em um domingo e fez jus ao seu dia de nascimento. Brilhante, cheio de vida, sensível, sempre foi o nosso “guru”. Sempre foi o melhor aluno da

JOSÉ LUÍS ANDRADE 202

turma, desde o ensino fundamental. Todos se apaixonavam pelo seu brilhantismo, inteligência e simpatia. Adorava a área de exatas, escrevia poemas, gostava de Fernando Pessoa. Viveu intensamente – apaixonado por tudo que fazia. Era inquieto, mas quando estudava impressionava pela capacidade de concentração, algo que permaneceu a vida toda. Era o mais velho dos três. Nossos pais eram completamente dedicados aos três filhos. O Zé era um aluno querido na escola e pelos professores. Sempre foi muito amigo dos pais e das irmãs. Às suas características de excepcional inteligência se somou um grande sucesso com as garotas na adolescência. Ficou um rapaz muito bonito e simpático, e com um humor que o tornava sempre querido entre todos. Nasceu e cresceu em São Vicente, cidade litorânea no Estado de São Paulo. Gostava de ir à praia e tomar sol nos finais de semana. O Zé Luís e nós, suas irmãs, estudamos em escolas públicas todo o ensino fundamental e médio, e o Zé decidiu que iria cursar engenharia no ITA. Frequentou um cursinho preparatório para ingresso nessa instituição, como bolsista. No final do ensino médio, passou no vestibular do ITA e da Poli. Chegou a fazer

a matrícula na Poli, mas o que queria era o ITA mesmo. O fato de ele ter conseguido ser aprovado na faculdade (e a faculdade de ingresso mais difícil!) e ter saído da sua cidade para cursá-la trouxe a perspectiva e a esperança para nós de também buscarmos sonhos mais ambiciosos. O Zé sempre foi o modelo para nós, suas irmãs, que tínhamos não só admiração, mas também um amor muito grande por ele. Sua energia e vivacidade nos inspiravam. Foi um aluno brilhante. Nos finais de semana vinha de São José dos Campos para São Vicente e dava aulas no mesmo cursinho preparatório para o ITA que havia frequentado. Apesar do enorme esforço acadêmico durante a graduação, ele sempre nos contava dos inúmeros e divertidos momentos compartilhados com os amigos do ITA. Formou-se como o melhor aluno da turma de Engenharia Mecânica Aeronáutica, recebendo o prêmio Metal Leve, além de uma Menção Honrosa pelos Departamentos de Matemática e Física. Nosso irmãozinho, que partiu há quatro anos, está presente todos os dias em nossos corações e nas nossas vidas. A pessoa mais inteligente e brilhante que conhecemos! Foi excelente filho, irmão, marido e pai. Na esperança de

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 203
O Zé sempre foi o modelo para nós, suas irmãs, que tínhamos não só admiração, mas também um amor muito grande por ele. Sua energia e vivacidade nos inspiravam.

nos encontrarmos na vida eterna, temos certeza de que está agora com Deus.

MENSAGEM DA COMISSÃO DO ÁLBUM PARA FÁTIMA E LÚCIA

Lamentamos muito a perda do José Luís Andrade. Compartilhamos as

considerações feitas ao nosso querido amigo Zé Luís. Rapaz inteligente, articulado, amigo e bonito, que transmitia uma enorme energia positiva. Era admirado por todos nós por suas conquistas e simpatia. Bela também foi a sua vida, nosso querido amigo José Luís Andrade.

JOSÉ LUÍS ANDRADE 204

Zé Ronaldo

JOSÉ RONALDO FERNANDES TEIXEIRA

Sou mineiro, do interior, da cidade de São João del-Rei. Meu pai, filho de fazendeiro, casou-se com minha mãe, filha de um mascate e de uma professora primária de uma vila nos arredores de São João. O pequeno pedaço de terra que meu pai herdara não facilitava a criação de meus três irmãos mais velhos, e eles decidiram tentar nova batalhas. Com a venda da terra, ele virou dono de um botequim em São João. Nesse contexto, nascemos eu e meus dois irmãos mais novos.

Fomos criados segundo seus conceitos, valores, tabus e temores. Não tínhamos muitas posses e, muitas vezes, nossos sonhos e desejos de criança se resumiam a uma pelada de futebol em alguns terrenos baldios nos arredores de nossa casa ou mesmo na rua de paralelepípedo próxima. Não tínhamos dinheiro para sonhar com praia, capitais, viagens longas (mas isso nunca nos incomodou...). Pelo que me lembro dessa época, minha vida até os 14 anos se resumia a estudar, jogar bola, soltar pipa, brincar de pique, bolas de gude e... trabalhar no botequim de meu pai, vendendo salgados, pinga, doces e pratos feitos (ah, e me divertindo também, jogando dama com os alguns fregueses assíduos). Acho que a cidade mais distante que conheci nesse período foi Piedade do Rio Grande (a 50 quilômetros de São

João), aonde íamos, de tempos em tempos, para visitar minha avó e tios paternos. A grande virada aconteceu aos 14 anos, graças a meu cunhado, então noivo de minha irmã mais velha. Ele era professor e dava aulas em São João e na cidade vizinha, Barbacena, na Epcar. Epcar? O que é isso? Após os esclarecimentos iniciais, continuei a fazer aquilo que já fazia havia vários anos: estudar, jogar bola, soltar pipa mas, então, com um pouco mais de atenção e dedicação, ainda sem ter uma noção exata de para onde isso me levaria: aos estudos para o concurso da Epcar.

Foram alguns meses devorando a coleção de Matemática do Cid Guelli e alguns livros de Português de cujos autores não me recordo o nome. Por uma razão que não me lembro agora, coloquei como um desafio pessoal resolver todos os exercícios de todos os livros da coleção do Cid. O desafio foi vencido, fui aprovado no concurso e, de repente, me vi mudando para um outro mundo.

Até aquele momento, cultivava uma longa cabeleira que vi desaparecer em segundos na barbearia da nova escola em Barbacena. A mudança era para valer!

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Foram três anos estudando, marchando, cantando o Hino Nacional às sextas-feiras, arrumando a cama no alojamento todos os dias, jogando futebol e indo pra São João aos fins de semana.

Não vou negar: foram três anos de muito estudo, mas também de muita alegria e convívio com uma garotada de diferentes mundos (cariocas, paulistas, sulistas, nordestinos, mineiros, e por aí vai...). Muitos, como eu, encantados com a escola e seus diferenciais. À época, a escola era uma referência em ensino na região. Muitos bons professores, com uma infraestrutura invejável (oficinas de mecânica e elétrica, aulas adicionais de inglês e francês, ginásio poliesportivo com piscina coberta e aquecida, campo de futebol, pista de atletismo etc.).

Durante esse período, aproveitei para conhecer um pouquinho do Brasil que só sabia através dos livros e da televisão. Fui apresentado ao mar de Copacabana, às cidades de Porto Alegre e Canela, no Sul, e a algumas outras poucas cidades. Mas arrumava sempre um jeitinho de voltar pra São João...

Nossa turma, em São João, era grande e animada. Motivados por uma paixão comum pelo futebol e pela bagunça sadia (pelo menos para nós), teimávamos em estar sempre juntos.

Nessa época, o pai de um amigo nosso em São João possuía uma Rural Willys. Todos os domingos, pela manhã, ele espremia 10-15 jovens na Rural e íamos para a beira de um riacho jogar bola em um pasto. Era muito divertido mas, como alguns de nossa turma sempre “erravam a mão” no dia anterior, com aguardentes e cervejas dos botequins, a ressaca imperava

na pelada. Assim nasceu o Ressaquinha, time de futebol que sobreviveu vários anos disputando os jogos de várzea e, com certo destaque, os torneios de futsal da cidade.

Como já disse, a turma era grande e animada. Alguns anos depois, fizemos surgir também os blocos de carnaval “Lesma Lerda” e “Vamos a la praia”.

Acho que nossa empolgação por essas particularidades em São João teve um peso na escolha dos caminhos a trilhar para vários de nós e, principalmente, para mim. Vamos voltar para Barbacena no ano de 1977...

Estava no terceiro ano da Epcar e precisava me decidir se iria para a Academia da Força Aérea (AFA) em Pirassununga. Não era nenhum apaixonado por aviões ou fardas azuis, mas também não tinha nada contra; também não havia crescido pensando em ser engenheiro, médico, advogado... Resumindo: ainda não havia parado para examinar a fundo meu plano para o futuro. Um exame médico por que passei naquela época me ajudou no processo de escolha. Para ir para Pirassununga para ser piloto, as pessoas precisavam da “vista perfeita”. Fui informado de que tinha miopia e isso me desqualificava para pilotar aviões. A opção de me tornar oficial intendente da Aeronáutica não me agradou, e risquei Pirassununga do meu mundo.

Estava tão consciente de que não sabia exatamente o que eu queria, que escolhi três desafios para ir em frente:

– Vestibular para Engenharia de Minas em Ouro Preto (fator motivador: meu irmão já fazia Engenharia de Minas lá);

– Vestibular para a Escola Naval (fator motivador: não me lembro

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exatamente. Talvez porque fosse uma continuação da mesma coisa, trocando o céu pelo mar e o azul pelo branco); – Vestibular para o ITA (fator motivador: o apoio de vários colegas, dizendo que, com o desempenho que eu tinha na Epcar, a chance de ser aprovado era bastante alta e ITA era ITA, né?).

O primeiro resultado a sair foi o da Escola Naval. Uma ida à Escola para exames de saúde foi suficiente para dizer não ao mar e ao branco.

Não cheguei a ir a Ouro Preto para me matricular em Engenharia de Minas. Com o resultado do ITA, o mineiro do interior, que transitava entre a vida simples, divertida e sem consequências de São João e a disciplina militar de Barbacena, mudou-se para São José dos Campos. Assim como três anos antes, juntei-me a novos companheiros de diferentes cantos do Brasil.

Foram cinco anos de “muita coisa”. Muitas lembranças boas e algumas lembranças que, se pudéssemos voltar no tempo, teríamos feito alguns “ajustes”.

Houve muito estudo, mas também muita farra. Diniz, meu companheiro de quarto no 106, sempre tranquilo e paciente...

Houve muito estudo, mas também muito truco, escopa, pelada no fundo do H8 e velva. Houve muito estudo, mas também algumas viagens que dariam uma boa conversa fiada numa roda de bar (Colina com as velvas coletivas, Ibitipoca, subida e descida da serra de Campos do Jordão no jipe do Fendel...).

Durante esse período, sempre que podia, voltava para São João, para a vida do interior, para me juntar à animação e à empolgação da galera do Ressaquinha.

Entrei no ITA achando que seria engenheiro eletrônico, mas acabei me formando engenheiro mecânico. A mudança pouco significou na minha vida profissional pois, ao final do 5º ano, fui aprovado em um concurso da Petrobras. Após um ano de especialização, em Salvador, tornei-me Engenheiro de Petróleo.

Nessa época, a produção de petróleo offshore começava a se mostrar importante para a Petrobras, demandando cada vez mais plataformas de perfuração e de produção de petróleo.

Os 13 primeiros anos na Petrobras foram divididos entre períodos de embarque nessas plataformas e períodos de folga, sempre em São João del-Rei.

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Foram cinco anos de “muita coisa”.
Muitas lembranças boas e algumas lembranças que, se pudéssemos voltar no tempo, teríamos feito alguns “ajustes”.

Casei com dona Isaura. Surgiram Marina, Luana e Gabi – joias vivas que admiro cada vez mais.

Quis recuperar o passado de meu pai e me aventurei como fazendeiro, tirador de leite. Tempos difíceis e arriscados, mas que contribuíram para fortalecer minha maneira de enfrentar o dia a dia.

Em 1997, uma pausa nos embarques para encarar um novo desafio na Petrobras. As novas descobertas offshore se davam em lâminas d’águas cada vez mais profundas, exigindo plataformas mais complexas. Fui convidado a participar de um projeto de uma dessas plataformas. Após um período no Rio de Janeiro, nos mudamos para Cingapura por um período de dois anos.

Ainda me lembro muito bem daquela época. Meu inglês era ruim, minha Marina, a mais velha, tinha apenas 7 anos. Gabi, a mais nova, não completara 2. Desembarcamos em Cingapura com oito malas e muitas e muitas agonias.

Graças a dona Isaura e à facilidade e a simplicidade que as crianças têm de ver o mundo, sobrevivemos e retornamos ao Brasil para um novo ciclo de trabalho.

Os trabalhos offshore passaram a se misturar a novos projetos de

plataforma em estaleiros e assim os anos foram se passando. Um momento complicado, hoje totalmente superado, completou recentemente 18 anos: Marina, Luana e Gabi ganharam dois irmãos, Mathias e Nikolai (uma mistura de sangue mineirês com norueguês).

Em 2015, achei que já era tempo de encarar um desafio fora da Petrobras e aceitei o convite da Enauta (antiga QGEP) que, à época, buscava produzir petróleo em águas da bacia de Santos. Foram dois anos acompanhando o projeto de conversão de um FPSO na Holanda. Dessa vez, sem agonias. Voltamos ao Brasil e à rotina de embarques offshore , trabalhos no escritório do Rio e folgas em São João.

No ano de 2021, em meio à pandemia, Dante, meu primeiro netinho, filho de Marina, deu seu ar da graça lá na Alemanha, e Luana se mudou para a Suécia.

Hoje continuo na Enauta, mas já me preparando para mais um novo ciclo de minha vida. Já está chegando a hora de o mineiro sossegar e encontrar mais tempo para dividir entre seu cantinho em São João e sua turminha espalhada por esse mundo afora.

JOSÉ RONALDO FERNANDES TEIXEIRA 208

Gulius

JULIANO JOPPERT JR.

Juliano é um espírito de luz! Eu não gostaria de falar nada a respeito do aspecto profissional dele, exceto que ele era uma pessoa extremamente dedicada e com muita responsabilidade, que mesmo doente cumpria todas as suas obrigações profissionais.

Eu o conheci no final de 1988. Ele morava na Itália, tínhamos amigos em comum e fomos convidados para passar o réveillon em Ubatuba com esses amigos. Eu estava na praia, o avistei a uma certa distância e falei: “Suponho que conheço esse rapaz”. Minha amiga disse: “Tenho certeza que não”. Falei: “Que figura exótica: tênis, meias, camisa e bermuda de linho azul, na praia!”. Durante a festa conversamos muito, e cada um foi viver a rotina da vida, ele na Itália e eu em São Paulo. Em julho de 1989 voltamos a nos encontrar em um churrasco em São José dos Campos. Nesse dia falei para meus amigos: “Vou me casar com o Juliano”. Todos riram muito. A partir daí ficamos mais próximos, mesmo ele morando na Itália.

No 21 de setembro 1991 nos casamos, informalmente, ele morando em São José e eu em São Paulo – casamento perfeito!

Em 1994, decidimos morar juntos; eu fui para São José e vivemos de forma harmoniosa o cotidiano, trabalho, viagens, cinemas, teatros, familiares. Um fato relevante: decidimos não ter filhos. Tudo tem um porquê. Sempre tivemos crianças e adolescentes por perto, inclusive morando conosco. Em 1999, ele começou a apresentar dificuldade para respirar e a ter muita sonolência. Iniciou-se a saga para termos um diagnóstico. Passamos por vários médicos e ninguém conseguia saber o que estava acontecendo. Eu não acredito em casualidade... Estava no meu consultório, atendendo a secretária de saúde de São José dos Campos, e comentei com ela a respeito

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Ele dirigiu 5.740 quilômetros por Portugal, Espanha, França e Bélgica. Foram momentos de extrema felicidade para ele, pela superação
– os locais já conhecíamos.

do Juliano. Ela foi embora e duas horas depois me ligou, passando o telefone de um médico, em São Paulo, que tinha feito mestrado em 1957 na Inglaterra em distrofia muscular. Na consulta, ele apenas olhou o andar do Juliano e deu o diagnóstico; depois foram feitos todos os exames complementares, biópsia, mapeamento genético e, infelizmente, todos os exames confirmaram o diagnóstico clínico: distrofia muscular de cinturas tipo 2I, que é uma doença genética progressiva e sem cura. Em 2000 ele piorou muito e passou a usar respirador no período noturno. Com uma disciplina extraordinária, fazia duas horas de fisioterapia por dia, trinta minutos de fonoaudiologia de segunda a segunda, uma sessão de psicoterapia por semana e, mesmo assim, continuamos vivendo da maneira mais normal possível – ele sempre alegre, com entusiasmo e sendo exemplo de superação.

A partir de 2017, já morando em Indaiatuba, o quadro piorou muito: ele começou a fazer uso do respirador em parte do dia também e para distâncias maiores usava cadeira de rodas. Apesar de tudo, ficou seis meses planejando uma viagem para a Europa, de forma minuciosa, pois era necessário devido à falta de acessibilidade – em qualquer parte do mundo é igual –, e fomos viajar.

Ele dirigiu 5.740 quilômetros por Portugal, Espanha, França e Bélgica. Foram momentos de extrema felicidade para ele, pela superação – os locais já conhecíamos. Em Paris parecia uma criança que ganhara um brinquedo novo, por estar dirigindo, mesmo tendo que dar pausas para colocar o respirador. Foram muitas máquinas ao longo desses vinte anos para dar suporte à vida, e sempre tivemos excelentes profissionais para ter qualidade de vida.

Em 2001, o prognóstico era cinco anos de vida; ele teve uma sobrevida de quinze anos, graças à tecnologia dos respiradores, à disciplina rigorosa que mantinha nas terapias e ao estilo saudável de vida – mesmo assim, bebeu muito vinho e comeu muita massa.

No dia 5 de dezembro de 2020, às 23 horas, Juliano teve uma parada cardíaca, foi socorrido e entubado. Dois dias depois, foi extubado e saiu da UTI. No dia 11 de dezembro de 2020 voltou para UTI, foi feita uma traqueostomia, e ele faleceu no dia seguinte, 12 de dezembro de 2020, às 16h30. Supercompanheiro, extremamente gentil, educado, calmo, engraçado, palhaço, generoso, bravo com os políticos – tinha uma frase que falava sempre: “Vou colocar todos no paredón e fuzilar”, mostrando seu lado tedesco. Foram trinta anos de uma convivência muito feliz. Eu nem me lembrava que ele tinha uma doença rara. Sempre caminhamos lado a lado, de mãos dadas. A vida ficou pequena sem a sua presença física, e as boas lembranças me impulsionam para continuar a jornada.

Rossemar Marisa Visintin

MENSAGEM DA COMISSÃO

PARA ROSSEMAR

A Turma 82 sente profundamente a perda do saudoso colega Juliano: um anjo, especialmente gentil, que emanava serenidade. Quis o destino que seu falecimento acontecesse no dia em que fizemos a foto virtual que incluímos neste livro. Esperamos por ele até o último minuto. Agradecemos a você, Rossemar, pelo companheirismo e amor pelo nosso Gulius e por superar a dor e escrever este tão belo relato.

JULIANO JOPPERT JR. 210

40 ANOS DEPOIS… O ITA

Entrar no ITA não estava nos meus planos. Nem sabia o que era isso, até que um colega do antigo Colegial me contou a respeito. Era tão difícil entrar que só prestei o vestibular do ITA como treinamento para entrar na Poli. Mas algo deu errado, e eu passei.

Como eu costumo dizer, entrar no ITA é fácil; difícil é sair. Foi lá que passei os cinco anos mais sufocantes da minha vida. Nunca fui muito inteligente, talvez apenas esforçado. Então enquanto via muitos colegas “surfando” o curso “de boa”, eu me afogava no gagá. Ao final do curso prometi a mim mesmo que não iria estudar mais nada, nem fazer mestrado, doutorado, nada. Curso de culinária, só se não tivesse que fazer prova. Aquele negócio de ter que tirar nota me deixou traumatizado.

O pior foi até o quarto ano. Depois veio a CV e eu quase não embarquei nessa, porque achava que não iria conseguir pagar a viagem. Mas minha mãe me obrigou a ir. Minha mãe tinha dessas coisas. Foi ela que me obrigou a comprar aquela espada do CPOR. Mas, tirando isso, foi uma boa mãe.

Assim, como os demais colegas, visitei várias empresas, consegui algumas doações, uma carona no avião da FAB e fui mochilar na Europa.

LUÍS AUGUSTO ORFEI ABE

Nessa altura, minha mãe já tinha escrito a alguns parentes na Itália sobre minha ida, pedindo que me recebessem. Acabei passando o Natal e Ano Novo com eles, e me encantando com o país. Tanto que, durante o último ano do ITA, passei a frequentar aulas de Italiano nos finais de semana e a trocar correspondência (naquela época não tinha e-mail ) com alguns primos. Eu não sabia, mas isso foi decisivo para a escolha do meu futuro emprego.

Próximo da formatura, eu já estava com emprego assegurado numa fábrica de computadores em São Paulo, onde estagiei durante o ano. Mas então veio a notícia de que a Embraer estaria contratando alguns recém-formados para trabalhar por um ano na Itália. Seria a realização do sonho de morar lá – e por uma dessas coincidências que o Universo prepara, eu já falava italiano fluentemente, o que foi fator decisivo para eu ser contratado.

A EMBRAER

Pela minha formação em Eletrônica, fui trabalhar na Seção de Ensaios em Voo, no Programa AM-X.

211 Abe

Alguns meses mais tarde embarquei para a Itália junto com o Hayashi e o Adalto. Havia muita gente da Embraer lá. Fiquei dois anos, viajei bastante, conheci o Muro de Berlim antes de ser derrubado e a União Soviética comunista, viajando de trem pela Transiberiana. Muito legal! Mas aí meu encanto pela Itália foi acabando, porque percebi que uma coisa é visitar a passeio, outra é viver o dia a dia. Eta povinho latino, como diria o Hayashi…

Voltei para o Brasil, e cheguei a recusar outra oferta de emprego porque ainda achava que devia à Embraer a experiência que tive no exterior. Assim, continuei lá até que veio a grande crise da Embraer, quando, se não me engano, houve um corte de uns 9 mil funcionários. Eu ainda permaneci algum tempo na Embraer, mas a convite de um cunhado entrei no PDV e fui me aventurar em São Paulo como empresário. A experiência como empresário, com tantos percalços, e tendo que enfrentar o trânsito e o ritmo daquela cidade, fizeram com que eu deixasse a empresa em menos de dois anos. Então me vi desempregado. Mas já tinha começado a pensar em algo mais seguro, e comecei a estudar para concursos públicos.

Enquanto estudava e dava aulas em cursinhos preparatórios, tive ainda mais uma pequena empresa de comércio, que me deu mais aborrecimento do que lucro, pois até um sócio tentou me passar a perna. Mas então a Embraer – com o crescente sucesso do EMB 145 – me chamou de volta. Passei a acumular de tudo um pouco: a Embraer, onde eu entrava depois do almoço e ia até pouco depois da meia-noite, a empresa e as aulas.

Demorei cinco anos e prestei 10 concursos até entrar. Não sou muito brilhante; só conto com o esforço. Mas passei no concurso mais prestigiado da época, o AFTN da Receita Federal. A Embraer ainda ofereceu cobrir o salário – que na época não era muito alto – mas depois de tanto empenho é claro que eu queria ver como era o tal AFTN. Assim, deixei a Embraer depois de 13 anos de trabalho, com um grande aperto no coração, pois lá aprendi a gostar da aviação.

A RECEITA FEDERAL – FOZ DO IGUAÇU

Prestei concurso para a área de comércio exterior da Receita Federal, a Aduana, e tive que passar ainda por um curso de formação de quatro meses em Curitiba. Se fosse reprovado, adeus. Então, para meu desespero, mergulhei mais uma vez no mais absoluto gagá.

Em meados de 1999 comecei a trabalhar na Delegacia de Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira com o Paraguai e a Argentina. Passei ainda por mais um mês de treinamento prático em todas as áreas. Na primeira vez em que fiscalizei uma sacoleira, não sei quem de nós tremia mais. E quando abri a primeira sacola, me deparei com centenas de bonequinhos “Teletubbies” olhando para mim. Tem fiscal que encara isso bem, dá bronca, apreende tudo e vai dormir em paz. Mas eu tinha pena daquele pessoal. É uma vida muito dura.

A primeira prisão também é muito marcante. Quase meia-noite, num posto de fiscalização longe de tudo. Eu olhava para a garota de uns vinte e poucos anos, crack oculto na roupa. Ficamos esperando a Polícia por longos minutos. Depois seriam quatro ou cinco anos de prisão para ela. Que vida…

LUÍS AUGUSTO ORFEI ABE 212

Ao final desse treinamento não fizemos prova. Ufffaaaa! Mas eu me saí bem. Tanto que me deram de cara a supervisão da Ponte da Amizade, com uma equipe de uns 15 fiscais. Curiosamente, o supervisor da Polícia Federal na Ponte, com quem trabalhei algum tempo, era o Newton – para quem não conhece, o famoso “Japonês da Federal”, que apareceu na TV, anos depois, prendendo figurões. Sujeito simpático.

A rotina era muito dura: fiscalização de ônibus, vans, motos, pedestres.

Era eu que “abria” a Ponte da Amizade todos os dias pela manhã, às 7 em ponto. Levava todas as chaves para casa, pois as salas, os computadores, os depósitos ficavam trancados e lacrados durante a noite. O colega do turno da tarde fechava tudo e eu abria no dia seguinte. Se eu não chegasse, não iniciava a fiscalização. Isso acontecia de segunda a sábado. E assim eu mal conseguia voltar para São José dos Campos para visitar minha família, que não quis se mudar para tão longe. Eram 18 horas de ônibus para ir e 18 para voltar.

Em Foz trabalhei em quase todos os setores, mas talvez o mais perigoso tenha sido o da Repressão. Eu supervisionava duas equipes que capturavam ônibus na estrada e os traziam de volta para a fiscalização. Um trabalho que começava lá pelas 19 horas e terminava na madrugada. Vários colegas trabalhavam armados. Ficávamos de campana à margem da rodovia, e às vezes tínhamos de nos embrenhar em estradas vicinais – às vezes com apoio policial, outras não. Cada dia começava com uma grande dúvida: “que m…. será que vai acontecer hoje?”.

Se fosse contar todos os “causos” que me aconteceram...

Fui um dos últimos da minha turma a deixar Foz do Iguaçu. Fiquei lá por três anos e um mês. Não consegui remoção para São José dos Campos, como eu queria. O mais perto que consegui foi o aeroporto de Guarulhos.

A RECEITA FEDERAL –AEROPORTO DE GUARULHOS

Quando me apresentei na Alfândega do Aeroporto de Guarulhos, com seu gigantesco movimento de passageiros e cargas, os colegas me avisaram para tomar cuidado: era um lugar muito perigoso. Sim, de vez em quando alguém amanhece suicidado depois de flagrar cocaína em alguma mala. Mas o aeroporto é muitíssimo mais seguro para trabalhar do que Foz do Iguaçu.

Assim, depois de quatro meses eu já integrava a equipe de Vigilância e Repressão do aeroporto com tranquilidade, pois Foz é uma grande escola. De plantonista, na maravilhosa escala 24 x 72, em que você trabalha 24 horas e depois folga três dias, passei a Chefe das equipes e também dos cães farejadores. Fiquei nisso por uns oito anos.

Virei grande conhecedor de cada “cantinho” do aeroporto e fiz muita coisa interessante. Participei de ensaios de ameaça de bomba e sequestro de aeronave. Fui treinado como voluntário de emergência, aqueles funcionários que fazem o primeiro atendimento em caso de acidente aéreo, chegando no local do desastre antes dos médicos para afastar os sobreviventes da área de perigo. Graças a Deus até hoje nunca precisamos agir de verdade.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 213

Passei por mais alguns setores até integrar o Gabinete da Alfândega como chefe de importação e exportação de carga aérea.

Em 2015 finalmente consegui minha remoção para a Delegacia de São José dos Campos, mas então me pediram para ficar mais sete meses até o final do mandato do então Delegado. E, ao final desse período, pediram que eu ficasse mais um pouco para ajudar o novo Delegado, que tinha pouca experiência com carga aérea… e desde então, há sete anos, continuo trabalhando “emprestado” ao aeroporto, como Delegado Adjunto.

Provavelmente nunca irei trabalhar na Delegacia de São José dos Campos, pois já entrei com meu pedido de aposentadoria.

Foram 19 anos na Alfândega do aeroporto de Guarulhos, onde passei muitos dias e muitas noites. Imenso, o maior aeroporto da América Latina. 24 horas de operação ininterrupta, todos os dias... Uma cidade que nunca dorme. Sentirei muito sua falta.

O EU

Acho que escolhi a profissão certa para mim. Sinto-me Engenheiro mesmo, daquele que precisa entender as leis das coisas.

Poucos anos depois de ter começado na Embraer, um cunhado se propôs a ler meu mapa astral. Ele perguntou se eu era funcionário público. Eu disse que não, e que isso nunca tinha me passado pela cabeça. Ele achou estranho, porque isso aparecia muito claramente no meu mapa. Mal sabíamos que ainda iria se realizar! Mas como ele era um astrólogo amador, poderia estar errado. E me deu o endereço de um profissional.

O astrólogo interpretou meu mapa durante uma hora. Acertou tudo, inclusive como seriam meus filhos. Fiquei tão curioso em saber se isso estava mesmo escrito no mapa, que comecei a estudar Astrologia. Estava tudo lá, em cada planeta! E me surpreendi com toda a engenharia que existe por trás disso. Assim, comecei a entender o mundo de uma forma muito diferente. Depois estudei um pouco de quiromancia e vi que trazia as mesmas respostas, de um jeito diferente. E mais tarde o tarot Assim, em busca de mais respostas, acabei saindo do catolicismo e me tornei espírita. Mais respostas vieram. E quando surgiam mais perguntas e não vinham mais respostas, fui sendo iniciado em outras

LUÍS AUGUSTO ORFEI ABE 214
Fiquei tão curioso em saber se isso estava mesmo escrito no mapa, que comecei a estudar Astrologia. Estava tudo lá, em cada planeta! E me surpreendi com toda a engenharia que existe por trás disso.

escolas esotéricas superiores. Fiz também uma breve iniciação em meditação na Índia. No meio disso, o Universo foi me oferecendo outras oportunidades. Um colega iteano me apresentou ao chá de Ayahuasca (que alguns conhecem como Santo Daime, mas não é a mesma coisa), que tomei durante alguns meses (ou foram anos?).

Não é alucinógeno, como dizem, mas é um acelerador do raciocínio, que mostrou-me um erro na minha vida, que eu não percebia e que busquei corrigir. Foi muito importante para mim. Levei muitas pessoas para tomar o chá, inclusive toda a minha família.

Uma outra colega da Receita também me apresentou à umbanda, que frequentei

também por alguns anos. Outra experiência fantástica!

Mas antes que pensem que virei bicho-grilo, já vou avisando que continuo com os pés no chão. Não sou nenhum guru, não consigo prever o futuro e estou perdendo dinheiro na Bolsa. Mas tirei uma grande lição de tudo isso: nada do que acontece está errado; está tudo certo, e nada acontece por acaso; tudo tem uma finalidade.

Minha vida profissional parece bem medíocre: basicamente só dois empregos, um deles como servidor público. Mesmo assim, tudo se encaixou de forma impressionante ao que eu necessitava, e mudou muito minha forma de entender o mundo e de trabalhar pelo mundo. Tudo tem valido a pena.

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Luisão

LUÍS CARLOS AFFONSO

MORE THAN MY SHARE OF IT ALL

Nascidos em uma família de classe média na Mooca em São Paulo, meus irmãos e eu tivemos muita sorte em ter pais cuja prioridade sempre foi a educação e a formação dos filhos. A receita criada pelo nosso pai era: muito estudo e esporte competitivo.

E assim foi. Frequentamos escolas dentre as melhores daquela época: Caetano de Campos, Colégio Estadual São Paulo, Bandeirantes e Cultura Inglesa. E começamos bem cedo a treinar basquete e competir pelo Juventus. Este lado cheio de demandas era temperado pela nossa mãe, professora de piano e amante da literatura. Meu irmão mais velho, sempre primeiro da classe, estabelecia a referência que eu tinha que seguir e era também um ótimo professor em casa!

Sem nenhuma razão aparente, me apaixonei por aviões desde a primeira infância e todos os meus desenhos de criança trazem aeronaves no céu. Perdeu-se no tempo a origem do meu interesse pelo ITA, mas aos 10 anos de idade, em uma redação, declarei o sonho de projetar e

pilotar aviões!! E incrivelmente estabeleci que, para tanto, teria que fazer o ITA!!

Durante o 3º colegial, não fiz cursinho, mas estudava muito, a ponto de o impensável acontecer: meu pai, que a vida toda nos havia incentivado e cobrado a estudar, passou a desligar a chave-geral da casa para eu parar de estudar até muito tarde!!! Era, no mínimo, curioso!!

Tudo deu certo e em 1978 mudei-me para São José dos Campos, sem saber que ali viveria pelos 45 anos seguintes e, provavelmente, pelo resto da minha vida.

A experiência no ITA foi fascinante e o coração da escola era e ainda é o H8. O ITA é plural, com alunos vindos de muitas regiões do Brasil, com histórias bem diferentes e a diversidade dos colegas de turma me revelou um mundo novo, que sempre apreciei muito. E todos eram brilhantes, cada um a seu modo, mas brilhantes sem exceção. O fato de morarmos juntos no campus permitia uma enorme integração e oportunidade de troca.

O curso era puxado e para “sobrevivermos” tínhamos que estudar muito mais que a média necessária em outras escolas de engenharia. E esse era mais um fator de união da turma. Crescemos e

amadurecemos juntos.

Os “causos” durante os cinco anos do ITA são incontáveis, desde as Olimpíadas Internas, as guerras no H8, as velvas, o

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CEPORRA, as brigas na cidade, as melações de prova, a CV com trens perdidos e desaparecimentos em Amsterdã, a caneta BIC, e muito mais. Não é à toa que nos nossos encontros não falta assunto nem risada!!

A Disciplina Consciente, segundo a qual a cola não é praticada pelos alunos, foi uma grata surpresa e é uma cultura que coloca o ITA numa categoria à parte entre todas as outras escolas de engenharia do Brasil. Como dizia Casemiro Montenegro Filho, engenheiros competentes e cidadãos conscientes. No ITA fui apresentado ao Voo em Planadores, esporte que pratico e amo até hoje. No CVV-CTA, clube fundado pelos alunos do ITA, além de aprender a voar no clube de maior nível técnico do Brasil, pude conhecer sumidades da engenharia aeronáutica como Kovacs, Neiva, Ekki, Galvão, Reis, entre outros.

Próximo à formatura, apesar da paixão por aviões e do divertido estágio em ensaios em voo na Embraer, eu tinha dúvidas sobre se deveria mesmo começar a carreira em uma empresa estatal e em um campo relativamente restrito, pelo menos no Brasil. Estava inclinado a seguir o coração e um providencial empurrãozinho foi a oferta pela Embraer de uma vaga de trainee em Paris. Enquanto a imensa maioria dos aeronáuticos da Turma 82 ia para a Itália com um pacote superatrativo, eu abri mão dessa oportunidade para ser trainee , por entender que no longo prazo seria mais interessante.

Na França, além de voar muito em planadores, aperfeiçoar a língua e conhecer uma cultura diferente, trabalhei em um fabricante de trens de pouso, a ERAM. No retorno, uma grande frustação me esperava,

pois a promessa de que eu lideraria a engenharia de trens de pouso da Embraer não foi cumprida. O então Diretor Técnico da Embraer, o todo-poderoso Guido Pessotti, aconselhado pelo seu par da ERAM, me reteve no corpo principal da engenharia da Embraer, dadas as grandes dificuldades no projeto do EMB-120 Brasília. Na época fiquei muito p da vida, pois o plano de longo prazo que me levou à França tinha ido por água abaixo. Em retrospecto, aquilo foi a melhor coisa que poderia ter acontecido e foi determinante para a minha trajetória futura. Assim, meio por acaso, comecei minha carreira na engenharia de sistemas da Embraer, mergulhando fundo em arquiteturas de sistemas, análise de confiabilidade e segurança de sistemas complexos, ensaios, certificação, suporte ao cliente, assim como seleção e gestão de fornecedores de equipamentos e sistemas.

No ITA do nosso tempo, engenharia aeronáutica se resumia a aerodinâmica, estruturas e propulsão. Sistemas não existiam. Mas vivíamos uma época em que os aviões se tornavam cada vez mais sofisticados, integrados e controlados eletronicamente. E a Embraer partia para aviões maiores, necessariamente mais dependentes de sistemas sofisticados.

Sem saber, a conjunção do curso de engenharia aeronáutica, da experiência de voo e do mergulho em sistemas, aliados a uma curiosidade infinita, estavam me tornando um engenheiro banda-larga, capaz de transitar, sem ser especialista – claro – por todas as áreas do desenvolvimento integrado de produtos, algo que não era comum naquela época. Isso me permitiu receber desafios de

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 217

complexidade crescente ao longo do tempo, sempre com a mentoria e parceria de engenheiros brilhantes como Guido, Satoshi, Paulo Serra, Aldo Martinazzo, Zé Renato, Masao, Horácio Forjaz, Emílio Matsuo, entre outros. Curiosamente, exceto o Paulo, todos iteanos! Além dos grandes mentores, tenho enorme gratidão e reconhecimento pelos engenheiros e projetistas da Embraer cuja cultura sempre foi a de compartilhar seu conhecimento e suas experiências, permitindo a aceleração da maturidade dos mais novos.

Em 1988, aos seis anos de formado, fui promovido a Chefe de Seção de Sistemas de Comando de Voo e Mecanismos, a primeira área multidisciplinar da Embraer, com engenheiros de estruturas, mecanismos, sistemas hidráulicos, elétricos e eletrônicos. Era necessário o trabalho integrado de todas essas especialidades para desenvolver um moderno sistema de comandos de voo. Muitos dos sistemas e arquiteturas desenvolvidas na época para o CBA123 são a base para os sistemas dos nossos aviões mais atuais, como os EJets E2.

O trabalho até aquele ponto já havia consolidado em mim a crença na integração horizontal, nos times cross funcionais, na busca do ótimo global e no poder dos times de alta performance . Isso marcaria minha atuação e aquela das áreas que viria a liderar em toda a minha carreira.

Tinha também já incorporado o DNA da Embraer de paixão pela excelência e de muita resiliência para superar desafios.

Do final da década de 1980 até meados da de 1990 vivemos anos de crise na Embraer, com sucessivas renovações nas lideranças, muitas pessoas sendo dispensadas e outras

tantas deixando a empresa, por duvidarem de suas possibilidades futuras. A crise trouxe também oportunidades para aqueles que acreditaram e não abandonaram o barco. Em 1991 fui promovido a Gerente de Engenharia de Sistemas, com responsabilidade sobre propulsão e todos os sistemas das aeronaves Embraer.

Em 1995, aos 34 anos e com 12 anos de formado, tornei-me VP de Engenharia e Engenheiro Chefe da Embraer. A empresa recém-privatizada precisava de alguém que ao mesmo tempo preservasse a cultura de excelência técnica do passado e que estivesse disposto a abraçar uma nova cultura, com gestão mais moderna, foco nas pessoas, nos clientes e em resultados. A aposta recaiu sobre mim, o gerente mais novo entre todos os gerentes de engenharia. Mauricio Botelho, o novo CEO que conduziu o bem-sucedido turnaround da empresa privatizada, bradava “Cash is King!”. E eu me apressei a fazer um MBA em administração de negócios na FIA, para poder acompanhar o novo momento e entender a nova linguagem. Tive oportunidades incríveis na Embraer – more than my share of it all , como disse Kelly Johnson –, em geral ligadas a novos produtos ou novos negócios. Desde 1995, em diferentes posições na empresa, liderei a construção do plano de negócio, sua aprovação e o desenvolvimento de todas as novas plataformas de aviões civis – comerciais e executivos – lançados até a data atual.

A primeira missão como VP de Engenharia foi o primeiro voo e certificação do ERJ-145, jato regional de 50 assentos, que permitiria o turnaround

LUÍS CARLOS AFFONSO 218

da empresa após a privatização. Outra missão importante foi como Diretor de Programas, implantando a moderna gestão de programas na empresa, hoje reconhecida como uma de suas vantagens competitivas. Na sequência, o maior desafio da carreira: VP do Programa Embraer 170/190, os EJets, desde sua concepção até a entrada em serviço. Programa inovador pela dimensão, tecnologia, arquitetura de negócios com parceiros de risco, prazo superagressivo e clientes muito mais exigentes, pois destinava-se às empresas majors e não mais às regionais. Foi uma jornada épica, dificílima e sou eternamente grato às nossas equipes que mostraram muita criatividade, competência, garra e abnegação! Até hoje esse é o programa de maior sucesso comercial da empresa, além de serem os aviões comerciais mais seguros da indústria.

Outros desafios foram a criação e liderança da Unidade de Negócios da Aviação Executiva e lançamento dos jatos Phenom 100 e 300, Legacy 450, 500 e 650, e do Lineage; VP de operações da Aviação Comercial e o lançamento da segunda geração dos EJets, o E2; e mais recentemente a liderança das áreas de estratégia corporativa, inovação e transformação digital. Não quero abusar da paciência dos colegas falando mais sobre essas experiências; então isso fica para o Álbum dos 50 anos de formatura!!!

Agora gostaria de falar do mais importante: em 1988, em um aniversário em São José, conheci a Eliana! A química foi imediata, parecíamos amigos de longa data, falávamos horas a fio. Não vou falar que parecia que estava falando com os amigos da Turma 82, porque vocês vão me

“sacanear’, mas que parecia, parecia. Nós nos casamos em maio de 1991 e em maio de 1992 tivemos dois filhos: os gêmeos Laura e Rodrigo! Com gêmeos, nem tive muitas opções, tive que entrar na dança, e adorei!! Sem dúvida o melhor programa da vida!!

A Eliana é arquiteta, filha de iteano, aeronáutico (Turma 72). Morou no H-montão por vários anos quando menina. Seu TG foi sobre as referências arquitetônicas do Niemeyer, também baseado no CTA. Tentamos passar para frente a dedicação e prioridade aos filhos que recebemos de nossos pais e, com orgulho, vimos o Rodrigo se formar engenheiro aeronáutico pelo ITA na Turma 14 e a Laura arquiteta pela FAU – USP.

Quando nossos filhos eram pequenos – 2 anos –, eu me dividia entre a família, a Embraer e o voo em planadores, mas não havia tempo para tudo... e a Eliana, com a sabedoria materna, me inscreveu em um curso de vela. Assim nascia uma nova paixão e as competições aéreas ficaram de lado por 20 anos, durante os quais curtimos a vela de cruzeiro oceânico em família, o que nos aproximou muito e nos proporcionou muitos momentos memoráveis.

Mas a adolescência chegou e os filhos não queriam mais ir ao barco com frequência, e concluí que era hora de voltar ao voo!! Será que ainda daria tempo de ser campeão brasileiro?

Voltei inicialmente ao voo em aviões, que consumia menos tempo, e tirei o brevê para voo em bimotores, por instrumentos, e mais tarde as carteiras para pilotar os jatos Phenom 100 e Phenom 300 da Embraer. Em 2014, os filhos já com mais de 20 anos, voltei aos campeonatos de voo

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 219

em planadores. Inicialmente os resultados foram pífios – estava mesmo enferrujado – mas nada como foco, dedicação e fazer o que se gosta. A poder de muito estudo teórico, voos com pilotos experientes, muitas horas de treino e a descoberta da psicologia do esporte, fui campeão brasileiro na Classe Racing, uma das duas categorias principais no Brasil, em 2019 e 2020.

Realizava assim o sonho de criança de ser um engenheiro-aviador!!!

No início de 2020, já me aproximando dos 60 anos, eu estava decidido a colocar o pijama. Dali a alguns meses a Embraer concluiria a venda do seu negócio da Aviação Comercial para a Boeing e eu achava que aquele seria o momento ideal para encerrar meu ciclo na empresa. Mas veio a covid-19, o mundo virou de ponta-cabeça e a Boeing, já cheia de problemas com o 737Max, desistiu do negócio.

Com isso, aceitei os convites para ficar e participar da reconstrução da empresa no novo cenário tão desafiador. Na reestruturação que se seguiu, com a chegada de novos executivos, coube a mim a função de VP de Engenharia, Desenvolvimento Tecnológico e Estratégia Corporativa, voltando depois de muitos anos às origens e liderando a engenharia uma vez mais.

Se no pós-privatização em 1995 eu fui alçado a VP por ser o mais novo, agora

eu permanecia na diretoria por ser o mais velho! Sempre buscando fazer a ponte entre o passado e o futuro.

Tem sido um privilégio estar na ativa nestes últimos 4-5 anos e vivenciar a enorme transformação cultural, de governança, de propósitos, de sustentabilidade por que passam a Embraer e a maioria das empresas de ponta e poder navegar na revolução trazida pelas inovações disruptivas. O imperativo da sustentabilidade e a inovação estão embaralhando as cartas e trazendo grandes oportunidades, como tão bem exemplificado pelo nosso EVE para a mobilidade aérea urbana e os nossos conceitos sustentáveis ENERGIA. A promoção afirmativa da diversidade, o compliance , os propósitos elevados iluminam a alma. Dá gosto de participar de tudo isso!

Nesta fase da vida e da carreira a gente pensa mais em como devolver um pouco, em como contribuir com a sociedade. Nessa linha tenho dedicado tempo principalmente a assuntos ligados à educação e à inovação, como com a liderança do Grupo de Trabalho para a Modernização dos Cursos de Engenharia da CNI/MEI e também como membro do conselho Superior da ANPEI. São atividades prazerosas, que gostaria de ampliar no futuro.

Ao refletir sobre a história da indústria aeronáutica brasileira, da Embraer, da

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Nesta fase da vida e da carreira a gente pensa
mais em como devolver um pouco, em como contribuir com a sociedade.

criação de tanto valor em vários outros setores da sociedade e da realização dos sonhos de tantas pessoas, é para mim impossível não me maravilhar com

a genialidade do Marechal Casemiro Montenegro Filho, que idealizou e criou o CTA e o ITA, nossa Alma Mater , sem o que nada disso teria sido possível.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 221

Verdi

LUÍS CÉSAR SPALDING VERDI

WhatsApp calls...

Oi, Akutsu, quanto tempo! Tudo bem com você? Tenho a impressão de que não o vejo há muitos anos. Sim, o Enderson me escreveu pedindo que eu fizesse o relato pro Álbum dos 40 anos. Foi legal receber mensagem dele, mas fiquei até um pouco constrangido, pois eu não tinha decidido se faria o relato ou não. Tenho muito apreço pelo pessoal da Turma, e vontade de rever muitos amigos, mas às vezes não me sinto parte do grupo. Como fiquei só dois anos, desconheço muitas histórias. Por outro lado, os dois anos que fiquei são inesquecíveis. Tenho uma infinidade de memórias das pessoas, conversas e bagunças no nosso corredor do H8, por exemplo. Inclusive de você caminhando até o 103, abrindo os braços para tocar nas paredes dos dois lados simultaneamente.

O que me levou para o ITA? Veja, Akutsu, acho que foram alguns exemplares de uma revista do CTA ou da própria escola, não lembro, que tinha uma seção chamada “Cafezinho”, com problemas de lógica e de matemática. Eu ficava imaginando como seria uma escola onde as pessoas, para relaxar nos intervalos, resolvem problemas

teóricos... Além disso, antes do vestibular, fiz uma “visita guiada” pelo Álvaro Corsetti, que já era professor por lá, e ele me mostrou a escola, a cidade, e o Lab Foto. Essa foi definitiva. De fato, foram muitas as vezes em que virei a noite de sábado pra domingo no Lab Foto. Entrava por volta das 22 ou 23h e saía para tomar café quando o H15 estava abrindo, e depois ia dormir. Hoje sou um fotógrafo não praticante (como se isso fosse possível), mas com projetos para retomar em breve. O mais divertido da relação com a fotografia é que já me confundiram com o Sebastião Salgado várias vezes. A primeira delas foi em 2013. Eu tomava um café na Livraria da Vila, aqui em São Paulo, e alguém me pediu para autografar o livro Gênesis , que ele acabara de lançar. A mais recente foi no restaurante do Museu de Arte, no Parque Ibirapuera. Aí decidi que nas próximas, se houver, em vez de frustrar os fãs dele na hora, vou assinar e fazer selfies . A frustração virá depois...

Lembro também de muitos momentos da nossa convivência no H8. As noites de estudo, as listas de melação de prova, bundograma, velva, e de umas “bombas de laranja”, acho que invenção do Alckmar. Recordo do Fulco tocando violão, do Tornavoi e eu vendendo o jornal O Movimento , e dele dizendo que as pessoas se dividiam em dois grupos:

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“os que dobram e os que amassam o papel higiênico”.

Lá no 103, inesquecíveis momentos do Fuad, às vezes em cima de um banco, tentando, sem sucesso, convencer o Busatto a dizer algum palavrão. Dessas você deve lembrar, Akutsu. O Fuad gritava: “Me manda à merda, Renato”, ao que ele respondia: “Não me amole, Fuad”. Lembro também da sua capacidade de dormir, durante as jornadas noturnas de estudo, por apenas 15 minutos e acordar sem despertador.

E quando o Enderson voltou de férias motorizado? Que alegria ir de carona no Amarelinho! Com Gusella fui a Valparaíso num feriadão. Fomos e voltamos de carona com um veterano que morava na região. Foi muito legal! Eu também gostava muito de conversar com o Zé Auri, vizinho do 104.

Ele já era um filósofo quando estudava engenharia. Aprendi muito com ele. Só boas lembranças dos amigos do H8. Foi um período curto, mas importante para mim.

Decidi deixar a escola e voltar a Porto Alegre por várias razões, mas principalmente para participar da vida universitária de forma mais integral, com a multiplicidade de áreas, pontos de vista políticos e diversidade de pessoas que eu imaginava encontrar na Federal do RS e que não percebia no ITA. Não ter convicção de que eu queria fazer carreira na engenharia

também contou, pois mesmo aprovado no vestibular para eletrônica e tendo cursado mais três semestres, decidi mudar para a matemática, e me formei vários anos depois, pois fazia uma disciplina por semestre para poder trabalhar.

O que destaco na carreira profissional? Comecei um ano depois que retornei a Porto Alegre, em 1981. Fui aceito para um estágio, ainda estudando engenharia na UFRGS, numa empresa fabricante de microcomputadores chamada Polymax. Meus colegas brincavam que eu teria entrado na empresa errada, que a certa seria Pilomax, alusão à minha careca que já dava sinais de força. Foi uma época muito legal. Após seis meses de estágio, fui contratado na equipe de software . Era o período da reserva de mercado, meio romântico, quando se imaginava que o país seria autossuficiente em tecnologia da informação. Foi um sonho dos militares na época da ditadura, que obviamente não virou realidade. Para muitos analistas representou um atraso de vários anos, uma vez que estávamos isolados nesse setor. Pelo menos forçou a criação de alguma competência em áreas de base, na microeletrônica, sistemas operacionais e compiladores, embora esse objetivo pudesse ser atingido de formas mais inteligentes. Eu adorava programar e dominava muitas linguagens. Na época o meu sonho era

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Eu ficava imaginando como seria uma escola onde as pessoas, para relaxar nos intervalos, resolvem problemas teóricos...

trabalhar na Cobra, estatal fabricante de minicomputadores, e desenvolver um compilador. A ideia de um tradutor automático de linguagens me fascinava. Ainda bem que não realizei esse sonho... Com emprego, uma Honda CG50 e cheio de coragem, propus para Maria do Carmo juntar as coisas e a vida. Uma das melhores decisões que já tomei! Ainda na Polimax, acho que por ser bom técnico e explicar as coisas com clareza para os clientes, fui promovido a gerente do time de software

Com 25 anos e sem nenhum treinamento gerencial, virei responsável por uma equipe de oito pessoas. Foi difícil e divertido. Uns dois anos depois aceitei o convite de um cliente, empresa varejista no Sul do país, para gerenciar um projeto de automação comercial. Foi uma experiência fantástica. Tínhamos que fazer tudo, do software do PDV até protocolo para ligar balanças eletrônicas na rede local, além de treinar toda a equipe do supermercado piloto. Após um ano de projeto, em março de 1986 inauguramos o primeiro supermercado brasileiro com leitores de código de barra. Num período de inflação alta, foi uma revolução na loja e para os clientes, que recebiam um ticket com a descrição dos produtos. Você lembra que antes disso o ticket do caixa era apenas uma lista de valores e a soma? Impossível de conferir, o que era importante para muita gente... Daí em diante abandonei definitivamente a ideia de trabalhar na infraestrutura para me concentrar nas aplicações da tecnologia.

Depois de concluir esse projeto fui para a Bull, uma empresa francesa fabricante de computadores de grande porte, na área de consultoria e implantação de sistemas de

gestão industrial. Em 1988 me convidaram a mudar para São Paulo e gerenciar o time nacionalmente. Maria do Carmo topou, mas pediu um tempo antes da mudança, pois nossa filha Elisa tinha apenas 4 meses. Então fiquei até o final do ano trabalhando aqui e voltando nos finais de semana. Em dezembro de 1988 nos mudamos para São Paulo. Com escritório na Rua Flórida com a Berrini, meus colegas nos aconselharam a morar perto. Fomos para o bairro Campo Belo. Acho que essa dica ajudou muito nossa adaptação e até hoje gostamos muito da vida paulistana. Meus quase seis anos na Bull foram muito bons. Além das reuniões no HQ em La Défense – Paris, dos cursos em Marne-la-Vallée e Düsseldorf, a oportunidade de conduzir projetos em diferentes empresas de vários setores me ensinou muito e me ajudou a crescer profissionalmente. Acho que foi numa dessas viagens a Paris que visitei o Alckmar, quando ele fazia seu Doutorado por lá. Visita curta, divertida e conversa inteligente, como são sempre os papos com ele.

Muitos anos depois, já trabalhando na Hewlett-Packard, e dirigindo a área de consultoria, reencontrei o amigo Falco – ele, então, VP na TAM. Fizemos a implantação do sistema, inédito na época, de vendas de passagens pela internet com check-in sem bilhete. Hoje parece piada isso, mas lá por 2000 ou 2001 foi muito legal. O Falco planejou uma entrada sem alarde, numa terça-feira, se não me falha a memória. Eu tinha que viajar para Belo Horizonte a trabalho e aproveitei para usar o sistema. Ainda me lembro da conversa no balcão, afirmando que eu tinha certeza de que poderia fazer o check-in apenas com meu

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documento. Deu tudo certo. Sempre gostei de me envolver com inovação, e meus onze anos na HP foram mais que uma escola. A companhia, fundada em Palo Alto em 1939, é a vovó do Silicon Valley e de lá saíram muitos empreendedores e engenheiros que criaram muitas tecnologias inovadoras em sua época. A HP tinha uma cultura organizacional muito característica; bastante informal, direta, pouco hierárquica e colaborativa. Levava o assunto de management muito a sério, e foi lá que me formei como gestor. Em vários aspectos, tinhas semelhanças com a DC do ITA. Você fazia o que era certo e necessário, mais por impulso próprio ou do grupo do que por ordem de alguém. Liderar nesse ambiente implicava ser bom comunicador e convencer as pessoas a embarcarem em suas propostas.

Na HP fiz várias coisas, liderei equipes em marketing , vendas e serviços profissionais, tanto no Brasil como na América Latina. Conheci bem nossa região, a Califórnia e vários países na Europa. Aprendi bastante sobre finanças corporativas e boas práticas de governança também.

Oi, Akutsu, desculpe a interrupção... Fomos levar nossa filha Elisa e o marido dela, Gustavo, até o aeroporto. Eles embarcaram para Nova York, onde ficarão por quase quatro meses. Elisa está no último ano do Doutorado em Geografia Humana na USP. Foi fazer um período de estudo e pesquisa na New School for Social Research. Na realidade ela tinha tudo planejado para ficar um ano, iniciando em setembro de 2020, mas a pandemia forçou uma mudança. De qualquer forma, será uma experiência muito boa. Ela estuda programas de transferência

de renda e está fazendo um trabalho muito bonito. Tenho muito orgulho da filha. Bem, concluindo minha narrativa sobre a vida profissional, minha última jornada como executivo em empresa de tecnologia foi na SAP, empresa alemã produtora de software de gestão empresarial. Lá fiquei por quinze anos, passei por seis posições, incluindo a Presidência da subsidiária no Brasil, a liderança de empresas adquiridas na América Latina e a responsabilidade global de uma unidade de negócios com equipes espalhadas por todos os continentes. Foi certamente minha experiência mais rica e intensa, e a que demandou mais viagens e noites mais curtas. A SAP fornece para empresas de porte e setores variados, e mais uma vez tive a oportunidade de navegar e conhecer uma ampla gama de situações, culturas e desafios diversos. E de reencontrar colegas, como o Luisão em algumas reuniões na Embraer, o Reis de Sousa na Chesf, o Rui na TAM, o Sartô na Petrobras, o Schalka na Votorantim Cimentos (quando ele gentilmente aceitou meu convite para palestrar numa reunião geral de funcionários da SAP Brasil) e outra vez na Suzano. Nesse período encontrei também o Afonso, que me contava sobre seus empreendimentos em software , e o Edmur, que inclusive foi meu colega na SAP por um período. Foram quinze anos ótimos e suficientes para que eu decidisse encerrar esse ciclo e partir para outro, no qual fosse mais dono da minha própria agenda, com menos viagens e compromissos corporativos e mais leituras, mais tênis e viagens de lazer.

Em 2018 iniciei atividades como conselheiro, me inseri no ecossistema de

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startups de tecnologia e eventualmente projetos ou consultoria em estratégia e gestão. Tenho um escritório na Rua Pamplona, que já recebeu a visita do amigo PV, com quem inúmeras vezes peguei carona nos sábados, saindo de São José dos Campos para São Paulo. Encontrei também o Soiza numa feira de tecnologia; comemos num restaurante chinês e falamos da vida. Ainda antes da pandemia, o Segre e a esposa visitaram o ateliê de arte da Maria do Carmo perto da Praça da República. Almoçamos juntos e compartilhamos histórias. Visitei o escritório do Ribeirão, na Nuveto. Mais recentemente, já na modalidade Zoom, tenho conversado com o Reinaldo e o Bortman. O Berga desenvolveu uma solução para monitoramento de redes

sociais que é muito legal. Tomara que tenha muito sucesso nesse empreendimento! Pensando melhor sobre essas reuniões, os encontros da Turma, e a vontade de rever muitos amigos em dezembro deste ano, percebo que me sinto, sim, parte da Turma 82, contrariando o que disse inicialmente. Quando me formei na UFRGS eu não tinha turma. No bacharelado em Matemática éramos apenas quatro alunos mais ou menos no mesmo estágio. E eu me formei sozinho. Foi curioso: o Diretor do Instituto, a secretária lendo a ata, o formando aqui e a Maria do Carmo como testemunha. Portanto, a partir do convite para escrever este relato, me incorporo definitivamente à inigualável e gloriosa Turma 82.

Um grande abraço e até breve.

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Luizinho

LUIZ CLÁUDIO CUNNINGHAM DE CARVALHO

Nasci no Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, embora nunca tenha morado no Rio e, sim, em Niterói, terra de Sergio Mendes, Paulo Gustavo, da família Grael e daquilo que o Rio tem de melhor, que é a vista, certo, Bebeto? Filho de um oficial do Exército, antes do ITA já havia passado por 12 escolas diferentes, entre Niterói (capital do RJ), São Paulo, Niterói (rebaixada), Campo Grande (na época ainda Mato Grosso) e Brasília. Talvez por isso tenha sossegado de vez desde 1980, quando deixei a Turma 82 prematuramente (quem sabe eu não devesse ter deixado o Jessen Vidal me convencer tão facilmente, mas aquele gesto de me tirar do exame do Faleiros para uma conversinha sobre a escolha de aptos e hierarquia causou um certo impacto), e sou campineiro da gema.

Na época do vestibular vivia em Brasília e a ideia era entrar no IME para ter desculpa para voltar para Niterói e o círculo de amigos da adolescência. Mas não deu – a prova era uma coisa bizantina, só quem se preparava

no Impacto ou no Bahiense entendia o que estava acontecendo ali. Por uma dessas sortes, entrei na terceira ou quarta chamada do ITA. Foram dois anos muito ricos, fazendo amizades que me acompanharam por toda a vida, vendendo jornal comunista no H8, participando do Centro Acadêmico e convivendo bastante com a turma que ficava em São José nos finais de semana. No 2º ano trabalhei muito com Mané (Turma 81, que veio a ser prefeito de São José dos Campos), na administração do cursinho do CASD, onde comecei a dar aulas, o que acabou virando profissão.

No início de 1980, na segunda leva de exilados na Unicamp, com os alunos Alckmar, Horioka, Arthur, Catarina (este por brevíssimo tempo), nos juntamos aos veteranos Alcarde, Fernandes e Tornavoi para fundar o Integral, cursinho que, em seus 40 anos de trajetória passou

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Foi (e está sendo ainda) uma carreira bem
bacana e diversificada: desde faxina até M&A, a gente faz de tudo.

uma galera no ITA e na Medicina, virou colégio, chegou até a educação infantil, teve editora de material didático e uma rede de 19 unidades entre o interior de São Paulo e o Sul de Minas. Permaneci no grupo por 29 desses anos; de 2009 para cá me dedico ao Colégio Next, uma escola muito bonita em Itatiba, Apple Distinguished School, antiga unidade do Integral. Na ocasião, decidi tirar o diploma que ficou esperando este tempo todo e me graduei na Ciência da Computação da Unicamp. Vendo as super-pós-graduações do pessoal aí dá até vergonha, mas suei um bocado para finalmente ganhar esse diploma, depois de 30 anos longe do gagá.

Fora a brincadeira da preferência pelo IME, compartilhei com muitos de vocês o interesse pela aeronáutica na juventude. Nunca vou esquecer a primeira vez que visitei o CTA, numa feira de aviação em que conheci o Galaxy, o Hawker Harrier e vi a esquadrilha da fumaça americana e seus Phantom F5 voarem. Fora o interesse pelo espaço: quem teve a edição especial da revista Manchete da chegada do homem à Lua, com o vinil compacto com a contagem regressiva de um lado e as palavras do Armstrong (“ One small step …”) do outro nunca vai esquecer.

Mas na carreira empresarial, como muitos da geração, o que teve impacto mesmo foi a computação, tendo o Integral sido bem pioneiro na adoção de microcomputadores na administração, dos labs de informática, dos computadores e projetores em sala de aula e, após a minha saída, do iPad como material didático. Foi (e está sendo ainda) uma carreira bem bacana e diversificada: desde faxina até M&A, a gente faz de tudo.

Hoje, além da escola, toco com meus filhos uma empresa de software para gestão educacional com soluções que só se tornaram possíveis com os dispositivos móveis. Sei que deve ter gente aí que fez isso a vida inteira e já deu, mas para mim é uma forma de criação artística e um desafio intelectual ao mesmo tempo. Falo disso mais pela novidade – o trabalho com educação também me deu e me dá uma vida de muito desafio e realização.

No plano pessoal, a Turma 82 e o ITA me deram um grande cartão de visita, sócios, amigos, padrinhos, afilhados, compadres e cunhados, portanto, indiretamente, minha esposa e companheira de 37 anos, simply the Bete. Muita sorte! Que venham outros 40 anos. E, bem antes, um mundo sem pandemia e de volta aos encontros de turma.

LUIZ CLÁUDIO CUNNINGHAM DE CARVALHO 228

Akutsu

TURMA 82 É SODA, PAPAGAIO, IAH

IAH OOOH: RELATO DA INFLUÊNCIA

DO ITA E DOS ITEANOS, PASSADOS

40 ANOS DA FORMATURA

O que é sucesso?

Rir muito e com frequência; ganhar o respeito de pessoas inteligentes e o afeto das crianças; merecer a consideração de críticos honestos e suportar a traição de falsos amigos; apreciar a beleza, encontrar o melhor nos outros; deixar o mundo um pouco melhor, seja por uma saudável criança, um canteiro de jardim ou uma redimida condição social; saber que ao menos uma vida respirou mais fácil porque você viveu. Isso é ter sucesso! (Ralph Waldo Emerson).

O presente relato sobre a influência do ITA e da Turma 82 em minha vida iniciou-se numa reunião virtual organizada pelo Swiba em plena pandemia da covid-19 em 2020, onde o Guigui nos colocou um desafio, algo como: “que tal pensarmos na influência do ITA e dos iteanos em nossas vidas e que legados deixaremos em decorrência dela?”.

Nestes tempos de pandemia, o processo de elaborar este relato, fazendo um retrospecto da minha vida após o ITA, ajudou-me a aliviar as tensões do confinamento em regime de teletrabalho,

evocou sentimentos do passado e estimulou reflexões sobre o futuro.

A pandemia é o exemplo mais recente e relevante de acontecimentos que influenciam decisivamente o rumo de nossas vidas, em cujo início não temos a menor noção de seus impactos: onde nascemos, que faculdade escolhemos cursar, com quem escolhemos nos casar e constituir família.

Ao refletir sobre minha vida, passados 40 anos da formatura na Turma de 1982 do ITA, tenho agora uma noção mais clara dos acontecimentos de maior impacto.

Minha história com o ITA começa, de uma forma indireta, na minha família. Nasci em Marilia – SP, filho de imigrantes japoneses. Desde cedo convivi em ambientes de contraste entre valores da cultura japonesa na família e da cultura brasileira fora de casa e, sendo o mais novo de dez irmãos, tive o privilégio de ter crescido quando meus pais já estavam mais bem adaptados ao Brasil. Tendo cursado no ensino fundamental e no ensino médio escolas públicas em Atibaia, não teria a menor chance de passar no ITA, caso meu pais não tivessem empenhado enorme esforço financeiro para que eu pudesse estudar no curso pré-vestibular do Anglo.

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LUIZ AKUTSU

Hoje tenho noção mais clara de que proporcionar uma educação formal de qualidade para os filhos fazia parte do ikigai de meus pais, que me ensinaram a valorizar o conhecimento como requisito indispensável para a conquista da independência. Ikigai é uma palavra japonesa que pode ser entendida como senso de propósito para uma vida longa, feliz e saudável, aquilo que nos faz acordar todos os dias. À medida que amadurecemos, entendemos a importância de termos um propósito na vida, reavaliando-o continuamente, em especial quando nossos planos são adiados ou forçados a mudanças por acontecimentos inesperados.

Um exemplo dessa prioridade da educação dos filhos que meus pais valorizavam foi que, em 1964, minha família se mudou de uma fazenda em Oriente para um sítio em Atibaia, ocasião em que meus pais optaram por uma área menor de cultivo em prol de um local mais próximo da capital de São Paulo, para tornar mais fácil o apoio aos meus irmãos que começavam a cursar o ensino superior.

É muito difícil sintetizar as principais contribuições do ITA e dos iteanos em minha vida, tamanho o impacto dos cinco anos do curso de Engenharia Mecânica-Aeronáutica em minha vida. Nessa jornada em busca

de realizarmos nossos propósitos, alguns períodos nos proporcionam aprendizados muito mais intensos em menor tempo.

Nos cinco anos do ITA busquei equilibrar os estudos com atividades extracurriculares para manter minha conexão com outros ambientes sociais e para aliviar um pouco a dura rotina de provas semanais: treinos de judô, idas de bicicleta a Monteiro Lobato, Taubaté e arredores nos fins de semana, e cursos de inglês e francês.

Dos treinos de judô guardo ótimas lembranças da equipe da Turma 82, pentacampeã na Olimpíada Interna do ITA (O.I.). Nossa equipe, mesmo sem treinar regularmente, concordava em participar dessa Olimpíada, evento esportivo que contribuía para agregar a comunidade iteana: Ary, Enderson, Guerra, Hayashi, Nishi (no 1º ano) e Takahashi – claro que algumas vezes foi necessário apelar para argumentos do tipo “O.I. é só uma vez por ano” com alguns colegas. Após a formatura, continuei os treinos com o sensei Michiharu Sogabe no Tênis Clube de São José dos Campos, que à época mantinha uma forte equipe que incluía alguns judocas da Seleção Brasileira. Outra atividade extracurricular que me traz boas lembranças foi ter sido

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Nessa jornada em busca de realizarmos nossos propósitos, alguns períodos nos proporcionam aprendizados muito mais intensos em menor tempo.

recenseador do IBGE em 1980, após ter sido aprovado num concurso para o evento, com provas de português e matemática de primeiro grau. Lembro até hoje das entrevistas que fiz num orfanato e num asilo na região central de São José dos Campos, com o contraste da alegria das crianças e da tristeza dos idosos – ambos os grupos abandonados pelas respectivas famílias.

A remuneração do censo me possibilitou viajar à Bolívia e ao Peru com o Busatto e o Bergamaschi, aventura inesquecível, com experiências com o “Trem da Morte” da fronteira do Brasil até Santa Cruz de La Sierra, viagem na traseira de caminhão de Cochabamba até La Paz, o sofrimento com a altitude de mais de 5 mil metros de Chacaltaya, que os bolivianos declaram ser a pista de esqui mais elevada do mundo, até chegar a uma das maravilhas do mundo: Machu Picchu. Dessa experiência guardo as dificuldades do Busatto em arrumar camas para dormir, com seus dois metros de altura e de, infelizmente, ele ter contraído hepatite.

Da transição do ITA para o mundo profissional lembro do quadro de empregos no H8-A: naquela época várias empresas ofereciam vagas para iteanos. Entre as oportunidades que apareceram, fui aprovado no final de 1982 num concurso da Petrobras, junto com o Zé Ronaldo. Cheguei a fazer exames médicos e a me preparar para um curso de formação para Engenheiro de Petróleo em Salvador – BA, mas acabei optando pela oportunidade oferecida pela Embraer.

A Embraer tinha iniciado com os formandos da turma de 1980 um intercâmbio técnico com a Pratt & Whitney Canada (PWC), fornecedora de turbinas. Eu e o

Maurício Fantinato fomos no terceiro ano desse programa, em 1983, trabalhar na Pratt & Whitney em Longueuil, na região metropolitana de Montreal, para um intercâmbio técnico de um ano. Já no início de 1983 o Brasil vivia uma crise da dívida externa e, por isso, o intercâmbio correu o risco de ser cancelado, atrasando em cerca de três meses nossa ida ao Canadá. Guardo excelentes lembranças dessa experiência de morar numa cidade próxima do melhor patamar que podemos almejar, exceto pelo inverno longo demais para meus padrões tropicais, e de poder aprender um pouco com as práticas de uma empresa que trabalha na fronteira da inovação tecnológica. No dia a dia da PWC, já naquela época, fui me dando conta de algumas de suas vantagens competitivas: a rapidez com que os fornecedores entregavam as peças (em menos de três dias quando necessário); as rotinas estabelecidas para cálculos de engenharia (lembro por exemplo que, quando comecei a querer calcular os amortecedores de um berço de turbina para uma bancada de testes, o engenheiro que me orientava me passou cálculos similares já feitos para inúmeras outras turbinas); o uso intensivo da experimentação para avaliar soluções inovadoras e a percepção da cultura organizacional de considerar normais as falhas decorrentes dos riscos inerentes ao desenvolvimento tecnológico (lembro, por exemplo, de relatos da turbina PW115, que equiparia os EMB-120 Brasília, ter explodido nos primeiros testes).

Em contraponto, esse período na PWC me reforçou a convicção das bases sólidas que o ITA tinha me propiciado na minha formação em engenharia. Além disso, ficava

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feliz em ouvir relatos dos engenheiros da PWC, admirados com a criatividade e até mesmo com o que consideravam ousadia dos engenheiros da Embraer para enfrentar dificuldades inerentes a uma empresa situada no Brasil, sem a mesma experiência – naquela época – de outras concorrentes do setor. Lembro, por exemplo, de relatos folclóricos dos engenheiros da PWC perguntando da coragem dos “ cowboys ” (pilotos de prova) do Brasília que – na percepção deles – não tinham medo de decolar mesmo em fases iniciais do desenvolvimento da aeronave.

Em 1986 fui trabalhar na Avibras, na equipe liderada pelo Pasquotto (da Turma 81), que também tinha sido enviado pela Embraer para o intercâmbio técnico na PWC no ano anterior, em 1982.

A Avibras tinha em andamento contrato para fornecimento de foguetes do sistema Astros com o Iraque, então governado por Saddam Hussein, que estava em guerra contra o Irã, iniciada em 1980. Após a Revolução Islâmica de 1979 o Irã, até então um dos maiores aliados dos Estados Unidos na região, passou a criticar o antigo parceiro, acusando os norte-americanos de corromperem os valores islâmicos.

Apesar do apoio dos Estados Unidos, o Iraque não conseguiu vencer a guerra, que terminou em agosto de 1988, sem vencedores. Desse período na Avibras ficou como aprendizado a experiência de trabalhar numa empresa com prioridade para o desenvolvimento de produtos, num setor – a indústria de armamentos –altamente competitivo e com difícil acesso às tecnologias de seus concorrentes, tudo isso dentro de um contexto organizacional

de prioridade à segurança em geral e em especial à segurança de informações. Ouvia na Avibras, naquela época, relatos de espionagem industrial numa empresa em que éramos terminantemente proibidos de discutir, fora de suas dependências, questões relacionadas aos projetos em andamento; os países compradores eram referidos como Cliente 1, Cliente 2 etc. e as datas de embarque de produtos exportados eram mantidas em extremo sigilo.

Em 1989, ano em que a Avibras estava em crise, com drástica redução em seu quadro de empregados, e a economia do Brasil atravessava o pico da hiperinflação, recebi convite para compor a equipe que prestaria consultoria por dois anos ao governo do Iraque, objetivando a transferência de tecnologia de um míssil ar-ar, num contrato de dois anos de duração.

Viver em Bagdá foi uma experiência muito diferente da de morar em Montreal. Nosso grupo de engenheiros habitava um conjunto de prédios de alto padrão, considerando o contexto do Iraque naquela época. Os prédios eram ocupados por equipes da ONU, profissionais de saúde e outros grupos de estrangeiros que, a exemplo de nosso grupo de brasileiros, também prestavam serviços àquele país. Da convivência nesse condomínio guardo ótimas lembranças de treinos de vôlei, nos quais nosso grupo disputava partidas com as russas que viviam no mesmo condomínio. Sim: nosso nível de “habilidade” no vôlei mal dava conta de enfrentar equipes amadoras femininas.

O Estado iraquiano buscava absoluto controle da sua população e dos estrangeiros que adentravam o seu território: ao entrarmos no país, somente nos era

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concedido visto de entrada; o de saída tinha que ser solicitado após o ingresso em solo iraquiano; a alimentação, embora barata, tinha sua venda controlada e com poucas opções ofertadas; os correios e os telefones eram ostensivamente monitorados – nosso grupo, no início, só podia ligar por cerca de cinco minutos a cada semana para o Brasil e as cartas demoravam muito a chegar, inviabilizando esse tipo de correspondência com nossas famílias.

Do ponto de vista da transferência de tecnologia, logo nas primeiras semanas em Bagdá ficou claro que seria muito difícil para o Iraque chegar ao estágio tecnológico brasileiro: o parque industrial daquele país tinha dificuldades, por exemplo, de produzir itens mecânicos tão simples como parafusos. Embora alguns de nossos parceiros iraquianos tivessem boa formação acadêmica, tendo diversos deles doutorado em engenharia em países europeus, no dia a dia fomos percebendo que muito pouco seria aproveitado por eles em termos de conhecimento tecnológico após o término de nosso projeto. À medida que tal constatação se consolidava, crescia minha frustração em trabalhar em algo cujo resultado – a transferência de tecnologia – era impossível de ser atingido. Dentro da jornada em busca de realizar meu ikigai , vivenciava ali um claro desalinhamento entre meu trabalho e meus propósitos.

Nossa rotina foi drasticamente modificada em 2 de agosto de 1990, quando o Iraque invadiu o Kuwait, evento que teve como desdobramento a Guerra do Golfo.

Já no dia seguinte à invasão os militares iraquianos nos informavam de que a guerra não era somente contra o Kuwait, mas

principalmente contra os Estados Unidos – até então seu aliado na guerra contra o Irã. Tempos depois fui entender que essa surpreendente informação naquele contexto era procedente, decorrente da complexa busca de equilíbrio geopolítico dos países do Oriente Médio.

Pude constatar nesse período a sabedoria da afirmação “numa guerra, a primeira vítima é a verdade”. O controle da narrativa é ainda mais crítico em situações de conflito. Relendo recortes de jornais da época que tenho guardados até hoje, destaco, por exemplo, a manchete do The Baghdad Observer de 3 de agosto de 1990, retratando a invasão como uma ajuda ao país vizinho: “ Revolution in Kuwait. Kuwait asks for military aid, Baghdad positively responds ”. Dias depois da invasão, nosso grupo foi levado para um acampamento da Construtora Mendes Júnior, perto de uma estrada entre Bagdá e Amã, capital da Jordânia, onde nos juntamos a outros brasileiros e familiares que estavam prestando serviços ao governo iraquiano (das empresas Mendes Júnior, Volkswagen, Maxion e Braspretro). Ficamos algumas semanas nesse acampamento; depois retornamos a Bagdá, até finalmente voltarmos ao Brasil.

Na narrativa da imprensa brasileira, éramos considerados reféns: “Brasil intima Iraque a soltar reféns” ( O Estado de S. Paulo , 31/8/1990). Em contraponto, outras informações destacavam a priorização de interesses econômicos pela Mendes Júnior, empresa com maior número de brasileiros que aguardavam visto de saída: “Motorista descreve a tensão no alojamento [...].

Segundo Leandro [o motorista], os seus

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colegas egípcios que também trabalham para a Mendes Júnior na Expressway têm dito que a empresa está forçando a permanência do pessoal no Iraque, com medo de não pegar mais nenhum serviço no país” ( Folha de S.Paulo , 26/8/1990).

Em relação ao nosso grupo de engenheiros, a narrativa da imprensa inicialmente era de nosso desejo de permanência no Iraque: “Engenheiros ligados a projeto militar se dizem autônomos [...]. Ao contrário da Mendes Júnior, da Maxion e da Volkswagen, esses brasileiros não fizeram nenhuma solicitação ao Itamaraty para que fossem feitas gestões junto ao governo iraquiano para a liberação de seus vistos de saída” ( O Estado de S. Paulo , 29/8/1990). Em contato feito por amigos ao Itamaraty, questionando se o governo brasileiro seria a fonte dessas informações, um diplomata respondeu algo como: “Não tenho como responder, mas vocês devem se assegurar se o técnico do time A está de fato lutando para esse time ganhar o campeonato, ou se está nos bastidores ajudando o time B...”. Na tentativa de decifrar esse valioso enigma, eu e outros colegas imediatamente formalizamos requerimento na Embaixada do Brasil em Bagdá, solicitando ações do governo brasileiro para providenciar nossos vistos de saída. Coincidentemente ou não, esse requerimento mudou quase que de imediato a narrativa da imprensa: “Brasileiros no Iraque desistem de fazer mísseis [....].

Os 21 brasileiros que participam do projeto de desenvolvimento de um míssil ar-ar no Iraque também querem deixar o país. O grupo pediu vistos de saída [...]” ( O Estado de S. Paulo , 2/9/1990).

As negociações para nosso visto de saída foram intensas, conforme manchetes da época: “Collor faz novo apelo a Saddam Hussein [...]. O presidente Fernando Collor reitera o apelo de seu governo em favor da pronta liberação de todos os brasileiros retidos no Iraque. O documento será entregue ao governo iraquiano pelo embaixador Paulo Tarso Flecha [de] Lima, chefe da missão especial que deverá chegar sábado a Bagdá” ( O Estado de S. Paulo , 13/9/1990). O embaixador conduziu com muita habilidade as negociações com o governo iraquiano e, semanas depois, finalmente obtivemos nosso visto de saída para retornarmos ao Brasil em 3 de outubro de 1990.

Desde minha ida ao Iraque em 23 de setembro de 1989 até meu retorno, o mundo vivenciou mudanças históricas, simbolizadas pela queda do Muro de Berlim em 9 de novembro de 1989. O Brasil atravessava mais uma crise econômica, com o Plano Collor em vigor para tentar conter uma hiperinflação de mais de 80% ao mês, por meio de medidas como o bloqueio de depósitos em contas correntes e aplicações financeiras.

Minha vida também tomou novos rumos, não somente em face das escassas possibilidades de emprego decorrentes do contexto da crise econômica dos anos 1990, mas também por conta das reflexões feitas no acampamento da Mendes Júnior, enquanto aguardávamos o visto de saída, vendo os cães selvagens no deserto iraquiano e buscando notícias confiáveis na BBC, transmitidas em “ special English ” para facilitar o entendimento (era assim que anunciavam as transmissões), em um rádio Sony de ondas curtas. Fazendo

LUIZ AKUTSU 234

um balanço de minhas decisões sobre minha carreira até então, concluí que, nas próximas escolhas, deveria considerar, sim, a remuneração, mas priorizar o alinhamento das atividades profissionais com meus propósitos de vida, ou seja, buscar descobrir e desenvolver meu ikigai .

Lembrei então que, em 1986, quando um colega da Embraer me perguntou se eu estava confortável em ir trabalhar na Avibras com armamentos, respondia que todo país soberano deveria cuidar da sua defesa, e dava como exemplo os incas, dizimados pelos espanhóis em decorrência da diferença de tecnologia militar com relação aos colonizadores. Não mudei minha opinião acerca da legitimidade e necessidade das atividades de defesa para um país; continuo a entender que tais atividades são essenciais para um Estado soberano. Não obstante, minhas reflexões naquele momento me diziam que essas atividades não precisavam contar necessariamente com minha colaboração. Assim, ao voltar do Iraque, acabei encerrando meu ciclo de trabalho na indústria bélica.

Em 1991, fui trabalhar como gerente financeiro na Usinas Reunidas Seresta S.A., com sede em Maceió e fábrica em Teotônio Vilela, município cujo nome homenageia o Menestrel das Alagoas. Ouvia suas histórias dos empregados mais antigos, em especial as viagens que fez pelo país defendendo as “Diretas Já”.

Na Usinas Seresta adquiri experiência com a implantação de um sistema de contabilidade de custos, fruto de uma gestão da empresa que buscava aumentar sua produtividade e reduzir custos de produção para se adaptar à desregulamentação do

setor sucroalcooleiro em 1990, que acarretou a queda de preços do açúcar e do álcool, afetando principalmente as usinas do Nordeste, que eram beneficiadas com regimes de cotas e preços implementados até então.

Outro aprendizado relevante foi conhecer um pouco mais alguns personagens importantes do mundo político, numa época em que o Presidente da República era alagoano e o Brasil vivia um período turbulento que antecedeu o impeachment Ao ouvir algumas histórias dos bastidores da política, não podia deixar de lembrar a sábia metáfora futebolística do diplomata que forneceu informações sobre o visto de saída do Iraque: é necessário obtermos informações confiáveis do comportamento de nossos representantes para avaliarmos eventuais conflitos de interesse. A assimetria de informações é não somente uma das principais variáveis do jogo político como também uma vantagem competitiva para aqueles que têm mais acesso a informações relevantes.

Além da crise econômico-política daquele início da década de 1990 vivíamos, no campo das teorias de administração do mundo corporativo, o modismo da reengenharia, cujas práticas muitas vezes incluíam, além da reestruturação radical de processos defendidas pelos seus idealizadores, uma redução drástica de colaboradores nas organizações. Nesse contexto, embora estivesse muito satisfeito em trabalhar na Usinas Seresta, vislumbrava a necessidade de avaliar minha empregabilidade e segurança financeira de longo prazo.

Entre as alternativas possíveis, acabei prestando concurso e fui aprovado para

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o cargo de Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU). Nessa aprovação, mais uma vez minha formação no ITA foi muito útil: as provas do concurso incluíam inúmeras disciplinas que tinha cursado, no todo ou em parte, tais como português, inglês, estatística, introdução à informática, introdução à economia. Além do conhecimento prévio dessas disciplinas, foi de grande valia a habilidade para maximizar a relação resultado de provas/esforço de estudo que tive a oportunidade de desenvolver ao longo dos meus cinco anos de estudo no ITA.

Quando ingressei no TCU, em 1994, o órgão era pouco conhecido. A Constituição de 1988 tinha ampliado suas competências e consagrado a exigência de concurso público para preenchimento de seu corpo técnico. Esses dois aspectos impulsionaram a renovação do quadro de servidores e um período de inovações organizacionais que fortaleceram sua atuação no contexto das instituições da administração pública federal. Tudo isso era muito novo para mim, e me desafiava a entender melhor esse novo ambiente organizacional que exigia conhecimentos de diversas áreas, tais como – mas não somente – Direito, Administração Pública e Contabilidade.

Fui descobrindo aos poucos a abrangência da atuação do TCU, que julgava desde a legalidade de atos de aposentadoria de servidores públicos até a emissão do parecer prévio das contas do Presidente da República, passando pela avaliação de políticas públicas, pela apuração de denúncias e representações acerca de supostas ilegalidades em licitações públicas, pela avaliação de concessões e pela auditoria de obras públicas. Embora

tivesse plena convicção de que seria impossível ter conhecimento profundo em todas as áreas de atuação do Tribunal, essa diversidade de conhecimentos necessários me estimulou a continuar meus estudos.

Em relação à ampliação das competências do Tribunal, cabe destacar o mandato que lhe atribui competência para realizar auditorias operacionais que avaliam aspectos relacionados à economicidade, eficiência e efetividade de empreendimentos, sistemas, operações, programas, políticas públicas, atividades e organizações do governo federal. Além do TCU, inúmeras entidades de fiscalização superior em outros países adotaram práticas semelhantes, incorporando a auditoria operacional às duas outras espécies de auditoria governamental – auditorias financeira e de conformidade.

No tocante ao quadro técnico, no TCU, com exceção de dois cargos em comissão de livre nomeação para cada gabinete de ministro e de ministro-substituto, todas as demais funções de confiança somente podem ser preenchidas por servidores concursados, requisito necessário para assegurar a autonomia da atuação do corpo técnico e sua atuação como órgão de Estado e não órgão de Governo.

Esse contexto me propiciou relevantes oportunidades de desenvolvimento profissional. Dentro da minha carreira de Auditor, tive a oportunidade de exercer diversas funções de direção e assessoramento: Secretário de Controle

Externo em São Paulo, Assessor e Chefe de Gabinete de Ministro, Coordenador-Geral de Controle Externo da Área de Desenvolvimento Nacional e da Região Norte, Coordenador-Geral de Controle

LUIZ AKUTSU 236

Externo da Eficiência e Transparência

Pública. Ao longo de minha carreira no TCU morei e trabalhei em diversas unidades da Federação: Aracaju – SE, Maceió – AL, Salvador – BA, São Paulo – SP e na sede no Distrito Federal.

Meu trabalho no TCU permitiu-me entender o enorme desafio de sua missão institucional: “aprimorar a administração pública em benefício da sociedade por meio do controle externo”. Refletindo a respeito, vejo que essa missão está alinhada com meu ikigai , mais especificamente ao aspecto

“do que o mundo precisa”. Esse senso de propósito, de refletir como a atuação do TCU pode contribuir para melhorar os serviços públicos, tem sido o pilar de minha busca pela realização profissional e pessoal.

Ao longo da minha carreira, nunca deixei de investir meu tempo em estudar (ou de meter gagá, no jargão iteano).

Diferentemente dos cinco anos do ITA, em todos os cursos que fiz tive que conciliar os estudos com o trabalho.

No período em que morei em Montreal, aproveitei para aprimorar minha fluência em francês e em inglês estudando em cursos de extensão de curta duração na McGill University. Em 1988 e 1989, estudei no Curso de Especialização em Administração para Graduados da Fundação Getulio Vargas –CEAG-FGV. Eu e colegas da Avibras e da Embraer íamos duas ou três vezes por semana (a depender das matrículas de cada semestre) de São José dos Campos a São

Paulo para estudar. Embora tenha abandonado o curso em decorrência de minha ida ao Iraque, o aprendizado de disciplinas de Administração no CEAG foi valioso para minha carreira e foi importante

não ter deixado de aproveitar essa oportunidade de estudar. Hoje vejo que esse esforço é menor quando somos jovens e temos mais energia física para acumular muitas atividades.

Tive plena noção dessa crescente dificuldade quando senti a necessidade de estudar Direito após meu ingresso no TCU e decidi fazer minha segunda graduação. Como cursava poucas disciplinas por semestre, priorizando matrículas no período noturno, acabei concluindo o curso em nove anos. Para a demora na conclusão contribuíram também minhas transferências e trancamentos de matrícula motivadas por minhas mudanças de cidade ao longo da carreira no TCU. Em tais ocasiões, algumas disciplinas não eram aceitas e tive que cursar outras novas em decorrência da diferença entre os currículos. Diferentemente do período no ITA, tenho pouco contato com meus ex-colegas do curso de Direito. Esse fato reforça minha convicção acerca de um dos principais legados do ITA: a convivência no H8 e a amizade construída na Turma 82. Seguindo o mantra “só o gagá constrói” ( copyright Tim Maia – o da Turma 82, não o cantor), cursei e concluí também mestrado e doutorado em Administração. Concluí os dois cursos em dois e quatro anos respectivamente, estimulado pela pressão que exercem em relação a prazos. O número de disciplinas cursadas também é muito menor do que nas graduações, fato que facilitou a conciliação entre horários de trabalho e de estudos. Senti enorme satisfação em concluir ambos. Além do conhecimento em si, reputo como valiosa contribuição desses cursos o treinamento de minha mente para o mundo acadêmico

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e para o método científico. Esse processo, iniciado no mestrado, foi mais impactante no doutorado – hoje, quando deparo com uma situação mais complexa no meu trabalho, automaticamente tento identificar quais são as variáveis mais relevantes e quais são as relações entre elas e o contexto. Dito de outra forma, agreguei ao meu viés de enxergar o mundo, inicialmente treinado na área de exatas, em cujos modelos raramente entram variáveis de comportamento humano, métodos da área de ciências sociais aplicadas, onde tais variáveis comportamentais são centrais.

Na esfera familiar, tive a felicidade de conhecer e me casar com minha cara-metade Rita em 1991. Meus saudosos pais inicialmente ficaram apreensivos com minha decisão, pois vislumbravam muitas dificuldades de minha convivência com os três filhos da Rita, mas logo após o casamento passaram a nos apoiar plenamente. Temos construído no plano familiar uma relação de muita admiração mútua, parceria e cumplicidade. Construí minha carreira no TCU mudando diversas vezes de cidade, e isso não teria sido possível sem o pleno apoio de minha família nessas decisões. Apesar de todas as minhas transferências de sede, a Rita construiu uma sólida carreira acadêmica que muito me orgulha. Não posso deixar de registrar minha enorme emoção e gratidão quando meus três filhos do coração, Marianna, Bárbara e José Roberto, resolveram incluir meu sobrenome ao nome deles, após completarem dezoito anos, tomando essa decisão de forma autônoma, e dando traços formais e simbólicos ao profundo amor que nos une. Nossa família cresceu

com os casamentos da Bárbara com o Paulo Henrique, do José Roberto com a Adriana e com o nascimento dos netos Maria Clara, Luiz Henrique, Maria Fernanda e Francisco, que iluminam nossas vidas. Retomando a reflexão sobre a influência do ITA e dos iteanos em nossas vidas e de quais legados deixaremos, destaco os seguintes pontos: o fortalecimento de nossa resiliência e capacidade de suportar pressão; a convivência em ambiente de respeito à disciplina consciente que fortalece a integridade e a confiança entre alunos e professores; o desenvolvimento da habilidade de buscar o conhecimento em questões novas e complexas e, principalmente, o desenvolvimento da habilidade de trabalhar em equipe, fruto da convivência no H8 e da amizade construída na Turma 82, que perdura até hoje. Essas habilidades e conhecimentos, desenvolvidos nos cinco anos que passei no ITA, foram essenciais para que eu pudesse enfrentar os desafios de minha vida profissional. Além desses aspectos, tendo cursado Direito na Universidade de Brasília (UnB), Mestrado na Universidade Federal da Bahia e Doutorado na UnB, pude constatar que minha graduação no ITA é sempre destacada quando me perguntam sobre minha formação.

Aprendi também, ao longo desses anos, que toda essa sólida formação acadêmica e as valiosas amizades somente fazem sentido em minha vida quando alinhadas ao meu ikigai , termo comumente apresentado como a conjunção de quatro fatores: (a) o que fazemos bem; (b) o que somos pagos para fazer; (c) o que amamos fazer; e (d) o que o mundo precisa. A formação acadêmica e experiência profissional reforçam os

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aspectos “a” e “b”; nosso senso de propósito nos direciona para alinharmos tais aspectos com “c” e “d”. Inspirando-me na citação sobre “o que é o sucesso”, na epígrafe deste texto, nossos legados pressupõem deixarmos o mundo um pouco melhor para as gerações futuras, amparados nos legados que recebemos de nossos antepassados e priorizando nossos propósitos de vida.

Próximo dos 40 anos de formatura, já tendo cumprido meus requisitos para me aposentar, continuo a trabalhar no TCU, refletindo sobre os rumos da minha vida profissional. Após trabalhar com engenharia, com administração financeira, auditoria governamental, direito administrativo e direito financeiro, vislumbro no momento experimentar um pouco a vida acadêmica. Desde fevereiro de 2020 tenho atuado como professor convidado na Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação

Getulio Vargas em Brasília (EPPG/FGV), oportunidade que tem sido valiosa por poder participar da implementação do curso de Graduação em Administração Pública,

cuja primeira turma ingressou em 2020, e pela oportunidade de conviver e aprender com jovens que iniciam o curso superior.

Uma das prioridades desta fase de minha vida tem sido cuidar da saúde. Em 2019 retomei meus treinos de judô, interrompidos pela pandemia e substituídos pelo ciclismo. No final de 2020 decidi mudar meus hábitos alimentares e consegui emagrecer, estimulado por ouvir diariamente que minha obesidade era um fator de risco adicional.

Antes de encerrar, gostaria de registrar que tem sido um enorme prazer participar de reuniões mensais da comissão do Álbum em conversas com Guigui, Afonso, Tim Maia, Auri, Diniz, Enderson, Massaki, Mayoral, Otto, Ruy, Sartorelli, Shinzato, Vagner e Bortman. Como refletíamos em nossas conversas iniciais na Comissão, a jornada – elaborarmos o Álbum – tem sido tão gratificante quanto o resultado (o Álbum em si). Que venham outras celebrações de nossa convivência e amizade da Turma 82!

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Butti

LUIZ ALBERTO BUTTI DE LIMA

A vida é absolutamente previsível: é imprevisível!! E dentro da minha história o futuro, em vários momentos, foi construído não pelo movimento dos anos ou meses, mas dos segundos.

Provo com um exemplo: como fui parar no ITA.

Nasci em Pouso Alegre há 61 anos. Lá, na adolescência, havia entre os meninos um modelo de sucesso: entrar no Colégio

Estadual, depois EsPCEx, aguentar os três anos para os mais duros, dois para os mais brandos – fiquei no segundo grupo; depois cursar o ITA ou IME – fui a sexta geração desse modelo.

Nada foi linear, e aí entra a minha tese da imprevisibilidade. Estas memórias, registradas depois de 40 anos, estão parcialmente

corrompidas pelo tempo e pelos próprios caminhos da vida. Mas eu queria entrar no ITA. Gostava muito de literatura, também de física e matemática, mas não pensei em escolhas nem me preocupei com isso – seria engenheiro.

Solon era o melhor aluno do colegial/ cursinho em Pouso Alegre. Éramos amigos havia vários anos. Ele já trazia a fama da inteligência e do xadrez. E eu terminava o colegial/cursinho em Itajubá, bom aluno também. Decidimos estudar juntos, o que resultou em algumas manhãs de sábado trabalhando no projeto – poucas. Abríamos os livros que assim permaneciam por todo o final de semana e saíamos para encontrar os amigos.

Minha segunda opção seria a Unicamp. Dentro da sistemática que existia no final de 1977, escolhemos Campinas como a cidade base onde prestaríamos os exames vestibulares. Teríamos as

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Saindo do ITA, novos aprendizados.
Enquanto as experiências no mundo do trabalho se tornam rapidamente obsoletas, estar aberto ao novo é um clichê – verdadeiro!

provas do ITA que seriam seguidas, imediatamente, pelas provas da Unicamp. Passado tanto tempo, aqui há uma lacuna; não sei se o Solon tem a mesma lembrança ou se, até mesmo, chegamos a revisitar esse momento em algum dia.

Penúltima prova do ITA, Física – era a matéria que eu julgava dominar. Nada funcionou naquele dia; ia pulando de questão em questão, sem sucesso. Na saída fomos direto ao Objetivo conferir o gabarito.

Decepcionado: minha nota era abaixo de 4, o que me eliminava da disputa! Ainda faltava a prova de desenho, que decidi não fazer.

Porém, correndo, veio o imprevisto operando o futuro. Na manhã do dia seguinte, meio-dormido no quarto da pensão que eu dividia com o Solon, refletia sobre não gastar meu tempo e energia na prova que não fazia mais sentido. Fui despertado desses pensamentos por ele, me convidando para ir. Diante da minha negativa, o futuro se armou numa frase: “Vem, nem que seja para me fazer companhia”!

Fui, sentei-me na carteira toda carcomida do colégio público, derrubei e quebrei meu compasso Kern de estimação, fiz a prova de qualquer forma e me desliguei daquele sonho de ITA – agora seria Unicamp.

O gabarito do Objetivo estava errado, e fui aprovado em segunda chamada. “Vem, nem que seja para me fazer companhia” e seu autor, Solon, me colocaram no ITA e num futuro totalmente diferente do que, segundos antes, estava se desenhando.

Agradeço ao Solon ou lhe dou uma porrada? Piada à parte, agradeço muito!!! Fiz no ITA muitos amigos-irmãos, amizade-irmandade construída na pressão da escola e na convivência do H8. Cresci em vários sentidos, também pela admiração de alguns mestres e na construção de valores (que palavra mais mal usada atualmente!) em que me reconheço.

Saindo do ITA, novos aprendizados. Enquanto as experiências no mundo do trabalho se tornam rapidamente obsoletas, estar aberto ao novo é um clichê –verdadeiro! Do emprego seguro na Embraer ao risco de criar uma fábrica de etiquetas, das etiquetas às embalagens em outra guinada na vida, pelas mãos de outro grande amigo-irmão, Schalka, das embalagens à sustentabilidade na Boomera, também pelas mãos de outro amigo, todos os processos partiram de relacionamentos verdadeiros e foram de risco e novidade – valeram muito a pena! E todos estariam como exemplos da mesma tese. Citei esses amigos por estarem nesses pontos de inflexão; os outros sempre estiveram comigo nesta jornada da vida.

Se há legados, dou testemunho do meu: amigos, irmãos, mestres, valores, vontade de aprender, coragem de mudar e amores verdadeiros são os caminhos que importam na vida.

Calma! No cata-vento destes testemunhos sempre sopram o vento e o futuro. E nos carregam!

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 241

Adinho

LUIZ EDUARDO FALCO PIRES CORREA

Sempre fui muito competitivo. A verdade é que gosto de aviões – realmente gosto muito deles e me fascina ver a criatividade do ser humano em construir essas máquinas que executam todos os tipos de missões possíveis e até algumas inimagináveis

Quando era pequeno, assim como alguns dos colegas do ITA, desenhei, construí modelos de plástico, construí aeromodelos e, finalmente, projetei os meus próprios aeromodelos com o pouco conhecimento que tinha.

Assim, não foi difícil escolher a profissão e saber que o ITA seria uma parte importante do meu caminho.

Uma vez vencida a difícil etapa do vestibular, encontrei-me em uma faculdade que, com todas as suas particularidades – o que inclui a oportunidade única do convívio no H8 –, iria não apenas saciar as minhas curiosidades técnicas mas, sem que eu soubesse ou esperasse, também me ensinaria a ser uma pessoa preparada para vencer outros desafios que a vida nos prepara.

Realmente seria uma injustiça não reconhecer que qualquer faculdade ajuda a forjar o caráter de uma pessoa,

mas o ITA, com as suas peculiaridades, forja sempre um pouco mais.

Estava aí um ensinamento muito importante, pois ganha a guerra quem insiste cinco minutos a mais. A resiliência, apesar de difícil, é uma característica fundamental dos desafios que enfrentamos.

Nunca devemos desistir!

A minha vida profissional pode ser resumida em três projetos.

O primeiro foi participar de uma empresa pequena de aviação regional e ajudar a transformá-la na maior empresa ao sul do equador do planeta. Prazo: 20 anos. Dificuldades: todas. Ensinamentos: trabalho, humildade e time.

O segundo, já com alguma experiência, foi ajudar a formar um time e lançar uma startup de telefonia móvel, quarta entrante no mercado, e conseguir ser líder. Prazo: 10 anos. Dificuldades: todas. Ensinamentos: trabalho, humildade e time.

O terceiro foi juntar-me a um time já experiente e acelerar uma operadora de turismo, transformando-a na maior operadora das Américas, com expansão pela Argentina. Prazo: 6 anos. Dificuldades: todas. Ensinamentos: trabalho, humildade e time.

Parecem grandes? Nem tanto!

Não tinha a menor ideia do desafio quando neles entrei. Apenas achava que poderia dar a minha contribuição.

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Em comum, em todos esses projetos, além da humildade de aprender e do time em que estamos sempre juntos, as quatro palavras que nos seguem na vida profissional: Oba, Epa, Upa, Ufa.

Oba, sempre que você resolve encarar um desafio.

Epa, quando logo no início você se dá conta de que o caminho será longo.

Upa, quando um dia após o outro você encara todos os desafios e dificuldades que aparecem pela frente.

Ufa, quando – e se – você consegue chegar aos seus objetivos e passar o seu trabalho e legado para os que irão conduzi-los dali para frente.

No final, apenas um ensinamento para todas essas etapas: a vida não tem atalhos, porém nada resiste ao trabalho.

Vejo as novas gerações vindo com algumas ideias e comportamentos diferentes, e é muito bom que seja assim, já que os jovens é que transformam o mundo, pois são ambiciosos e inconformados. Junte-se a essas características um pouco de humildade e ética e teremos um profissional muito capaz.

Humildade, pois a vida mostra que só se aprende com os humildes. Ética, pois ela é a âncora de todos os valores.

Independentemente da trajetória de cada um, vejo que aqueles que escolhem caminhos que lhes dão mais satisfação e menos aborrecimento conseguem mais frequentemente estar em paz com eles mesmos. No final você descobre que está competindo apenas consigo mesmo.

Por isso as etapas conquistadas nos projetos mencionados acima, apesar de serem bacanas, não deveriam ser consideradas isoladamente, pois estão apenas no plano da carreira profissional. Existem outros planos existenciais e espirituais que contam com outros tipos de medidas e reconhecimentos, fundamentais para a nossa trajetória pessoal.

Continuo gostando muito de aviões, continuo admirando as máquinas metálicas que cruzam os céus. Às vezes estou no comando deles, apenas para tirar o pé do chão. Tanto faz qual é o avião; pode ser antigo ou moderno – cada um tem a sua personalidade, e você sempre aprende a respeitar cada um deles.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 243
Em comum, em todos esses projetos, além da humildade de aprender e do time em que estamos sempre juntos, as quatro palavras que nos seguem na vida profissional:
Oba, Epa, Upa, Ufa.

Passei a gostar de pessoas muito mais do que eu gostava, apenas entendendo e respeitando as suas características individuais.

Passei a ser competitivo apenas nos assuntos que valem a pena.

Finalmente, passei a escolher as minhas batalhas, saber quais realmente valem a pena e quais podem me trazer algum ensinamento.

Vejo-me agora junto com este time de campeões, escrevendo este Álbum, tentando, sinceramente, dar a minha contribuição para os que virão, celebrando junto com os meus amigos do ITA esta chance, não apenas de passar algo para frente, mas principalmente de escrever algo junto com eles.

Cada um de nós fez e continua fazendo as suas escolhas individuais que às vezes têm muito pouco em comum neste grupo. Porém continuamos ligados – e parece que cada vez mais. A sensação é de que com o passar do tempo estamos mais tranquilos e em paz, e isso nos permite ser mais audaciosos.

Se o ITA ajudou em tudo isso? Para mim ele foi e continua sendo uma batalha que forjou a minha personalidade; uma guerra que eu não hesitaria encarar novamente. Afinal, apesar das cicatrizes das batalhas, somos todos vencedores das escolhas que fizemos.

LUIZ EDUARDO FALCO PIRES CORREA 244

Jether

LUIZ JETHER DE HOLANDINO VASCONCELOS

MEMÓRIAS DE UM ENGENHEIRO

Vou começar pelo fim. Faria tudo novamente nesses mais de 40 anos de jornada; todos os acertos e erros (e outros mais antes do ITA). A vida tem sido boa ao lado da família. O somatório é positivo, mas a gente também erra e acho que isso faz parte da vida, do aprendizado, pois o ITA não prepara para os desafios vividos em todos os aspectos, mas com certeza foi uma escola de excelência.

Sou casado com a mesma esposa, Therezinha, desde que saí do ITA. E foi rápido; logo no ano seguinte, em 1983. Tivemos uma filha, a Andrea, nascida em 1987 e que está casada e nos deu um neto, Gabriel, em março de 2022 (quem sabe um outro engenheiro na família?).

Eu fiz engenharia aeronáutica no ITA e, como havia optado pela carreira militar, assim que terminei o curso, no final de 1982, fui para a Divisão de Ensaios em Voo no antigo CTA. Cheguei novinho, em 1983, um pouco contrariado porque queria ser transferido para o Rio de Janeiro (sou carioca, né?), mas não havia jeito. O jeito foi encarar que negócio era aquele de ensaios em voo. E não é que tomei gosto pela coisa? Lá se vão 40 anos trabalhando com ensaios em voo.

Lembro que após um breve período preparatório, fui para os Estados Unidos

fazer um ano de curso de ensaios em voo na USAF Test Pilot School (para quem já ouviu falar, é aquela mesma no meio do deserto de Mojave, na Califórnia, onde os americanos voam seus protótipos militares). Fui novinho para as terras “gringas” e lá cheguei no Natal de 1983, recém-casado, e minha esposa, Therezinha, filha de portugueses de família muito unida, chorou copiosamente no meio da primeira noite de Natal em terras estranhas... Fiquei atônito; afinal, para mim, aquilo era pura aventura!

O ano de 1984 passou, conheci muitos colegas de outros países, todos muito mais velhos como pilotos. Havia também na mesma turma meu colega Capitão Louzada, piloto da FAB. Encontramos lá com uma outra turma (formada já havia seis meses) fazendo o curso, em que estava o Ary (também da Turma 82 do ITA) e outro piloto da FAB, o então Capitão Rigobello. Reparei que o curso do ITA me deu tranquilidade no que diz respeito aos aspectos teóricos das matérias, entretanto uma coisa boa que aprendi lá era aplicar e praticar a ciência aeronáutica com a mão na massa, testando aeronaves de vários tipos, caças, aviões grandes e outras “coisas” que voavam.

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Também foram momentos de tensão, perigo, alegria e realização. Perdi colegas e um professor em acidentes de voo naquele mesmo ano. Era um pouco desprendido e não me importava muito com o perigo (talvez por aventura), senão acho que nunca mais entraria numa aeronave para testes de voo.

O ano passou, voltei para o CTA para trabalhar com ensaio em voo. Permaneci por vários anos como tenente e capitão na atividade de ensaio. Coordenei vários programas de ensaio em projetos de interesse da FAB. Lá se foram cinco anos e acabei por me envolver no novo projeto de caça da FAB, o AM-X, que estava sendo construído por um consórcio da Embraer com as italianas AerMacchi e Alenia. Fui para a Itália em 1990 com a família (mulher e filha) por dois anos, para trabalhar nesse programa na área de ensaios em voo. Fiquei alocado no RSV (Reparto SperimentalediVolo) em Roma. Nessa missão eu estava com mais dois colegas, o Ary (Turma 82) e mais um piloto, nosso velho conhecido Major Rigobello, chefiando a equipe de ensaio brasiliana . Dessa vez, diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos, a Therezinha amou a vida na Itália; tudo foi prazeroso porque ela se identificou com muita coisa do

modo de vida italiano – comida, arte, cultura, música, história e a beleza do lugar. Fomos também num momento de mudança na Europa. Cheguei a tempo de assistir à queda do Muro de Berlim, com o mundo se transformando. Enquanto isso, em terras tupiniquins, acontecia o confisco da poupança, do Collor...

Findo o tempo na Itália, voltei ao CTA para uma nova contribuição em várias áreas na Divisão de Ensaios em Voo; passei pela chefia da instrumentação de ensaios em voo, também como instrutor no incipiente curso de ensaios em voo (CEV). Nessa época outros eventos tristes ocorreram e perdemos alguns colegas pilotos e engenheiros de ensaio com acidentes aeronáuticos ocorridos ali em São José dos Campos. Caiu a ficha! Realmente a atividade de ensaios em voo não permitia nem um pequeno erro e o jeito era rever os conceitos e melhorar a capacidade, e estabelecer novas metas. Foi aí, por volta da virada do milênio, que comecei um curso com matérias isoladas de mestrado no curso em engenharia aeronáutica e mecânica do ITA, na área de mecatrônica e dinâmica de sistemas aeroespaciais. Meu objetivo era iniciar uma tese sobre identificação paramétrica das equações de estabilidade de aeronaves a partir de dados de voo, onde se

LUIZ JETHER DE HOLANDINO VASCONCELOS 246
Era um pouco desprendido e não me importava muito com o perigo (talvez por aventura), senão acho que nunca mais entraria numa aeronave para testes de voo.

poderia obter muito mais dados da aeronave (derivadas de estabilidade) com um conjunto razoavelmente simples de manobras de voo. Foi a duras penas que eu voltei à sala de aula no ITA para fazer as matérias do mestrado e procurei o professor Góes, da área de Mecânica Aeronáutica, para iniciar a tese. Bingo! O professor Góes era o “cara” perfeito para o que estava procurando: uma tese com conteúdo “pragmático” e aplicação imediata no ensaio em voo. Colheria os dados num voo do jato Xavante da FAB, “burilaria” os dados no formato adequado para entrar numa matriz de dados do Matlab e... pronto! Bem, não foi assim fácil. Quebrei a cabeça, foram muitas noites mal dormidas e finais de semana gastos para tentar fazer com que as equações de estabilidade e o método de identificação conversassem e “cuspissem” números decentes para as derivadas de estabilidade do Xavante. Finalmente, vi os resultados coerentes em 2002, e minha defesa de tese de Mestrado ocorreu a contento. Enquanto isso, já estava de saída da Divisão de Ensaios em Voo e indo para o IFI, mas ainda dentro do CTA. Entretanto, esse não foi o fim do meu trabalho com ensaios em voo. Só mudei de área para trabalhar com certificação de aeronaves civis, também com ensaios em voo. O CTA precisava de engenheiros nessa área, havia muito trabalho a fazer com o recente produto da Embraer da família E-Jets, a começar pelo 170. Que eu saiba, foi um estrondoso sucesso comercial mundial da família E-Jets, produtos que já

nasceram da “nova” Embraer privatizada. A família dos E-Jets mostra um histórico impecável de segurança das aeronaves, o que creio ser em parte uma contribuição da certificação feita pelo CTA na época, e hoje ANAC, e tive o orgulho de ser parte do esforço de certificação brasileiro. Em 2004, finalmente, achei que deveria interromper a minha carreira como militar e começar a trilhar um novo caminho na área civil dentro da estrutura da recém-formada agência de regulação brasileira ANAC, como assessor técnico. Que área havia escolhido para atuar? Obviamente permaneci nos ensaios em voo, e desde então permaneci na ANAC até os dias atuais. Lá se vão muitos projetos, sempre acompanhando os avanços da Embraer, como o novo cargueiro EMB-390, a nova família E-Jets E2 e muitos outros.

Sem trocadilho, o tempo voa para mim e parece que ultimamente ele passa célere. Dizem que o tempo voa quando a vida está boa e você não olha para trás e está sempre procurando desafios à frente. Neste momento, com a desaceleração forçada pela pandemia da covid-19 e o trabalho de casa, parei para relembrar o passado e escrever estas linhas.

Há um mês iniciei um período sabático e – quem sabe? – vou procurar novos caminhos. Acho que o futuro ainda me reserva boas experiências.

Fiquem bem, com a graça de Deus. Ah! Sim, sou cristão...

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 247

Marcel

MARCEL LEDON

Lembro-me bem: pegava meu aviãozinho de brinquedo e entrava, todo orgulhoso, no teco-teco que meu pai pilotava um ou dois domingos por mês no Campo de Marte em São Paulo e, depois, no aeroporto de Jundiaí. Estava decidido no meu coração de criança: trabalharia com aviões. O sonho se realizaria anos mais tarde, ao cursar engenharia aeronáutica no ITA, e ao cabo de gloriosos cinco anos, com o diploma na mão, trabalhando em ensaios em voo na Embraer e, de fato, voando e ajudando a homologar avião!

Digo “gloriosos” com não dissimulada ponta de ironia. Ainda hoje, esse período está impregnado de uma estupenda mistura de sentimentos, sensações e recordações, positivas e negativas. O aspecto militar do ambiente, em plena ditadura ainda por cima, foi dos mais pífios. Por ironia do destino, acabaria levando um indesejado prêmio disciplina (!!) do “CEPORRA” (em conotação propositadamente pejorativa), simplesmente porque acreditava no valor da coerência; afinal, se não quisesse me submeter à escola, bastava voltar à Poli, na USP! E ainda me lembro da noite passada dormindo no meu Fiat 147, para

escapar do “carinho” que meus colegas me reservavam no H8, parabenizando-me pelo prêmio que receberia no dia seguinte.

Quanto ao ensino, bem, é claro, puxadíssimo! Mas quando penso na capacidade pedagógica dos denominados “mestres”, emociono-me ainda hoje de tão grande incompetência – salvo algumas honrosas exceções –, acobertada pelo grande conhecimento – salvo, de novo, outras não tão honrosas exceções… – das matérias que transmitiam (propositadamente não usei o verbo “ensinar”).

Mas então, valeu? Claro, sem hesitação, e por pelo menos dois simples motivos: a escola realmente prepara para os desafios profissionais e, no meu caso, para a polivalência de que tanto precisaria na minha carreira bem diversificada, uma vez a bruma da minha ingênua paixão de infância por aviões dissipada pelo sol da descoberta de tantas outras especialidades em múltiplas indústrias mundo afora. O segundo motivo, que por falta de maturidade só viria a reconhecer após frequentar outros meios universitários e profissionais, é ligado a essa fantástica presença de um esprit de corps iteano, tão autêntico, tão sólido e perene, sustentando valores preciosos como amizade, solidariedade, convivência e união.

Das águas por ora turvas e tempestuosas de um aprendizado laborioso e

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frequentemente extenuante emergiram qualidades ímpares das quais destaco a resiliência, essa capacidade de luta que tanto me serviria nas décadas seguintes, pessoal e profissionalmente. E, sim, viria a me confrontar com pessoas inconscientes e hipócritas ao longo dos anos, mas havia aquele escudo do foro íntimo, formado também graças ao convívio com os colegas iteanos, protegendo-me pela lembrança de que existem pessoas inteligentes e virtuosas ao mesmo tempo, capazes de ajudar e construir relações de apreço e amizade genuínas.

Os anos na Embraer me presentearam com algo que nunca mais encontraria em lugar algum: reconhecimento , além do salário, dando aquela satisfação pelo dever cumprido, expresso em palavras e gestos por colegas de trabalho. Depois, foram grandes pulos fora do ninho joseense. Primeiro, em São Paulo, em pequena empresa familiar de fabricação de bombas hidráulicas, onde aprendi a gerenciar equipes e tocar um negócio… com membros da família (um aprendizado como poucos!). Mas vieram Collor e os absurdos de um Brasil atolado em dificuldades políticas e econômicas, e a necessidade de injetar know-how na minha empresa para enfrentar um mercado

tornado mais competitivo após a súbita liberação da importação de produtos. Assim, juntando o útil ao agradável, decidi partir à caça de parcerias industriais na Alemanha, ao mesmo tempo que satisfaria a sede de conhecer minhas origens franco-germânicas. Após uma especialização na Universidade Técnica de Braunschweig e contatos infrutíferos com empresas alemãs, decidi-me por um MBA no Insead, na França, que literalmente me abriu o mercado de trabalho europeu, o que infelizmente o diploma do ITA, somente, não teria permitido.

São trinta anos fora do Brasil… Uau! Jamais pensaria percorrer mais de trinta e cinco países, dos quais quinze também a trabalho, e viver em cinco deles! Talvez venha a escrever um pouco, num painel para o Álbum da Turma 82, sobre o que foi e ainda é viver fora da Terra Brasilis .

Em termos profissionais, o ITA me forneceu as ferramentas indispensáveis para encarar os desafios do mundo profissional, do ponto de vista técnico e também do ponto de vista humano, no que tange à formação do caráter e da têmpera, para superar as dificuldades com flexibilidade e espírito de luta. É claro que as outras escolas frequentadas permitiram

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Se tivesse sete vidas, usaria cada uma delas de forma totalmente diferente, usando o conhecimento de uma para tornar a seguinte ainda mais maravilhosa.

abrir o leque ainda mais, sobretudo no âmbito internacional. No entanto, o acesso a elas não teria existido sem o diploma inicial, bem reconhecido academicamente fora do Brasil.

Tive a satisfação de contribuir nas indústrias mecânica, automotiva, aeronáutica, eletrônica, alimentícia, farmacêutica, e de papel e celulose, em funções de desenvolvimento e projetos, produção, supply chain , alianças estratégicas, parcerias industriais e licenciamentos, como engenheiro, gerente, diretor e consultor.

No âmbito pessoal e das relações humanas, o périplo descrito não transcorreu em águas tão mansas. Creio que nisso nossa escola poderia ter contribuído ou formado melhor, pois a influência militar certamente não facilitou essa abertura a preparar melhor o estudante psicologicamente e desenvolver suas habilidades interpessoais e sociais, incluindo as tão necessárias soft skills .

Sem dúvida, uma grande vantagem em se diplomar no ITA é a competência adquirida, o que, de uma maneira ou de outra, muito facilita o acesso ao mercado de trabalho e, por conseguinte, a uma vida relativamente ao abrigo de grandes dificuldades financeiras. Infelizmente, sempre existe a possibilidade de se deixar arrastar no torvelinho da hiperatividade, de sempre querer mais, inclusive materialmente, à sombra de um ameaçador e escuso workaholism … Para minha surpresa, e apesar de uma suposta

proteção adquirida com a prática contínua de artes marciais por meio século e de estudos filosóficos abrindo o caminho a uma certa sabedoria e espiritualidade, cedi à tentação a ponto de adquirir uma maldita hipertensão que me levaria a um AVC às portas de meus sessenta anos… Hoje, como jovem pré-aposentado, vivendo a alguns passos do Château de Versailles na França, levo uma vida bem mais tranquila, cuidando da saúde ao máximo, da família e enfrentando outros tipos de desafios, incluindo os cuidados ao meu filho autista. Ficaram aquela curiosidade e sede de saber, enaltecidos pela passagem pelo ITA. Ficou também aquela saudade do meu Brasil, maravilhoso e sofrido, deitado eternamente em berço esplêndido e impedido de se erguer como grande nação, década após década. Então, quando posso, volto ao meu pied-à-terre , lá no ensolarado Ceará, à sombra dos coqueirais, tendo a brisa do mar como contínuo acalento.

Faria tudo de novo? Claramente, NÃO!!!

E por que faria? Para quê? São tantas opções viáveis, tantas alternativas, experiências e descobertas deixadas no limbo de um tempo inefável. Se tivesse sete vidas, usaria cada uma delas de forma totalmente diferente, usando o conhecimento de uma para tornar a seguinte ainda mais maravilhosa. Afinal, há outros ITAs por aí... embora nesta vida não teria trocado o nosso por nada.

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Bortman

MARCELO BORTMAN

Minha história conhecida “começa” no início do século passado, com a vinda das famílias de meus quatro avós para o Brasil por conta do ambiente hostil aos judeus na Polônia, na Romênia e na Rússia. Nesses países, as famílias preferiam enviar seus filhos homens para o exterior, pois não era raro que os jovens judeus convocados para o serviço militar voltassem para casa cegos de um olho, com tímpanos estourados ou aleijados.

Elias, meu avô materno, era de uma cidade polonesa de nome Chelmn (se fala “Relem”), considerada a “Portugal” da Polônia no tocante a estórias engraçadas ou piadas. Por incrível que pareça, um ramo de sua família emigrou para os Estados Unidos, e um primo próximo do meu avô venceu essa barreira e se tornou um grande astro de Hollywood: Gregory Peck. Meu avô Elias era um sujeito lutador, esforçado e bom de papo: fez fortuna, nas décadas de 1940 e 1950, vendendo luvas longas e casacos de pele – visom – para senhoras da alta sociedade do Rio de Janeiro. Depois criou uma rede de lojas de sapatos e bolsas, muito famosa na década de 1960, chamada Groenlândia (só vai se lembrar quem, dos nossos amigos, circulava pela zona sul do Rio de Janeiro). Na época, Botafogo e Copacabana eram top , Ipanema e Leblon eram muito wild e só havia ali casas e pequenos prédios. A Avenida Atlântica tinha

apenas uma pista e em Copacabana apenas havia prédios até a Avenida Barata Ribeiro, depois somente casas (ruas que lembravam muito as das pequenas cidades do interior).

Nasci em São Paulo. Meu pai era filho do avô romeno (Marcos) e da avó ucraniana de Odessa (vó Catarina, um doce de pessoa).

Meu pai se formou como engenheiro civil e industrial pelo Mackenzie, tinha uma carreira bem-sucedida, era executivo de uma multinacional chamada Norton.

Em 1965, meu avô Elias havia decidido montar uma grande fábrica de sapatos e bolsas e se endividou bastante para isso. Assim, meu pai foi convidado a mudar-se com toda a família para o Rio de Janeiro, para ajudar a gerir o lado financeiro e operacional da empresa.

Em três anos a Groenlândia foi à falência. Era normal que empresários falidos conservassem parte do patrimônio em lugar “seguro”, mas não foi esse o caso. Vivemos uma rotina de penhoras de bens e muitas visitas de oficiais de justiça.

Fiz o primário no Rio de Janeiro, na época em que as escolas públicas eram muito concorridas por conta da qualidade (como o famoso Colégio Pedro II) e havia uma espécie de minivestibular para acessá-

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las, chamado “exame de admissão”. Fui colocado numa espécie de “cursinho preparatório”. Era na sala de jantar da casa de uma professora chamada Dona Guita. Na pequena sala cabiam apenas 6 pessoas. Dona Guita, professora aposentada, já deveria ter seus 70 anos. Ela tinha uma metodologia de ensino interessante para português e, principalmente, para matemática (cada tipo de racional/ problema matemático tinha um nome marcante). Por outro lado, ela não tinha muita paciência com os erros dos alunos: atirava o que tivesse à mão (lápis, giz, apagador) ou, se estivesse perto, descia a mão mesmo.

Em 1971, meu pai voltou a São Paulo e começou a trabalhar como engenheiro civil. Vivemos alguns anos morando meio apertados no apartamento de meus avós paternos, mas estudamos num colégio particular graças ao enorme esforço do meu pai. Em alguns anos, ele conseguiu comprar um carro (Fusquinha marrom/caramelo) e, um pouco depois, um apartamento.

Meu avô Elias não ficou parado: montou uma pequena oficina no apartamento em que morava em Copacabana, fazia bolsas (cópias das Chanel que via em fotografias) e as fornecia aos “camelôs”, ambulantes que vendiam de tudo nas esquinas da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.

Trabalhava feliz da vida, 10 horas por dia, até vir a falecer de um enfarte. Eu, desde cedo, procurava não ser um peso financeiro para meus pais. Ficava muito atento e vivia preocupado com a saúde financeira da família. Assim, sempre fui muito aplicado nos estudos, principalmente em matemática ou quaisquer outras coisas relacionadas a ciências e conhecimentos gerais.

Cursei o ginásio no Colégio Baptista Brasileiro, no bairro de Perdizes, que na época estava dividido em grandes terrenos: muitas casas construídas ou lotes vazios, ainda por construir. Era o colégio onde estudavam meus primos mais velhos. Um prédio bastante antigo e muito bem conservado. Tinha uma biblioteca maravilhosa, pequena, com pé-direito alto, toda feita com prateleiras de madeira que iam de cima a baixo, com milhares de livros. Havia uma escada e um mezanino pequeno para acessar a parte superior das prateleiras. Além dos livros, havia revistas, como a National Geographic , as quais eu ficava horas folheando, sob o olhar atento da bibliotecária, uma senhora de mais de 70 anos (nunca soube quantos mais), com o rosto coberto de maquiagem, que se assemelhava a uma máscara de múmia. Bastava adentrar a biblioteca e parecia ter sido transportado para outra dimensão,

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Bastava adentrar a biblioteca e parecia ter sido transportado para outra dimensão, onde o tempo não passava.

onde o tempo não passava. Lembro-me muito bem do silêncio e do cheiro dos livros misturado com o cheiro da madeira das estantes, da mobília e do assoalho.

O colegial fiz no Colégio Bandeirantes. Cursei a área de biológicas, pois ainda não havia decidido qual seria minha carreira. Somente decidi fazer engenharia no 3º ano, com a grande ajuda de um amigo, Arnaldo Lopes Colombo, que já tinha optado por ser médico. Ele me levou para conhecer o necrotério de uma faculdade de medicina, onde se preparavam “peças” (órgãos humanos para estudos), e ficou claro que medicina não era minha praia (até hoje não posso ver alguém tomando uma injeção, e eu mesmo preciso me deitar para uma coleta de sangue). Nessa época, eu também descobri que pessoas muito inteligentes gostam de estudar de madrugada. Odiava quando o Arnaldo me convidava para estudar com ele em sua casa. Ele ficava enrolando e papeando até tarde e começava a estudar apenas por volta da meia-noite, quando me batia um sono incontrolável e eu acabava dormindo com a cabeça na mesa ou procurava um lugar para me encostar, sem nada estudar.

O Arnaldo e eu solicitamos bolsas de estudos no Colégio Objetivo, mas quando comunicamos ao Bandeirantes nossa saída, nos ofereceram bolsas de estudos integrais.

Resultado: ficamos no Bandeirantes, mas frequentamos um cursinho avançado que o Objetivo oferecia há alguns alunos. Lá conheci professores inesquecíveis: o Nasser e o Heródoto Barbeiro. Era um arranjo interessante para todos, mas extremamente antiético, pois, se de um lado tivemos acesso a aulas maravilhosas, de outro passamos por alunos do Colégio

Objetivo quando da nossa aprovação no vestibular. Isso me incomodou muito, ainda mais quando me chamaram para pegar uma mala cheia de livros que iria usar no primeiro ano da faculdade de engenharia.

O 3º ano colegial no Bandeirantes foi totalmente diferente dos demais: muito intenso e com muita informação – acho que 50% da matéria do colegial era dada naquele ano, com aulas em período integral em quase todos os dias, muito foco em conhecimentos gerais, professores especiais (destaco o Edson Simões, professor de geografia, história, literatura, artes, política etc., que posteriormente foi vereador na cidade de São Paulo). Por conta da negociação com o Objetivo e o Bandeirantes, acabei me matriculando mais tarde e ficamos numa classe mista (o que era uma exceção no Bandeirantes e era onde eles “jogavam” os alunos mais fracos ou que gostariam de seguir uma carreira diferente de medicina ou engenharia). Foi um espetáculo – muita gente diferente, com vocação para jornalismo, matemática, advocacia, letras, história...

Até então só tinha ouvido falar do ITA por conta das séries de questões de vestibulares dos anos anteriores que fazíamos. Não sabia onde era, o que era ou como era. Tomei um susto quando me falaram que eu deveria me preparar em geometria analítica! Não sabia o que era isso. Como resultado tive que fazer um curso no Anglo e pedir para assistir a algumas aulas no próprio Bandeirantes.

Inscrevi-me no ITA, na Fuvest (Poli) e na Mauá. O ITA foi o primeiro a divulgar a lista de aprovados e tomei um susto quando um amigo me ligou e disse que tinha visto meu nome na lista. Um bando de colegas

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do Bandeirantes invadiu a minha casa. Cortaram meu cabelo, pintaram meu rosto e me levaram para a rua para comemorar. Daquela turma eu era o primeiro a entrar na faculdade e, de certa forma, um sinal de que havia esperança para todos. Entrei também na Poli e nem fui fazer o vestibular da Mauá.

A primeira impressão que tive do ITA foi péssima: no dia da matrícula, fui informado de que teria que ficar mais alguns dias para fazer exames médicos, visando o CPOR. Eu tinha ido a São José apenas com a roupa do corpo. Naqueles dias, comecei a aprender como o CPOR iria ser uma pedra no sapato no curso de engenharia: havia um sujeito brilhante, que fazia parte de um grupo de pessoas de várias idades que projetavam e faziam lançamentos de foguetes, e que, infelizmente, por conta de um defeito físico, acabou sendo rejeitado para o CPOR e, portanto, para o ITA. Resultado: ele foi estudar no Technion, a melhor faculdade de engenharia de Israel, e o Brasil perdeu um grande especialista em foguetes.

Pensei em cursar a Poli. Tentei por uma semana – não tive a maioria das aulas, pois os professores simplesmente não compareceram; era tudo muito confuso, desorganizado, e muito sujo. Optei pelo ITA. No início, foi muito difícil: eu dormia em São Paulo, e fazia bate-e-volta com o Pássaro Marrom, pela manhã e no fim da tarde. O H8 era um lugar cheio de gente que eu não conhecia, todo mundo se achando, sem fechaduras nas portas, sem privacidade.

Só no fim do primeiro ano comecei a me acostumar. Os colegas do 116 tiveram uma baita paciência comigo: eu era um sujeito que ficava de cara fechada o dia todo, reclamava da comida, dos horários

apertados, do frio, do calor, da sujeira, dos mosquitos, do CPOR e, no fim do ano, das cigarras. Ganhei do Marcel Ledon um diploma de menção honrosa (PUT-22), do qual me orgulho muito. Difícil não quebrar o gelo com as idiossincrasias do comportamento dos colegas... O Ruy, quando tinha uma prova difícil, colocava a cama na vertical, encostada na parede, para poder estudar sem ser tentado a dormir, o que invariavelmente acontecia, pois ele acabava caindo e dormindo na cama do Mauro. O Reinaldo e o Carmo ficavam fazendo nada/tudo até à meia-noite e aí sentavam e estudavam até o dia seguinte. E quem conseguia acordar o Reinaldo pela manhã para tomar café e assistir à aula ou fazer prova? Chacoalhavam, chamavam, falavam dos iogurtes do café da manhã... – quando ele acordava, parecia um bêbado, e mais de uma vez tive que acordá-lo no meio de uma prova. Em aula, então, nem se fala! Mas nunca vi o Reinaldo bravo ou de mau humor. O Mauro se arrumava todo para o estudo noturno: tomava seu banho, vestia um pijama impecável, pegava uma caneca de chá e, após uma hora, começava a pescar e a babar – era o sono chegando. O Suguita era uma esfinge: raramente falava, sempre muito focado nos estudos – talvez o mais esforçado de todos nós – mas quando saíamos para tomar umas e ele ficava bêbado, quem aguentava?

O 116 foi uma grande família, e ficamos juntos pelos cinco anos. Passamos juntos por altos e baixos: comemorações dos aniversários com corridas noturnas na ponte do Rio Paraíba, jogos de War que significaram algumas segundas épocas e muitas bebedeiras. O 116 criou algumas situações muito embaraçosas para a

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Turma 82. Em uma delas, no segundo semestre do 2º ano fundamental, anunciamos para a turma que haveria uma lista no 116 para ser assinada por quem quisesse mudar de carreira e, pasmem, uma outra lista para quem não quisesse. O incrível foi que naquela noite muitos foram lá para assinar uma ou outra lista e tomaram uma velva inesquecível. Descobri que, em geral, o iteano não suporta bancar o perdedor sozinho –todos os que passaram pelo vexame de tomar a velva, saíam de lá pianinho e ficavam calados, torcendo para ver outros passando pela mesma experiência. Os anos da faculdade avançavam e eu ainda não tinha encontrado minha vocação. Não havia uma matéria específica de que eu gostasse mais ou com que me identificasse. Havia, sim, muitas que eu não suportava: antenas, laboratórios de circuitos, eletromagnetismo, motores elétricos etc. Era difícil visualizar como seria minha vida profissional, como seria minha relação com a engenharia. Na CV, quando o Afonso, o Schalka e eu viajamos juntos todo o tempo, identifiquei mais alguém que também não se via engenheiro. Numa carona para voltar a São Paulo, o Schalka me avisou que sairia com atraso pois antes ele iria a um coquetel de recrutamento do Citibank no Novo Hotel – famoso pela qualidade e quantidade de bebidas e comidas servidas. À procura de trainees , o Citibank fazia uma palestra apresentando o Banco e levava alguns iteanos contratados em outras safras para relatar suas experiências. Como eu não tinha uma alternativa de carona, fui beber e comer e acabei me inscrevendo para uma entrevista

no Banco. Aí começou verdadeiramente minha carreira profissional.

O Citibank era o maior banco americano, o maior banco estrangeiro em atuação no Brasil e o maior credor do país. Era considerado o melhor programa de trainees do mercado brasileiro. Sua proposta era recrutar nas melhores escolas e treinar os jovens durante dois anos em todas as áreas do banco, para conhecerem o funcionamento como um todo. Essa era a grande sacada do Citibank – fazia a diferença entre um bancário que conhecia profundamente suas funções e seu nicho de mercado de atuação e um banker , que conhecia profundamente todas as áreas e podia ter a visão macro do mercado financeiro. Foi muito bom aprender a entender todos os setores da economia, quem eram os líderes, quais eram os números, quais eram os riscos e quais eram os fatores limitantes econômicos e financeiros dessas corporações. Por outro lado, você passa a entender de política monetária, política fiscal, papel do Banco Central, CVM, Susep etc. O Schalka e eu fizemos juntos esse programa de trainees . Nossa turma tinha gente com todo tipo de formação e posso dizer que foi muito divertido. Mas logo ficou claro que a carreira no Citibank seria muito limitada para ele, e em dois anos ele saiu.

Confesso que me surpreendi com o alto nível de inteligência de algumas pessoas que conheci. Primeiramente, identifiquei a turma de gênios mais quantitativa: era o pessoal que sabia fazer conta, comparava as curvas de juros futuras das mais diferentes moedas, projetava inflação implícita, fazia a correlação do clima com a demanda por serviços, com a oferta

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de cimento e com o preço do minério de ferro e o preço do petróleo. Eram pessoas capazes de precificar quase tudo, através de uma simples HP 12C. Naquela época, os computadores pessoais ainda não eram facilmente encontrados; havia apenas alguns importados por baixo dos panos (graças à famosa reserva de mercado da informática); a planilha eletrônica disponível ainda era o supercalc , muito utilizado para o controle de posições financeiras, dada a capacidade de consolidação/sobreposição de planilhas. O outro grupo de gênios, os qualitativos, eram os intuitivos, que chegavam aos mesmos resultados numéricos sem fazer nenhuma conta. Ao mesmo tempo que conheciam o todo, também conheciam os detalhes. Eram profissionais generalistas, capazes de falar sobre qualquer assunto, fazendo todo tipo de relação e correlação e, geralmente, surpreendiam com uma visão totalmente nova do problema, abordando um ângulo até então não explorado e que fazia toda diferença. Esses dois tipos de gênios se complementavam, se respeitavam e faziam a roda girar. Com minha formação sempre trabalhei criando pontes (engenharia financeira) entre os qualitativos e os quantitativos, criando soluções financeiras para demandas não atendidas de mercado, normalmente para grandes empresas nacionais e multinacionais. O Mercado Financeiro Brasileiro sempre foi extremamente regulamentado. Quando havia regulamentação, esta precisava ser obedecida à risca; quando não havia, era possível criar e inovar. Durante muito tempo era vedado qualquer tipo de investimento em moeda estrangeira (dólar, libra etc.).

Somente exportadores poderiam ter algum tipo de dolarização de ativos e passivos; outras empresas não. As únicas alternativas existentes eram o interbancário e a Bolsa de Commodities , que tinha regras operacionais bastante apertadas de margem e garantia, o que dificultava muito a participação de empresas não financeiras. Assim, com a ajuda de advogados, criamos um “ativo cambial” a partir do exportador e, assim, atendeu-se à demanda por seguro contra variações cambiais ( hedge ) das empresas que não eram exportadoras, mas que tinham esse tipo de necessidade de proteção, pois possuíam passivos em dólar (empréstimos ou mesmo capital estrangeiro: filiais de multinacionais). Criamos assim, um mercado hedge cambial de balcão , que cresceu bastante, o que, em determinado momento, chamou a atenção do Regulador, que estabeleceu parâmetros e regras para a operação. Esta foi por algum tempo a dinâmica do mercado brasileiro: os bancos se antecipavam, criando produtos e serviços para atender à demanda das empresas (derivativos de taxa de juros, de moeda, de commodities ) e o Regulador acabava por estabelecer as normas necessárias para a operação, o que era bom para todos os participantes – empresas e instituições financeiras.

Muitas vezes fazíamos o caminho direto: conversávamos com os Reguladores, discutindo certas situações econômico-financeiras, conjunturais ou estruturais que criavam determinadas demandas e solicitávamos uma regulamentação que ajudasse a consolidar as estruturas que solucionariam os problemas. É muito comum encontrar uma empresa que tem um risco

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de crédito associado num nível bem ruim –por exemplo, empresas cujo negócio exige um alto nível de endividamento (compram à vista e vendem a prazo) mas, ao mesmo tempo, têm ativos de altíssima qualidade (recebíveis das vendas). Segregar os ativos de alta qualidade do risco dessa empresa cria um tremendo valor, pois gera uma capacidade de endividamento mais longo e mais barato. O nome disso é securitização, estrutura financeira muito conhecida e praticada no mercado externo, mas que na década de 1990 ainda não havia arcabouço legal para se implementar no Brasil. Para tentar remediar o problema, foi feita muita pressão para adaptar a regulamentação de fundos de investimentos para criar uma estrutura jurídica que se assemelhasse à figura do trust , um veículo legal totalmente isento de impostos e de riscos, que existe na regulamentação anglo-saxônica. Assim nasceram os fundos de commodities e depois os fundos de investimentos em direitos creditórios e o patrimônio de afetação.

Enfim, a engenharia financeira ajudou muito a implementar soluções e produtos financeiros já disponíveis e muitas vezes consagrados no exterior, em mercados mais sofisticados, enquanto a regulamentação do país ainda não atendia.

Nessa época, conheci minha primeira esposa. A Rosana foi responsável pela área de treinamento do Citibank por muitos anos. Ela organizava, ministrava e geria o famoso Bourse Game – uma simulação do mercado financeiro, que durava cinco, sete ou nove dias, normalmente oferecida a diretores financeiros de grandes empresas clientes do Citibank, na América Latina. Participei de uma edição aberta ao Mercado,

com bancos como Garantia, Crefisul, Lloyds como convidados. Foram nove dias de competição sangrenta; o banco que fez mais resultados fez um “arranjo” com um outro banco participante para “ bookar ” todas as posições contrárias. Por conta disso o banco que pontuou como segundo foi considerado vencedor. A Rosana foi uma das palestrantes. Ali me apaixonei pela professora. Anos depois nasceu a Catarina, e tudo mudou na minha vida. Desde pequena, ela foi um grude comigo. Era muito preocupante a responsabilidade de criar as melhores condições de educação e formação para um bom desenvolvimento mental e afetivo, num país em que poucos tinham muito e muitos não tinham nada.

Depois de oito anos de Citibank (1983-1991), fui contratado pelo BankBoston para continuar com a atividade de Engenharia Financeira focada em Produtos e Transações. Às vezes havia oportunidades que só países emergentes como o Brasil tinham – risco de conversibilidade e remessa ao exterior de moeda estrangeira; estrangeiros que desejavam investir no Brasil, fosse no capital de empresas ou na concessão de financiamentos diretos, desejando que, num certo horizonte de tempo, os recursos internados fossem devolvidos na mesma moeda, através de dividendos, juros ou amortização de principal. Vários países já quebraram (o Brasil, inclusive, na época do Funaro) ou estão quebrados e não conseguem restituir os dólares investidos (Venezuela, Argentina etc.). O Brasil sempre foi um país muito fechado no comércio exterior; portanto, sempre teve um nível muito baixo de reservas (depósitos

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próprios em moeda forte. Somente nas últimas duas décadas, o boom das commodities ajudou o país a acumular reserva, o que contribuiu para reduzir muito o custo relacionado ao risco de conversão e remessa. Na época, criamos um tipo de engenharia financeira de modo que, através de garantias, vinculava-se o fluxo de exportações de terceiros grandes exportadores de commodities ) para financiar empresas não exportadoras. Caso o Banco Central viesse a não ter dólares para vender ou não deixasse as remessas acontecerem (obrigando o depósito em moeda nacional no próprio BaCen), duas situações já vividas no Brasil, o mecanismo era acionado e as exportações desses terceiros garantidores eram usadas para repagar os credores originais, em troca de moeda corrente brasileira. Na época outras instituições financeiras acabaram criando verdadeiros Frankensteins para fazer economia de impostos na remessa de juros. Mas, no nosso caso, queríamos apenas reduzir o custo Brasil. Acabamos criando um portfólio tão significativo de financiamentos na filial brasileira do BankBoston – muitos bilhões de dólares –, que tive que explicar os detalhes dessa engenharia financeira ao pessoal do FED e do OCC, órgão regulador de controle de atividades do mercado financeiro norte-americano: quais eram os conceitos, quais eram os controles dos lastros das garantias, quais eram os limites estabelecidos para mitigar os vários tipos de risco existentes, como tratávamos questões relacionadas a liquidez da moeda local brasileira... Depois de muitas reuniões, passamos de ano.

Posteriormente, apresentamos à diretoria

do Banco Central do Brasil uma sugestão de mudança de regulamentação que contemplava esse mecanismo e que, tempos depois, foi implementada.

Na nova etapa no BankBoston, veio o desafio adicional de administrar uma mesa de empréstimos visando procurar sempre alguma condição que pudesse se traduzir em diferencial, uma vez que eram operações normais de tesouraria, com grandes empresas em volumes muito altos. Uma condição de imposto, um prazo diferenciado, uma condição de hedge , uma flutuação de taxa de juros, um indexador de correção monetária, a vinculação de ativo, uma modalidade diferente – financiamento de importação, leasing , enquadramento numa linha de BNDES etc. – poderia trazer para a referida operação um grande diferencial. Assim, esse fluxo de operações de empréstimos gerou um fluxo de novas estruturas de engenharia financeira e essa atividade abarcou captações e derivativos. O maior desafio foi gerir pessoas, normalmente gente jovem, bem formada, mas sem a quantidade de informação adequada e vivendo num ambiente de tesouraria, onde as decisões são rápidas e o estresse é alto, pois erros podem significar grandes perdas financeiras. Eu era muito rígido: reunião todo dia bem cedo, jornal lido (na época, a Gazeta Mercantil ) para comentarmos as notícias mais importantes e as eventuais mudanças em condições de mercado que poderiam vir a ser trabalhadas para criar oportunidades setoriais, cliente a cliente. Não havia tempo para grandes bostejos; tudo deveria ser muito direto, claro e lógico, e eu ajustava o ritmo dessas reuniões, nem sempre

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da forma mais delicada – o pessoal novo gostava disso e aceitava bem meu estilo ríspido, e muitas ideias novas nasceram ali, o que era maravilhoso para todos. Eram discutidas as operações fechadas e, principalmente, as perdidas para entender se e no que erramos (ou não). Aqui abro um parêntese: trabalhamos muito o conceito de precificação transação a transação: era importante saber qual era o custo de uma determinada linha de financiamento, mas para a formação do preço era também muito importante saber qual era o risco associado àquela empresa (risco de repagamento) e qual era a sua bancabilidade. O objetivo era sempre tentar precificar no limite de cima da margem. Cotar e fechar todas as operações de crédito era um sinal de que o preço estava errado para baixo. Maximizar o preço dos empréstimos gerava um grande desgaste entre os diretores que administravam o relacionamento com as empresas e, portanto, o limite de crédito aprovado a ser usado com cada uma delas e o preço. Por outro lado, eu era responsável pela rentabilidade desse grande livro de crédito e pela alocação de capital associada ao risco desse portfólio: grandes embates. Nesses embates, conheci minha esposa Lilian, tivemos grandes discussões acerca de preço, mas o bom senso acabava prevalecendo. Anos depois, para a infelicidade dela, começamos a namorar e estamos juntos até hoje. A Lilian é o meu norte. No BankBoston conheci pessoas com inteligência excepcional, grandes profissionais, como o Sergio Gabriele, o tesoureiro que me lembrava muito a Dona Guita, muito inteligente, mas muito pavio curto. O Ricardo Gallo, que hoje é sócio na

empresa de consultoria de M&A em que atuo, é também um desses caras fora da curva. Ambos são ao mesmo tempo qualitativos e quantitativos. Lembro-me da manhã do dia 11 de setembro de 2001. Poucos haviam visto o choque do primeiro avião na Torre, e a princípio se falava de um acidente de pequenas dimensões. Entretanto, naquele momento, um trader de uma mesa de câmbio estava em contato com um operador de uma instituição financeira que ficava num andar alto da primeira Torre e, do nada, a linha ficou muda, com um som metálico, daqueles de filme de submarino. Ele reportou para o Gallo, que imediatamente mandou zerar todas as posições de tesouraria do Banco, dólar futuro, taxa de juros local, inflação, bolsas – nunca tinha visto nada parecido com aquilo. Não sei quantos milhões de dólares isso custou ao Banco, mas sua ação evitou que o Banco viesse a perder uma quantia de dinheiro muitas vezes maior. Minutos depois, quando todos vimos o segundo avião chocar-se contra a outra Torre, ficou clara a enorme dimensão do que havia ocorrido.

Depois de catorze anos no BankBoston, que foi adquirido pelo Fleet e, posteriormente, pelo Bank of America, fui trabalhar no Santander. Fui contratado porque eu tinha fama de formador de talentos. Vários profissionais que tiveram destaque no Santander haviam trabalhado comigo nos outros bancos (Citibank e BankBoston, ambos norte-americanos, cheios de normas e regras). O Santander era um banco latino e sua política de risco estava mais calcada no apetite de seus diretores do que em regras escritas. Tudo, ou quase tudo, era decidido de uma forma mais intuitiva e algumas vezes até mais ou

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menos passional. Para empresas ou setores polêmicos, com que os bancos americanos não podiam trabalhar (pois estava escrito na política de crédito), tais como fumo, meios de comunicação, setor público, o Santander não tinha restrições, desde que fosse um negócio que fizesse sentido para o gestor. Era uma nova forma de atuar, mas rapidamente descobri que eu era muito cartesiano para trabalhar daquele jeito – e lá fiquei menos de dois anos.

Fui convidado para ser sócio de uma boutique de M&A e Finanças Corporativas, fundada por alguns colegas do BankBoston. Um grande escritório de advocacia de São Paulo mantinha uma participação societária nessa empresa, o que gerava algum fluxo de trabalho. Foram cinco anos difíceis, pois os negócios não eram suficientes para o número de sócios.

Decidi sair para fundar minha própria empresa de M&A e Finanças Corporativas, juntamente com meu ex-chefe, o Gallo (tesoureiro do BankBoston). Por cinco anos, ele havia sido gestor do Family Office da família Safra. Recebia ligações do Sr. José, 24 por 7, perguntando se determinado ativo estava bem precificado, isto é, se havia espaço para cair ou para subir – Quanto? Dependia do quê? – ou como ele via determinada conjuntura econômica, quais eram as implicações. Para uma pessoa comum, seria um inferno; para o Gallo foi o melhor emprego do mundo.

Neste negócio de M&A, na maioria das vezes trabalha-se no sell side , isto é, vai-se assessorar a venda de uma parte (buscando um sócio minoritário ou majoritário) ou da totalidade do capital de uma empresa. É uma atividade muito difícil, pois lida-se

em primeiro lugar com pessoas, depois com o ego dessas pessoas, depois com agendas escondidas dessas pessoas, para depois lidar com os fatos e os números. Há casos nos quais os sócios são de uma mesma família ou se conhecem há muito tempo. Muitas vezes as ambições e objetivos são muito distintos: alguns gostariam de ter maior protagonismo na organização resultante, outros preferem não ter nenhum e se retirar, e outros são absolutamente contra a transação.

Costumo dizer que para uma transação dessas ser bem-sucedida é imprescindível atuar como se fosse um médico: os acionistas da empresa vendedora precisam se abrir, falar de todos os assuntos relevantes, mesmo os pessoais, despir-se de qualquer vergonha, e ser muitos sinceros, pois durante o processo (que é longo, podendo levar até alguns anos) tudo, passado ou presente, tende a aparecer. O assessor financeiro não pode ser pego de surpresa; não se admite não saber de algo relevante ou não ter uma explicação que justifique uma situação –via de regra, isso significa o fim de uma negociação.

Para mim, essa atividade sempre foi e sempre será um desafio, pois meu forte nunca foi relacionamento interpessoal. No entanto, conheço excelentes médicos que não dão um sorriso, mas o fato de serem honestos, de explicarem claramente a real situação sem enfeitar, de serem sinceros com relação a prognósticos, acaba criando uma forte relação de confiança e respeito. De certa forma, hoje atuo como um médico, sem ter que lidar com agulhas e sangue.

Escrever estas linhas me fez pensar mais sobre a minha vida. Fui muito moldado por pessoas: o vô Elias e sua energia infindável;

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meu pai, com sua perseverança e sua honestidade; o Arnaldo e o Schalka, que tanto influíram na direção da minha carreira; a turma do ITA: o 116, o Afonso, o Castañon, o Juliano (que dividiu o TG comigo), o Cascelli, com sua inteligência emocional e equilíbrio, o Sartô e o Swiba, que investem um tempo absurdo em unir a Turma; o Gabriele e o Gallo, com quem aprendi e aprendo muito – e tantos outros. Também pela Lilian, que me faz enxergar muitas coisas da forma que realmente são e que, como diz minha filha Catarina, tem um lugar garantido no céu, e pela Catarina, sempre questionadora, que até hoje me pergunta como em 2018 fui tão “menino” em acreditar em promessas, em que as pessoas mudam, em que as pessoas são totalmente sinceras, e em que certos meios justificam certos fins. Uma reflexão final: infelizmente nossa geração tem uma dívida enorme com o País. Todos nos dedicamos principalmente à nossa vida profissional e familiar e nos afastamos totalmente da vida cívica e política brasileira. Desde a nossa formatura

(há quase 40 anos), o País apenas vivenciou progressos verdadeiros na sua organização política e econômica nos primeiros cinco anos do governo FHC e nos primeiros quatro anos do governo Lula. Nove anos em 40 é muito pouco. Há muito o que fazer. Imaginem a quantidade de funções e empregos que estão deixando de existir por conta de mudanças tecnológicas e a oportunidade quase nula de essas pessoas se reinventarem! O nível de desemprego é altíssimo e permanecerá assim pois, sem requalificação e treinamentos adequados, muitas vagas serão abertas mas não haverá pessoas qualificadas para preenchê-las. Também temos um sério problema de impunidade: somos uma nação com um arcabouço legal bastante razoável, mas acostumada a ver apenas as pessoas mais simples e mais pobres serem condenadas e cumprirem penas muitas até injustamente. Sabemos que se o jogo e a maconha fossem descriminalizados, mais da metade da população carcerária não estaria presa.

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Marcio Mattos

MARCIO MATTOS BORGES DE OLIVEIRA

Nasci no último dia do ano; talvez venha daí minha pressa nas coisas da vida. Tive uma infância muito feliz. Minha casa era uma das que ficavam no final da rua. O córrego Retiro Saudoso fica perto, e em torno dele foram vividos esses anos. Os jogos de bola nos campinhos que a gente mesmo fazia, com gols de pedra ou caibros de alguma construção. Os terrenos nunca eram planos e assim os times sempre tinham que alternar os lados para igualar as chances. O pior ia para o gol – e eu fui muitas vezes para o gol ( hehe ).

Sempre fui apaixonado por aves. Aos 4 anos ganhei meu primeiro passarinho do Sr. José de Grande. Era um lindo caboclinho cinza de topete preto. Depois vieram muitos sabiás e pássaros-pretos, e os coleirinhas. Esses eu caçava com alçapão e visgo nos campos de capim amargo ao longo do Córrego.

Comecei a criar canários e isso me cativou. Tornei-me um grande criador de canários de cor. Também me tornei o juiz nacional mais novo até então. As análises combinatórias da genética, das cores dos pássaros, foram um grande aprendizado. Tive centenas e centenas de canários premiados, inclusive alguns com primeiro lugar no Campeonato Mundial.

Depois, e até hoje, seguiram os pombos-correio. Uma grande paixão! Aí a genética passou a ser a de populações. Muito mais complexa: 30 ou mais gerações controladas por pedigrees . Cheguei, por seis anos, a ser presidente da Federação Columbófila Brasileira (quem cria pombos-correio é chamado “columbófilo”). E então cuido de melhorar a aerodinâmica dos pombos e de sua aptidão para retornarem das competições (sim, consiste em fazer corridas de pombos) a velocidades, em geral, de 90 km/h, por até 12 horas, com 550 batimentos cardíacos por minutos e temperatura corporal de 42 graus centígrados. São verdadeiras máquinas de voar rápido e por longo tempo.

A família tem uma pequena chácara onde plantei todas as árvores e construímos praticamente tudo. É um paraíso de frutas, pássaros e bichos.

Filho de pai e mãe professores, ele do Senai – Serviço Nacional da Indústria, e ela também diretora de escola de 1º e 2º graus da rede estadual de São Paulo, tive uma convivência muito próxima do magistério, que me fascinou pela carreira.

Não somente pela oportunidade de ensinar aos outros nossas descobertas, mas pela fascinante oportunidade de aprender mais com cada um de meus interlocutores. Os alunos, razão da minha profissão, sempre

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nos rejuvenescem com seus eternos 20 anos. O curso médio no saudoso Colégio Industrial me fez interessado nos processos produtivos, em fazer as coisas funcionarem. Meu sonho era ser zootecnista, pois sempre adorei animais. Mas não tinha uma propriedade para cuidar. E uma amiga de colegial me falou “Você se dá tão bem em matemática e física que deve fazer engenharia”. Fiquei pensando naquilo. E aí tomei a decisão de seguir o caminho das exatas. Essa escolha foi fundamental para uma excelente e prazerosa vida. Separei a profissão da paixão. Isso é fundamental, na minha opinião. Eu recomendaria aos jovens se me perguntassem. Por quê? Porque na profissão você terá que trabalhar e se entregar nos dias em que estiver bem e, também, nos dias ruins. Nela encontrará pessoas boas e amigas, mas também as vis e traiçoeiras. Além do mais, eu escolhi a profissão de engenheiro e professor na qual sempre encarei os desafios com imenso prazer.

O ITA

Formado em Engenharia Mecânica

Aeronáutica no ITA, em 1982, concretizei um sonho menino-mecânico-operador. Mas faltava fazer acontecer.

Os anos do ITA foram de enorme aprendizado. Desde o pré-vestibular. Não era apenas estudar, era muito mais que isso. Significava entender profundamente os conteúdos dos livros, ter liberdade e tranquilidade para compreender os princípios, fórmulas e teoremas. A Escola é um longo e desafiador ritual de passagem. Acumulamos muito conhecimento. Mas o mais importante: nos preparou para resolver problemas. Você não verá um engenheiro do ITA falar que tal tarefa é impossível. Ele argumentará que o tempo e os recursos podem ser maiores que os adequados, mas sempre estará em busca, mesmo que em um futuro distante, de uma solução para o problema.

O convívio com os colegas, alunos do curso, começa com uma enorme mudança. Da casa dos pais para um alojamento com mais de 500 alunos: o H8! Nele habitam todas as variações da natureza humana. Existe uma enorme vontade de estudar, aprender e vencer obstáculos. Você vai se tornando parte de uma grande confraria. Um elo que será parte sua por toda a vida. Você conhecerá o Brasil, visitando colegas de praticamente todos os estados. E fará grandes amizades. Hoje reunimos, depois de 40 anos de formados, mais de oitenta

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A Escola é um longo e desafiador ritual de passagem. Acumulamos muito conhecimento.
Mas o mais importante: nos preparou para resolver problemas.

por cento da turma, regularmente, nas redes sociais e em eventos. Mapeamos praticamente todos os colegas. Isso é muito raro nas outras escolas mundo afora. De onde vem essa união? Dos inúmeros momentos de dificuldades e glórias vividos conjuntamente, nos cinco anos do curso.

O ITA é “A ESCOLA”!

Quer um exemplo? Outro dia formamos um grupo de WhatsApp com os colegas do nosso apartamento original: Paulo Diniz, José Ronaldo, Ribeiro Neto, Fonseca, Lopes e eu. O objetivo é marcar um encontro em algum lugar legal com as esposas.

A CARREIRA

No início de minha carreira, em 1983, no Banco Itaú, pude participar do curso de formação para analistas de sistemas, em período integral, por seis meses. Na época, a profissão não existia formalmente e matemáticos e engenheiros eram contratados para a função. Estive muito próximo do mercado, participando da análise, construção e implantação de Sistemas de Informação em várias empresas; primeiramente, como analista de sistemas e, posteriormente, como proprietário de empresas de Assessoria e Consultoria em Informática. Vivenciei toda a fase de informatização das empresas no período de 1982-1993. Aprendi muito sobre as dificuldades e necessidades para o sucesso de um bom Sistema de Informação Gerencial. Desde então, já se tornava evidente a necessidade de busca de tecnologia.

A partir de 1985, fui trabalhar na Transribe, empresa de distribuição de bebidas ligada à marca Coca-Cola, na região de Ribeirão Preto, onde recebi a missão de

informatizar o Setor de Transporte. Com a emissão de 3.500 notas fiscais/dia e 300 caminhões para entrega, verifiquei a imensa lacuna existente entre a Comunidade Científica e a Empresarial, esta resolvendo seus problemas de maneira empírica, e aquela fechada em seus próprios estudos. Esse fato motivou meu ingresso no programa de Mestrado do ICMSC-USP (atual ICMC-USP), em 1987, para encontrar uma solução para tão importante problema de Pesquisa Operacional. A empresa apoiou, liberando-me por meio período, por semana, para assistir às aulas dos cursos de PósGraduação. Foi uma época de grande dedicação para conseguir conciliar a atividade de Analista de Sistemas, sempre à disposição da empresa 24 horas por dia ( stand-by ), com a necessidade de dedicação ao mestrado; com a compreensão da jovem esposa e das filhas pequenas. Esse foi um dos motivos que resultaram num período mais extenso que o normal para a obtenção do título de Mestre em Ciências de Computação e Matemática Computacional. Entretanto, acredito que ao realizar meu mestrado em contato com as empresas, pude adquirir importante experiência e conhecimentos que facilitam as atividades desenvolvidas desde aquela época.

Concomitantemente com essas atividades, exerci o cargo de Professor na Unaerp –Universidade de Ribeirão Preto, lecionando disciplinas de Sistemas de Informação, Planejamento e Controle da Produção e Pesquisa Operacional, de 1989 a 1993. Esse período permitiu um início e aprimoramento de minhas atividades didáticas e o princípio de orientação de trabalhos de pesquisa, através dos trabalhos de formatura.

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Vencida a etapa do Mestrado, fiquei motivado a ingressar no Doutorado da EESC-USP. Nessa época, havia sido admitido junto à EERP-USP, por meio de concurso público em 1991, como Técnico Especializado Superior e responsável pela Seção de Informática. Durante minha permanência na Escola de Enfermagem, pude desenvolver importante trabalho de apoio e conhecer as atividades do meio acadêmico. Participei naquela oportunidade de alguns grupos de pesquisa, nos quais me familiarizei com essa atividade.

Em determinado momento, senti que seria difícil conciliar minha atividade de Técnico Especializado Superior com o curso de Doutorado. Optei por dedicação integral a este último, embora mantivesse meus laços com a EERP-USP e seus docentes, que proporcionaram, desde então, atividades de ensino e pesquisa em conjunto.

A USP

Fui aprovado no concurso de docente RDIDP junto à FEA-RP-USP, na área de Métodos Quantitativos e Informática, em 1993. Comecei então a me dedicar de forma mais intensiva às atividades de pesquisa, ensino e extensão.

Com relação à pesquisa, inicialmente estive dedicado à conclusão do meu doutoramento, onde pude desenvolver estudos na Área de Planejamento e Controle da Produção (PCP), que norteariam minhas pesquisas a partir de então. Concomitantemente, percebi a necessidade de me aprofundar na Área de Sistemas de Informação de forma a subsidiar com dados de boa qualidade as atividades de PCP, e envolver todos os subsistemas da

atividade empresarial em torno de um único objetivo: o sucesso da organização. A partir dessa linha de atuação, trabalhos nas Áreas de Planejamento e Controle de Produção, Logística e Gerenciamento da Cadeia de Suprimentos, Pesquisa Operacional e Sistemas de Informação foram publicados. Atualmente, estão em curso pesquisas relacionadas com Tomada de Decisão envolvendo PCP, Células de Manufatura e Sequenciamento da Produção, Tecnologia de Informação, Pesquisa Operacional, Simulação de Sistemas e Processos, Logística, Comércio Eletrônico e Gestão Ambiental, com o apoio de alunos de iniciação científica, de mestrandos e doutorandos, de forma a reforçar substancialmente nosso grupo de pesquisa, o Papo – Programa de Apoio à Produção e Operações. O Papo, criado por nós em 2002, congrega um conjunto de 12 professores, 14 estudantes de Pós-Graduação e quatro Profissionais da Iniciativa Privada. O Grupo de Pesquisa tem produzido, ao longo destes anos, um conjunto substancial de publicações através das pesquisas de seus professores e orientados. A orientação de pós-graduandos teve seu processo iniciado em 2002, com a implantação do curso de Pós-Graduação em Administração na FEA-RP-USP, como parte do programa da FEA-SP. Eleito Presidente da CPG – Comissão de Pós-graduação –da então emancipada FEA-RP-USP, pude dirigir todo o processo de criação dos cursos de mestrado dos Departamentos de Economia, Administração e Contabilidade, aprovados pela Capes e iniciados em nossa gestão (2004). Essa oportunidade permitiu conhecer melhor a complexidade do sistema

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de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo e do Brasil. Tal experiência foi muito útil na criação do curso de Doutorado do Departamento de Administração da FEA-RP, processo no qual tive a missão de conduzir junto à USP e submissão à Capes.

Na atividade de ensino, estive sempre com carga igual ou superior à exigida pela Cert –Comissão Especial de Regimes de Trabalho – USP, ao longo de todos os anos do período RDIDP – Regime de Dedicação Integral à Pesquisa e à Docência. Realizei um grande aprendizado em conjunto com meus alunos nas diversas disciplinas oferecidas. Estive junto à FEA-RP-USP desde o segundo ano de sua existência. Inicialmente estive mais ligado à área de Métodos Quantitativos e Informática, e com o passar dos anos houve uma maior aproximação com Operações e Logística. Normalmente, essas disciplinas despertam menos atenção dos discentes que são, historicamente, mais atraídos por Marketing e Finanças. Estudar métodos matemáticos aplicados à Administração não é, em geral, a primeira escolha dos alunos. Mesmo assim, desenvolvi importante trabalho de integração e motivação de nossos estudantes. A demonstração vem através do reconhecimento de ter sido agraciado com o título de professor homenageado por sete turmas e paraninfo de duas turmas de formandos da FEA-RP-USP, fato que me lisonjeia e é motivo de muito orgulho. Tenho estado também presente nos cursos de Especialização Lato Sensu promovidos pela Fundace, fundação conveniada à FEA-RP-USP em 44 turmas de MBA Administração-USP. Comecei minhas atividades de ensino de Pós-graduação junto à EERP-USP como professor colaborador e sou professor

responsável pela disciplina ERG-5827 –Informática Aplicada à Saúde. Estava autorizado para orientar mestrandos, doutorandos e ministrar disciplinas nos Programa de Pós--graduação em Administração da FEA-USP e da FEARP-USP, até a aposentadoria. Nos dois programas também fui responsável por ministrar disciplinas. Faço parte dos muitos que contribuíram para o sucesso que veio a coroar os corpos docente, discente e de funcionários da FEA-RP com o primeiro lugar absoluto no Provão – Exame Nacional de Cursos, que indicou a FEA-RP-USP como a melhor Escola de Administração do Brasil, nos cinco anos consecutivos da sua realização.

Na atividade de extensão, participei de convênio junto ao Hospital das Clínicas da FMRP-USP, prestando assessoria na área de Transportes e Sistemas de Informação para Dispensação de Medicamentos, que hoje atende 700 leitos. Informatizamos toda a prescrição médica, processo de enfermagem e comunicação com a farmácia de demais centros do hospital. Foi o primeiro sistema dessa natureza no Brasil e acredito ter sido uma das minhas realizações de maior impacto na vida e qualidade de atendimento das pessoas: os pacientes do HCFMRP-USP. Atuei também junto a empresas fabris de nossa região, fornecendo análise de seus problemas nos setores de produção. Participei como organizador dos eventos relativos ao Desafio 2000, entre a EPTV (emissora da Rede Globo de televisão) e a FEA-RP, para discussão de perspectivas regionais. Ajudei a divulgar os cursos de nossa jovem escola, através de palestras em entidades de ensino. O nosso grupo de

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pesquisa Papo ajudou prefeituras na realização de cursos para profissionais da educação e reorganização de estrutura de cargos e salários. Não menos importante foi a participação, pela primeira vez, de alunos da FEA-RP no Projeto Rondon – Operação Inverno Xingu 2008 – do Ministério da Defesa, em Placas – PA, onde estive como professor responsável. Depois estivemos nas Operações Sapé – PB, Estreiro – MA, Porto Real do Colégio – AL e Marapanim – PA.

A experiência do Projeto Rondon marca definitivamente a vida dos professores e alunos participantes. Estar numa cidade remota de um Brasil diferente do Sudeste, levando conhecimento e motivação aos nossos irmãos brasileiros, traz uma felicidade indescritível e o desejo de não querer estar em nenhum outro lugar senão ali.

Em termos de participação administrativa, comecei fazendo parte da Pró-Congregação da FEA-RP quando ela ainda era uma extensão da FEA de São Paulo. Estive por oito anos representando nossa unidade no Conselho do Campus, onde tive a dura missão de defender os parcos recursos destinados à nossa Escola frente às suas gigantes coirmãs já tradicionais num campus com vocação biomédica.

A chefia do RAD – Departamento de Administração da FEA-RP-USP, por dois mandatos, trouxe muitas oportunidades de conhecer a estrutura da Universidade e suas normas. Contratar, controlar e atender um número crescente de docentes não foi tarefa simples, e a habilidade de conciliador foi desenvolvida. Permitiu, também, a implantação do curso diurno de graduação do Departamento de Administração. Na minha gestão, as três primeiras turmas

tiveram início. A FEA-RP conta hoje com mais de 1.500 alunos de graduação e cerca de 140 alunos de Pós-graduação. É muito bom saber que fizemos parte dessa grande conquista para a sociedade. Nas minhas contas, no mínimo, foram:

Trabalhos orientados:

11 doutorados

12 mestrados

52 trabalhos de conclusão de curso

9 iniciações científicas

10 aperfeiçoamentos de ensino

Mais de 10.000 horas-aula

Mais de 8.000 alunos treinados

Sendo este um breve resumo de minha atividade profissional, acredito que tenho consistência e forte relacionamento entre as atividades universitárias nos aspectos de pesquisa, ensino e extensão.

A presença em todos os momentos da Escola desde o seu segundo ano de vida; a participação nos Colegiados da USP no Campus e na Reitoria; a representação da Escola em conselhos municipais e regionais; a organização de eventos de ensino e extensão; a presidência da Comissão de Pós-Graduação da FEA-RP-USP, por dois mandatos, e todas as batalhas nos colegiados CNR – Câmara de Normas e Recursos e COPGr – Conselho de Pós--Graduação da USP para aprovação dos cursos de Mestrado e Doutorado; a chefia do Departamento de Administração, por dois mandatos, e a luta diária com os problemas, burocracias e pelas causas nobres, me deram experiência, conhecimento e maturidade.

AGRADECIMENTOS

Gostaria, finalmente, de agradecer aos professores que, à época, ocupavam

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 267

os cargos, Dr. João Grandino Rodas, Magnífico Reitor da Universidade de São Paulo, Dr. Vahan Agopyan, Pró-Reitor de Pós-Graduação, e Dr. Arlindo Philippi Junior, Pró-Reitor Adjunto, Prof. Dr. Marcos Cortez Campomar, e demais colegas da USP, pela minha indicação, enquanto Presidente da CPG da FEA-RP, como Pró-Reitor Substituto da USP, fato que me possibilitou entender e colaborar com o crescimento dessa Universidade.

A FAMÍLIA

Meus pais José Borges de Oliveira e Norma Correa de Mattos Borges de Oliveira fizeram tudo e muito mais do que podiam para me educar, ensinar e apoiar financeiramente na vida e nos estudos.

Saudade imensa deles! Sua falta é uma dor que nunca passa. Sou muito grato a minha querida avó Dona Chiquinha, e

tenho muito orgulho e alegria de dizer que fui “criado pela vó”. Como é bom ter lembranças tão lindas dela! Quem teve essa bênção na vida me entenderá. Queria deixar registrado, também, o grande amor da minha vida, a Profa. Dra. Sonia Valle Walter Borges de Oliveira, filha de professores do ITA e minha querida esposa. Ela sempre esteve ao meu lado e é grande responsável pela maior parte dos meus acertos. Foi um presente de Deus para mim. Temos três lindas e amorosas filhas: Victória, dentista e artista dos desenhos e das telas; Marília, chef internacional e uma maga do universo culinário; Patrícia, contadora e marketing digital, a pessoa mais comunicativa que conheci. Essas, outrora criaturinhas, se tornaram mulheres independentes e donas de si. Sonia e eu temos muito orgulho delas.

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Swiba

MARCIO RICARDO GOLFE ANDREAZZI

Meu Samba de Orly

How will you measure your life?

Desculpem o longo relato, mas se eu não contar esta história agora, quando contarei?

Eu era fanático pelas corridas de Fórmula 1. Comprava todas as revistas 4 Rodas , e meu sonho era ser piloto de corridas, ou participar em projetos de carros. Nessa época a FEI era apresentada como berço de ideias no setor automotivo, e meu sonho era estudar ali.

Vim de uma família classe média. Meu avô era alfaiate, meu outro avô tinha uma “venda”, e meu pai estudou até o terceiro ano do Ginásio. Era desenhista de posters nas Casas Pirani, e depois trabalhou em publicidade na Avon. Todos descendentes da italianada que veio se salvar no Brasil, fugindo da fome, da guerra, e com uma ética muito forte de trabalho e de família. Ninguém da minha família tinha estudado em Universidade, então poder fazer a FEI seria um “Super Plus Ultra” para mim e para eles.

Se o objetivo era a Fórmula 1, eu tinha que falar inglês. Me matriculei com uma bolsa no “Yazigi”, e um belo dia ouvi de orelhada um sujeito comentando que tinha um amigo que estudava no ITA (nunca tinha escutado sobre esta faculdade). Disse que era um lugar

que só tinha gente meio louca, que ficavam falando sozinhos (meia verdade), que uns caras jogavam xadrez sem tabuleiro (era verdade), e que os professores deixavam os alunos fazer as provas no dormitório porque ninguém “colava” (meia verdade).

Disse que os caras faziam aviões, que uma empresa de aviões estava surgindo, que tinham túnel de vento etc. Depois o Copersucar, carro da Fórmula 1 desenhado pelos Fittipaldi, foi testado aí. Eu fiquei interessado, e pensei que aviões e carros eram mais ou menos o mesmo, mecânica, aerodinâmica, motores etc., e virou meu novo objetivo, já que não eliminava o sonho da Fórmula 1.

Nunca me avisaram que era meio foda para entrar aí. Só descobri depois, mas como meti isso na cabeça fui com tudo. Eu jogava basquete “mal”, mas isso me permitiu ter uma bolsa parcial no “Objetivo”, jogando basquete pelo time do Colegial. Meu pai pagava 70% do custo. Lá pelo meio do primeiro colegial descobri que as probabilidades de entrar fazendo Objetivo eram mínimas. Tinha uns loucos do Rio, mais um pessoal do Bandeirantes, Anglo, Santa Cruz etc., que eram favoritos na parada. Comecei a fazer aulas de noite (nada disso

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entrou no vestibular), Desenho, e ia nos sebos ao redor da Praça da Sé comprar livros. No vestibular, minha autoestima caiu a zero. Na prova de Física com certeza eu estava eliminado. Nada do que fiz batia com o gabarito, mas no fim do ITA descobri que tirei um 4 (acochambrado, com certeza).

Creio que fui bem no resto, e num belo dia me ligaram em casa dizendo que alguém viu a lista de aprovados e eu tinha passado.... Para confirmar fui de ônibus no Objetivo e a lista estava ali pendurada. Deu certo!!

LIÇÃO #1: TRABALHAR DURO.

Sem dúvida minha maior lembrança do ITA são meus amigos. O famoso Gaga Desespero em conjunto, as saídas de sexta à noite, as listas de melação, mas mais que tudo a amizade que até hoje cultivamos. Se resumo o impacto do ITA na minha vida foi aprender a me socializar, ter uma vontade enorme de aprender em situações muito estressantes, cumprir metas, mas no fim eu não sabia qual era a diferença entre um Diretor e um Gerente. Ou seja, não me preparou para a vida profissional.

Eu era um Gagá Vibrador. Pertenci ao DOO por muitos anos, e passamos por vários casos de Disciplina Consciente (ou Indisciplina Inconsciente), onde se via que alguma depuração de caráter era necessária. Lá pelo quarto ou quinto ano, a coisa meio que esculhambou. Todo mundo chupava, normalmente da mesma fonte, que não vou comentar.

Eu não chupava, mas um belo dia alguém chupou minha série, e descobrimos que todos acertaram, menos nós dois que tínhamos uma série igualzinha, e errada da mesma maneira. Fomos chamados pelo

querido Marreco, que nos absolveu, porque éramos criminosos em primeira instância.

LIÇÃO #2: NÃO CHUPE, E NÃO

DEIXE OS OUTROS CHUPAREM.

Na verdade, eu diria que 95% dos alunos eram de valores muito positivos, honestos, e gente que realmente queria fazer o que é correto. No meu ponto de vista é o que mais diferencia o ITA do resto.

Por outro lado, vimos que quando a disciplina burra entra em ação terminamos perdendo para nossa turma colegas de grande valor como o Chamon por discussões com a Divisão de Alunos, ou o caso do Garoto Fulco, provavelmente o cara mais correto que conheci, que foi trancado por meia falta. Os dois hoje são celebridades no setor aeroespacial do Brasil e de Luxemburgo. Eu me salvei neste evento por uma diarreia que me acometeu no mesmo dia, e estando no banheiro não viram que eu também cheguei atrasado e me culpo um pouco até hoje pelo trancamento do Garoto.

Comecei no 118, e meu colega de quarto era o querido Barney. Único aluno que não fazia o CEPORRA, criando uma inveja maiúscula em toda rapaziada.

Tínhamos aí o Michael, dono da Gertrudes, um fusquinha azul-claro, o Luisinho Cunningham, super-cabeça, Adinho e Volpi.

Falando em disciplina burra, lembro também da grande peladinha que fizemos vestidos de mulher um dia antes da formatura do CEPORRA, gerando um fato inédito de um aluno que teve que se formar três meses depois (Afonso) por ter sido detido na polícia de São José. Esse fato foi descrito e narrado pelo colega Katsanos na frente da Delegacia, montado em cima

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do Ribeirão. No fundo isto não teve muitas consequências, a não ser que o Afonso ficou uns meses a mais com cabelo de reco, e temos assunto pelo resto de nossas vidas. Depois me movi ao 109 tendo o Afonso no mesmo quarto, com Fulco, Ardeo, Schalkinha, Sartô, Enderson, e Loures em revezamentos distintos pelos anos.

Aprendi muito com todos. Encontrei a minha esposa Maria Thereza no começo do terceiro ano, casando no quinto ano depois de pedir a autorização à Divisão de Alunos. Casei numa sexta-feira antes do Carnaval de 1982, e terminei melando a CV de vários amigos que vieram presenciar o evento. Entre as várias coisas desse ano, nasceu meu primeiro filho, nos formamos, e assistimos o Brasil perdendo por 3 x 2 no Estádio Sarriá contra a Itália. Só precisávamos empatar...

Alguns colegas ainda nos deixaram no quinto ano, por desligamentos ou sendo trancados. Muito triste.

LIÇÃO #3: NÃO CANTE VITÓRIA ANTES DO ÚLTIMO MINUTO.

Desde o início do ITA eu queria dar aula. No segundo semestre do segundo ano comecei a dar aula no CASD, e trabalhei aí pelos próximos dois anos e meio realmente de graça. Adorava o trabalho aí, mas tinha que dar uma completada com umas aulas no Objetivo, para ganhar alguma coisa. Terças e quintas treinava com a equipe de Basquete, e depois ia dar aula. Chegava todo dia no H8 por volta de 11 da noite, e metia gagá quando podia.

No fim do quarto ano, descobriram que o CASD (Cursinho) tinha uma dívida impagável, porque o contador não tinha apresentado Declarações de Imposto de

Renda por vários anos, apesar de o Cursinho ser sem fins de lucro. Decidimos em conjunto fechar o cursinho. Depois fui trabalhar em outro cursinho junto com o Objetivo. Muitos de nós que nos movemos aos cursinhos maiores foram acusados de levar os alunos do CASD para ganhar dinheiro de outro lado. Pura estupidez, mas aí vem outra lição...

LIÇÃO #4: TEM QUE SER CORRETO E PARECER CORRETO

No meio de tudo isso, ainda fiz um estágio no PMA, Projeto de Motores Aeronáuticos, que me serviu tanto, que não me lembro o que fazia ali. Quando me formei, minha experiência profissional se resumia a dar aulas, além de ter trabalhado de Guarda-Costas e Barman na Tokita junto com o Soiza, Ribeirão, Loures e Garoto Fulco. Muitos me perguntam por que meu apelido era Swiba, e é até hoje. Dizem que meus óculos pareciam com os óculos do pai do Cebolinha. O saudoso Fendel e o Michael me chamavam de Zwiebel, que creio ser “cebola” em alemão. Virou Swiba... acho isso muito injusto e inverídico.

Comecei minha carreira profissional no Departamento de Estruturas da Embraer, sendo um dos privilegiados escolhidos para ir para a Itália. Entrei com toda a garra, acordava às 5h30 para pegar o Busão da Embraer, e queria de verdade fazer os projetos que sonhei. Ficamos três meses fazendo um treinamento no Brasil, nos preparando para o projeto na Itália, e não entendi até hoje o que fizemos nos três meses. Aí eu comecei a aprender que a velocidade das coisas não era o que eu pensava, e

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que a política, às vezes até desonesta, tinha muito mais efeito que a técnica.

Tínhamos dois chefes excepcionais, o Siqueira do ITA e o Waldir Politécnico. Os dois eram gente fina, explicavam as coisas com muita paciência. Existia, porém, um desses Poli Navais, chamado OUTRO, que era um grandíssimo filho de uma porta. Ele fazia bullying , tomava as ideias dos outros, tinha claramente inveja dos iteanos. Tinha uma barbichinha ridícula, que acho que era só para a gente ter mais ódio. Dei graças a Deus que ia ficar aí só três meses, mas me frustrei como uma empresa que supostamente deveria ter ética, e de padrões internacionais, aceitava um cara desses.

LIÇÃO #5: TEM QUE EXISTIR

MERITOCRACIA TRANSPARENTE, E ELIMINAR QUEM NÃO SERVE.

Fomos para a Itália nos fins de março de 1983. Ainda estava muito frio, eu com meu filho de 7 meses, e nos instalamos no “Varese Grand Hotel”. Rapidinho aprendemos o jeitinho italiano, o sciopero da sexta-feira (um tipo de greve por qualquer coisa), e para nós, recém-formados, parecia Hollywood, com ski, moto, viagens etc.

A influência da Embraer no dia a dia era bem pequena. Trabalhávamos no Departamento de Estruturas da AerMacchi em Varese, junto com o Rocha (Turma 81)

e o Eça, que falava um italiano melhor que Dante Alighieri. Trabalhávamos fazendo reportes de vários casos estruturais em painéis, em cadernos gigantes, e usando um computador UNIVAC que no seu momento era Ohhhhhh!!!!.

Todos os dias entrava na AerMacchi, o porteiro me recebia alegremente dizendo: “Paolo Rossi 3, Brasile 2”, e chegando no segundo andar, a Italianada com os Brazucas se lambuzavam na máquina de café.

Acho que a coisa que mais me marcou foi o dia em que caiu o primeiro AMX, creio que em 1984. Entrou o Engenheiro Gian Livio De Otto, figura que metia medo em todos, dizendo: “O AMX caiu, devemos revisar os cálculos”. Lembro que os cadernos gigantes foram reabertos, e ouvíamos de vez em quando um “Porca la Madonna”: “Eu tinha que ter multiplicado a espessura por 2 e não dividido por 2!!!”, coisas mais ou menos assim. Depois quando avisaram que o problema foi na turbina, todo mundo deu um UFA!!!

Terminei meu projeto antes do esperado desenhando a cadeira do avião. Não tinham nada mais para eu trabalhar. Passaram-me um trabalho para calcular o soltador de fumaça da esquadrilha Italiana, e eu fiz direitinho. Um dia recebi um esporro da Embraer porque não deveria ter trabalhado no avião italiano. Mandaram-me de volta ao

MARCIO RICARDO GOLFE ANDREAZZI 272
Entrei com toda a garra, acordava às 5h30 para pegar o Busão da Embraer, e queria de verdade fazer os projetos que sonhei.

Brasil em julho de 1984 de castigo, antes dos outros dois que ficaram mais um ano. Fiquei muito decepcionado, mas o “melhor” ainda estava por vir.

Recebi ainda na Itália o aviso de que ia trabalhar para o Waldir voltando para o Brasil. Graças a Deus!!! Mas justo duas semanas depois de chegar me passaram para trabalhar com o OUTRO. Aí terminou meu sonho de aeronáutica, e com a mesma intensidade com que passei no Vestibular, comecei a procurar outro emprego.

LIÇÃO #6: TEM QUE ENGOLIR

SAPO E NÃO DESISTIR FÁCIL.

Comprava o Estadão todo domingo e lia furiosamente aquele caderno de empregos, mas o acaso me fez encontrar o Charles Kusniec em um shopping center , e ele me comentou que estava trabalhando numa empresa de disk drives , que cresceu durante a reserva de mercado.

Fiquei sete anos na Flexidisk, mas o Charles saiu antes porque foi mais sábio. Cheguei a Diretor Industrial em uma empresa familiar cujos donos vinham da Olivetti, e não tinham ideia de tecnologia. Viajei pela Ásia e Estados Unidos tentando buscar tecnologias, mas a verdade é que os brasileiros não tinham nem capital nem capacidade para absorver essa tecnologia. Enquanto os gringos tinham discos de 3.5 polegadas de 200 Megas por 150 dólares, nós tínhamos 10 Megas por 700 dólares. Em uma dessas viagens tive o prazer de me encontrar com o Afonso e o Taka no Japão, que estudavam e trabalhavam lá.

A Lei de Reserva de Mercado foi outro daqueles delírios, onde acreditavam que uma política forçada de Estado resolveria

o nosso problema de competitividade global. Nesse momento era PROIBIDO importar computadores, supostamente para incentivar a criação de uma indústria nacional. Surgiram um monte de empresas que tomavam vantagem desta Lei para comprar coisas semimontadas nos Estados Unidos por 200 dólares, e vendiam por 1.200 dólares no Brasil. O pior é que muitas vezes não funcionava, tinha que passar na alfândega, enfim, não deu em nada. Quem se lembra de empresas como Elebra, Cobra, Itautec, Polymax, Digitec, TDA, Scopus, Edisa etc.? Um monte de empresas que desapareceram, deixando algumas pessoas ricas, e no fim quase nada de tecnologia. Para mim foi uma grande lição, e aprendi muito sobre empreendedorismo. Tinha que ir ao banco convencer o Gerente a descontar duplicatas para poder pagar a folha de pagamento, e comprar peças que faltavam para montar os produtos. Ao mesmo tempo me ligava o dono da empresa pedindo dinheiro para pagar a parcela do seu apartamento nos Jardins. Os produtos importados ficavam na alfândega, e aí descobri que nada saía sem uma “taxa de urgência” para liberar. Ou seja, ficava dividido entre pagar a folha, o apartamento do dono, comprar peças que faltavam, ou a “taxa de urgência”.

Lutava todos os dias com o dilema de ética e honestidade. Não estudei para o que eu estava passando, e comecei a buscar trabalho onde pudesse combinar os valores que tenho com um pouco de estabilidade para a família.

A empresa basicamente quebrou, e eu não encontrei outro emprego. Em 1990, decidi que ia sair e imigrar ilegalmente

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para os Estados Unidos usando o meu FGTS para pagar a viagem. Descobri no final que não depositaram meu Fundo. Propus ir ao estoque deles, peguei uns capacitores e transistores, vendendo na Santa Ifigênia em seis vezes, durante uma inflação de uns 10% ao mês, recuperando metade do meu Fundo.

Wow!!! recebi em casa uns sachets de Shampoo Pert Plus. Meu cabelo ficou uma beleza, e depois apareceu uma propaganda na Televisão sobre o Produto. QUE LEGAL!!

Em 1985, descobrimos que meu filho era autista. Tinha três anos de idade, e naquela época tínhamos muito pouco conhecimento do que se tratava. Conhecemos vários pais que tinham o mesmo problema, e a dificuldade de conseguir escolas era tremenda.

Começamos a trabalhar em uma associação, onde formamos uma escola para Autismo. Trabalhei aí como parte da Associação, e conseguimos ter até 25 alunos na escola com muitos profissionais querendo trabalhar aí. Mantínhamos a Escola com o dinheiro de alguns pais que podiam pagar, mais algumas poucas empresas que doavam de vez em quando. Para complementar, fazíamos pedágios em semáforos, e com isso a escola vinha crescendo. Nunca recebemos um tostão do Governo.

Em 1990, com o Plano Collor, todo o dinheiro da Escola foi retido pelo Governo. Conseguimos levar a coisa no sacrifício, e

aí aprendi as dificuldades de trabalhar no terceiro setor, coisa que faço até hoje. Meu filho graças a Deus se desenvolveu bem, e nunca impediu os passos da minha carreira. Porém é ainda totalmente dependente de nós e dos irmãos para viver. Vejo isso como um grande presente na vida, onde aprendemos dimensionar que problemas pequenos do dia a dia têm que ser relevados, e uma lição de que temos que nos planejar para o que vai acontecer até depois do fim de nossas vidas. Vivemos em paz com isso. Aprendemos o que é amor incondicional, e que anjos existem.

LIÇÃO #8: AMO O CAPITALISMO, MAS SEMPRE VÃO EXISTIR PESSOAS QUE PRECISAM DE AJUDA

DA SOCIEDADE.

Desde o início de 1990 passava viajando no Google da época, que era o Caderno de Empregos do Estadão . Ao redor de julho, encontrei um anúncio que precisavam de Engenheiros na “Perfumarias Phebo”, recém-comprada por uma empresa chamada Procter & Gamble(P&G).

Nunca tinha ouvido falar da dita cuja, e no início pensei que era uma empresa de cassinos (gambling) , e não entendia por que o pessoal do cassino ia comprar uma empresa de sabão. Comecei a ler sobre essa empresa, não tinha nada a ver com cassinos e me encantei. Fundada em 1837, chegou no Brasil em 1988. Valores de honestidade, começando a expansão mundial... vamos tentar.

Meu processo de seleção foi uma maratona. Começou em agosto de 1990, e passei por um montão de entrevistas. Nas entrevistas, eu dizia que um dia queria ser Gerente Geral, e o pessoal ria. Tem que ter MBA, e só com um background de

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LIÇÃO #7: UMA IDEIA BOA COM PROBLEMAS BÁSICOS NÃO FUNCIONA. UMA MÁ IDEIA, MENOS AINDA.

Engenharia, esquece. PS.: Nessa época eu ainda não sabia o que era um MBA. Fui contratado no dia 15 de março de 1991, para organizar os sistemas P&G na fábrica de Belém. Não tinha a mínima ideia de que sistemas necessitavam porque eu era novo ali. Foi aí que descobri um meio novo de gerenciar. Perguntei para o meu chefe o que tinha que fazer, e ele me disse com sotaque grego: “Barcio no ti cotrate para dizer lo que tiene que fazer. Be diga lo que necessita, e cofio em ti”. Isso era totalmente diferente do que tinha passado antes, sem hierarquia, com muito enfoque em desenvolver as pessoas. Viajava entre Belém, São Paulo e Caracas, onde tinha a sede da Companhia, e investiram um montão em mim com cursos, e aprendizados técnicos e de gerenciamento.

A fábrica de sabonetes Phebo era muito antiga, fundada em 1910. Foi primeiro uma fábrica de chapéus, e durante a guerra fabricou cigarros. Desde os anos 1930 produzia sabão, e tinha processos extremamente manuais. O “Chefe” de qualidade, Sr. Franco, andava com uma colherzinha pendurada no pescoço, tirando amostras de sabão do tanque. Dava uma assopradinha e dizia: “tem que cozinhar o sabão por mais dez minutos”, ou “Mete mais umas duas colheres de perfume”. Descobri aí como gerenciar pessoas, e que nem sempre a tecnologia resolve tudo.

Apesar de a fábrica estar na Amazônia, os perfumes vinham da IFF de São Paulo, o sebo vinha do Mato Grosso, mas não importa, este sabonete era amado no Brasil, tinha qualidade excepcional, e a colherzinha do Franco sempre funcionava. Qualquer melhora pequena que fazíamos

na fábrica funcionava. Tudo era velho, então qualquer mudança aparecia muito, e comecei a ser respeitado na empresa.

LIÇÃO #9: É MAIS FÁCIL PROGREDIR

RECUPERANDO UM MAU NEGÓCIO QUE TRABALHANDO

NUM NEGÓCIO MUITO SEXY.

Alguns anos depois de passar pela fábrica de Belém, fui receber umas máquinas de fraldas descartáveis em Wisconsin.

Aí ao lado tinha a fábrica principal e o showroom da KOHLER, uma das melhores marcas no mundo de artigos de banheiro, louças etc. Qual não foi a minha surpresa ao ver aí que todos os banheiros do showroom tinham um sabonete Phebo. Me senti ótimo, e fui perguntar ao Gerente por que eles tinham esse sabão. Ele me disse: “Este sabão deixa um cheiro ótimo nos ambientes por ser produzido com ervas especiais da Amazônia”. Ahhhh... se ele soubesse... pensei na colherzinha do Sr. Franco nesse momento. Do ponto de vista gerencial ia sempre para São Paulo para conhecer a empresa. Eu era um peixe fora d’água. Muitos brasileiros iam almoçar juntos, e ficavam falando em inglês, todos tinham MBA. Eu achava bem arrogante. A maioria vinha formado de nomes famosos, e outros que nunca tinha escutado tipo Northwestern, Harvard, Yale, Kellogs (como o Sucrilho) etc. Nesse momento, o nosso querido Enderson estava na P&G na área de Marketing, e perguntei muitas coisas para ele para entender como as coisas funcionavam. Vi que tinha que pôr pilhas Duracell se quisesse ser realmente subir na empresa e comecei a estudar business .

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Virei Diretor Industrial, abrimos e fechamos fábricas, passamos pelo Plano Real, crises da Ásia, da Argentina, disso, daquilo, e fomos crescendo. Iniciamos vários projetos em detergentes, fraldas, shampoos etc., e eu sempre escrevia no meu plano anual que queria manejar todo o negócio. Nesse tempo contratamos vários iteanos, e sempre tive a impressão de que eles estavam um degrau acima, com MBA ou não. Sempre gente brilhante, e muito trabalhadora, sem muita frescura.

Depois de sair da Embraer em 1984 voltei a ter uma experiência com aeronáutica em 31 de outubro de 1996. Estava em Congonhas cedinho para ir para Brasília e depois para Belém. Nunca me esqueço que o avião parado ao nosso lado era um TAM pintado de azul, diferente dos outros. Quando estávamos na pista de decolagem o avião não se movia. O comandante chamou as aeromoças, que voltaram chorando, e eu perguntei o que aconteceu. Ela me disse: “Caiu o equipamento que ia para Recife”. Fiquei gelado, era o avião azul. Voltamos para a área de embarque, liguei para minha esposa e fiquei sentado sem sair do lugar por algumas horas. A confusão naquele dia foi grande porque chegaram a anunciar que o voo que tinha caído era o de Brasília, e não o do Rio de Janeiro. Me deram por morto na P&G. No dia seguinte quando cheguei no escritório o pessoal chorava e me abraçava como um ressuscitado.

Via na TV o pessoal da TAM, Falco e Ruy sofrendo. Deve ter sido muito difícil para eles e mandei uma mensagem de apoio.

Depois de estudar muito, fazer alguns cursos fora, me esqueci um pouco do tema de

gerenciar toda a empresa. Em 1999, chegou um novo Gerente Geral, e me convidou para ser Diretor de Recursos Humanos...: O QUÊ???? VOCÊS VÃO ME DEMITIR???

Nessa época estávamos brigando com a Colgate pela compra da marca Kolynos, estávamos preparadíssimos para começar o negócio, e a Colgate fez uma oferta final três vezes maior que a nossa. Isso se juntou com alguma das outras crises, mais a primeira grande desvalorização do Real, e de repente tínhamos que fazer uma grande redução na empresa. O que me disseram é que eu tinha experiência para lidar com gente, reestruturação etc., e se desse certo, depois me mandavam para a área comercial.

Passamos uns três anos duríssimos reestruturando tudo, incluindo o fato que terminei cuidando também de relações institucionais. Quando tudo andava bem, me convidaram para Marketing, mas me disseram: “Marcio, você tem um grande futuro, mas tem que voltar à estaca zero em Marketing”.

Foi um grande dilema, mas depois de conversar muito em casa, decidi voltar à estaca Zero no Ano 2000, pensando que se não corresse esse risco, ia me sentir frustrado até o fim da vida. Cuidava do negócio de Beleza e Medicamentos no Brasil, que era bem pequeno nesse momento, e a companhia não ia correr muito risco se eu fosse mal. Fiz todos os treinamentos e cursos com gente 15 anos mais jovem. Era o vovô da turma.

Tive sorte porque peguei marcas deixadas de lado, como Hipoglós e Vick Vaporub, em que ninguém prestava atenção, e que com qualquer carinho melhoravam. Criamos o Bebê Hipoglós no

MARCIO RICARDO GOLFE ANDREAZZI 276

Programa do Gugu, meio cópia do Bebê Johnson, e funcionou superbem. Pantene estava perto da morte, mas conseguimos devagarinho recuperá-lo. Aprendi também que aqueles sachets de Pert Plus eram uma coisa chamada sampling , para o pessoal testar produtos. Isso era inovador no Brasil naquele momento. Nessa época, tínhamos um acordo para patrocinar a equipe Olímpica do Brasil, que era mais concentrada no Vasco da Gama. Quase fui linchado pelos flamenguistas da Turma quando a marca Ace apareceu na camisa de futebol. O Hirdes não me perdoa até hoje. Comecei a me sentir mais seguro com a mudança para a área Comercial, e aí meu chefe veio e me disse: “ MARCIO, FELICIDADES, AGORA VAI CUIDAR DO NEGÓCIO DE REMÉDIOS NA VENEZUELA...”

E assim em 2003 começou meu Samba de Orly do lado de lá da linha de Tordesilhas e nunca mais voltei. Minha experiência com a Venezuela começou em 1991. Fui lá fazer um curso, e voltei encantado. Lembro que disse para a Thereza que parecia a Suíça Latina. Os apartamentos, carros, tudo parecia espetacular. O dinheiro rolava solto, fazíamos todos os investimentos aí, livre mercado, câmbio livre, Universidades Americanas com filiais ali, milhares de bolsas para venezuelanos estudar fora, enfim, parecia que a economia petroleira funcionava. Engraçado que no ano de 1992 houve uma tentativa falha de golpe liderada por um tal de Hugo Chávez, e todo mundo ria deste Don Quixote...

Quando cheguei lá no início de 2003, estávamos no meio do “Paro Petrolero”,

4 anos depois que Hugo Chávez foi eleito presidente, e eu tinha que ir ao escritório de bicicleta. Durante esse tempo ainda era muito legal viver ali, mas com o passar dos anos fomos vivendo os “Paros”, os “Referendos revocatorios” etc., e cada vez mais a segurança deteriorava. Eu gerenciava o negócio de Medicamentos da América Latina, viajava para cima e para baixo, mas no final minha esposa gostava de lá, e tínhamos muitos amigos. Nessa época já era famosa a mão branca das construtoras na Venezuela, filiais do PT, e tinha até “enviados” do MST aí. Marketing era interessante, mas eu queria mesmo ir para gerenciar um país, e no início de 2007 fui convidado a gerenciar o negócio no Paquistão. Quase morremos em casa com a notícia, quando por essas coincidências da vida o Gerente Geral do Chile teve uns problemas, e eu terminei ocupando o seu lugar. Tchau, Paquistão!!!

CHI CHI CHI, LE LE LE, VIVA CHILE!!!

Sem dúvida o Chile é uma referência na América Latina. Apesar da sanguinária ditadura de Pinochet, que seguiu o sanguinário socialismo do Salvador Allende, poderia dizer que depois da democratização o país funcionou bem até 2019. Eu estive ali desde 2006 até 2011. Foi amor à primeira vista. Tudo certinho, negócio bem arrumado, pleno emprego, e os policiais menos corruptos do mundo.

Quando chegamos da Venezuela em 2006, trazendo um montão de famílias para o novo escritório, tivemos vários problemas com “outros” latinos que sugeriam dar uma gorjeta para os carabineiros, e terminaram

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na delegacia. Muitos tiveram o seu visto de trabalho negado por esses incidentes.

O país ainda é muito dividido. Nunca converse de política com um chileno, porque de um lado ou de outro os caras sempre vão ficar putos. Os problemas começaram no fim de 2008 com a crise financeira global. O Chile é muito dependente do preço do cobre, que caiu mais de 60%. Muito desemprego, mas para nós, na indústria de consumo, o impacto foi menor até que chegou 28 de fevereiro de 2010.

Fomos assolados por um dos maiores terremotos da história, 8,8 na Escala Richter. No meu apartamento os dois elevadores caíram, tivemos que dormir no térreo, e ao mesmo tempo gerenciando o negócio para que não faltassem produtos essenciais nos supermercados.

Rapidamente se vê como uma sociedade organizada se destrói. No segundo dia depois do terremoto começaram os saques, e o pessoal não roubava comida, mas sim televisores, motos, geladeiras, e até as prateleiras dos supermercados. Foi um tempo bem difícil, recuperamos rápido, mas o amor que eu tinha pelo país foi se transformando em amizade.

Cheguei mesmo a pensar que ia parar meu burro aí, mas no dia 3 de dezembro de 2010 (aniversário da minha mãe) recebi um telefonema do meu chefe... “Marcio, como você gerenciou bem a crise financeira e o terremoto, você vai para a Venezuela.”

Tenho que dizer que fiquei puto, mas sou bom soldado. Pelo menos posso me gabar que de todos os empregados expatriados da P&G desde 1837, fui o único a viver duas vezes na Chavezland .

!GLORIA AL BRAVO PUEBLO!!

Foi duríssimo, apesar de que este fosse ainda o segundo maior negócio da América Latina depois do México. Chávez meio morto, Chávez meio vivo, Lula, Maduro, Odebrecht, Joesley, JBS, falta de dólares, dezesseis funcionários sequestrados, Dilma, carro quase roubado na estrada, sem querer inauguramos fábrica no dia em que o Chávez morreu, mas uma coisa valeu a pena: patrocinamos o Miss Venezuela, e fui jurado do concurso, com a Sra. Thereza atrás de mim, condição “ sine qua non ” para esta empreitada.

Caracas me ensinou muito sobre o socialismo latino, e adoro ouvir a tragicomédia de líderes ressuscitando vários anos depois. Gente inteligente acreditando na paródia cubana e venezuelana sem nunca ter vivido ali. A maior contribuição da Revolução Bolivariana foi criar um fuso horário com meia hora de diferença, e mudar a direção do cavalo da bandeira de direita para a esquerda.

VIVA MÉXICO!!!

Em agosto de 2014 ganhei o que não esperava. Gerenciar o México...que coisa. Muitos pensam nas “Novelas Mexicanas” do SBT, no outro “Chávez (ou Chapolim Colorado)”, e consideram este país como destino por Cancún, ou talvez por aquele filminho da Frida Kahlo. A grande injustiça com a educação brasileira é não ensinar sobre o outro lado da América Latina o suficiente. Não só pelos Maias ou os Aztecas, mas apesar de existir corrupção e narcotraficantes, este país tem o maior volume de exportação absoluto, ou por habitantes da América Latina. A primeira

MARCIO RICARDO GOLFE ANDREAZZI 278

reação do brasileiro é dizer: mas é tudo “Maquila”. Pois bem, enquanto tiramos sarro, o que o México exporta é mais ou menos o triplo do Brasil, em produtos aeroespaciais, televisões, produtos manufaturados, e sim, cerveja Corona, abacate e tequila.

Dentro deste aspecto, me senti muito honrado por ter sido escolhido para este trabalho. Negócio muito grande. Sete anos... dois terremotos, eleição do Trump, eleição do López Obrador, término do Nafta, reabertura do Nafta, e sem dúvida a melhor equipe de trabalho que tive. Para celebrar, todo ano tirávamos a foto de todos em um lugar especial, e o mais especial de todos foi o Estádio Azteca do famoso 4 x 1 de 1970, e onde me senti muito feliz.

Esta história não termina, mas agora em 1 de agosto me aposento da P&G depois de 30 anos. Quero viver mais com meus filhos, porque desde o início deste Samba de Orly, os deixei pelo caminho. Um em 2002 e outro em 2005, mas hoje tenho orgulho de estar trabalhando com eles, ainda que seja fora da área canarinha.

ÚLTIMA LIÇÃO

Num desses cursos que fiz na minha carreira tive o privilégio de escutar o

Professor Clayton Christensen. O tema era sobre “Innovator’s Dilemma”. Infelizmente ele faleceu de um câncer em 2020, e na sua palestra ele começou a falar sobre este exercício de “Como medir a sua vida?”

( How will you measure your life? ), que não tinha nada que ver com o tema principal, mas me marcou muito. O ponto é que no dia em que você se for, o pessoal não vai se lembrar de quantos anos seguidos você cresceu participação de mercado, quantas pessoas reportavam para você, ou quantos bilhões de não sei o que você gerenciava. É um exercício muito profundo, onde um tem que pensar o que querem que digam no dia a dia quando você vai para a outra vida. No meu caso, depois de pensar muito, o que quero deixar é a família que construí (Thereza, Junior, Alessandro e Felipe), o número de pessoas que ajudei, as boas memórias que levam de mim, e o número de amigos que deixei. Neste último quesito, sem dúvida, o ITA foi o fator prevalente da minha vida, e a Turma 82 estará comigo para sempre.

“Pede perdão pela duração desta temporada/ mas não diga nada que me viu chorando/ e pros da pesada diz que eu vou levando.”

(Chico Buarque – que admiro só como artista...)

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 279

Marcão

MARCOS ANT Ô NIO DE ALMEIDA

CAMINHO ATÉ A TURMA 82

Na barriga da miséria, nasci sanfoneiro…. e do Ceará fui parar no Rio de Janeiro (então capital do Brasil), adotado por minha mãe Normelia, paraibana de Campina Grande, oxente!

O caminho até chegar à Turma 82 foi offroad . De aluno prodígio na escola pública a bagunceiro no ginásio, minha passagem da infância à adolescência, onde sexo, drogas e rock & roll foram os principais tópicos de interesse. Não me encaixava muito no estereótipo de CDF, pois fazia som com meus amigos bichosgrilos e doidões, ouvindo head music e tentando aprender a tocar mood for a day . Quem já me viu tocando sabe que não aprendi direito, mas consigo enrolar um pouco. Fora isso, tinha uma clarineta que acabou sendo minha marca registrada, provavelmente por ser menos comum que o violão.

Nesse contexto, ao final do ginásio, parei de zoar e me esforcei para ser aprovado nos concursos da Escola Técnica e do Colégio Naval. Sempre achei que iria ser algo como um cientista maluco e por isso dispensei o Colégio Naval (tadinha de minha mãe, que já estava sonhando me ver com o uniforme da Naval) e escolhi a Federal de Química da Guanabara (ETFQG), onde tinha um laboratório para chamar de meu.

ABANDONOS, RECOMEÇOS E MISSÃO CUMPRIDA

Fênix. Sempre me reinventando, chegou a hora do vestibular. No 3º ano consegui uma bolsa na turma IME/ITA do Colégio Guanabara (Bahiense), larguei a ETFQG para me dedicar ao vestibular. Reprovei no IME, passei (reclassificado) no ITA e na Engenharia da UFRJ. Tranquei a UFRJ e fui para o H8/ITA e o CEPORRA. Por ter sido aprovado depois, acabei aparecendo no ITA fora de temporada, quando já não tinha mais ninguém da nossa turma. Assim, acabei me enturmando primeiro com a galera que estava por lá, a turma do 4º ano. Durante o

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Quem já me viu tocando sabe que não aprendi direito, mas consigo enrolar um pouco.

trote, acabei escapando por conta desse detalhe. Depois fui me enturmando com a galera do meu apartamento (Mainha, Marcos Silva, Ponte e Gurgel). Também me enturmei logo com Tornavoi & Cunningham, companheiros fundadores do PEA (Partido Etílico Alienado… só o álcool faz sentido) e os seresteiros do H8, Fernandes, Tornavoi, Michel etc. No início de novembro, fui trancado por falta… claro, né?

As farras me levaram de volta para o Rio, onde reabri minha matrícula na UFRJ e comecei a aprender a programar num bureau de informática, no qual fui logo contratado. A maioria dos funcionários eram ex-alunos da turma IME/ITA. Em julho, animado com as perspectivas da carreira em computação, decidi não voltar para o ITA. Continuei estudando e trabalhando até abandonar a faculdade por não conseguir conciliar os dois.

Em paralelo, fiz minha família com minha eterna namorada Rita, paquerinha do tempo de vestibular e namorada firme desde que fui para o ITA. Tivemos quatro filhos, como um bom cearense – a mais velha, Luciana, em 1981 e logo depois, em 1982, Guilherme. Dez anos mais tarde retomamos a linha de produção e veio a segunda geração, com mais dois garotos: Henrique em 1991 e Eduardo em 1993.

Minha prioridade passou a ser o trabalho. Consegui construir uma carreira na área de TI que me levou rapidamente à gerência de sistemas (Ajax Seguros) e logo depois ao empreendedorismo Linkedin aos trinta e poucos, atingindo meus principais objetivos financeiros antes dos quarenta.

NOVOS CAMINHOS, NETOS, APOSENTADORIA, STARTUPS E O RETORNO PARA A TURMA 82

O velho lobo do mar. Os ventos mudaram de direção e tive que ajustar meu negócio para atuar como Gerente de Projetos (PJ) em projetos de terceiros. Em paralelo, voltei a estudar, vindo a me formar aos 50 anos de idade em tecnologia de sistemas e computação na UFF/Cederj (Ead) em 2008. Nesse mesmo ano passei no concurso da Dataprev, onde consegui me aposentar no final de 2019, aos 61.

Após me formar, decidi prosseguir nos meus estudos, concluindo uma pós em criptografia (UFF), Mestrado em Otimização (Clustering) no Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da Coppe/ UFRJ e, por fim, iniciando o doutorado em Engenharia de Dados e Conhecimento, já totalmente cursado e qualificado, mas ainda não defendido no mesmo Programa da Coppe mas em outra linha de conhecimento.

Além de concluir minha tese, estou envolvido com duas startups : minha segunda geração de filhos, um cientista de dados (Eduardo) e outro tecnólogo empreendedor (Henrique) com projetos em blockchain e vivendo com a esposa em Oaxaca, no México. Todos os filhos já saíram de casa e agora começamos a colher o retorno do investimento da primeira geração, com um netinha de 11 anos (Julia), da minha filha Luciana, que vivem em NYC, e uma de 10 meses (Diana) do meu filho Guilherme.

Resgatado pelo Zappa. Estava na UFRJ estudando no mestrado quando me reencontrei casualmente com o Zappa. Ele me resgatou da lista de “desaparecidos” e me trouxe de volta para o grupo onde, junto com

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 281

Vagner e Sartorelli, passamos a almoçar com alguma frequência, interrompida nestes dois últimos anos de pandemia. Também passamos a nos encontrar antes do final do ano com o Garoto Fulco, e fomos agregando

outros membros ao encontro, entre eles o Zé Andrade.

Espero que a covid-19 nos dê uma trégua e possamos, finalmente, voltar a nos ver este ano.

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MARCOS ANTÔNIO DE ALMEIDA

ANTES DO ITA

Vinagre

MARCO VALÉRIO DE ALBUQUERQUE VINAGRE

“Se quiser ir rápido, vá sozinho. Se quiser ir longe, vá em grupo.” Provérbio africano

Nasci na bela e alegre cidade de Belém do Pará, no dia 31 de agosto de 1959, filho de Carlos Alberto de Aragão Vinagre e Floripes de Albuquerque Vinagre. Tenho dois irmãos (Marco Aurélio e Marco Venício) e uma irmã (Márcia Bethânia).

Estudei no Colégio Suíço Brasileiro (primário), Colégio Elias Viana (secundário, 1º e 2º anos do Científico), Colégio Moderno (3º ano do Científico) e Escola Técnica Federal do Pará (Técnico em Eletrotécnica, simultaneamente com o Científico).

VESTIBULAR PARA O ITA

Fiquei surpreso e muito feliz ao passar no vestibular do ITA em 1976, uma vez que naquela época não havia nenhum curso específico em Belém, de onde eu nunca havia saído. Tive um bom grupo de estudos: Dário Cardoso, Jaime Rocha, Dário Parente, e outros, que sempre me trouxeram questões mais elaboradas para resolver. Ao fazer exame médico no ITA, em São José dos Campos – SP, tive problema nas radiografias, e não fui aprovado naquele ano. No ano seguinte, após ter resolvido a situação, recorri e me foi dada a oportunidade de refazer o exame médico. Fui aprovado para

cursar o ITA, na condição de não poder trancar ou repetir, pois já havia gasto essa “franquia”. Assim, tive o privilégio de entrar para a Turma 82, na qual fiz grandes amigos, em uma fase extremamente ativa da vida, e com os quais aprendi muito.

NO ITA

No H8-A, nosso apartamento foi o 114. Iniciamos morando, em 1978, eu, Shuhei, Freire, Katsanos, Hayashi e Hoshino (que teve um problema renal e logo saiu do ITA). Em 1980 mudou-se o Shuhei para outro apartamento. Os colegas de cidades mais próximas a São José dos Campos – SP conseguiam visitar suas famílias com certa frequência. Eu conseguia ir à minha cidade a cada dois meses. Eram dois dias e quatro horas de ônibus entre São José dos Campos e Belém, quatro dias e meio o tempo de viagem de ida e volta. Assim, em feriados, fui convidado e tive o prazer de conhecer a casa de bons amigos, como Hayashi, Christophe, Katsanos, Freire, Fricks, Mainha (me perdoem se esqueço alguém), além de visitar meus

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queridos tios Nilton e Célia ( in memoriam ) e primas, residentes em Campinas – SP. Também recebi em Belém a visita de vários amigos do ITA, como o Auri, e em especial, na viagem de visita a obras pelo Brasil, de minha querida Turma INFRA-82 (Christophe, Edmur, Gurgel, Mayoral, Ney, Schalka e Taka). Além dos estudos, muito exigentes, a convivência nos apartamentos do H8 permitiu-me um aprendizado social extremamente rico e a valiosa formação de amizades perenes, me brindando com muitas memórias divertidas de trotes e brincadeiras em grupo. Isso nos desestressava, pois o ambiente muitas vezes era muito tensionado pela sobrecarga de tarefas e provas.

Concluí o curso de Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica (equivalente a Engenharia Civil) em 1982, tendo desenvolvido um elevado gosto pela Hidráulica e Saneamento. Esse tema me influenciou na maioria de minhas escolhas profissionais.

Uma influência marcante durante minha graduação foi o Professor Dr. Carlos Henrique Aranha, que foi meu orientador de Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado “Estudo de Redes de Abastecimento de Água”, com o uso da técnica de NewtonRaphson e convergência nodal, operacionalizada por mim com o auxílio de jacobianos (matrizes de primeiras derivadas parciais), em programa computacional capaz de obter soluções numéricas para simulação e projetos de redes de abastecimento de água. Meu primeiro contato com a pesquisa acadêmica se deu por meio de uma bolsa de iniciação científica no Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde estagiei na área de meteorologia e sensoriamento remoto.

APÓS O ITA

Formado, voltei para Belém em 1983. Escolhi voltar, pois sempre gostei muito de minha cidade e das pessoas com quem convivia, especialmente minha família. Fui professor na Engenharia Civil da Universidade da Amazônia (Unama) no primeiro semestre de 1983. Entretanto, ao ser contratado nessa mesma época pela Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa), e havendo coincidência de horários, suspendi minha atividade de magistério.

Casei-me com minha amada Socorro em junho de 1983, com quem até hoje tenho a felicidade de permanecer casado. Temos três amadas filhas (Nicole, Natália e Nádia), três amados netos (Luiza, Samuel e Giovana) e dois amados genros (Márcio e Rodrigo). Atualmente, Nicole, Márcio, Luiza e Samuel moram em Santarém – PA, Natália e Rodrigo em Lisboa, Nádia e Giovana em Belém – PA. Como atividades profissionais, iniciei como Engenheiro da Cosanpa em 1983. Fui Diretor Regional do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) do Pará e do Amapá de 1985 a 1990, exerci em Brasília a função de Coordenador de Saneamento Urbano da Secretaria Nacional de Saneamento de 1990 a 1991, período em que atuei nacionalmente na área do Saneamento Urbano. Retornei a Belém para exercer a Presidência da Cosanpa de 1991 a 1993, na condição de ajudar na implantação do Programa de Macrodrenagem da Bacia do Una, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o que conseguimos, e isso beneficiou muitas pessoas residentes em áreas alagáveis de Belém. Também conseguimos beneficiar

MARCO VALÉRIO DE ALBUQUERQUE
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VINAGRE

muitos municípios do Pará com obras de saneamento, além de outros programas com financiamento do Banco Mundial. Fui aprovado em concurso público em 1995, e tornei-me Engenheiro do Ministério Público do Estado do Pará, órgão no qual me aposentei em 2018. Nesse órgão exerci a chefia do Departamento de Obras e Manutenção de 2000 a 2011. Ao longo de minha vida profissional, também exerci as funções de Conselheiro e Diretor do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Pará (Crea-PA), Membro do Conselho Estadual de Saúde, Saneamento e Meio Ambiente, dos Conselhos de Administração da Companhia de Habitação do Estado do Pará e das Centrais Elétricas do Pará, além de professor substituto da Faculdade de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal do Pará (UFPA). Tive a felicidade de receber alguns prêmios e títulos ao longo dessa trajetória: Medalha de Oficial da Ordem do Grão-Pará do Governo do Estado do Pará (1987), Medalha por serviços prestados na elaboração da Constituição do Estado do Pará pela Assembleia Legislativa do Estado do Pará (1989), Medalha do Mérito Tiradentes da Polícia Militar do Estado do Pará (1993), Medalha de Cavaleiro da Ordem do Grão-Pará do Governo do Estado do Pará (1993), Medalha Fabrício Ramos Couto do Ministério Público do Estado do Pará (2006), Destaque Científico do Clube de Engenharia do Pará (2011), Membro Titular da Academia Paraense de Ciências (2012), Certificado de agradecimento por relevantes serviços prestado à Nação pelo Crea-PA (2014).

Em 2005 concluí a Especialização em Planejamento e Gestão do Desenvolvimento

Regional na UFPA, em 2006 o Mestrado em Engenharia Civil na área de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental na UFPA, orientado pelo Professor Dr. José Júlio Ferreira Lima, produzindo a Dissertação de Mestrado intitulada “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU: A redução da mortalidade na infância e o Saneamento no Estado do Pará”, a qual utilizou modelo de regressão múltipla para investigar a relação entre indicadores de saneamento (provisão de água, esgoto e limpeza pública) e a Meta do Milênio da ONU de redução da mortalidade na infância. A dissertação gerou trabalho científico que foi apresentado em evento nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur). Esse tema uniu saneamento urbano e políticas públicas. Concluí no ano de 2010 o Doutorado em Engenharia de Recursos Naturais da Amazônia na UFPA. A tese produzida teve o título de “Contribuições para a otimização do uso de turbinas axiais em pequenas centrais hidrelétricas de baixa queda da Amazônia”, na qual foi desenvolvido modelo chuva-vazão com fator de ganho sigmoidal, estudando o uso de turbinas axiais para geração de energia em Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e analisando aspectos econômicos desse tipo de empreendimento. O desenvolvimento da tese se deu com o auxílio do Professor Dr. Claudio José Cavalcante Blanco (UFPA), que me orientou na modelagem chuva-vazão com fator de ganho sigmoidal; já o estudo do uso das turbinas axiais de baixa queda foi orientado pelo Professor Dr. André Luiz Amarante Mesquita (UFPA) conjuntamente com o Professor Dr. Nelson ManzanaresFilho (Unifei); e a análise econômica foi auxiliada pelo Professor Dr. André Augusto

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 285

Azevedo Montenegro Duarte (UFPA). A partir dessa tese, foram publicados dois artigos internacionais e um nacional. Ao concluir meu doutoramento no ano de 2010, voltei a lecionar, retornando com muita alegria à Universidade da Amazônia (Unama), na Graduação e na Pós-graduação.

Em 2011, através da Fundação para o Desenvolvimento da Amazônia (Fidesa), formulamos proposta na área de Energias Renováveis, concorrendo a Edital de Projeto de Pesquisa e Desenvolvimento Científico da Aneel/Eletrobras/Eletronorte, com o título “Formulação de Diretrizes para a Captação de Energia Solar Fotovoltaica a partir de Grandes Edifícios, na Região Amazônica”, com equipe de professores e pesquisadores da Unama e IFPA, que venceu o certame. Em 2013, assumi na Unama o cargo de Coordenador desse Projeto de P&D. A pesquisa produziu relatórios, trabalhos aceitos em congressos nacionais e internacionais, artigos científicos e capítulos em livros acadêmicos.

Além das relacionadas acima, tenho exercido outras atividades relacionadas à vida acadêmica. Cito, entre outras, a avaliação de artigos científicos para a Revista da Abes e outras, atuação como avaliador externo para seleção de projetos no processo seletivo para o Pibic/Pibit/ CNPq (UFMS), bem como orientador de

alunos de iniciação científica, de trabalhos de conclusão de curso, de monografias de especialização, de dissertações de mestrado, teses de doutorado, participação em grupos de pesquisa e desenvolvimento de projetos de pesquisa nas áreas de Saneamento, Meio Ambiente e Energias Renováveis. Atualmente estamos iniciando participação na rede Iberoamericana de Água Segura e Enfermidades Transmissíveis. Sou muito feliz nas atividades de ensino e pesquisa, pela constante atualização científica e pelo convívio com discentes motivados. Uma atividade que tenho feito também e de que gosto muito é a modelagem de projetos e obras de sistemas de saneamento. São “obras virtuais” que possibilitam estudar seu comportamento hidráulico, muito útil para estudar enchentes e alagamentos, em especial no momento que vivemos, com aumento da urbanização, elevação do nível dos oceanos e importantes alterações pluviométricas. Outra área em que tenho participado é uso da geração fotovoltaica e uso de hidrogênio verde.

IMPORTÂNCIA DO ITA EM MINHA TRAJETÓRIA

Ser Engenheiro do ITA foi uma valiosa referência de competência profissional, de grande valia em minha carreira, auxiliando na indicação e nomeação

MARCO VALÉRIO DE
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ALBUQUERQUE VINAGRE
Sou muito feliz nas atividades de ensino e pesquisa, pela constante atualização científica e pelo convívio com discentes motivados.

nos cargos públicos que exerci e que me permitiram contribuir para a melhoria da infraestrutura física da sociedade. Na carreira acadêmica, foi uma referência excelente para interessar meus orientadores a me aceitarem como orientando.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sou muito grato a Deus pela família e pelos amigos com os quais fui presenteado

nesta vida e pelas oportunidades de trabalho que tive. Tento retribuir esforçando-me para trazer os melhores benefícios possíveis à sociedade em minha área de atuação. Agradeço o fraterno convite para redigir estas memórias, que dedico aos bons amigos do ITA e à minha família.

Forte abraço a todos da querida Turma 82!

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 287

Fantinato

MAURÍCIO FANTINATO

O FANTA SOBREVIVENTE

Pessoal, bom dia!

São 4h18 da manhã do dia 21 de março de 2022 e tenho até às 6h00 para escrever este meu relato. Tenho andado por demais atarefado com o meu pequeno negócio de distribuição de água mineral aqui em Campinas. Nos últimos tempos tenho trabalhado das 7h00 às 20h00, sem pular os sábados e domingos. Muito para a minha idade. Não sei exatamente o que seria um relato “ideal” pois li somente o do Charles. Gostei do que li, e acredito que posso dar uma contribuição, imaginando aqui que contar um rápido resumo da minha trajetória de vida e dos meus últimos anos possa ser algo que se enquadre nos padrões de um relato.

Pois bem...

1982 – Formatura.

Passo rapidamente pelas empresas em que trabalhei:

– 1983-1985, Embraer – Pratt

Whitney – Embraer;

– 1985-1990, Bosch – Bendix;

– 1990-1992, Sisgraph;

– 1993-1997, M. Fantinato Marcenaria;

– 1997-2002, Bosch (2ª vez);

– 2002-2014, Valeo.

Aposentei-me em 2013-2014, não me lembro ao certo, depois de ter passado por uma crise psiquiátrica que definiu o 2º Fanta: o Fanta sobrevivente.

Tudo começa na Valeo, com uma dor excruciante na cervical. Achava que seria um problema ali localizado, que se mostrou ser uma síndrome do impacto, problema de ombro. Consultando um doutor renomado da área de ortopedia do Hospital do Coração em São Paulo, ele me fez ver que o meu problema, depois de todas aquelas imagens de coluna deteriorada, iguais à dele, seria o ombro. Entre outros remédios, me receitou amitriptilina, medicamento que passei a respeitar e do qual passo longe.

O que houve? Esse é um remédio da área psiquiátrica, usado por médicos de outras áreas para inibir a dor: algo como contar para o seu cérebro que o que seria uma dor não é. Remédio ótimo, que em pouco tempo me tirou de uma cadeira tipo divã, que usava para dormir durante dois meses, de volta para a cama.

Entretanto, tudo tem seu preço... Depois de alguns meses de uso, esse medicamento começou a gerar mudanças de interpretação do meu mundo externo, culminando com uma consulta médica cardiológica no Shopping D. Pedro em Campinas, quando vi meu mundo acelerar de uma hora para outra. Foi como se tudo passasse a acontecer

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em rotação 78, aquela dos discos de vinil, quando o normal seria 33. Literalmente surtei. E me vi despertando em uma clínica psiquiátrica: Bairral de Itapira. Foram 15 dias tomando remédios e mostrando a língua após tomá-los para demonstrar que os havia ingerido por completo. Roupas marcadas com pequenos números de minha identificação, que demoraram anos para sumir da minha vista e lembrança.

Seguindo esse “ponto alto”, veio a depressão, por quatro anos, tomando toda sorte de medicamentos, servindo de cobaião da área psiquiátrica, e dando um imenso trabalho a minha esposa Lolita, que também serviu e serve de mãe a meus dois filhos, Bianca, de 37, e Felipe, de quase 34.

Foram quatro anos da dupla cama-sofá da sala sem sair desse circuito em que minha esposa, abnegada, se dedicou com amor à minha recuperação.

Falando em recuperação, vamos a ela. Consultei diversos médicos e médicas até que um dia fui ter com o Dr. Nubor Facure, neurologista do Instituto do Cérebro, em Campinas. Na rotina de consulta do Dr. Nubor são incluídos dois retornos, um a 15dd e outro a 30dd.

O Dr. Nubor, após a consulta, sempre de portas totalmente abertas, me receitou um primeiro remédio, que tomei com toda a esperança de um passarinho que fica de bico aberto no ninho esperando pelo alimento da mãe no decorrer do dia para saciar a fome. No meu caso, era fome de cura. Tive efeitos colaterais horríveis, passei muito mal, mas tomei a medicação. No retorno, pedi ao médico: “Doutor, poderia me receitar qualquer outra classe, menos a classe a que este pertence? Os efeitos foram horríveis...”. Foi então que veio um traço de humildade, coisa rara para o Fanta: “Doutor, me cure. Por tudo que há de mais sagrado, me cure, por favor”. E o que fez o Dr. Nubor? Simplesmente atendeu o meu pedido: ele me curou!

Em poucos dias, o Sol apareceu, o céu milagrosamente se abriu e pude ver o azul maravilhoso da cidade de Campinas que, para mim, deveria ser a cópia de Chicago

– The Windy City, a nossa Blue City.

De lá para cá já se foram quase cinco anos. Eu, com meu pequeno negócio de água mineral, uma pequena distribuidora de água numa esquina do Centro-Bosque aqui de Campinas, contando, muitas vezes, com

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Em poucos dias, o Sol apareceu, o céu milagrosamente se abriu e pude ver o azul maravilhoso da cidade de Campinas que, para mim, deveria ser a cópia de Chicago – The Windy City, a nossa Blue City.

o suporte intelectual no nosso abnegado amigo Paulo Outi, que com paciência me “atura” nas minhas bipolaridades que me dizem estar presentes. Aí já não sei...

Adoro o que faço, apesar dos percalços diários pelos quais um comerciante com a necessidade de entregas de bike , moto e Kombi passa, para fazer chegar água mineral de qualidade aos inúmeros lares, sobretudo os das encantadoras senhorinhas de mais idade que nos recebem sempre com imensa doçura. Bem, pessoal, é isso. Missão cumprida. Relato feito. Meta cumprida antes do tempo: são 05h18. Espero que este relato possa ser enquadrado nos parâmetros da

Comissão e fica o convite para me visitarem quando de passagem. O endereço é Rua Riachuelo, 357, esquina com a Antônio Cesarino, a qualquer hora do dia, das 8h00 às 18h00, e aos sábados das 8h00 às 13h00. Em tempo: na esquina há o bar do português, ou restaurante Costa do Sol, que tem os melhores bolinhos de bacalhau de Campinas, feitos pelas mãos da Dona Arminda e auxiliares. Vale a pena me chamarem para provar qualquer nova produção.

Um abraço a todos. E nos vemos em dezembro.

Pretendo estar lá no domingo, sDq.

MAURÍCIO FANTINATO 290

Garoto Fulco

MAURICIO FULCO

“Para tudo há uma ocasião certa; há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu.”

Eclesiastes 3:1

ANTES

Desde garoto, aviões já me fascinavam. Minha memória mais antiga é a satisfação de quando consegui montar alguns dos detalhados modelos Revell. A memória menos agradável foi quando meu irmão mais novo conseguiu alcançá-los na prateleira e tentou fazê-los voar como fazíamos com os aviões de papel.

Um pouco da história lá de casa... Meu pai foi arrimo de família. Desde a escola secundária, teve que trabalhar, quando seu padrasto – meu querido e saudoso avô e padrinho, com quem posteriormente tive um convívio muito próximo – teve que se aposentar por invalidez. Para complementar a modesta pensão dos meus avós e ajudar no sustento de suas duas irmãs mais novas, começou como office boy e depois foi funcionário de banco privado; estudou à noite e passou no concurso para o Banco do Brasil. Ali fez sua carreira, primeiramente enviado para o interior de Santa Catarina (onde conheceu minha mãe e se casaram), passando de caixa e back office a técnico de processamento de dados, até chegar a encarregado e depois supervisor dessa área na Agência Centro do Rio, à época responsável pela folha de pagamento do

Banco no Brasil inteiro. Lembro-me das histórias dos primeiros computadores a válvula e dos blocos de rascunho que sempre tínhamos em casa, feitos com o verso de listagens de computador, além dos cartões perfurados que meu pai levava para brincarmos e que, depois, fizeram parte da minha vida no lab de computação do ITA. Quanto à minha mãe, ela tinha largado sua carreira de contadora em Santa Catarina após o casamento. Meus pais mudaram-se para o Rio, onde meus dois irmãos e eu (sendo eu o do meio) nascemos e nos criamos sob os cuidados dela, com a ajuda de nossa irmã de criação que veio do Sul com ela. Embora seja anterior às minhas primeiras lembranças, nos meus primeiros anos de vida ainda morávamos junto com meus avós e minhas tias, até quando meu pai conseguiu comprar um apartamento para eles. Sou muito grato a meus pais por terem se sacrificado por nós. Sempre ficou claro para mim que fizeram tudo para que nada nos faltasse, mantendo uma vida simples mas com clara ênfase em nos dar a melhor educação possível.

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Embora as escolas públicas ainda fossem boas naquela altura, meus irmãos e eu fizemos o primário em escola particular e conseguimos passar no concurso para o Colégio de Aplicação da UERJ, uma escola secundária concorrida, pois juntava boa qualidade a custo mínimo, quando comparada aos colégios privados de qualidade semelhante. O Aplicação, como o chamávamos, era um colégio um pouco à frente do seu tempo. O horário era integral, incluindo, além das matérias básicas do currículo, uma carga variada de laboratórios, artes plásticas, inglês, francês, teatro etc. Assistíamos às aulas em grupos, ao redor de mesas, em vez de carteiras individuais. Havia ênfase em trabalhos em grupo e não somente em provas individuais. Tenho muitas lembranças dessa época e destaco primeiramente algo fora do acadêmico: eu almoçava quase sempre na casa dos meus avós, que era perto da escola. Além da comida de vó, simples mas deliciosa, com direito a levar um lanchinho da tarde para a escola, escutava com meu avô e padrinho o programa de rádio favorito dele – Patrulha da Cidade –, uma paródia do noticiário policial do Rio, já bem rico naquela época. Outra memória isolada, mas marcante, foi o intercâmbio do Aplicação com a Escola Americana do Rio, onde compartilhamos um dia de aula de uma turma do mesmo ano. Lembro-me de ter ficado de queixo caído com as instalações: salas com paredes divisórias, móveis e quadros “brancos” sem pó de giz, televisão nas salas, laboratórios, piscina, quadras e campo de futebol (mesmo que americano) gramado, tudo em arquitetura moderna integrada à bela paisagem verde da Gávea. Eu

já alimentava o sonho de estudar em escolas diferenciadas, mas nem nos meus melhores sonhos imaginava que meus filhos um dia viriam a estudar em escolas internacionais.

Ao chegar no último ano da escola secundária, o Aplicação já oferecia uma preparação adequada para entrar nas universidades mais concorridas no Vestibular unificado. Meu irmão mais velho tinha seguido esse caminho e passado para Engenharia na UFRJ. Quando chegou minha vez, eu também queria Engenharia mas confesso que não me empolgava muito com as opções: Civil, Mecânica, Eletrônica ou mesmo Naval. Sabia que o ITA era “oto patamar” mas seria puxado para o meu pai pagar um cursinho, ainda mais uma turma IME-ITA, embora soubesse que ele me apoiaria. Foi aí que a vontade se encontrou com a oportunidade. Meu colega mais próximo no colégio tinha um amigo que tinha virado monitor na turma IME-ITA do cursinho Impacto, no Rio, após ter passado em primeiro lugar no IME no ano anterior. Por intermédio dele, meu colega conseguiu para si, outros três colegas e eu uma bolsa integral, sob o compromisso (moral) de nos dedicarmos em tempo integral à preparação para as provas do IME e ITA do ano seguinte e ajudarmos a promover o Impacto caso passássemos – normalmente a foto dos “suspeitos” mais bem colocados ia parar na contracapa das apostilas do cursinho. Alguns anos depois, quando comecei a namorar a Ana Paula, ela lembrou ter visto minha foto quando fez cursinho no Impacto em Volta Redonda. Cheguei a ver a tal foto numa das apostilas dela – e agradeço a Deus até hoje por ela não ter me dispensado...

MAURICIO FULCO 292

O ano de cursinho foi de muita aula, prova, simulado e muito sanduíche na hora do almoço. Logo no princípio, nós – os cinco colegas bolsistas – decidimos nos encontrar, cada semana na casa de um, para uma noite de estudos. Nossas mães faziam um jantar para começar e logo percebemos que o estudo ficava por ali mesmo. Nasceu ali o gagá (estudo) solidário ou social. Mal sabia eu que, com o auxílio do jantar do H15 (refeitório dos alunos do ITA), viríamos a aprimorá-lo no ITA, passando pelo gagá sono – no qual me especializei, para desespero do Maurinho (Hirdes) – e culminando com a melação (adiamento) da prova e do gagá para fins sociais nos bares de São José dos Campos.

Bostejos (digressões) à parte, o ano de cursinho foi também meu primeiro contato com a estratégia militar. A turma IME-ITA do Impacto era dirigida pelo reformado Coronel Roquete. Além das aulas e provas simuladas, ali ele nos doutrinou sobre como fazer prova, incluindo os axiomas que trago gravados em alguma área da memória e deixo para a reflexão dos colegas:

1. Eu sou burro mas não sou cego.

2. O ótimo é inimigo do bom.

3. Cobra que não se mexe não engole sapo.

Além disso, havia sessões motivacionais onde recebíamos inteligência sobre o “Inimigo” (isso é, os cursinhos concorrentes do Impacto). Ao se aproximarem os exames para o IME e ITA, fomos assegurados de que o “Inimigo” estava desesperado e que entraríamos com força total para vencê-lo.

O arqui-Inimigo era o cursinho Miguel Couto-Bahiense, onde figuravam elementos

perigosos, tais como o Tim Maia e outros grandes amigos nossos da Turma 82.

Em resumo, juntando o preparo acadêmico e estratégico, os cinco bolsistas solidários passaram para o IME e eu fui o único daquele grupo que se inscreveu para o ITA. O resto é história.

DURANTE

Minhas primeiras memórias começam com a viagem para São José dos Campos. No ônibus, conheci alguns colegas cariocas – ali já era o embrião do apartamento 108. Outra coisa que me marcou foi ver pela primeira vez uma calculadora programável com notação polonesa – a HP25C do Tim Maia, na qual ele brincava com um programinha de pouso na lua. O espaço era o limite.

O começo foi uma mistura de muita expectativa com um choque de realidade. Logo deu para ver que o sonho de aprender sobre os aviões de verdade ainda estava longe. A fase de adaptação foi um pouco difícil, talvez por ter sido minha primeira experiência longe de casa. O trote, a comida do H15 e o CPORRA (forma carinhosa de nos referirmos ao Centro de Preparação de Oficiais da Reserva da Aeronáutica) certamente não ajudaram, em especial pelas aulas aos sábados, que praticamente impediam as idas ao Rio nos fins de semana. A vida social era limitada aos barzinhos da cidade, o cinema, à Tokita (discoteca dos alunos do ITA) e não muito mais. O lado bom foi que isso contribuiu para construirmos uma amizade muito sólida entre os colegas da Turma, já que enfrentávamos isso tudo juntos. Parece que estávamos a maior parte do tempo ativando nosso modo de sobrevivência. As aulas do fundamental

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eram, na sua maioria, pesadas e maçantes, com muita matéria para copiar do quadro-negro (ou do caderno-modelo do Busatto), absorver e repetir em provas e exames, nos quais as notas eram bem mais importantes que o aprendizado. Até aí tudo bem, afinal eu escapei do Tossio na Física – o Mituo parecia refresco comparado com ele. Além disso, ainda tínhamos umas aulas da Perua Louca, onde se podia dormir sem maiores consequências, afinal referências bibliográficas eram coisa só para o TG (Trabalho de Graduação), lá para o 5º ano! As aulas de inglês também eram divertidas para mim – foi meu primeiro professor com sotaque do interior de São Paulo, cujos “erres” enrolados acabavam ajudando um pouco na pronúncia do inglês.

Passado o 1º ano, tudo parecia melhorar, afinal já se tinha alguém pra chamar de “bixo” e levantar um pouco a moral, as aulas e provas pareciam mais do mesmo e já não causavam grandes surpresas. Uma lembrança positiva do CPORRA: num dos feriados ou férias (já nem me lembro direito quando), alguns de nós vestimos a farda e fizemos uma viagem do Rio para o Norte-Nordeste de carona aérea da FAB e com hospedagem nos hotéis de trânsito. Na ocasião, o Vinagre nos proporcionou um tour completo em Belém, com direito a parada na sorveteria Tip Top, com centenas de sabores de frutas lá do Norte, que eu não conhecia. A vida social no ITA também se intensificou, com maior envolvimento em atividades culturais, culminando com meu primeiro cargo de Diretoria – do Departamento Social do CASD (Centro Acadêmico Santos Dumont, dos alunos do ITA). Como uma das memórias do período,

promovemos um show do agora já falecido Luiz Melodia. No final do 2º ano, juntando o trabalho intenso na organização do Baile do Chacal (baile de encerramento do ciclo fundamental), alguns exames difíceis e recepção da família que veio para o baile, peguei uma bela estafa. Na volta ao Rio para as férias, só queria dormir; dormi por quase dois dias seguidos e foi difícil convencer meus pais de que não precisava de médico, só de descanso.

Com o fim do CPORRA já dava para ir ao Rio de vez em quando nos fins de semana. Numa dessas idas, conheci a Ana Paula e começamos a nos corresponder. Alguns meses depois isso virou namoro, passei a visitar com mais frequência a casa da família dela, em Volta Redonda, um pouco mais perto que o Rio. As idas e vindas ajudavam a quebrar a rotina do ITA e, além disso, o curso já estava mais interessante e conectado com a tão sonhada engenharia aeronáutica.

Tudo ia bem, entre trancos e barrancos, séries, melações e provas, até os idos do 4º ano. De uma hora para outra, surgiu a notícia do meu trancamento por excesso de faltas. A lei foi dura, mas era a lei. Não sei se isso é uma defesa interna, mas minhas memórias desse período ficaram meio turvas – sei que outros colegas como o Vaguinho (Ardeo), Maurinho (Hirdes) e Swiba (Andreazzi), sem citar outros que tanto me apoiaram naquela hora, têm a memória mais clara. Ficou marcado como meu primeiro insucesso escolar e doeu bastante na hora, mas sempre tive a convicção de que Deus tem um plano em meio às dificuldades e me lembro mais claramente da parte mais positiva. Fico comovido sempre que me lembro da manifestação de apoio dos colegas

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junto à direção do ITA, na época. Através disso, também conheci o lado mais acolhedor do H8 (alojamento dos alunos do ITA), onde passei a maior parte do período de trancamento, incluindo parte das férias, até o recomeço do curso. Também tive a oportunidade de morar e fazer amizade com o pessoal de outras turmas. Nesse período também me lembro do melhor estágio que fiz, na Seção de Operações da Embraer, onde voava como anotador em aviões mono e bimotores Piper, montados pela Embraer – muitas vezes era o primeiro voo, com o avião ainda sem pintura, e tínhamos que levar paraquedas. Nada grave; o mais bacana era voar de graça e com emoção. Os pilotos de teste, na sua maioria ex-FAB, eram bastante tranquilos em furar as regras de tráfego aéreo, incluindo voos baixos no litoral de São Sebastião, além de executar sistematicamente algumas manobras acrobáticas como touneau-barril e voo invertido em todos esses aviões, ampliando os horizontes daquilo que se aprendia nos livros e manuais. Um desses pilotos morava no Rio e me deu carona algumas vezes, fazendo São José–Rio em pouco mais de três horas, amparado pela carteira da

Aeronáutica e voando baixo num Passat que superava todos os recordes de velocidade da Brasília amarela do Tim Maia. Em muitos aspectos, foi uma fase leve e divertida da minha vida no ITA.

A volta foi marcada pela retomada do gagá solidário, bem descrito no relato do Vaguinho (Ardeo) como o monstro de três cabeças do gagá, o “SuruLopArdeo” (“Suru” era outro apelido meu, bem menos conhecido que “Garoto”, juntamente com o Lopes e o Ardeo). Assim chegamos ao 5º ano, após assistir à formatura da Turma 82, que para mim ficou como inspiração para o ano seguinte. Nessa altura, o estágio, o TG e o emprego estavam encaminhados no Ensaio em Voo na Embraer, como parte da campanha de homologação do Brasília. Era a reta final para a formatura e o primeiro emprego.

Numa bela noite de domingo, ao passar pelo mural da Comissão de Empregos da Turma 83, chamou-me a atenção um anúncio da Embratel com vagas para aeronáuticos e mecânicos na área de satélites, algo estranho porque telecomunicações era coisa mais para eletrônicos. Eu tinha cursado as cadeiras opcionais de Dinâmica de Veículos

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Naquela noite mesmo, peguei a chave da sala do CASD e datilografei meu primeiro e único currículo (agradeço a meu pai, como bom bancário, por ter-nos feito aprender datilografia).

Espaciais com o Professor Vilhena, que era meu conselheiro e também profundo conhecedor de cachaças artesanais, mas os cursos eram focados na dinâmica orbital, sem entrar no mérito do que eram ou como funcionavam os satélites. Mas algo dentro de mim dizia que eu devia tentar. As entrevistas na Embratel começavam no dia seguinte, no Rio. Só precisava de um currículo, coisa meio supérflua no ITA para uma maioria que, como eu, já tinha um emprego antes da formatura. Naquela noite mesmo, peguei a chave da sala do CASD e datilografei meu primeiro e único currículo (agradeço a meu pai, como bom bancário, por ter-nos feito aprender datilografia). Avisei em casa e fui para a Dutra pegar ônibus para o Rio. Na manhã seguinte passei em casa para um banho e café, e em seguida fui para a sede da Embratel no Rio, com meu currículo debaixo do braço. Lá encontrei o Chefe da Divisão de Engenharia de Satélites do Departamento de Comunicações Domésticas Via Satélite, o iteano Rodolpho Knorr (Turma 64). Depois vim a saber que o chefe do Departamento era o também iteano Benjamin Himelgryn (Turma 65). O emprego era para acompanhar a construção e testes dos primeiros satélites para comunicações domésticas do Brasil, que já estava em andamento no Canadá, na SPAR Aerospace, em consórcio com a Hughes Aerospace. O departamento era novo na Embratel, as entrevistas foram bastante informais e as coisas ficaram em aberto. Nesse meio-tempo, acabou por chegar a formatura da Turma 83, onde tínhamos um bom número de formandos oriundos da nossa Turma 82. Faltava decidir sobre o emprego, mas a hora era de comemorar!

DEPOIS

Após a formatura e as festas de fim de ano, as conversas com a Embratel avançaram. A ideia de ir para o Canadá era superinteressante no aspecto profissional. Naquela altura o namoro com a Ana Paula estava bem firme e ela tinha acabado de entrar na Faculdade em Volta Redonda. Lembro aqui dos fins de semana quando voltava de Volta Redonda para o ITA, na época em que morei com o pessoal da Turma 85. Eles gostavam dos quitutes que eu trazia de lá. Não esqueço quando o Penalber profetizou que o meu namoro era igual pesca oceânica: eu já estava fisgado, mas ela só estava dando linha até o peixe cansar de nadar, aí era só puxar! Eu me decidi pela oferta da Embratel e a gente decidiu oficializar o noivado com o propósito de casar depois que eu voltasse do Canadá. Comecei em março de 1984, passei duas semanas na Embratel no Rio, esperando apenas a emissão do meu passaporte e lendo documentação para ter uma ideia do que eram os satélites. Cheguei em Ottawa em meados de março e ainda era inverno – com neve, para ninguém botar defeito. No primeiro dia fui direto para a sala de integração e vi pela primeira vez na vida um satélite, ou um pedaço dele: o Brasilsat A1, já encrencado pois o mecanismo de extensão do painel solar estava emperrado. O aprendizado foi na marra mesmo. Tirando os engenheiros de telecomunicações mais experientes, o acompanhamento dos outros subsistemas do satélite – elétrico, controle térmico, controle de atitude, propulsão, mecanismos etc. – ficava por conta de três engenheiros relativamente novos, com experiência de 1 a 2 anos, aos quais me juntei. Logo descobri

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que o processo de integração e testes era extenso, que a previsão do lançamento era no início do ano seguinte, e que o segundo modelo (Brasilsat A2) previsto no contrato também só começaria a ser integrado no ano seguinte. Resumindo, tinha trabalho no Canadá para quase dois anos. Nesse ponto, começamos a replanejar nosso casamento por correspondência e marcamos para dezembro de 1984, quando eu iria de férias para o Brasil. Casamos em dezembro, a Ana Paula decidiu trancar a faculdade e foi comigo para o Canadá em janeiro de 1985, quando tive que assumir o escritório residente da Embratel em Ottawa para acompanhar a integração do segundo satélite, enquanto a maior parte do time acompanhava a campanha de lançamento do primeiro, que aconteceu em fevereiro de 1985 na Guiana Francesa. Nossa lua de mel canadense começou de forma inesperada. No fim de semana da nossa chegada fomos a um parque onde se alugavam trenós para descer numa rampa. Na nossa primeira descida, ao final da rampa, quando deslizávamos na neve, notei que a Ana Paula gritava, mas não era da emoção e sim porque tinha machucado a coluna e não conseguia se levantar. Dali fomos direto para o hospital. Ela lesionou o cóccix e teve que ficar quase um mês deitada em casa, mas miraculosamente escapou de uma possível paralisia. Depois do susto, tivemos um excelente fim de inverno e aproveitamos muito o verão e o exuberante outono canadense juntos. Ao final do ano voltamos ao Brasil, com passagem pela Guiana Francesa para acompanhar o lançamento do segundo satélite.

Em seguida, trabalhei na estação de controle de satélites da Embratel em Guaratiba, no Rio, onde desenvolvemos toda a engenharia de operação dos satélites da primeira geração (Brasilsat A1/A2). Nesse período a Ana Paula se transferiu para a faculdade no Rio e graduou-se em Educação Física, já grávida do nosso primeiro filho, Hugo, que nasceu em agosto de 1988. No ano seguinte, devido ao sucesso e à crescente demanda dos serviços de satélite no Brasil, começamos os estudos para a segunda geração. Após um longo processo de licitação e negociação das especificações contratuais, fechamos o contrato dos Satélites Brasilsat B1 e B2 junto à Hughes (hoje Boeing), uma versão wide body da primeira geração.

Em 1991 partimos para Los Angeles, onde acompanhamos de cabo a rabo o projeto, fabricação, integração e testes do B1 e do B2. O programa incluiu também uma parte de transferência de tecnologia, com a participação do pessoal do Inpe, entre eles o Quintino (Turma 81) e o saudoso Maury (Turma 85), que trabalhou junto comigo na revisão dos componentes eletrônicos, e nos deixou tão prematuramente este ano. Além disso, fizemos a integração e testes finais do B2 no Inpe em São José dos Campos, como parte da qualificação do LIT (Laboratório de Integração e Testes) para satélites de grande porte.

O Hugo começou a vida escolar nesse período em Los Angeles e a Luisa nasceu lá, em maio de 1994. Em julho, Hugo e eu tivemos a chance de ver a Seleção conquistar o tetra no Rose Bowl. Estávamos atrás do gol e o Baggio quase nos acertou com aquele belo pênalti que ele isolou. Alguns dias depois voltamos de mala e cuia para o

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Brasil, e eu segui para a Guiana Francesa para o lançamento do B1, em agosto.

Após alguns meses de volta às operações em Guaratiba, recebi um convite de um ex-colega que tinha se transferido para uma empresa operadora de satélites em Luxemburgo durante nossa estada em Los Angeles. Fui pego meio no contra-pé. Estávamos ainda nos reestabelecendo no Brasil, à procura de apartamento, pois o nosso já tinha ficado pequeno para dois filhos, e o Hugo ainda estava se adaptando à escola brasileira. No que se apresentou como outra oportunidade, eu estava me aprontando para ir à França para uma reunião com a Arianespace (empresa lançadora de satélites). Dessa vez, em vez de pegar um ônibus na Dutra, recebi uma passagem de Paris para uma entrevista em Luxemburgo e digitei um currículo mais recheado. A viagem foi curta (um dia de trânsito usado para a entrevista, mais o fim de semana), mas Luxemburgo é pequeno e deu para ver uma boa parte do país.

A SES (Société Européenne des Satellites, chic !) era uma empresa jovem (menos de dez anos) e pequena; estava no seu terceiro satélite e tinha um time bem internacional e uma máfia brasileira, embora não iteana, incluindo o Diretor Técnico e dois chefes da Divisão de Satélites. Um deles era meu ex-colega e todos eram ex-Embratel. A proposta da SES era boa e o trabalho iria começar não na sede, em Luxemburgo, mas em Los Angeles, na mesma fábrica, pois eles também estavam comprando satélites da Hughes.

De volta ao Brasil, decidimos aceitar a proposta da SES, dei aviso prévio e acordamos a saída da Embratel e começo na SES em Los Angeles para fim de março em

1995, para dar tempo de acompanhar o lançamento do B2 e completar minha participação no programa. No fim das contas, devido a sucessivos atrasos de lançamento por problemas técnicos no lançador, tive que sair da Guiana Francesa antes do lançamento do B2, back to L.A. , agora pela SES! Ficamos lá quase três anos e, nesse período, a demanda por TV via satélite estava explodindo na Europa; a SES já tinha lançado mais três satélites e encomendado outros três. Em abril de 1996 vivi uma das mais peculiares experiências da carreira. A SES contratou o primeiro lançamento de um satélite comercial num foguete russo (Proton) a partir da base de Baikonur, no Cazaquistão. Viajei junto com o satélite Astra-1F a bordo de um 747 de carga da Federal Express, de Los Angeles até Baikonur, acompanhei as operações de desembarque em condições gélidas e uma longa campanha de preparação para o lançamento em instalações militares rústicas dos anos 1950/1960, projetadas para lançar mísseis, adaptadas para satélites comerciais ocidentais. Basicamente um pesadelo logístico, mas culminando com um lançamento bem-sucedido. Essa e outras campanhas de lançamento que acompanhei no Cazaquistão talvez merecessem um relato separado.

Em meados de 1997, a SES começou a ter uma sobrecarga na equipe de operação de satélites em Luxemburgo, devido à rápida expansão da frota e à falta de engenheiros com experiência, pois a maioria tinha sido deslocada para acompanhar a construção dos novos satélites. Mais uma vez a oportunidade parecia querer se encontrar com a vontade. Após tantas idas e vindas para acompanhar

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os programas, o Hugo já tinha mudado de escola várias vezes e a gente estava à procura de uma residência mais fixa. Em agosto sugiram alguns problemas operacionais mais graves, houve um pedido de transferência urgente e decidimos aceitar. Em duas semanas colocaram toda a nossa mudança, incluindo dois carros, num navio, arrumaram vaga na Escola Internacional de Luxemburgo para o Hugo e chegamos lá para ficar.

Durante esse longo período em Luxemburgo, a SES cresceu ainda mais, passando de um pequeno operador europeu para grande operador global, tendo adquirido outras companhias operadoras nos Estados Unidos, Brasil, Holanda, Hong Kong etc., formado parcerias com muitas outras, e expandido sua frota operacional para mais de 50 satélites em órbita geoestacionária (a 36 mil quilômetros de altitude) e uma constelação de 20 satélites de órbita média (a 8 mil quilômetros de altitude), com outros 18 satélites em construção. O número de empregados se multiplicou por 10. Eu me mantive sempre ligado à Engenharia de Satélites, acompanhando os diversos programas desde a concepção, negociação, integração, testes e lançamento, e na gerência de novos projetos e das equipes de operação.

Em casa a família não aumentou, mas evoluiu. A Luisa começou na escola primária pública luxemburguesa, onde se alfabetizou em francês e alemão, além do luxemburguês (essencialmente uma língua apenas falada), e depois juntou-se ao Hugo na Escola Internacional, onde ambos completaram o secundário e o bacharelado internacional. Ambos completaram a graduação e pós-graduação na Inglaterra e hoje seguem suas

respectivas carreiras. A Ana Paula, após ter se sacrificado para me acompanhar nas idas e vindas e cuidar dos filhos, retomou sua carreira em 2002 na Escola Internacional de Luxemburgo, onde leciona até hoje. Luxemburgo é um país com metade de sua população composta de expatriados e imigrantes. Fizemos daqui nossa casa neste período e sempre fomos tratados com respeito e consideração. Tive o privilégio de receber uma condecoração das mãos do Primeiro Ministro após 20 anos de contribuição na nossa área de telecomunicações, algo que seria bem mais difícil em países grandes como o Brasil ou os Estados Unidos. Em meio a tanta polarização política dos tempos atuais, sou grato por ter adquirido a cidadania e votar num país governado nas duas últimas legislaturas por uma coalizão de partidos – liberal, socialista e verde –, algo quase inimaginável no nosso Brasil atual.

Ressalto que a nossa fé cristã foi parte determinante da trajetória aqui relatada. Em cada lugar em que vivemos, integramo-nos sempre a uma comunidade cristã local, que não só serviu de apoio e família nos bons e maus momentos, mas também tem nos dado oportunidade de ajudar pessoas e grupos carentes, tanto locais como em outros países, incluindo o Brasil.

Ao concluir este relato, reflito sobre o futuro na minha nova fase de vida, agora aposentado. Sou muito grato pelas oportunidades pessoais e profissionais que tive, e tenho convicção de que há um tempo certo para tudo.

Garotos, vamos viver e continuar a compartilhar este tempo.

Grande abraço, moçada!

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Moreau

MAURO CESAR DE ANDRADE

“Deixa a vida me levar, Vida, leva eu...”

Na vida, fiz alguns planos... de resto deixei ela me levar.

Nasci numa família de classe média no bairro da Casa Verde, zona norte de São Paulo. Sou o primogênito dos três filhos de um casal que se conheceu numa tecelagem do bairro do Bom Retiro. Meu pai era sergipano, chegou a São Paulo com 15 anos, foi técnico têxtil durante 55 anos; minha mãe, descendente de italianos, de uma família de colonos de fazenda de café no interior de São Paulo. Ambos com apenas o grupo escolar (hoje, ensino fundamental I) completo, porém com curiosidade pela vida, completaram sua instrução na Escola da Vida. Herdei o interesse pelos estudos, os valores e a educação de ambos.

A falta de coordenação motora acompanhou-me intensamente na infância e na adolescência, e persistem traços até hoje. Fui conseguir escrever sobre a linha do caderno no 4º ano do grupo escolar, com meus garranchos, que melhorei um pouco quando troquei a letra cursiva por letra de forma, no cursinho para o vestibular.

Afinal, como o examinador conseguiria ler minha redação? A esfera futebolística sempre foi minha dificuldade no esporte bretão, tanto que sempre joguei em duas posições: no banco de reservas ou no gol – este último, uma evolução incrível!

Para não atrapalhar a equipe, optei por práticas individuais: natação e ciclismo. Quando pequeno, pensava em ser médico, mas a adolescência mostrou uma aversão acentuada a sangue: passava mal. A mesma adolescência durante a qual descobri que os traços árabes (leiam o nariz) insistiam em destacar-se além do devidamente necessário. Resultado: feio, narigudo e tímido, com falta de coordenação, restou destacar-me nos estudos durante onze anos de escola pública. Era a forma de ser notado. A paixão e a facilidade por matemática e geometria ajudaram muito, em detrimento da língua pátria, que era difícil de compreender. Só desvendei os segredos do Português quando entendi que bastava encará-lo como a Matemática, pois ambos têm regras e exceções. A partir disso, mais uma paixão: a gramática portuguesa.

Ouvi, pela primeira vez, do meu professor de matemática, professor Wilson, algo sobre o ITA, como sendo uma escola de excelência em engenharia. Nessa época já havia assumido que o sangue me deixaria fora da área da saúde. Inspirado por um brinquedo

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denominado Engenheiro Eletrônico, da Phillips, que ganhei dos meus pais num Natal, decidi que seria engenheiro eletrônico. Junte-se a isso a curiosidade de desmontar e montar brinquedos diversas vezes. O engraçado era que sempre sobravam peças a cada ciclo. Meu xodó era um avião feito de lata e todo pintado, que despertou minha curiosidade por aviões e, posteriormente, por tudo que tinha asas e voava. Sobre a casa em que morava passavam diversos DC3 e Teco-tecos, na aproximação do Campo de Marte (aeroporto na zona norte da cidade de São Paulo). Pensei... “Por que não voar? Já sei: vou ser piloto de avião. Pronto! Está decidido”. Mas a maldita Montanha Russa do PlayCenter (parque de diversões que fez enorme sucesso, em São Paulo, nas décadas de 1970, 1980 e 1990, até o surgimento do Hopi Hari) acabou com o sonho. Não suporto a sensação de gravidade zero – passei e passo muito mal. Como iria suportar turbulências e/ou saltos de paraquedas? Adeus, segunda possível carreira. Pensei novamente... “já que não consigo pilotar, por que não construir aviões?”, e assim nasceu, definitivamente, o desejo de entrar no ITA.

Ter cursado ginásio e colegial numa escola pública, que não era a melhor da região, não me habilitava a ter sucesso no vestibular. Necessitava cursar um ano de cursinho. Por ter sido um dos melhores alunos do Colégio Estadual Prof. Colombo de Almeida, as pessoas, inclusive minha mãe, não acreditavam que eu precisaria do cursinho para entrar na universidade. Pedi a meus pais que investissem em um ano de cursinho e prometi que entraria numa universidade pública. Na véspera da primeira fase do primeiro vestibular da Fuvest matriculei-me no Universitário, concorrente do Anglo e do Objetivo, numa promoção que concedia trinta por cento de desconto na mensalidade durante todo o curso. Dessa forma, do início de fevereiro ao final de dezembro de 1977 fiz somente três coisas todos os dias: comer, dormir e estudar. Não fui a nenhuma festa, não passeava, não namorava (a timidez não permitia), só saía de casa para ir ao cursinho e às aulas do 5º ano de inglês na Cultura Inglesa. Assisti a, praticamente, todas as aulas, fiz todos os exercícios de todas as apostilas, independentemente da disciplina. Segundo o diretor do cursinho, os candidatos aos

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Só desvendei os segredos do Português
quando entendi que bastava encará-lo como a Matemática, pois ambos têm regras e exceções. A partir disso, mais uma paixão: a gramática portuguesa.

cursos de engenharia ganhariam as melhores vagas pelo desempenho em história, geografia e biologia, pois em português, matemática, física e química os melhores candidatos teriam o mesmo desempenho. Mas o vestibular do ITA não incluía essas matérias que fariam a diferença, porém tinha a prova de desenho – Geometria Descritiva e Desenho Técnico. Para o segundo eu havia me habilitado num curso gratuito da Prefeitura, com duração de três meses, e para o primeiro o Universitário ofereceu o curso no horário da tarde a quem frequentava as aulas regulares pela manhã. O primeiro dia do curso de desenho aconteceu na semana após a Páscoa de 1977. Na véspera, levei no bolso da camisa um pedaço do ovo de Páscoa aberto no domingo. Não comi durante a manhã, mas na saída das aulas tirei do bolso o chocolate, derretido pelo calor do corpo, e comi assim mesmo – afinal, não jogaria o saboroso produto no lixo. Resultado: uma baita infecção gastrointestinal que me afastou das aulas por três dias e perdi as primeiras aulas do curso de desenho.

Decisão: “não vou fazer esse curso extra; na prova, vejo que faço”. Como legado, aversão a chocolate por mais de dez anos.

Lembro de alguns colegas da gloriosa Turma 82 que também cursaram o Universitário: Paulo Outi, Carlos Helbert (Pica-Pau) e Mussio Mussi – com este último muitas vezes peguei o ônibus no Viaduto Martinho Prado, em frente à sinagoga, rumo à Casa Verde.

Chegou o vestibular! Um fato que me chamou a atenção foi uma escultura lembrando a participação dos Politécnicos na Revolução Constitucionalista de 1932. O número de minha inscrição no ITA era

1932. Antes das provas, ficava contemplando aquela escultura e pensava: “Será um sinal de bom presságio?”. E foi. Apesar da devastadora prova de física e de não entender os enunciados das questões de Geometria Descritiva na prova de desenho, entrei na primeira chamada em engenharia mecânica, minha segunda opção na inscrição para o vestibular. Assim, abandonei a eletrônica e virei mecânico (“Deixa a vida me levar...”).

Na apresentação à Divisão de Alunos, fui alojado no apartamento 116, a famosa panela da Turma 82, e talvez a mais famosa da escola. No percurso entre o portão do CTA e prédio do ITA, caminhava na minha frente um sujeito magro, que pelo cabelo julguei ser oriental, cujo ponto mais alto da cabeça descrevia uma curva senoidal. Era meu primeiro companheiro de quarto, o grande Suguita, que eu não entendia como conseguia passar a noite em claro, metendo gagá, nas vésperas de prova. Detalhe: deitado na cama, lendo à luz da luminária sobre a cabeceira.

Na recepção dos veteranos, um grupo, que estava no 4º ou 5º ano, disse uma frase que nunca mais saiu de minha mente: “Você pensa que é fodão por ter entrado aqui? Quero ver você sair formado daqui a cinco anos”. Comecei entender que toda a dedicação no cursinho foi apenas a primeira fase; a dureza estava por vir. Desde o primeiro dia de aula, o cagaço de ser desligado sempre me acompanhou, mas foi abrandando ao longo do primeiro semestre, apesar de ter visto vários colegas que iniciaram conosco irem embora por vários motivos. A tática para atingir o mínimo de 19,5 pontos para aprovação era conseguir 8,0 nas duas provas bimestrais e

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entrar no exame precisando de 3,5. E assim foi pelos dez semestres. Mas a consagração foi na disciplina de Mecânica Clássica: apesar de ir para o exame necessitando de 3,5 pontos, durante todo o semestre eu não havia assimilado os conceitos da mecânica e sabia que isso era imprescindível para a disciplina do próximo semestre e para o curso Profissional. A solução foi uma imersão de um final de semana. Ruy Amparo (Zi Ancou) e eu revisamos todos os fundamentos e refizemos os exercícios do almoço da sexta-feira até o final da noite de domingo, véspera do exame. Resultado: 8,5 no exame; mas, mais do que isso, a Mecânica estava incorporada aos conhecimentos. A exigência do CPOR ensinou o espírito de solidariedade e que nunca devemos deixar alguém sozinho para ser punido. Quando se apresentava um grupo para a punição, os milicos abrandavam a pena. Foi assim no episódio da ordem unida para o desfile de 7 de setembro na cidade, no qual desfilamos por horas em torno do campo que havia em frente ao CPOR, demonstrando total falta de harmonia e conjunto para apresentação na cidade e, como recompensa, desistiram da nossa participação. Também foi assim que a tossida do Verdi, na instrução de Sobrevivência na Selva, realizada no cinema do CTA por um suboficial, fez com que o sargento Ferro mandasse o Verdi se apresentar ao coronel: a turma indignada reclamou, e ele, para mostrar autoridade, disse que quem não estivesse contente deveria se apresentar junto. A turma toda se levantou para sair do cinema, para desespero dos oficiais e sargentos presentes, que bloquearam a porta de saída. Alguns colegas escaparam pela janela, apresentando-se

ao coronel Rondon. A punição não deu em nada, se não me engano. A greve de fome de todo o corpo discente num almoço banquete para que a qualidade das refeições melhorasse e diminuíssem os episódios de Juliana Coletiva. Herdei, também desse período, a barba que uso até hoje, promessa que fiz no momento do barbear para nossa formatura do CPOR. Da turma, creio que Otto, Solon e eu estamos nessa vibe .

A solidariedade também foi desenvolvida nos gagás em duplas ou trios que metíamos para aprender e alcançar aprovações nas disciplinas. Meu companheiro de gagá em Estruturas (professor Marreco) foi o Humberto (Zumba). Eu tinha dificuldade inicial de equacionar o enunciado, porém desenvolvia o cálculo muito bem; já ele era exímio em transformar o enunciado em equação e tinha alguma dificuldade em desenvolver o cálculo. A parceria deu resultados positivos, e ambos se habilitaram nas duas etapas.

Herdei, também dos tempos da escola, a coerência entre o pensamento, o discurso e as ações. Aquilo em que creio é o que eu falo, e o que eu falo é o que pratico. Entendo que isso foi moldado através da Disciplina Consciente que nos acompanhou e me acompanha até hoje.

A convivência na panela do 116 foi algo à parte. Coisas como acordar o Bergamaschi várias manhãs debruçado sobre a mesa após ter dormido sentado; as promessas do Ruy de ir de joelhos a Aparecida para que o Carmo deixasse de ler gibis e começasse a estudar para as provas; o porre histórico do Suguita após mamar muito vinho, na comemoração dos 100 dias para a formatura, e presenciar a cena do Marcel Ledon abrindo a porta

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do quarto dele e, encontrando-o dormindo sobre uma enorme poça de vinho, exclamar “Suguita, que nojo, que degradação...”; o Bortman bêbado e a gente sacaneando, dizendo que “c... de bêbado não tem dono” e ele respondendo “o caralho...”; o Ruy e sua técnica de pôr a cama na vertical para não dormir nas noites de gagá e depois ocupando a minha cama desmaiado de sono, entre outras. Mas memoráveis mesmo foram as famosas velvas do 116! Tinha ”bixo” que se orgulhava de ter levado velva nossa; a interpretação, apenas os áudios, dos contos eróticos da revista Ele e Ela e do Relatório Hite ; o teste de resistência da cadeira de plástico com estrutura de ferro tubular do H8, quando empilhamos cerca de 16 colegas na mesma cadeira e os pés traseiros cederam, transformando o objeto na cadeira de praia do Zi Ancou. O Ruy ampliou meu apelido Moreau, que ganhei da minha primeira professora de francês, para Jean Marie Balestre Moreau. O Carmo, companheiro do curso profissional de Mecânica, companheiro de estágio no PMO (Divisão de Motores), no TG, e também no curso de Mecânica Celeste que fizemos, um ou dois semestres, às sextas-feiras à noite no observatório existente no CTA com o professor de cujo nome não me recordo.

A convivência com a turma toda, na memória, foi fixada pelas torcidas da nossa turma nas OIs. Participei da composição dos cantos da Gloriosa 82: “Turma 82 é o maior T, põe no...”, “82 é foda pra cara...”. Lembro do Marcão e sua sanfona na torcida nos primeiros semestres. Até que, para consagrar nossa participação na última OI, criamos a Natália. Pedi para meu saudoso pai (disse que ele era técnico têxtil no início deste

relato) que confeccionasse uma meia de seis metros de comprimento e cinco polegadas de diâmetro, na cor verde, a cor da 82 (Por que essa cor, Afonso?). Eu e duas primas enchemos a meia com paina, emprestei uma mala velha da minha avó materna e o 116 desembarcou no centro da quadra do ginásio do CTA na abertura da OI de 1982. Acompanhado de vários colegas da turma, todos fantasiados, para marcar nossas memórias eternamente. Quando abrimos a mala na cerimônia, surgiu a cobra Natália; ela tinha olhos e língua. O nome Natália foi uma homenagem a Natalia do Vale, atriz da Globo que fazia sucesso na época, e a nossa escola, que fica no Vale do Paraíba. A Natália foi apresentada por Walmor Chagas, no programa “Quem sabe, sabe” da TV Cultura, onde o Sartorelli e o Chamon, junto com duas alunas da Odonto, representavam o E.C. São José e arrasavam. Chegamos à final contra o clube Sírio Libanês. Nossa cobra participou da nossa formatura do ITA; quando a Mecânica entrou na plateia, ela estava nos nossos braços e no final daquela cerimônia os ”bixos” da Turma 86 pediram para herdar nossa mascote. Tenho saudades dela e daquelas aventuras...

Nos últimos meses do curso, o Itaú e o Citibank apresentaram seus programas de trainee à nossa turma. Eu me candidatei no programa do Itaú e, após três fases de seleção, fui aprovado junto com alguns colegas. Essa era uma segunda opção de carreira à época, pois meu objetivo principal era ser selecionado para o projeto do AMX e trabalhar por um tempo na Itália. Sonhava muito com essa possibilidade de moradia na península em forma de bota, acompanhado dos atrativos financeiros que ofereciam. Mas

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havia somente duas vagas para mecânicos e não fui escolhido. Mesmo assim, fui selecionado para uma vaga na Embraer, com possibilidade de trabalho em Los Angeles em pressurização e condicionamento de ar de aeronaves, em condições financeiras não tão favoráveis quanto as do projeto AMX.

Em janeiro de 1983, decidi abandonar, sem ter iniciado, a carreira de engenheiro. Apresentei-me ao Grupo Itaú junto com os colegas Massaki, Takahashi, Marcio

Mattos e, mais tarde, Corban, para iniciar o programa de desenvolvedores de sistemas em Cobol, então a linguagem amplamente utilizada nos programas do sistema bancário brasileiro. O grupo era formado por engenheiros recém-formados no ITA, na Poli, na Unicamp e no Mackenzie. Foram quatro meses de treinamento, no qual, por várias vezes, era dado o prazo de uma semana para o desenvolvimento de um programa em Cobol e nós terminávamos em uma tarde. Aproveitávamos muito o centro antigo de São Paulo, onde na época ainda se concentravam grandes grupos financeiros e diversas atrações pitorescas. Tivemos até tempo para soltar um pombo-correio do alto do Edifício Conde de Lara, no Vale do Anhangabaú, que voou até seu destino em Ribeirão Preto (Marcio Mattos que o diga).

Houve uma seleção interna no grupo para sete vagas no Departamento de Projetos Especiais, onde trabalhavam o nosso colega Afonso e três outros iteanos, nossos contemporâneos: Marino (Turma 78), Fernando (Turma 80) e Nojima (Turma 81).

Seis não iteanos se candidataram e alguns de nós, iteanos, não me lembro quantos, também. O então gerente do departamento, que tinha algumas desavenças com o Marino,

não queria mais iteanos no departamento, mas teve que receber mais um: eu. E assim iniciei mais um treinamento de linguagem de programação, a APL, utilizada nos sistemas desse departamento que implantava sistemas para apoio a decisão. Aprender e trabalhar com essa linguagem foi uma reprogramação cerebral. Primeiro porque ela processava as linhas de instrução do código fonte da direita para a esquerda, utilizava, além do alfabeto latino, letras do alfabeto grego e alguns outros símbolos, e a criação de uma variável acontecia em plena execução do comando sem a necessidade de declaração anterior como no Cobol, Fortran, Pascal etc. Mas, o mais fantástico, para mim, era que ela possuía instruções, da própria linguagem ou do banco de funções que era desenvolvido pelos programadores, que substituía várias linhas de comando, como por exemplo a inversão de uma matriz. Para a época, fantástico! Fui lotado no projeto MR – Pesquisa de Mercado desenvolvido pelo Marino (se não me engano como dissertação de Mestrado), onde já estava o Afonso. Assim, o gerente do departamento concentrou sua aversão aos iteanos num mesmo projeto, com exceção do Fernando e do Nojima.

Durante dois anos e meio, participei de alguns projetos nessa área. Assisti à saída do Marino para outra empresa do grupo e à do Afonso para seu mestrado em Tóquio. Várias manhãs, após descobrir que por repetição de discagem do número zero nos ramais do departamento ultrapassava-se o bloqueio a interurbanos, falávamos com o Afonso em seu alojamento no Instituto Tecnológico de Tóquio. Isso nos habilitou a falar algumas palavras em japonês, o

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suficiente para dizer que queríamos falar com o Afonso. No último projeto de que participei no Itaú, desenvolvi uma interface entre sistemas em Cobol e sistemas em APL – esse tipo de tarefa foi constante nos anos seguintes de desenvolvimento de sistemas nas décadas de 1980 e 1990.

Em setembro de 1985, na época à frente da implantação de uma soft house de nome Interface, uma subsidiária da Ductor, empresa de engenharia do grupo do ex-governador Mario Covas, Marino convidou Massaki, Nojima (Turma 81) e eu para trabalhar nessa empresa. Após alguns meses, Marino pediu demissão, Massaki partiu para sua carreia de docente no ITA e Nojima voltou ao sistema financeiro. Restou... eu. A Interface se tornou uma empresa de consultoria em projetos. Participei de alguns projetos na Emurb, empresa de urbanização do município de São Paulo, e na Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.), hoje CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), sempre implantando sistemas de apoio à gestão.

Joguei tudo pra cima em agosto de 1988, quando decidi trabalhar com corretagem de imóveis usados numa imobiliária tradicional de São Paulo. Em um mês vendi o primeiro imóvel, comissão equivalente a três salários mensais. Já tinha alavancado outra venda que, por erros de condução da negociação dos meus superiores, não se concretizou no momento da assinatura do contrato entre as partes. Perdi a venda, a comissão e a oportunidade de novos negócios, pois o mercado já estava se retraindo naquele momento.

Voltei para o desenvolvimento de sistema, numa oportunidade ainda em comércio de

imóveis. Dessa vez, imóveis de incorporação, apartamentos e conjuntos comerciais vendidos na planta, na Lopes Consultoria de Imóveis. Minha principal atuação era imersão nos processos da imobiliária para desenhar as soluções informatizadas para esses processos, apoiado por uma equipe de programadores num computador Sisco de médio porte. Apoiava, principalmente, a Secretaria de Vendas e a Superintendência Jurídica. Nessa última vivenciei, como em diversas outras oportunidades, a aplicação de conhecimento das aulas do ITA. O então superintendente queria um aspecto mais elegante para o texto do contrato de compra e venda. O valor total da venda do imóvel e das parcelas eram grafados em numeral e por extenso. Mas quando terminava o extenso a linha era preenchida com (-x-x-x-x-x-x). Ele contou-me sua angústia e desejo quanto a esse aspecto do texto, e prometi que resolveria. Então, lembrei-me do nosso terceiro exercício na primeira disciplina de Processamento de Dados no primeiro semestre do segundo Fundamental. Era um caça-palavras cuja nota era atribuída, dada a matriz de letras e as palavras a serem achadas, inversamente proporcional à quantidade de instruções que o programa necessitava para resolver o problema. Recordo até hoje do “L” naquele exercício. Apliquei o mesmo conceito, controlando o tamanho da string e a posição na linha, de tal forma que, findado o texto por extenso, a solução emendava a continuidade do texto padrão do contrato. O superintendente foi à loucura com essa simples solução, pois diferenciava o contrato emitido pela Lopes em relação ao das demais imobiliárias, respeitando o prazo

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mínimo do ato da compra do imóvel, uma diferença no mercado imobiliário da época.

Parafrasearei Jô Soares, num de seus personagens, General Gutierrez (ex-déspota argentino) que, para escapar à Justiça do seu país, decidira mudar-se para a Bahia e passar a se chamar Severino Silva. O personagem surgiu quando a Justiça argentina começava a processar os militares envolvidos com a ditadura. Ele dizia: “Alfonsín assumiu e eu sumi”. Pois bem... Fernando Collor assumiu em março de 1990 e eu sumi, desligado da imobiliária.

Alojei-me na Mercedes Benz do Brasil, no Departamento de Controle e Fluxo de Material, a popular Gestão de Suprimentos. A Diretoria de Informática da fábrica de São Bernardo do Campo desenvolvia sistemas utilizados nessa unidade e nas unidades de Campinas, Buenos Aires e Vitoria-Gasteiz (Países Bascos). Quando dava pau num programa, as quatro unidades paravam. O diretor da área ficava de papagaio-de-pirata nas nossas costas, esperando a solução do problema. Que pressão!

Participei de projetos de estocagem por locação e reorganização física através de sistemas de apoio, implantação de radiofrequência no processo de dispensação de peças, implantação de ISO 9000 no desenvolvimento de projetos e outros mais, durante os cinco anos em que estive sob a estrela de três pontas. Nesse período, assisti a diversas manifestações do Sindicato dos Metalúrgicos na porta da fábrica.

Impressionavam o poder de mobilização dos trabalhadores e as estratégias de greve. Certa vez, paralisando apenas 180 funcionários da linha de motores, paralisaram toda a fábrica. Esse grupo teve seus salários cortados, mas

os demais se cotizaram e pagaram seus salários, sem prejuízo para suas famílias. Depois de uma disputa de queda de braço, a montadora cedeu às exigências do Sindicato.

Em 1996 cheguei à Santa Casa de São Paulo, na Gerência de Informática, contratado para solucionar os problemas de gestão de estoque dos cinco hospitais da rede. Quando cheguei, alguém me disse: “Você vai ser picado por um mosquito e não sairá mais daqui”. Naquele instante não entendi. O tempo respondeu minha dúvida. Havia, na metade da década de 1990, um vácuo considerável de soluções informatizadas na área da saúde em relação aos setores da indústria, comércio e financeiro – mesmo considerando apenas as áreas de administração, finanças e comercial. Minha primeira missão era implantar uma solução para identificar o momento de compra de materiais para evitar desabastecimento. Com apenas uma simples planilha, o problema estava resolvido. Uau... acharam o máximo! Então, questionei-me “Onde estou?”. Senti-me um caolho em terra de cego. O impacto, muito maior do que eu imaginava, alçou-me à condição de solucionador de todos os problemas de gestão e operação do hospital. Assumi a frente da área de desenvolvimento e fui apresentado ao Banco de Sangue, Farmácia, Recursos Humanos, Faturamento, Ambulatórios, Central de Quimioterapia, e aí por diante, além da Gestão de Suprimentos. Iniciou--se o conflito entre o desenvolvimento de soluções e a infraestrutura de informática que existia no hospital, passando pela área de suporte. Dois anos depois, acabei sendo expulso da Gerência de Informática. Alegaram que eu

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trazia muito trabalho a ser feito e que o departamento não queria isso. Fui penalizado por trabalhar demais.

Fiquei seis meses no exílio, desenvolvendo minhas soluções informatizadas para algumas áreas, à revelia da gerência da qual fora expulso. Em 1999, a Santa Casa mudou seu modelo de gestão. Abandonou o modelo de departamentos, aos moldes de sua escola de medicina, e partiu para a criação de Unidades de Negócio. O Hospital foi particionado em quatorze unidades. A coordenação da unidade era formada por um Diretor Médico, uma Chefe de Enfermagem e um Gestor. Fui nomeado gestor da Unidade de Hematologia e Hemoterapia, constituída pelo Hemocentro da Santa Casa de São Paulo, pela Unidade de Quimioterapia, pelo Serviço de Transplante de Medula Óssea e por quatro laboratórios de Hematologia – ou seja, aquela aversão a sangue, que me fez desistir da medicina, estava agora batendo à minha porta, dizendo “E agora, Maurão?”. Mergulhei de cabeça e encontrei o sentido da minha carreira e da minha vida.

O desafio era tornar superavitária a unidade, aumentando a capacidade de atendimento e a qualidade de prestação dos serviços, ou seja, o básico de qualquer unidade de negócios. Mas como era isso na saúde? Como fazer? Só havia uma saída: conhecendo o negócio. Dessa forma, fui atrás de conhecimentos em medicina, farmácia, enfermagem, biomedicina e outros mais. Assisti a várias defesas de tese, palestras, discussões de casos médicos; acessei muitos livros e revistas científicas; participei de congressos. Além do dia a dia da gestão, eu tinha que conquistar a confiança dos

Professores-Doutores da Santa Casa. A forma que encontrei foi habilitar-me na linguagem médica. Em vários momentos, fui considerado um colega de profissão por outros médicos, pelo uso da linguagem técnica, entendimento das situações clínicas e propostas apresentadas. Mas sempre entendi o hospital pela visão da Engenharia. Eu era questionado a todo momento “O que um engenheiro está fazendo na área da saúde?”, e respondia “Ganhando dinheiro para pagar minhas contas”. Na verdade, estava vivendo, cada vez mais, minha Missão. Fui entender isso quando um paciente estava em coma, na UTI, e era necessário trocar todo o plasma de seu sangue (procedimento denominado plasmaférese) para sair do coma. As dimensões do equipamento que tínhamos não permitiam sua entrada no boxe da UTI e a remoção do paciente para a área de aférese era impossível. Foi quando lembrei de ter visto, num congresso, um equipamento portátil, que era novidade no Brasil. Convidei o representante para ir ao hospital, a médica que assistia o paciente explicou a ele o caso e, imediatamente, iniciaram o procedimento. Após cinco sessões diárias, o paciente saiu do coma. A médica me levou até a beira do leito e disse a ele que a sua volta do coma tinha sido graças ao equipamento que eu havia levado para o hospital. Naquele momento, entendi qual era a minha Missão, e assim foi. Entendi que procedimentos administrativos também salvam vidas.

Além da área de Hematologia, onde tive a primeira oportunidade de participar de projeto de humanização com a implantação de Musicoterapia na unidade de quimioterapia, assumi as áreas de Controle

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de Infecção Hospitalar e de Anatomia

Patológica – nesta, ganhei de brinde a gestão do necrotério da Santa Casa. Pelo menos no necrotério tem uma vantagem: parte dos clientes não reclama. Tudo era calmo naquele ambiente, a não ser por um episódio, no qual uma perna, resultado de uma amputação, foi enterrada por engano e depois tivemos que ir ao cemitério desenterrá-la para fazer a biópsia. Detalhe: a equipe desenterrou a perna num dia chuvoso, completando o ambiente da cena macabra.

Doze anos na gestão da Unidade de Hematologia, contribuí para sua expansão dentro e fora do hospital, aumentamos a participação do hemocentro na Hemorrede do Estado de São Paulo, além de tornar a unidade a mais superavitária do hospital, entre poucas, lembrado que a Santa Casa trabalha com atendimento exclusivo ao SUS.

Em 2002, necessitando de mais conhecimentos específicos, especializei-me em Gestão Hospitalar. Em seguida fiz MBA em Gestão e Economia da Saúde, que me habilitou para a docência, e em 2005 aceitei o convite para lecionar em algumas instituições de ensino, sempre mostrando o hospital sob a visão de um engenheiro e entendendo o sistema de saúde pelo prisma de um economista. A docência sempre me trouxe e traz muitos prazeres. Sigo o ditado de Cora Coralina: “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”. Nada é mais verdadeiro do que essa frase para um professor.

Saí da Santa Casa, por questões da política, no início da segunda década deste século. Assumi a direção administrativa e financeira de outro hospital filantrópico

em Guarulhos, comandado pela Irmandade das Filhas de Estela Maris. Fui contratado pelo então secretário de saúde do município e indicado para as irmãs. O hospital era subsidiado pela Prefeitura. Era a maternidade de referência do SUS na cidade. Obstetrícia é deficitária no Sistema Público de Saúde, e sempre necessita de subsídio. Não é fácil trabalhar com entidades religiosas; inúmeros foram os pontos de vista conflitantes da gestão. Fiquei um ano à frente desse hospital. Fiz uma reengenharia financeira das dívidas e equacionei toda a dívida. Captei um grande investidor que montaria o primeiro Serviço de Radioterapia da região de Guarulhos, mas após minha saída a Irmandade expulsou o investidor, que já havia montado uma Central de Quimioterapia dentro do hospital. Hoje esse investidor tem o maior centro de oncologia da cidade de Guarulhos.

O Sistema de Saúde do Brasil é formado pelo sistema público (SUS) e o sistema suplementar (operadoras de saúde, profissionais e entidades de saúde privados). O SUS é estruturado em Atenção Básica (Unidades Básicas de Saúde –UBS, e Unidades de Pronto-Atendimento – UPA), Média (consultas, exames e procedimentos nas especialidades médicas) e Alta Complexidade (quimioterapia, radioterapia, transplantes). A Assistência à Saúde é dividida em assistência direta ao paciente, apoio técnico (farmácia, radiologia, banco de sangue etc.) e apoio administrativo (hotelaria, recursos humanos, gestão de suprimentos etc.).

Após treze anos trabalhando com o SUS decidi viver a experiência no sistema suplementar. Assumi a direção

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administrativa de um hospital de grande porte de uma operadora de saúde. Com exceção dos médicos e enfermeiros (assistência direta ao paciente), todos os demais serviços de apoio técnico e administrativos estavam sob minha gestão. A filosofia do dono da operadora era de não ter serviços terceirizados. Além da administração do hospital e dois centros médicos, eu era responsável também por um serviço de home care e toda a frota de ambulâncias, incluindo a oficina de manutenção dos veículos. O hospital ainda estava em expansão de sua infraestrutura e eu respondia pela gestão da intermediação com a empresa de engenharia, implantação e inauguração de novas alas. Apesar da demanda excessiva, foi uma experiência interessante e positiva, interrompida por conflito ético entre a presidência e eu quando ocorreram três óbitos por falta de sangue na agência transfusional. Com doze anos de experiência à frente de um hemocentro responsável pelo abastecimento de sangue para nove hospitais e milhares de transfusões executadas, era inadmissível ser conivente com aquela ocorrência.

Solicitei a substituição do banco de sangue que fornecia os hemocomponentes e a administração da agência transfusional. Apresentei um dos melhores serviços de hemoterapia da cidade para substituição do que estava no hospital e decidi, para que não fosse apontado conflito de interesse, não participar da negociação. Após algumas semanas a decisão da presidência foi continuar com o mesmo serviço, pois este dava um desconto de vinte por cento na fatura mensal. Solicitei minha demissão.

Após meses fora do mercado, aceitei a oportunidade de vivenciar a Atenção Básica no SUS, gerenciando uma Unidade de Pronto-Atendimento em Caraguatatuba, litoral norte do Estado de São Paulo, através de uma Organização Social de Saúde. A OSS é um modelo implantado no segundo mandato do governador Mario Covas em São Paulo, criado para suprir a incapacidade da administração direta pelo Estado de estabelecimento de saúde. Estive à frente dessa unidade por apenas seis meses, até a substituição por outra OSS após processo licitatório. Mais uma vez, utilizei a engenharia para administrar serviço de saúde. UBS, UPA e Pronto-Socorro, na minha visão, devem ser administradas com o conceito de Gestão de Filas, afinal têm demanda espontânea e o atendimento da fila, no tempo e com a qualidade exigidos pelo usuário, depende da capacidade de atendimento da unidade, ou seja, planejamento, dimensionamento respeitando a sazonalidade e controle. Observei que todo aumento súbito de demanda às 8h40 estava relacionado ao desembarque dos passageiros de uma linha de ônibus urbano que vinha das praias ao norte da UPA.

Depois do término do contrato de Caraguá e passagem da UPA para a outra OSS, fui lotado, pela mesma empresa, no contrato de administração do hospital municipal de Bertioga, cidade litorânea entre Guarujá e São Sebastião. Não cheguei a assumir a administração do hospital, pois a OSS sofreu uma intervenção, pela Secretaria Municipal de Saúde, e foi afastada da administração do hospital. Fui desligado da empresa pelo interventor. Porém, nos três

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meses em que estive no município, apresentei novos conceitos sobre a gestão do sistema de saúde municipal e do hospital e, dessa forma, fui convidado pelo então prefeito do município e assumi um cargo de assessor em seu gabinete. A princípio, fui acompanhar a execução de pavimentação de ruas no centro da cidade – era 2016, ano eleitoral, e o prefeito queria fazer seu sucessor. Olhe a Engenharia me rodeando! Após um mês, ele exonerou o interventor do hospital, eu assumi a Direção de Planejamento Estratégico da Secretaria Municipal de Saúde e fui nomeado interventor do hospital municipal. Junto com uma administradora hospitalar, funcionária de carreira da Prefeitura, equacionamos o atendimento do hospital e geramos, em quatro meses, caixa para a rescisão trabalhista no final do contrato da OSS que sofreu a intervenção. Nesse meiotempo, a oposição ganhou a eleição municipal e a administração resolveu decretar Situação Emergencial em Saúde para suspender um processo licitatório que seria barrado na justiça pela antiga OSS. A então secretária de saúde foi contra a manobra e a decisão do prefeito foi exonerála, e nomeou-me secretário interino de saúde. Assim, acumulei três cargos, além de tourear o Conselho Municipal de Saúde e conseguir apoio da Diretoria Regional de Saúde da Baixada Santista. Foi a oportunidade de aprender sobre administração pública. Assumimos e garantimos, através da administração direta, o funcionamento do hospital, evitando que tivéssemos mais um hospital fechado na região – o de Cubatão havia fechado fazia quatro meses. Com a posse do novo prefeito,

fui mantido no cargo de Diretor de Planejamento até final de março de 2017, tempo necessário para finalizar o processo de intervenção.

Voltei para São Paulo e, após alguns meses, assumi uma consultoria numa clínica de medicina diagnóstica e vacinação, minha última contribuição na área da saúde – isso do ponto de vista de gestão e operação, pois continuo com a docência, apesar da pandemia. É um saco aula virtual! Divirto-me muito nas aulas presenciais, onde visto um personagem e interpreto a aula. Em 2007, na Santa Casa de São Paulo, criamos um grupo de teatro amador. Minha curiosidade em aprender como decorar e interpretar um texto de duas horas levou-me a aceitar o convite para o papel de um dos personagens principais. A peça, intitulada “Nada é o que parece ser”, era um embate entre o Criador e a criatura. Eu fiz o papel do Criador. A criatura foi interpretada por uma atriz que participou do elenco da peça “Macunaíma”. Ela foi, também, a diretora da nossa peça. Todo o elenco, inclusive a autora, era de funcionários da Santa Casa. Fizemos quatro apresentações com muito sucesso. Meu personagem exigiu performance para cantar um rap e dançar um tango durante o espetáculo.

E, mais uma vez, deixei a vida me levar... Após 38 anos de formado, assumi o papel de engenheiro. Desde abril de 2020 trabalho numa empresa de Engenharia Sanitária que realiza assentamento e manutenção de redes de esgoto e água, além de serviços de redução de perda nas redes de abastecimento para companhias de saneamento básico, principalmente a Sabesp. Na região metropolitana de

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São Paulo participamos do processo de despoluição do Rio Tietê através da coleta e direcionamento dos esgotos, eliminando os lançamentos nos afluentes do rio, para estações de tratamento de esgotos. Sou um dos Diretores de Obras. Troquei os hospitais por canteiros de obras. Estou aprendendo muito sobre saneamento básico, praticando conhecimento de engenharia e colaborando com as experiências anteriores em gestão.

Nesses 39 anos, casei, tive dois filhos, divorciei, casei de novo, ganhei dois enteados e um neto. Em novembro de 1982, conheci minha primeira mulher, Márcia, ficamos casados por 17 anos e tivemos dois filhos: Mariah, enfermeira de pronto-socorro num hospital regional em São Paulo, e Matheus, que trabalha no setor financeiro do grupo Eucatex. Anos após o divórcio, conheci minha atual esposa, Meire, também divorciada, com dois filhos: Filipe, que trabalha numa empresa de engenharia, e Mayara, recém-

-formada em Direito. Conheci a Meire na área da Saúde – atualmente ela é pedagoga hospitalar num hospital infantil estadual em São Paulo. A condição para ficarmos juntos foi a aceitação dos quatro filhos para consumar a nova união, e assim aconteceu. Estamos casados há 15 anos. Tenho eterna gratidão pela Márcia, por ter me dado meus dois filhos biológicos, e também pela Meire, que escolhi, ou melhor, nos escolhemos para envelhecer juntos. Um dos meus desejos utópicos é que as pessoas vivam em paz e felizes. Isso nós praticamos aqui: minha ex-mulher frequenta nossa casa e é amiga da atual. Quando possível, nos reunimos todos e vivemos muitos momentos de risadas e alegria.

E assim deixei, e ainda deixo, a vida me levar...

“Vida, leva eu.

Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu.”

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Mussio

Descendo a rua da estação no carro do meu pai, numa manhã luminosa e estressante, e folheando o jornal (não existia celular), tive um choque: “Lista de aprovados no ITA”. Meu nome estava lá! Muita emoção com o fim da angústia da espera.

Meu destino de moleque de uma cidade pequena do interior paulista, que nas horas vagas ajudava o pai a vender bilhete de ônibus na rodoviária de Casa Branca, estava mudado para sempre. Eu seria o quarto casabranquense a ter entrado no ITA. Um sonho impossível, que começou a ser profetizado pela minha mãe, professora enérgica, quando eu ainda nem tinha ido ao jardim de infância (pré-escola): “Você vai ser um engenheiro do ITA”. Posso dizer que meu pai fez a parte dele comprando todo mês um porta-malas inteiro da Kombi de gibis do Mickey, Cebolinha e outros, que eu devorava antes mesmo de ser alfabetizado completamente.

Para chegar até a porta de entrada, o vestibular, foi tudo muito duro. Enfrentei inclusive um semestre muito pesado do Cursinho Universitário, na Praça 14 Bis, em São Paulo, e aulas de desenho no Anglo, na Bela Vista, à tarde. Morava num quarto e sala na Casa Verde e andava de transporte coletivo. Filho de professora, não tinha grandes posses. Tempos horríveis aqueles...

MUSSIO MUSSI

Entrando no ITA, descobri que os tempos horríveis eram muito legais. Nos dois primeiros anos, a carga horária, a demanda dos professores e o serviço militar sugavam a alma. Muitos amores e amigos foram perdidos. Será que eu venceria a batalha de chegar até o final? A primeira batalha vencida foi chegar ao 2º ano, formatura do CPOR, quando ganhei de presente da minha tia a espada, que posteriormente virou máquina fotográfica.

Fazer o ITA apenas seria uma indução completa à loucura, dizia um ex-professor. Lá pelo 3º ano comecei a dar aulas na Etep, numa tentativa de um mínimo de socialização. A primeira namorada apareceu lá pelo 3º ano, e me deu um estrondoso pé na bunda, arruinando todos os meus sonhos de café da tarde em São José dos Campos.

O ambiente hostil e cobrador forjou um lado do nosso comportamento coletivo que perdura 40 anos após formados, independentemente do status de cada um. Tanto que continuamos nos encontrando, mesmo que virtualmente, durante os tempos da pandemia. Em uma tarde de CPOR, horas a fio marchando sob um sol intenso, com o firme propósito coletivo

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de não desfilar no 7 de setembro seria uma abertura imperdoável , conseguimos convencer o novo tenente de que éramos mesmo incapazes de fazer ordem unida. Além da multidão descoordenada nas “esquerda e direita, volver”, havia o pelotão dos desmaiadores de plantão, que caíam ao solo para ajudar o propósito. Funcionou daquela vez e em muitas outras vezes, nas quais passamos coletivamente apuros por um propósito em comum. Jamais houve delação, apesar do sofrimento coletivo.

Hoje escrevo de Nashville, nos Estados Unidos, onde moro e ainda trabalho (com 62 anos) ativamente como engenheiro, após ter morado na Itália por duas vezes, peregrinando pela Ásia e Europa, num total de mais de 35 países. Escrevi um livro, As coisas que vi , relatando as experiências, as relações humanas e as desventuras nesses diversos lugares. Nada novo hoje, num mundo globalizado, mas extremamente arrojado para a época. A maioria não saiu do interior de São Paulo.

Vencido o desafio de pegar o canudo do ITA, o primeiro emprego veio como uma surpresa para um Eletrônico: Embraer, com promessa de viagem à Itália. Diferentemente de muitos colegas, eu não tive caixa para viajar para a Europa do 4º para o 5º ano.

Além da média Mogiana, eu conhecia o Vale do Paraíba, São Paulo e Rio. Minha primeira viagem ao exterior foi a trabalho, pela Embraer, para Los Angeles, onde cometi várias atrocidades como “ midnight cowboy ” de Casa Branca, a começar pela vestimenta no office . Descobri que os filmes são feitos em algum lugar diferente com um povo meio diferente também. Itália – chegada em dezembro de 1984 para trabalhar no programa AM-X, com a mala forrada de pasta de dente, graxa de sapato e mariola de banana envolta em açúcar. Os policiais da alfândega e o cachorro ficaram loucos com a minha mala. Não entendiam a graxa de sapato espalhada na mala inteira e só liberaram a bananada após obrigar meu chefe a comer várias mariolas de banana. Questionaram muito o porquê de levar tudo aquilo e eu simplesmente disse que pasta de dente, graxa de sapato e bananada eram comuns em Casa Branca, já na Itália… nem tanto.

Enfim Engenheiro de Instrumentação de ensaios em voo na Embraer, depois de uma grande crise que colocou a empresa e São José dos Campos no chão, tornei-me Engenheiro de Aplicação de motores na Bosch em Campinas, depois Magneti Marelli, onde acumulei dois cargos e, no final, um

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O ambiente hostil e cobrador forjou um lado do nosso comportamento coletivo que perdura 40 anos após formados, independentemente do status de cada um.

grande pulo para a Multibrás (Whirlpool), como gerente de eletrônica, e onde cheguei a Gerente Sênior na matriz americana em Michigan, após uma estada de um ano na Itália. A Multibrás me deu muito, inclusive um novo amor, que perdura até hoje; mas levou minha mãe, derrotada por um câncer imperdoável.

Aos 57 anos, as coisas mudaram na Whirlpool. Oito anos em Global Cooking como líder global, o RH questionava: por quê? A minha resposta à pergunta era se isso era um mérito ou um demérito. Enfim, grandes mudanças na liderança da empresa e uma excelente oferta da United Technologies/Carrier me fizeram pular fora. Cheguei a Diretor Assistente até que um dia fui chamado de manhãzinha no RH. Eu e mais um monte saímos de caixa de papelão na mão para a rua, igual vemos nos filmes. Na saída, me deram um documento para assinar, em que eu prometia não processar a empresa e declarava que não houve discriminação de idade, em troca de dinheiro. Peguei a grana.

Em duas semanas, recebi uma oferta de uma empresa alemã, Marquardt, na mesma região de Syracuse – NY, com cargo e salário bem menores. Aceitei, pois eu não queria sair da região. O ódio mútuo entre meu chefe e eu foi crescendo nos dez meses em que fiquei lá. Recebi uma oferta da Franke, em Nashville, no Tennessee, como engenheiro de automação num projeto que iria transformar a indústria de fast food , até que a covid-19 nos pegou – mas continuo lá. Sou considerado um exemplo a não seguir seguindo pela minha filha – “Não quero ser igual a você” –, o que é muito motivante para continuar seguindo.

Tive o privilégio de testemunhar essa pandemia universal e todos os seus efeitos benéficos e maléficos. A disciplina de continuar trabalhando e produzindo no home office , bem como a capacidade de aprender coisas completamente novas porque os projetos antigos não serviam mais, com certeza veio da disciplina de incontáveis horas de gagá no H8 (alojamento) do ITA.

A procura por casos antigos semelhantes ao atual, para não reinventar a roda, com certeza teve origem na busca por provas e séries de exercícios dos anos passados no H8: se alguém já passou por isto, vou aprender com ele. Testemunhei em vários lugares, principalmente nos Estados Unidos, a tendência de reinventar de novo e errar de novo. Nunca entendi se era uma questão de ego de engenheiro ou ignorância.

Em todos os lugares por onde passei jamais tive questionamentos sobre a minha performance e capacidade analítica. Alguns até comentavam da capacidade de ter sempre uma contrarian opinion , que adicionava valor à visão, nem sempre bem recebida em certos grupos. Seria marca dos iteanos?

Com certeza essa visão contrarian gerava temor em determinadas pessoas que não tinham a mesma capacidade. Fui levado do Brasil para a Itália e depois para os Estados Unidos para gerar mudanças e adicionar valor, mas paga-se um preço pessoal por isso.

Uma das coisas que existe na teoria e que tentei imprimir nos times em que trabalhei – funcionou melhor no Brasil, na Itália e na China – foi o espírito de corpo ou de time, fortemente presente na minha Turma ITA até hoje. Membros do time se esforçaram para nos unir via reuniões virtuais e eventos que, sinceramente, me fizeram sentir

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acolhido e menos isolado nesta pandemia e numa terra sem amigos, que não é a minha.

Ilusão a minha de achar que esse espírito de corpo pudesse acontecer na cultura americana. O ego de todos aqui é alto demais e a competição para pegar o seu lugar é muito grande. Outra característica da cultura americana é o despreparo deles para receber uma desaprovação ( feedback negativo). É destrutivo para a cultura deles. Tem que dar um jeito de transformar tudo em good job and suggestion to get better. Quase cem por cento dos líderes brasileiros aqui patinam

nessa área. Outro senão é sempre lembrar que você é estrangeiro, tem sotaque e está roubando o emprego de um verdadeiro americano. Coisas que o ITA não ensinou… Ser iteano não nos isola de acontecimentos. Temos alguns CEOs, Vice-Presidentes, Entrepreneurs e muitos ainda atuando como engenheiros e outros que se desviaram. Perdemos seis almas do total de 129 que passaram pela Turma 82. Contrastando com meu grupo do colégio (Etep), o grupo do ITA tem quase todos os membros sessentões ainda na vida profissional ativa. Marca do ITA?

MUSSIO MUSSI 316

Shinza

NELSON MITSUHIDE SHINZATO

Meus pais são japoneses e chegaram ao Brasil em 1954 e eu sou nissei, ou seja, da primeira geração, nascido na cidade de São Vicente – SP em 1960. Como a maioria dos imigrantes japoneses, meus pais começaram a vida no novo país como agricultores, arrendando uma pequena chácara num bairro de São Vicente (que após a emancipação virou a cidade de Praia Grande), onde cultivavam verduras e legumes. Porém meu pai não era somente agricultor, era também professor de karate Tinha iniciado a prática na escola, como parte de matéria regular em Okinawa, no Japão. Após formar-se no curso médio, continuou com o mestre muito famoso em Okinawa, criador de um dos estilos mais conhecidos do karate , o Shorin-Ryu. Quando emigrou para o Brasil, já tinha o forte objetivo de começar a difundir o karate na nova terra. Em 1962, oito anos após sua chegada ao Brasil, ele conseguiu abrir sua academia em Santos, com a ajuda da comunidade japonesa da cidade, para ministrar aulas dessa arte marcial então ainda desconhecida pela grande maioria dos brasileiros.

Sou o quinto de oito irmãos: três homens e cinco mulheres. Vivi até os meus 12 anos nessa zona rural, quando a família se mudou para uma casa construída na zona urbana da Praia Grande. Nessa

época, a atividade principal do meu pai já era a academia de karate . Apesar da vida sem grandes confortos, nossos pais trabalhavam muito e não deixavam faltar nada para nós; além disso, os irmãos mais velhos acabavam ajudando a cuidar dos mais novos, principalmente nos estudos. Sempre estudei em escolas públicas. No primário, quando ainda morávamos na chácara, o trajeto de aproximadamente 3 quilômetros entre minha casa e a escola era feito a pé, junto com uma das irmãs mais velhas e outras crianças da colônia de famílias de japoneses que viviam no mesmo bairro. Estudei até a 6ª série na Praia Grande; na 7ª série mudei para uma escola estadual em São Vicente chamada Martim Afonso, onde minhas irmãs mais velhas, Helena e Júlia, já estudavam e era reconhecida na região como uma das melhores. Meus pais sempre fizeram questão que todos os filhos estudassem e se formassem numa profissão, assim a escolha por boas escolas, que oferecessem mais oportunidades aos filhos, era uma prioridade.

Minha história no ITA começa por essa decisão de estudar nesse colégio, que, realmente tinha bons professores e

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nível de exigência muito maior do que o colégio da Praia Grande. No começo, tive dificuldade em acompanhar, porém pouco a pouco fui me adaptando ao ritmo e aos métodos de ensino da escola, além de me integrar com os novos colegas. Após esse período de adaptação, voltei a tirar boas notas nas matérias, exceto em português, que sempre foi uma dificuldade para mim. Foi no 3º ano do colegial (hoje ensino médio) que surgiu a ideia do vestibular para o ITA. Naquele ano, morava na Praia Grande, fazia o 3º ano colegial de manhã em São Vicente e o cursinho para acesso à faculdade em Santos. Até então, nunca tinha passado pela minha cabeça fazer o ITA. No cursinho, havia um curso de desenho, dedicado aos candidatos ao vestibular do ITA, que comecei a fazer após ouvir ótimas referências sobre essa escola. Além disso, o José Luís Andrade, meu colega de classe no colegial, estava fazendo o mesmo cursinho, e se preparando também para entrar no ITA.

Prestei também o vestibular para a Unicamp, onde as minhas irmãs mais velhas já estudavam. Passei e, inclusive, fiz a matrícula na Unicamp. Não tinha nenhuma expectativa de entrar no ITA. Lembro-me muito bem que durante aqueles dias em que fazíamos as provas, após sair da prova de química, em que não tinha ido muito bem, tinha perdido todas as esperanças. Mas para minha surpresa e de toda a família, numa manhã fui acordado pelos meus irmãos, que tinham comprado o jornal e visto o meu nome na lista dos aprovados no ITA. Foi uma festa; eu não conseguia acreditar! Meus pais ficaram muito orgulhosos, porque seria o primeiro a entrar no ITA entre as famílias de japoneses da Praia Grande.

Já no ITA, montamos o apartamento no alojamento H8 com os colegas do cursinho. José Luís Andrade, Luiz Antonio Fernandes, Luís Fernando de Almeida, Sérgio de Souza, Carlos Arrifano Schelim e eu ficamos no apartamento 106, que ficou conhecido como o dos santistas. Depois dos dois primeiros anos de Fundamental, já conhecendo melhor a maioria dos colegas da turma, descobrimos mais afinidades com uns do que com outros e, assim, mudei-me para outro apartamento, o 112. Massaki e eu formávamos um dos quartos; no outro estavam o Segre e o Guigui; o terceiro era formado pelo Bói e o Cícero. Este terceiro quarto teve outros moradores ao longo dos três anos.

Desde os 12 anos eu praticava karate na academia do meu pai e quando entrei na faculdade já era faixa preta e não havia ainda a modalidade karate entre os esportes praticados pelos alunos do ITA. Na nossa turma, alguns já tinham praticado, como o Marcel e o Kienbaum, e outros (inclusive de outras turmas) se interessaram em começar; assim iniciei as aulas de karate num espaço no H8, ala-C, onde os judocas faziam seus treinos. Após algum tempo, virei o monitor, assim permanecendo durante os cinco anos. A rotina no ITA era puxada, com aulas de manhã e à tarde quase todos os dias da semana. Havia algumas tardes em que saíamos mais cedo. Além do karate , que praticava duas vezes por semana, outro momento de descontração eram as peladinhas de fim de tarde atrás do muro do H8, onde havia um espaço com gramado. Bastava juntar uma turma, colocar dois chinelos de cada lado para marcar as traves do gol... e jogávamos as

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famosas peladinhas – diversão total! Era muito interessante como isso começava. Alguém saía no corredor do H8 e gritava “Pelada!”. Se havia muitos ecos, ou seja, se vários outros saíam no corredor e gritavam “Pelada!”, então havia quórum e todos pulavam o muro para começar a peladinha.

Esses anos de convivência no H8 com os colegas da turma, alguns mais próximos do que outros, nas peladinhas, nas aulas, nos esforços comuns para passar pelas matérias, diversões na cidade, construímos sólidas amizades que têm perdurado por toda minha vida. Construímos uma confiança difícil de imaginar se seria possível em outros ambientes; nos fortalecemos, ganhamos resiliência, amadurecemos, adquirimos conhecimento tanto técnico como de vida que nos preparou para o futuro profissional e pessoal. Tenho muita gratidão ao ITA, aos professores, aos meus colegas da Turma 82 e de outras turmas, e pelo convívio e experiência por que passamos naqueles cinco anos.

Nossa formatura em 1982 foi inesquecível, um momento para celebrar com os amigos, professores e, principalmente, com nossas famílias. Afinal, eu estava retribuindo aos meus pais e irmãos os esforços que eles fizeram para que eu pudesse estudar e me formar, e também demonstrava muita gratidão a toda minha família,

principalmente ao meu pai e à minha mãe, verdadeiros heróis.

A nossa turma se formou num período em que havia muitas oportunidades para novos engenheiros. Tive o privilégio de poder escolher entre trabalhar na Avibras e na Embraer, pois as duas empresas estavam contratando engenheiros recém-formados. Acabei optando pela Embraer, principalmente pela garantia de poder trabalhar por um ano na Itália, no projeto AM-X, desenvolvido pela Embraer em conjunto com duas empresas italianas, Aeritalia e AerMacchi, a primeira estabelecida na cidade de Turim e a outra em Varese.

Voltando aos tempos no ITA, nas férias entre o 4º e o 5º ano, há a tradição de os alunos viajarem pela Europa para visitar empresas e, principalmente, conhecer novos lugares e culturas, conhecida como CV. É uma viagem de aproximadamente dois meses. Na época, tomei a decisão de não fazer a viagem, pois não queria pedir ajuda financeira para meu pai. Assim, quando surgiu a oportunidade para trabalhar em outro país, logo após me formar, foi a grande oportunidade de compensar a viagem que não havia vivenciado com os colegas.

Muitos da nossa turma também entraram na Embraer, o que nos ajudou na rápida adaptação ao ambiente profissional. Quando

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A nossa turma se formou num período em que havia muitas oportunidades para novos engenheiros.

cheguei na Itália, em abril de 1983, para trabalhar na Aeritalia, me encontrei com meus colegas de turma Volpi, com quem dividi um apartamento por todo o período de Itália, Hayashi, Abe, Adalto e também com a turma que foi para a AerMacchi em Varese: Segre, Ruy, Guigui, Tim Maia e vários outros. Foi um ano bem intenso tanto profissional como pessoalmente. O trabalho sob a gestão dos italianos da Aeritalia foi muito rico em aprendizado e experiência, principalmente para um engenheiro recém-formado como eu. Queria aprender e conhecer tudo que passava por mim e entregar trabalho de qualidade. Do lado pessoal, grandes oportunidades de conhecer novas culturas, novo idioma, fazer novas amizades, muitas viagens de moto, aprender um novo hobby – o esqui – e fortalecer ainda mais a amizade com os colegas da turma nesse período que passamos juntos. Ruy, Hayashi, Segre, Tim Maia e Guigui foram companheiros constantes nessas viagens. Ótimas lembranças!

Após retorno ao Brasil, em abril de 1984, eu queria aproveitar o que tinha aprendido na Aeritalia no meu trabalho na Embraer e retribuir à empresa. Trabalhava no departamento de Ensaio em Voo, setor de Engenharia. Tive a felicidade de contar com o apoio dos chefes do setor para desenvolver um sistema para análise de dados dos ensaios em voo que seriam realizados no Brasil pela Embraer no programa AM-X e pude utilizar todo o conhecimento e experiência que havia adquirido no período de trabalho na Aeritalia.

Na época, um dos hobbies era a peladinha de futebol de salão às segundas-feiras à noite, com direito a happy hour depois.

Faziam parte dessa peladinha, além dos colegas da minha turma, outros veteranos do ITA, entre eles o Antonio Salvador (Turma 80) e o Wagner Amaral (Turma 79), que trabalhavam na DF Vasconcelos, desenvolvendo o míssil Piranha para o Ministério da Aeronáutica. Em meados de 1985, nos bate-papos durante peladas e happy hour , surgiu o convite do Salvador para trabalhar na DF Vasconcelos. Pensei muito sobre isso, pois eu tinha um trabalho com o qual me identificava e acreditava ser um trabalho importante para o programa AM-X, e tinha o reconhecimento da chefia do setor. Por outro lado, na época, a Embraer ainda era uma estatal e eu não via oportunidades de crescimento dentro da empresa. Além disso, eu era solteiro e sem grandes compromissos. Após avaliar todos os prós e contras, cheguei à conclusão de que era o momento de arriscar, pela oportunidade de crescimento na nova empresa que, ainda pequena, tinha boas perspectivas futuras. Tive receio de que o sistema que eu estava desenvolvendo na Embraer e que ainda não tinha sido utilizado na prática, pois os ensaios do AM-X no Brasil ainda não haviam começado, poderia ter descontinuidade. Mas sabia que tinha ficado em boas mãos, sob a responsabilidade do Suguita, colega de turma.

Na nova empresa, entre altos e baixos, mais baixos do que altos, pois, por atuar na área de armamento, ela sempre dependia de contratos com as áreas militares do país e os recursos eram escassos, cresci profissionalmente. Aquele grupo de trabalho, inicialmente parte da DF Vasconcelos, foi mudando para outras empresas, como Engemíssil,

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pertencente à Engesa, e finalmente Órbita, sob a gestão da Engesa e Embraer.

Na Engemíssil conheci a Glória, minha esposa; estamos juntos há 34 anos e construímos uma linda família com três filhos: a Bárbara, a Carina e o caçula Mauro. As duas filhas já estão casadas e temos a netinha Sarah, com 4 aninhos, filha da Carina. O interessante é que nenhum dos meus filhos seguiu minha carreira de engenheiro. Glória e eu sempre demos todo o apoio e incentivo para a escolha de cada um pela formação com que mais se identificavam. Assim, Bárbara se formou em Economia, Carina em Direito e Mauro em Administração de empresas.

Na Órbita, pela primeira vez pude assumir uma posição de gestão, primeiro como chefe de setor e depois como gerente. Participei de projetos, mais uma vez, com italianos, agora da empresa OTO Melara, sediada em La Spezia. Participei de diversas viagens a trabalho tanto para Itália como para outras regiões do Brasil, como Natal e Rio de Janeiro, para realizar ensaios de protótipos de mísseis. A Órbita se estruturou para vender grandes projetos para a Aeronáutica e o Exército, porém, ao final de alguns anos de investimentos em desenvolvimento, os contratos não foram efetivados e a empresa faliu. Alguns dos engenheiros viraram sócios e criaram a Mectron e eu também fui trabalhar na Mectron. Após mais alguns anos de altos e baixos, uma nova crise fez que houvesse demissões na Mectron e fui, então, procurar novos ares, com a disposição de mudar de indústria.

Mais uma vez, meu novo emprego veio de colegas do ITA. Meu amigo de turma, de período na Itália, e de trabalho na

Órbita, Ruy Amparo, que estava na TAM e trabalhava junto com o Falco, ofereceu-me a oportunidade para trabalhar na TAM. Comecei em dezembro de 1993. Nos primeiros anos, continuei morando em São José dos Campos e pegava ônibus fretado para ir à TAM, que ficava em São Paulo, mais exatamente em Congonhas. Depois, mudamos com a família para a Praia Grande e continuei pegando ônibus fretado entre Praia Grande e São Paulo/ Congonhas, e fiz mais um período de carro, pois não conseguia sair do trabalho no horário do fretado. Em 2001, nos mudamos para São Paulo, onde vivemos atualmente.

Na TAM, tive o privilégio de conhecer o Comandante Rolim, uma figura carismática e cheia de energia, que tinha como lema tratar o cliente sempre como rei. Sua personalidade impulsionou a empresa a crescer e alcançamos o posto de maior empresa aérea do Brasil. Os colegas Falco e Ruy tiveram papel fundamental nesse crescimento da TAM. Tive a oportunidade de trabalhar na área técnica, atuando na manutenção de equipamentos terrestres e na manutenção dos aviões, na equipe do Ruy. Falco ofereceu a primeira oportunidade de migrar para outra área, a operacional, cuidando da gestão da execução dos voos da empresa. A partir dessa experiência, pude migrar para áreas comerciais, como a de planejamento da malha de voos, a de alianças com outras empresas aéreas e a de maximização de receita ( Revenue Management ).

Passei por diversos cargos de gestão, começando por Chefe de Seção, passando por Gerente de Departamento, Diretor, Assessor e, finalmente, Vice-Presidente, meu último cargo quando deixei a empresa

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em setembro de 2017. Nos quase 24 anos de trabalho na TAM, e depois LATAM, me realizei profissionalmente. Assumi responsabilidades e funções que nunca tinha sonhado em conquistar nem persegui como objetivo. Na maior parte do período junto com o Ruy, passamos por diversas experiências, tanto positivas, com o crescimento da empresa e conquistas pessoais, como negativas, com os acidentes que ocorreram na empresa – momentos de grande dor, apreensão e incerteza. Nesses momentos difíceis por que passamos, nossos colegas da Turma nos ajudaram, oferecendo mensagens de carinho e apoio.

Hoje aos 61 anos e aposentado, voltei à academia que o meu pai fundou em 1962 e que, desde que ele nos deixou, em 2008, estava com meu irmão mais velho, Masahiro.

A academia fará 60 anos de existência no próximo ano e tenho a responsabilidade, junto com Masahiro, de dar continuidade ao grande legado que o nosso pai nos deixou. Vejo no karate a ferramenta para contribuir na formação de bons cidadãos de que nossa sociedade tanto necessita. Quando olho para trás e vejo toda a minha história, até parece que saiu exatamente como eu planejei, mas não é verdade. Acho que os desafios e as oportunidades foram surgindo na minha vida e talvez o meu mérito tenha sido estar preparado mentalmente, não ter medo e saber aproveitar as oportunidades com muita dedicação e, é claro, com o apoio da família, e tendo vocês, amigos da Turma 82 e do ITA, sempre próximos. Gratidão a todos!

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Autobiografia acadêmica e profissional “não autorizada” para o Álbum de 40 anos de formatura da Turma 82

INTRODUÇÃO

Escrevi esta autobiografia acadêmica e profissional atendendo ao pedido do Guilherme Lorenzi (Guigui), caro colega e amigo, Presidente Eterno da Comissão de Eventos da Turma 82 do ITA, para inclusão no Álbum de biografias a ser lançado durante a nossa comemoração de 40 anos de formados. A intenção do Álbum, idealizado por ele e cuja ideia achei muito interessante, é que nós, colegas da Turma 82, deixássemos um legado de nossas experiências para os futuros engenheiros, famílias e amigos. Lá vai então...

INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

Nasci em Belo Horizonte, primogênito em uma família de quatro filhos (tenho um irmão e duas irmãs).

Desde pequeno, sempre gostei de coisas mecânicas e elétricas, influência de meu avô, imigrante espanhol, construtor civil que, embora não sendo engenheiro, tinha habilidade nessa área e fazia questão de deixar o neto brincar na sua oficina, com ferramentas que hoje em dia seriam impensáveis nas mãos de crianças. Ele veio sozinho para o Brasil aos dezessete anos de

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idade, sem educação formal, mas conseguiu aprender o que pôde enquanto trabalhava em obras de infraestrutura nas primeiras décadas do século XX: tornou-se um técnico autodidata em concretagem de obras como pontes e barragens pelo interior de um país totalmente diferente do de hoje. Ele sempre comentava comigo, desde os tempos de criança até aos do ITA, que a educação era um dos maiores bens que uma pessoa poderia ter, mesmo ele próprio não tendo tido essa oportunidade.

Minha outra paixão, desde pequeno, é a aviação, influência de um tio, médico por profissão mas também entusiasta das máquinas voadoras.

Tive o incentivo de meus pais e avós para o estudo e tive o privilégio de ter estudado em duas excelentes escolas até antes de entrar na faculdade. A primeira foi o Instituto de Educação de Minas Gerais, onde fiz o então chamado curso primário. Era uma escola pública de qualidade, onde durante quatro anos tive a mesma professora, D. Elysia, de altíssimo nível didático. Ela conseguiu autorização da escola para acompanhar os mesmos alunos durante esse período, pois sua filha, com síndrome de Down, também fazia parte da turma.

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O notável é que ela conseguiu manter o alto nível do ensino, dando atenção individual a todos os alunos, sem privilégios para sua filha, que também se formou com a turma!

A segunda escola foi o Colégio Santo Antônio, onde cursei os então chamados cursos ginasial e científico. Era um colégio particular, bastante “puxado”, gerido por freis franciscanos holandeses mas com alunos de famílias católicas, protestantes, judaicas e cristãs do Oriente Médio. O corpo docente era composto por três grupos: pelos freis (alguns deles com ideias bastante avançadas para a época), por professores civis de todos os matizes políticos (mas não percebi, em retrospecto, nenhum tentando impor aos alunos suas preferências ideológicas) e, como estávamos na era dos governos militares, também por professores “colocados” do Colégio Militar de BH (militares à paisana, mas que também nunca vi tentarem impor sua visão de mundo aos alunos). Praticamente todos os professores eram bastante peculiares, uns poucos excepcionais, alguns bons e outros medíocres, mas quase que igualmente distribuídos pelos três grupos acima (!)... No convívio com os colegas do colégio fiz amigos com os quais mantenho contato próximo até hoje.

ITA

Na época de escolher o que estudar para a carreira profissional, eu não tinha dúvida: queria fazer engenharia. Então me inscrevi no vestibular para engenharia mecânica na UFMG (pois tinha uma opção por especialização em aeronáutica), para engenharia eletrônica (deslize prontamente retificado depois dos resultados dos demais

vestibulares aeronáuticos) na “Católica” (ninguém a chamava de PUC-Minas naquela época...) e, finalmente, para engenharia aeronáutica no ITA. Apenas eu e mais um colega de colégio fizemos este último e nenhum de nós tinha muita esperança de ser aprovado. Ele desistiu no meio das provas, mas eu continuei até o final, mesmo tendo certeza de que não iria passar, dada a minha expectativa de notas depois das provas. Uns dias (semanas?) depois dos exames, antes da data informada para a divulgação oficial dos resultados, eu me lembro de estar folheando o jornal na casa dos meus avós e bater o olho em um pequeno título: “Resultados do ITA”. O coração bateu forte com a expectativa, mas encontrei um Otto Resende entre os aprovados. A minha reação seguinte (“bixo” é “bixo”...) foi pensar: “Não tem ‘Conde’ no meio do nome... Será que sou eu mesmo ou é um homônimo?”. A essa altura, minha avó já tinha ligado para minha mãe, que disse que um amigo de meu pai tinha acabado de ligar para ele dando os parabéns pela minha aprovação no ITA (meu pai também se chamava Otto, daí o amigo ter identificado meu nome de imediato...). Levei trote dos irmãos (ovos na cabeça e farinha), mas o corte de cabelo só seria pouco menos de dois meses mais tarde, no CPOR...

Nos primeiros dias no CTA, todos nós fizemos uma batelada de exames médicos e de aptidão física e mental e, até onde eu sei, passamos todos sem exceção (quem disse que a seleção do ITA não acochambra?).

Nesse período eu me lembro de ter ficado hospedado no hotel do CAT junto com um monte de colegas, cujos nomes eu só iria gravar mais tarde, no H8. Como não conhecia nenhum dos colegas anteriormente, fui

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informado de que iria para o apartamento 110 no H8A, onde conheci os meus futuros colegas: Ary, Bruce, Pasquini, Svoll e Luiz Cláudio. Os três primeiros, caros amigos até hoje, concluíram o curso do ITA; os dois últimos partiram para outras faculdades...

Durante os dois primeiros anos, no curso fundamental do ITA, fomos divididos em quatro turmas, com base na nota da prova de inglês do vestibular. As matérias eram iguais para todas elas, mas os professores eram diferentes. Tive alguns professores excepcionais, como Lacaz (matemática), Weiss (química), outros muito bons (iria cometer uma injustiça se citasse alguns e inadvertidamente omitisse outros) e também professores mais “padrão”. Uns poucos eram decididamente fracos, porém, reiterando o que um colega já disse em outro depoimento deste Álbum, e sem falsa modéstia, quem faz o nível da escola são os alunos, mas ter bons professores ajuda muito!

Durante esses dois anos fizemos o CPOR nas quartas à tarde e aos sábados de manhã. No primeiro ano tivemos uma espécie de détente com o comando: eles

sabiam que a grande maioria dos alunos não estava no ITA para seguir a carreira militar (portanto, não eram indevidamente severos na aplicação da disciplina) e nós (acho que boa parte da turma) tínhamos uma certa percepção de que era melhor tentar passar pelo serviço militar sem gerar muito alarde. No segundo ano, no entanto, o novo comandante do CPOR tentou, nas suas palavras, transformar o CPOR na “tropa de elite da Aeronáutica” e os únicos resultados práticos foram a desmotivação de muitos colegas e seu trancamento ou desligamento. Nos três anos finais do ITA, durante o curso profissional de aeronáutica, a maioria dos professores era tecnicamente boa, mas com didática nem tanto. Um bom professor de física do curso fundamental (professor Stempniak), em conversa extraclasse com os colegas no nosso apartamento, tinha dado sua definição precisa do que era aula naquela época: “O processo pelo qual as informações passam do caderno do professor para o caderno do aluno, sem passar pela mente de ambos”... Por outro lado, o gagá (estudo) para as provas de praticamente

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Muitas vezes, o “momento de iluminação”
de encaixar a última peça do quebra-cabeça de captação do conhecimento (em oposição a capturar apenas a nota da prova...)
acontecia durante a própria prova, pela pressão do momento.

todas as matérias era intenso, tentando entender o que tinha sido passado nas aulas. Muitas vezes, o “momento de iluminação” de encaixar a última peça do quebra-cabeça de captação do conhecimento (em oposição a capturar apenas a nota da prova...) acontecia durante a própria prova, pela pressão do momento. Talvez não seja a melhor forma de aprendizado, mas também funcionava. No curso profissional da Turma 82 houve uma “overdose” de matérias relacionadas a estruturas e materiais, preenchendo a grade horária, onde eu, pessoalmente, teria preferido mais cursos de física do voo (aerodinâmica, desempenho, estabilidade e controle, por exemplo), pois boa parte dos futuros professores dessa área estava fazendo pós-graduação no exterior. Mas só ficamos sabendo disso anos depois...

No final do 4º ano tivemos a CV. A sigla significa literalmente “Comissão de Viagem”, mas no seu sentido mais amplo era a viagem técnico-cultural pela Europa, organizada pelos alunos com o apoio de instituições de intercâmbio estudantil de diversos países e realizada no período de férias entre o 4º e o 5º ano do curso. Nos meses anteriores à viagem, promoviam-se diversas atividades para levantar recursos para ela, tais como vender rifas e ingressos para bailes organizados pelos alunos e pedir doações a indústrias, muitas delas lideradas por ex-iteanos. Pela outra parte, cada um dos países anfitriões do “programa oficial da CV” (no nosso ano foram Holanda, Inglaterra, Alemanha, Portugal e França) organizava um roteiro de visitas a instituições acadêmicas, centros de pesquisa, indústrias e outros locais de interesse. Mas é claro que, uma vez estando na Europa, nossos passeios não

se resumiam apenas aos países “oficiais” e – nestes também – aproveitávamos para conhecer e explorar outras atrações turísticas e culturais. Meus caros companheiros de viagem durante toda a CV foram o Ruy e o Mauro, e encontrávamos frequentemente outros grupos de colegas. Vistamos Áustria (onde esquiei pela primeira vez), Itália e Espanha, além dos países do programa. Dentro do programa oficial, na Inglaterra visitamos um centro de ensaios em voo da British Aerospace em Warton, o Imperial College em Londres e outros. Na Holanda visitamos a Fokker em Amsterdam, a Philips em Eindhoven e os diques/barragens móveis anti-inundação na orla do Mar do Norte (onde os engenheiros da obra nos disseram que os especialistas mundiais em grandes barragens e represas éramos nós, brasileiros, com Itaipu etc.).

Em Portugal visitamos a Universidade de Coimbra e as OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, na época pertencentes à Força Aérea Portuguesa e que atualmente têm como acionista majoritária a Embraer).

Fomos recebidos lá com um lauto coquetel, onde comemos muito pois achamos que não iria ter almoço, mas em seguida nos foi oferecida uma farta refeição... – problemas de comunicação em português... Na França visitamos a Airbus em Toulouse. Na Alemanha visitamos o porto de Hamburgo, gigantesco. Muitos dos países nos davam uma ajuda de custo através de transporte, hospedagem e/ou alimentação. A viagem serviu como experiência de vida para abrir a mente, técnica, social e culturalmente.

Após a formatura no final do 5º ano, mesmo depois de começar a trabalhar, continuei fazendo algumas atividades

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acadêmicas como aluno de pós-graduação. Cursei algumas matérias isoladas no ITA – destaco aquelas com os notáveis mestres de mecânica dos fluidos, professores Jacek Gorecki, Jerzy Sielawa (Inpe), João Azevedo (“Chacal Legal” da Turma 81) e meu orientador de teses de mestrado (não completadas por conflitos de disponibilidade de tempo com as atividades profissionais – mea culpa ), Paulo Soviero (Turma 77). Minha gratidão a todos eles pelas excelentes discussões técnicas e pelos conhecimentos transmitidos!

VIDA PROFISSIONAL

A minha carreira profissional acompanha, com pequenas variações, a evolução da Embraer no mesmo período. Sendo assim, para contextualizar, tomo a liberdade de descrever alguns dos fatos relevantes dessa história, sob o meu ponto de vista, sendo necessariamente balizado pelo horizonte incompleto de quem era apenas uma pequena parte dessa evolução. Muitos colegas da Turma 82 compartilharam essa jornada e certamente têm suas próprias visões históricas para contar a respeito. Uma vez que esta é a biografia profissional de um iteano para o Álbum de uma turma do ITA, eu particularizo frequentemente a participação de colegas da Turma 82 e de diversas outras turmas com os quais tive a oportunidade de trabalhar e aprender ao longo de todos estes anos (“panela do bem”). Isso não significa que eu não reconheça as excepcionais contribuições de outros colegas de altíssimo nível de outras escolas e profissões. Minha sincera gratidão a todos e minhas desculpas pelas inevitáveis omissões de menções explícitas!.

No final do nosso 5º ano do ITA, diversas empresas fizeram palestras para os alunos, oferecendo oportunidades de emprego. A Embraer foi uma delas, oferecendo contratação para todas as especialidades com a promessa de trabalho na Itália por um período de um a cinco anos no projeto do caça AMX para a FAB e AMI (força aérea italiana), desenvolvido em conjunto com as firmas italianas Aeritalia e AerMacchi. O salário não era o mais alto do mercado, mas a oportunidade de trabalhar no exterior convenceu muita gente. Acho que uns 40 colegas (de um total de 78 formandos) aceitaram – eu, obviamente, entre eles. Fui contratado pelo engenheiro José Renato O. Melo (Turma 71), entusiasta da matemática e da música, que tinha uma visão focada, simples e correta das atividades de aeronáutica no projeto de um avião. Comecei na empresa em 31 de janeiro de 1983 e trabalhei nesse ano no EMB-120 Brasília antes de viajar, logo depois do réveillon , para a Itália, para passar o ano de 1984 trabalhando na AerMacchi, em Varese. Lá, o Guigui e eu formamos uma “república” em uma casa a uns duzentos metros do nosso local de trabalho.

Na AerMacchi, o diretor de aeronáutica ( capo servizio ) era um engenheiro competente e combinava isso com as soft skills (acho que esse termo é muito mais recente) necessárias para manter a turma (os “ AerMatti ” – “AeroLoucos”, em tradução livre) sob controle... O meu trabalho consistia em processamento e análise de resultados de ensaios em túnel de vento do AMX e também no modelamento por aerodinâmica computacional do avião (usando as ferramentas da época...),

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para ajudar nas análises e estender a aplicabilidade dos resultados de túnel. O ambiente de trabalho era muito bom entre os engenheiros italianos e brasileiros. Eu fiquei no grupo de aerodinâmica, que era composto de apenas quatro pessoas, contando comigo: o chefe da seção ( capo ufficio ), cuja filosofia de trabalho era “fazer as coisas certo” (ou seja, foco nos processos), um engenheiro e um técnico em aeronáutica (praticamente da nossa idade na época) bastante competentes, cuja filosofia de trabalho era “fazer a coisa certa” (ou seja, foco nos resultados, mas “tocando uma zona” quase o tempo todo). As duas filosofias de trabalho não deveriam ser incompatíveis mas, depois de um ano de trabalho, saí com a impressão de que o foco excessivo e indevido nos processos (que rapidamente ficavam desatualizados em face dos desafios técnicos sempre novos) penalizava os resultados de curto, médio e longo prazo... Ainda assim, a impressão que tive foi de que todos nós da Embraer trabalhando na Itália, incluindo o grande contingente da Turma 82, contribuímos tanto quanto nossos colegas italianos e tivemos a satisfação de ser reconhecidos profissionalmente por eles.

Nos fins de semana e nas férias, aproveitamos para conhecer a Itália e partes da Europa, sempre impressionantes. Como sintetizou o Ruy, que já estava lá havia alguns meses, éramos felizes e sabíamos! Durante os períodos de inverno e neve nas montanhas, fomos esquiar em praticamente todos os fins de semana com os amigos Ruy, Guigui, Hayashi, Segre (“sargentão”, que nos fazia levantar cedo para pegar o primeiro bondinho que

subia a montanha) e, de forma um pouco relutante, nosso amigo Mauro Hirdes.

Para temperar um pouco toda essa motivação e satisfação, tivemos algumas tragédias, técnicas e humanas: o protótipo número 1 do AMX, que voou pela primeira vez em maio de 1984, se acidentou poucas semanas depois em seu quinto voo devido a problemas relacionados ao motor, com a perda do piloto... e nosso colega e amigo Paulo Diniz teve um acidente motociclístico grave, que determinou sua volta antecipada ao Brasil. Essa segunda história teve um final feliz: Paulo se recuperou totalmente e fez uma longa carreira na Embraer (e já se aposentou, tranquilo como sempre).

De volta ao Brasil, no início de 1985, continuei a trabalhar na área de aeronáutica com diversos colegas/amigos de turma (Segre, Guigui e, próximos na área de aeroelasticidade, Butti, Diniz e Ruy).

Inicialmente o trabalho era a continuação do desenvolvimento do AMX, mas no ano seguinte surgiu o projeto do CBA-123, aeronave civil de passageiros excepcionalmente avançada para um avião turbo-hélice na época (e talvez ainda hoje), a ser desenvolvida em um programa conjunto entre Brasil e Argentina. A configuração inovadora mais lembrava a de um jato executivo, com motores montados em pilones na fuselagem traseira e hélices voltadas para trás ( pusher ). Tive a oportunidade de trabalhar no projeto aerodinâmico da asa e dos pilones dos motores. Além disso, tive meus primeiros contatos mais profundos com as discussões multidisciplinares nas tecnologias de sistemas e estruturas. Todo avião é uma máquina complexa, e a otimização global do

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projeto (em oposição a otimizações pontuais em cada área técnica) exige uma grande quantidade de compromissos técnicos entre as diversas áreas envolvidas, sem afetar a segurança de voo. A piada no meio aeronáutico é que os melhores aviões são aqueles em que os engenheiros de cada uma das diferentes tecnologias saem igualmente insatisfeitos... Deixo aqui minha admiração pelo trabalho do engenheiro Masao Hashizume (Turma 67), coordenador de todos os projetistas, que com suas intervenções técnicas corretas e diretas ao ponto mantinha o equilíbrio necessário entre as diversas tecnologias.

O trabalho técnico e o ambiente da Embraer junto aos colegas em geral eram muito bons, mas a gestão de RH de uma empresa estatal, submetida aos rígidos controles do governo federal, impedia que as avaliações de desempenho fossem feitas pela meritocracia. Na época, o critério de progressão na carreira técnica era exclusivamente o tempo de empresa. Eu e uns colegas da Turma 82, por brincadeira, estimamos o tempo que levaríamos para chegar a chefe de seção, baseados no tempo que tinha sido necessário para o engenheiro mais sênior da nossa área (o saudoso René Landman, da Turma 71, muito boa pessoa) ser promovido a esse cargo, levando em conta a sequência de antiguidade dos nossos colegas de seção, também quase todos veteranos do ITA. A estimativa foi de mais de 200 anos... Falando sério, a percepção de que nunca seríamos avaliados por desempenho, independentemente da satisfação técnica do trabalho, era um forte desmotivador profissional para diversos colegas, eu incluso. Nessa época, meu caro

amigo e colega Ruy Amparo tinha saído da empresa por motivos similares, tendo ido trabalhar na Órbita S.A., empresa formada por associação da Engesa (empresa que fabricava veículos blindados) com a Embraer, para fabricação de mísseis. A Órbita, cuja gestão técnica também era de iteanos, parecia promissora e, indicado pelo Ruy, fui contratado e comecei a trabalhar lá em junho de 1987. Trabalhei no míssil ar-ar Piranha (projeto iniciado pelo CTA/FAB) e em alguns outros projetos, mas rapidamente Ruy e eu percebemos que a situação econômica da Órbita não era estável e que deveríamos sair de lá antes de queimarmos na reentrada... Em menos de dois anos, eu havia voltado para a Embraer, recontratado com um salário maior do que aquele eu teria se tivesse sido “avaliado” sem ter saído de lá... e o Ruy seguiu para uma carreira muito bem-sucedida na TAM Linhas Aéreas (mais detalhes no seu depoimento). Como comentário final sobre a Órbita, a companhia teve suas atividades efetivamente paralisadas algum tempo depois, devido às crises financeiras das suas empresas controladoras e do governo brasileiro (seu cliente principal), mas o excelente núcleo técnico de iteanos egresso de lá continuou com diversos dos projetos, prestando serviços para terceiros e eventualmente formando uma nova empresa privada no setor aeroespacial (Mectron), que evoluiu para o que hoje é a empresa Siatt. Mas isso é outra história...

Na volta ao trabalho na Embraer em fevereiro de 1989, retornei para a mesma área técnica aeronáutica, da qual gostava muito, no mesmo local físico de trabalho, respondendo ao mesmo chefe anterior, mas

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com a peculiaridade de ser um prestador de serviço contratado formalmente pela Usimon, empresa privada de serviços de usinagem. Devido à crise econômica dos anos 1980, todas as empresas estatais estavam proibidas de fazer novas contratações de empregados, mas isso não impedia as soluções com o jeitinho brasileiro: as estatais não estavam proibidas de contratar empresas privadas prestadoras de serviço, que serviam como “testas de ferro” nas contratações dos funcionários para as primeiras. Meu caso estava longe de ser o único; dezenas (ou centenas?) de colegas estavam na mesma situação. Todos esses empregados terceirizados foram recontratados pela Embraer assim que a proibição foi revogada. Eu fui recontratado formalmente pela Embraer em outubro de 1989, e estou lá até hoje (2022).

Nessa mesma época, paralelamente à continuação do desenvolvimento do CBA-123, começou o projeto do ERJ145, um jato comercial com capacidade para 50 passageiros. A história da minha participação nesse projeto vai ser retomada mais à frente, pois uma grande crise na empresa (descrita a seguir) estava assomando no horizonte...

A engenharia da Embraer foi liderada tecnicamente desde sua criação em 1969 até meados do processo de privatização (finalizado em 1994) pelo engenheiro

Guido Pessoti (Turma 60), que encarnava a figura clássica do Engenheiro/Projetista-Chefe de aeronaves. A gestão era muito centralizada, mas a competência técnica era inquestionável. Paralelamente, a gestão de modelo estatal da empresa, mesmo somando o faturamento de todos os seus programas, contava com o apoio financeiro

constante do acionista principal (o governo brasileiro) para o fechamento das contas. A minha impressão é de que a Embraer não teria atingido o alto nível de competência técnica sem a liderança detalhada do Guido (e de outros técnicos notáveis), e nem mesmo teria sido criada sem a “segurança” financeira de ser uma empresa estatal, devido aos altos investimentos iniciais necessários e seus longos prazos de retorno. Por outro lado, a despeito dos melhores esforços da alta gestão da empresa, tudo isso limitava a sua possibilidade de crescimento futuro. Os catalisadores da mudança que viria foram a crise econômica brasileira dos anos 1980, que limitou a capacidade do estado de financiar a Embraer, e o dreno financeiro do programa CBA-123, cujo desenvolvimento foi continuado a despeito disso, com o agravante de que a outra parcela do custeio, que viria da participação argentina, nunca chegou... A empresa “quebrou” na prática, e a crise tornou-se pública com as demissões da ordem de 4.000 de seus 12.000 funcionários em outubro de 1990. Seguiu-se um período turbulento, com a troca de comando da Embraer por um administrador (o advogado João Cunha), designado pelo Ministério da Economia (que controlava as estatais), com mais demissões em massa e muitas incertezas sobre o futuro. Os boatos corriam soltos, com especulações sobre o fechamento da empresa, da incorporação de parte da engenharia pelo CTA, da venda das instalações fabris para a indústria automobilística, de que o prédio estiloso do setor de treinamento de clientes viraria um shopping center e tantos outros. Foi uma época de grande angústia para os funcionários da empresa... eu incluso. Por

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volta do fim de 1991 retornou à empresa seu idealizador e primeiro presidente, o engenheiro Ozires Silva (ITA, Turma 62). Ele tinha saído da Embraer em 1986 para assumir a presidência da Petrobras e em 1991 ocupava o cargo governamental de Ministro da Infraestrutura. Ainda assim, a seu próprio pedido, voltou à Embraer para tentar recuperá-la. Depois de tentarem as alternativas possíveis para mantê-la estatal, ele e sua equipe concluíram que a única alternativa viável era incluir a empresa no programa de privatização do governo, que na época provia os únicos mecanismos para a injeção de recursos para o mínimo saneamento financeiro, fundamental para que ela se tornasse atrativa para o setor privado. O processo foi concluído com a privatização da empresa em 1994, quando tinha uns 3.500 empregados, e possibilitou seu crescimento subsequente através das altas e baixas do mundo econômico em termos de faturamento e empregos, chegando à ordem de 20.000 empregados em 2022. Junto ao saneamento financeiro supracitado, provido pelo governo / acionista controlador (que não zerava as dívidas da empresa, mas as reduzia a um nível que a tornava minimamente atraente para os potenciais compradores privados), o processo de privatização envolveu uma tremenda “engenharia econômica” para alavancar o novo projeto da empresa, o ERJ145, sem o qual seu futuro não estaria assegurado e, portanto, não atrairia os potenciais compradores durante a privatização. Eu não estive envolvido diretamente nessa atividade, que foi idealizada e conduzida com a

participação importantíssima de iteanos da Embraer bem mais sêniores, mas as informações que chegavam até nós na área técnica me fizeram adquirir um tremendo respeito pelas alternativas inovadoras e pela sua lógica. “Caiu a ficha”, óbvia, em retrospecto, de que o desenvolvimento técnico em uma empresa privada tem que necessariamente andar lado a lado com um plano de negócio viável (lucrativo do ponto de vista econômico e financeiro) para o desenvolvimento, certificação, produção e suporte em serviço de uma aeronave. De uma forma inovadora no mercado aeronáutico, os custos de desenvolvimento do ERJ145, da ordem de várias centenas de milhões de dólares (valores dos anos 1990), seriam compartilhados pelos fornecedores de grandes componentes estruturais, sistemas, motor etc., que se tornariam “parceiros de risco” (nome irônico em uma época em que a AIDS já estava tendo, no noticiário, destaque similar ao da pandemia da covid em 2020...), pois só veriam seu investimento de volta através dos lucros futuros da venda do avião, se existissem... Esse ciclo da engenharia econômica se fecharia com a engenharia “técnica” propriamente dita, pois se o projeto aeronáutico do avião – esse, sim, inteiramente realizado pela Embraer (você não conta os “pulos do gato” para os parceiros) – não fosse comprovadamente bom, você não os convenceria a investir. Retomando o relato da minha carreira... Participei da equipe de projeto aeronáutico do ERJ145, trabalhando principalmente no projeto aerodinâmico da asa, empenagens, pilones dos motores e no fornecimento de informações técnicas de aeronáutica para o projeto de diversos sistemas do avião.

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Inicialmente ele foi concebido como um derivado do EMB-120 Brasília, com fuselagem alongada de 30 para 45 passageiros (daí o número 145 com a sigla ERJ – “Embraer Regional Jet” enfatizando que era um jato, uma vez que a Embraer era conhecida na aviação civil da época apenas como fabricante de aviões a hélice...), reaproveitando boa parte da estrutura da asa, que permaneceria “reta” (sem enflechamento) e trocando os motores turbo-hélice por turbinas a jato (turbofans).

A ideia, antes da engenharia econômica já mencionada, era produzir um avião de custo muito baixo, alinhada com a penúria financeira da empresa antes da privatização. No entanto, apesar dessas boas intenções, percebeu-se que o desempenho de um jato herdando tantas características de um turbo-hélice não geraria um avião competitivo.

A configuração mudou, por determinação do engenheiro Guido, para uma asa enflechada totalmente nova. O novo desafio era, com as ferramentas e recursos computacionais que tínhamos na época, tanto projetar uma asa que deveria voar de forma eficiente no regime “transônico” (Mach=0.78, ou seja, 78% da velocidade do som ou aproximadamente 850 km/h) sem uma influência prejudicial indevida dos motores montados bem próximos debaixo dela. Não era a configuração favorita da engenharia, que preferia os motores montados na fuselagem traseira, mas as diretrizes do Guido (“OdG” – Ordem do Guido) eram literalmente incontestáveis... Houve muitas discussões técnicas buscando cumprir o desafio e muito trabalho duro, mas no final os resultados foram validados

por ensaios em túnel, que comprovaram que as metas tinham sido atendidas. Quando finalmente nós, aeronáuticos, respirávamos aliviados pelo sucesso nesse aspecto do projeto, pouco depois da volta do engenheiro Ozires Silva e da saída do engenheiro Guido, fomos informados de que a configuração mudaria para motores na fuselagem traseira por decisão do Ozires e por outros motivos técnicos alheios à aerodinâmica... No entanto, a experiência e o trabalho na asa enflechada não foram perdidos: ela foi ligeiramente adaptada e é a que está hoje na família ERJ, com mais de 1.200 aviões produzidos.

O mercado visado pelo ERJ145 (aviação regional de 50 passageiros) era tradicionalmente servido por aviões turbo-hélice dessa capacidade e muitos analistas internacionais especulavam a priori que, embora oferecendo mais conforto e tempos de viagens menores, um jato nunca seria economicamente viável em termos de custos de operação quando comparado a um turbohélice. Um argumento tem sido recorrentemente levantado para justificar, a posteriori , o insucesso comercial do CBA-123, que teria sido um avião “tecnicamente bom, mas caro demais e inviável” para concorrer no mercado de turbo-hélices convencionais de 19 passageiros. Uma percepção que acho interessante é que os mesmos argumentos “de alto nível” foram aplicados para justificar o destino de dois projetos distintos, sendo que um deles sequer chegou a entrar em serviço e outro foi um grande sucesso comercial. Minha conclusão é que desafios e previsões técnico-comerciais complexos como esses são muito difíceis de sintetizar em poucas palavras...

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De 1995 a 1999, fui convidado a dar algumas aulas no curso de projeto de aeronaves no 5º ano do ITA. O convite veio do saudoso Professor Bismarck (então chefe do departamento de aeronáutica da escola) e de um ex-colega da Embraer, o Professor Dr. Durval Silva (Turma 79), que estava se mudando para o Canadá. O professor titular do curso era o Professor Olegário Perez (T54), com quem tínhamos tido a mesma matéria em 1982, e sua parte do curso não tinha mudado nada desde então, alternando a cada ano entre um avião turbo-hélice de 80, 100 e 120 passageiros. Por outro lado, além do Durval, também lecionava no mesmo curso o engenheiro Guido Pessotti (Turma 60), recentemente egresso da Embraer e contratado pelo ITA por seu notório saber em projeto de aeronaves. Na reunião inicial para planejamento das atividades do curso, presidida pelo Professor Bismarck e com a presença dos professores Perez, Guido, Durval e o (não professor) que vos escreve, o Durval perguntou: “Professor Perez, que aeronave o senhor acha que deveríamos propor aos alunos?”, ao que o Perez respondeu: “No ano passado demos a de 80 passageiros; este ano vamos dar a de 100”. Em seguida, o Durval perguntou: “Professor Guido, que aeronave o senhor acha que deveríamos propor aos alunos?”, ao que o Guido respondeu, sem hesitação: “Um jato de 800 passageiros!”. Durval e eu tivemos que prender o riso pelo conflito entre seguir o caminho didático medíocre (sem demérito), mas bem trilhado, versus o desafio arrojado e didaticamente arriscado... Acabamos chegando em um acordo de propor um avião a jato de 100 passageiros.

Em 1997-1998 trabalhei no projeto do EMB-314 Super Tucano, como coordenador de aeronáutica. O avião era uma evolução do protótipo EMB-312H Super Tucano, desenvolvido na primeira metade dos anos 1990 para participar de concorrências internacionais para treinadores militares avançados, que a Embraer ganhou, mas não levou por motivos geopolíticos. O EMB-312H, por sua vez, era uma evolução do EMB-312 Tucano, um treinador militar avançado turbo-hélice desenvolvido no final da década de 1970 pela equipe liderada por outro Engenheiro-Chefe notável, José Kovacs, e que teve grande sucesso técnico e comercial em todo o mundo. O EMB-314 foi adaptado, conforme as especificações da FAB, para atender suas demandas para um avião de ataque leve e de treinamento operacional, para substituir o EMB-326 Xavante – este, um projeto da AerMacchi produzido sob licença pela Embraer nos anos 1970-1980. O EMB-314 também achou seu mercado internacional, tendo sido vendido para as forças armadas de diversos países. No final da década de 1990 fui sondado pelo meu gerente (Decio Pullin, Turma 74, com quem aprendi muito sobre aeronáutica e amigo até hoje) sobre minhas aspirações profissionais: continuar na carreira técnica ou optar pela carreira de gestão administrativa. A Embraer estava estabelecendo a chamada “Carreira Y” como meio de fomentar a permanência de engenheiros experientes na carreira técnica, que anteriormente estava limitada em termos salariais. As duas vertentes do Y (técnica e administrativa) são importantes e essa iniciativa possibilitou a evolução salarial na carreira técnica até pelo menos o

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nível de gerente, em suaves prestações a perder de vista. Brincadeiras à parte, eu optei pela técnica e não me arrependo.

De 1998 a 2000 passei a trabalhar como coordenador técnico de aeronáutica durante o início do projeto da nova família de aviões de passageiros da Embraer (da qual o nosso caro colega Luís Carlos Affonso foi o diretor geral e futuro VP). O mercado da aviação regional atendido pelo ERJ145 tinha crescido e se mostrado tão promissor que a Embraer (e concorrentes) começaram a estudar aviões de maior capacidade de passageiros. A resposta da Embraer foi a família de aviões E-Jets ‘E1’, que é composta por ERJ/EMB-170, 175, 190 e 195, cobrindo a faixa de 70 a 120 passageiros. Além da coordenação de aeronáutica, o meu trabalho era dividido entre atividades “mão na massa” de cálculos aerodinâmicos, planejamento e acompanhamento de ensaios aerodinâmicos em túnel de vento no Brasil e no exterior e o suporte técnico às demandas de informações das outras áreas. O time de aeronáutica era extremamente competente, mas muito reduzido. Esse problema de falta de mão de obra de engenharia altamente qualificada era generalizado em todas as áreas da empresa, causado pelo crescimento muito rápido das atividades de diversos projetos em andamento simultaneamente (E-Jets, EMB-314, variantes do ERJ145 para a aviação executiva, E145 SIVAM e outros). A empresa encontrava grande dificuldade em contratar rapidamente engenheiros aeronáuticos (e de outras especialidades) brasileiros na quantidade e com a experiência necessária. A solução imediata foi a contratação temporária, a peso de ouro, de engenheiros aeronáuticos estrangeiros

como prestadores de serviço. A competência deles era variada: uns pouquíssimos tinham conhecimento e experiência excepcionais e contribuíram muito, mas outros eram tecnicamente apenas medianos e muitos estavam efetivamente aprendendo com os colegas brasileiros... A empresa reconhecia que essa solução era cara e pouco eficiente, o que levou a outra iniciativa notável: a criação do PEE – Programa de Especialização em Engenharia, em parceria com o ITA. A descrição desse programa e minha participação nele será feita mais à frente.

Em 2001 fui convidado para fazer parte da DAP, uma nova área da empresa, criada para dedicar-se ao anteprojeto, ou seja, aos estudos técnicos e de custos iniciais de futuras aeronaves. A DAP foi criada a partir de lições aprendidas de projetos passados (custos altos do CBA-123, várias configurações detalhadas e depois abandonadas do E145, custos e prazos dilatados dos E1 etc.). A equipe inicial era muito reduzida e contávamos com o apoio “por empreitada” de profissionais de outras áreas da empresa... Não que a Embraer não tivesse anteriormente um time técnico altamente qualificado para fazer os estudos iniciais, mas a criação da DAP formalizou essas atividades e criou um time permanente dedicado para tal.

Um dos primeiros trabalhos que tive na DAP foi coordenar um estudo técnico de desenvolvimento e melhoria de ferramentas de projeto aerodinâmico computacional, validadas por ensaios em túnel, para manter a competitividade dos futuros produtos.

Os primeiros produtos totalmente novos cujos estudos foram iniciados na DAP foram os jatos executivos leves da

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família Phenom, por volta de 2003-2006. O Phenom 100 saiu antecipadamente da DAP para o detalhamento de projeto devido a pressões de data de entrada no mercado, mas o Phenom 300 (anteprojeto feito em 2005-2006) teve seu anteprojeto realizado integralmente e continua como aeronave líder do seu nicho de mercado até hoje.

Em seguida, por volta de 2007-2011, aconteceu o desenvolvimento do Legacy 500, jato executivo maior (categoria mid-size ), que evoluiu posteriormente para o atual Praetor 600. Ele incorporava novidades relevantes para um avião do seu tamanho e para o mercado da aviação executiva, tais como um sistema fly-by-wire , onde os comandos do piloto eram todos interpretados por computadores antes de serem passados às superfícies de comando do avião. Eu não atuei tão diretamente nesse projeto, mas como apoio técnico ao time competente de engenheiros mais jovens, onde alguns já estavam sendo preparados para assumir futuramente posições relevantes nas áreas de gestão técnica da empresa.

A partir de 2008, fui o coordenador técnico de aeronáutica na fase inicial de estudos do KC-390, um avião de transporte para a área de defesa, concorrente do venerável Lockheed C-130 Hercules americano. A ideia inicial, gerada pelo engenheiro Luiz Tedeschi (Turma 79, e uma das figuras mais criativas em termos aeronáuticos com as quais eu tive o privilégio de trabalhar), era fazê-lo com o reaproveitamento das asas, motores e empenagens do EMB190-E1 mas com uma fuselagem totalmente nova para prover uma grande capacidade de carga. Isso

geraria um avião atendendo praticamente a todas as necessidades e capacidades de um avião de transporte militar mas com custos de operação bem mais baixos. O anteprojeto foi redirecionado depois de um ou dois anos a partir das discussões com o cliente principal (FAB), que especificou um avião muito mais capaz e sofisticado (mas mais caro...), o que requeria mudanças substanciais. É nessas horas que ficam claras as vantagens das equipes menores nas fases iniciais do anteprojeto, que podem absorver rapidamente e com custo relativamente baixo as mudanças que se fizerem necessárias...

No período de 2011-2013 começaram os estudos do que viriam a ser os sucessores da família EMB170-175-190-195. Esses estudos avaliaram as alternativas de fazer aviões de maior capacidade de passageiros ou, mantendo essa capacidade, oferecer uma redução substancial de custos de operação para as linhas aéreas, mantendo a competitividade da empresa na faixa em que já atuava. As análises técnicas mostraram que a empresa tinha todas as condições técnicas para produzir aviões maiores, mas as análises de negócio, feitas pela sua alta gestão, indicaram que seria arriscado para a Embraer tentar competir sozinha e diretamente com empresas muito maiores. A opção foi então aumentar apenas ligeiramente a capacidade de passageiros e projetar para oferecer consumo de combustível e custos de manutenção

menores, gerando o que viria a ser a família

E-Jets E2. O primeiro modelo dessa nova família, o E190-E2, foi certificado e entregue ao primeiro cliente em 2018 e a nova família tem boas perspectivas futuras.

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A preocupação em manter a atuação da empresa viável em um mercado de aviação comercial que consistia até então em dois duopólios, cada um na sua faixa (Airbus europeia versus Boeing americana para aviões acima de 120 passageiros e Embraer versus Bombardier canadense abaixo disso), já tinha levado a Bombardier a se associar e, tempos depois, vender sua área de aviação comercial para a Airbus. Isso levou a Embraer, para tentar manter o equilíbrio competitivo, a negociar uma associação/ venda de sua operação comercial para a Boeing. O anúncio dessas negociações veio a público em 2017 e um acordo de intenção de compra foi assinado em 2018. Esse acordo foi desfeito unilateralmente pela Boeing em 2020, antes que a venda fosse concretizada. Eu não estive envolvido nas discussões entre Boeing e Embraer, mas tenho a impressão de que a Boeing desistiu por conta de seus problemas internos e da crise de todo o setor de aviação provocada pela pandemia da covid-19... Também é minha impressão que a Embraer “integral” (com as áreas de aviação comercial, executiva e de defesa) tem mais chances de sucesso a longo prazo...

Desde 2015, passei a atuar mais diretamente na área de estudos conceituais. Ela é o início do anteprojeto, onde são discutidas as alternativas de conceitos de futuras aeronaves para atender às necessidades das áreas da aviação comercial, executiva e de defesa. É lá que atuo até hoje. O trabalho é muito interessante, junto com colegas muito competentes!

Gostaria de fazer um parêntese comentando sobre a evolução da tecnologia de informática e computação desde a época do ITA até os dias de hoje – ferramenta

fundamental para a engenharia, vista por um engenheiro aeronáutico. Quando entramos no ITA, em 1978, não precisamos usar réguas de cálculo, mas as calculadoras científicas pessoais ainda eram relativamente novas – ganhei a minha primeira Texas TI58 do meu pai, como presente por ter passado no ITA. O desenho técnico era feito em pranchetas com papel, lápis e canetas nanquim. Em 1979, nos cursos de introdução à ciência da computação (LPD11 –Laboratório de Processamento de Dados), fizemos programas em Fortran usando cartões perfurados no IBM 1130 (32K de memória RAM, 2 x 512K em disco!), com os resultados saindo em listagens de papel. Os programas eram rodados em batch apenas duas vezes por dia. Deixávamos a pilha de cartões ( deck ) em um escaninho e horas depois buscávamos a listagem com os resultados... Ao entrar na Embraer, em 1983, os computadores mainframes IBM 360/370 eram servidos por terminais de texto para entrada de dados e programação, mas os resultados ainda vinham horas depois em listagens de papel. Quase a totalidade dos desenhos de engenharia era feita em papel por desenhistas/projetistas. Existia um sistema CAD ( computer aided design ) da marca Gerber, muito primitivo e com pouquíssimos terminais. A partir de 1985, chegou o primeiro sistema operacional (VM/CMS) que permitia rodar os programas Fortran no mainframe e ter os resultados “instantaneamente” no próprio terminal (fantástico!), mas os batches continuavam para os programas mais pesados. Havia apenas um número reduzido de terminais (1 terminal para cada 5 a 10 engenheiros?) e tínhamos que nos revezar na sua utilização

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– ou seja, ainda havia muitas contas feitas em papel... Por volta de 1987 chegou um sistema CAD moderno marca Intergraph, mas foi substituído a partir de 1998 pelo sistema Dassault CATIA, ainda mais capaz e padrão da engenharia aeronáutica mundial, usado até hoje em suas versões atualizadas.

Na virada do milênio começou o processo da implantação da rede de microcomputadores pessoais na Embraer. Seria um computador pessoal para cada engenheiro, mas a piada corrente era que esse ajuste 1:1 seria feito trabalhando com os números de ambos... A partir daí a tecnologia evoluiu rapidamente para redes remotas e internet, clusters de milhares de processadores para processamento paralelo e interfaces gráficas sofisticadas. Bem mais recentemente, surgiu o trabalho remoto ( home office ) por conta da pandemia de covid, com ferramentas para reuniões e integração de projeto online .

É a ironia do ditado “casa de ferreiro, espeto de pau”: usamos cada vez mais o projeto remoto de engenharia online para conceber aviões que serão usados para que as pessoas viajem e se encontrem pessoalmente...

Eu tinha mencionado anteriormente o PEE (Programa de Especialização em Engenharia) da Embraer. O PEE foi criado em 2001 pela necessidade da empresa de contratar números elevados de engenheiros com certa experiência em aeronáutica para trabalhar nos projetos em andamento, que ela não conseguia obter diretamente das escolas de engenharia aeronáutica brasileiras ou sem arcar com os custos muitíssimo elevados da mão de obra estrangeira. Se não é possível contratar engenheiros “prontos”, a solução é formálos... O curso do PEE tem duração de 18

meses e combina um mestrado profissionalizante vinculado ao ITA com cursos técnicos dados por especialistas da Embraer, para uma possível contratação no final. Ele é aberto a engenheiros com poucos anos de graduação, de várias especialidades. A seleção é muito concorrida (tipicamente 6.000 a 8.000 candidatos para 30 a 60 vagas por turma) e ele tem tido alunos provenientes de diferentes escolas espalhadas por todo o Brasil. Além do alto nível dos alunos, o equalizador de todos é sua excepcional motivação para trabalhar em engenharia. Os alunos são bolsistas da Fundação Casemiro Montenegro Filho do ITA, mas o custeio de todo o programa é feito pela Embraer. As duas primeiras fases do curso são basicamente compostas de aulas com professores do ITA e especialistas da Embraer, que dão o embasamento de aeronáutica e aprofundamento/ especialização em diversas tecnologias do avião. A terceira fase consiste na aplicação prática do conhecimento no exercício de anteprojeto de uma aeronave diferente para cada turma, e é nessa fase que eu fui convidado a participar como mentor de aeronáutica e integração de projeto desde a sua criação até hoje, com um hiato de poucas turmas devido a outros compromissos de trabalho. Como mentor, tenho tido o privilégio e a satisfação de interagir, ensinar e aprender com os alunos e com os outros mentores e professores ao longo de todos estes anos. Também é mentor de estruturas o nosso caro colega e amigo Eça.

O PEE surgiu pela idealização inspirada dos engenheiros Satoshi Yokota (Turma 64) e José Renato Melo (Turma 71) e foi criado e estruturado com a colaboração de muitos

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 337

engenheiros da Embraer e professores do ITA, entre eles Paulo Serra e Sidney Nogueira (Turma 74), Irajá Ribas (Turma 63), professores Paulo Rizzi (Turma 69), Frascino (Turma 78) e Donizeti (Turma 83), entre outros. A equipe de gestão do PEE evoluiu ao longo dos mais de 20 anos de existência do programa, com a participação dos engenheiros Sydney (Turma 74), Escosteguy (Turma 81), Paulo Lourenção (Turma 77) e outros notáveis. Com o Paulo Lourenção e sua singular experiência didática, tenho tido até hoje excelentes discussões sobre a formação de futuros engenheiros. Peço sinceras desculpas pelas omissões inadvertidas de outros nomes notáveis que contribuíram para o PEE ao longo de seus mais de 20 anos de existência, mas cabe aqui uma menção especial para a equipe de RH/Psicologia dedicada ao PEE. Nós, engenheiros (generalizando para a nossa categoria profissional os meus vieses prévios...), temos a tendência de não dar o devido crédito a profissionais de ciências humanas e sociais, mas o trabalho das psicólogas do PEE, tanto no processo seletivo quanto no acompanhamento e suporte aos alunos durante o curso é verdadeiramente excepcional. Deixo aqui o meu agradecimento pela sua tolerância, compreensão e integração profissional com todo o time de mentores de engenharia também.

O PEE é um excelente exemplo do que pode ser conseguido com uma parceria séria e mutuamente vantajosa entre uma empresa privada e uma escola pública de altíssimo nível.

Tenho participado também do SAE Aerodesign Brasil, que é uma competição

anual para alunos de engenharia de escolas do Brasil e do exterior. A competição, que já vinha sendo promovida pela SAE (Society of Automotive Engineers) nos Estados Unidos, teve sua primeira edição brasileira em 1999, e foi organizada e impulsionada desde então pelo engenheiro Horácio Forjaz (Turma 74), com o apoio de muitos voluntários, em sua grande maioria engenheiros da Embraer. As equipes têm que projetar e construir uma aeronave pequena (aeromodelo radiocontrolado) para executar uma série de tarefas (por exemplo, decolar e pousar levando a maior carga paga possível a partir de uma pista definida, usando um motor padrão, lançar a carga de paraquedas, fotografar e decodificar uma mensagem escrita no solo etc. – os detalhes variam de ano a ano, conforme as diversas categorias da competição). Tenho atuado como juiz avaliador de relatórios técnicos e das apresentações orais das equipes desde sua criação, em 1999, até hoje. As apresentações orais são feitas no prédio da aeronáutica do ITA e os voos das aeronaves das equipes são feitos durante um fim de semana no aeroporto do CTA, com o suporte integral dessas duas instituições. Diversas equipes com anos de experiência trazem aeronaves sofisticadas com projeto e construção virtualmente profissionais, outras equipes mais novas e com menos recursos trazem aeronaves simples mas que carregam a dedicação de dias e noites varadas em claro para sua construção, e algumas equipes novatas vêm sem avião mas só para fazer “netiuôrqui”, em suas próprias palavras. Mas, independentemente de qual escola elas venham e de que recursos ou conhecimentos tragam para a competição, o equalizador

OTTO CONDE DE RESENDE 338

de todas as equipes é o entusiasmo e a motivação dos participantes, compartilhado pelos voluntários que suportam o evento. Encerrando aqui a descrição da minha carreira profissional até o momento, para não deixar a impressão de que tudo foi um mar de rosas ou céu de brigadeiro, gostaria de dizer que, obviamente, também existiram momentos de desânimo, frustrações técnicas e profissionais, mas acho que o quadro geral continua bastante positivo.

Já ouvi a citação, que combina um pouco de injustiça com um certo fundo de verdade, de que no Brasil somos muito bons de iniciativas mas ruins de “terminativas”. O ITA, a Embraer, o PEE, o Aerodesign e o Álbum de 40 anos da gloriosa Turma 82 são excelentes contraexemplos para essa suposta regra.

EPÍLOGO ABERTO

Durante os cinco anos do curso do ITA e após, amizades para toda a vida foram consolidadas com muitos colegas e mantidas

a despeito da separação física depois de cada um seguir com sua vida. Hoje em dia a internet e as redes sociais permitiram uma reaproximação maior com esses amigos.

Eu me considero privilegiado de ter tido o apoio excepcional da família, parentes, diversos professores, colegas de escola e de trabalho e de amigos preciosos durante essa jornada. Sinto que tenho uma dívida imensa com todos eles, no bom sentido, e espero conseguir retribuir pelo menos parte desse apoio através da minha carreira. Não é absolutamente uma obrigação, mas acho que nós deveríamos nos sentir responsáveis por contribuir, cada um com o que e como puder, para a sociedade por todas as oportunidades que tivemos. A maneira com a qual acho que posso melhor contribuir é o trabalho em uma indústria de ponta, tentando transmitir o que aprendi para as novas gerações de engenheiros, mesmo que informalmente. Será que isso me qualifica como parte da tal da “cidadania”?

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 339

Tim

PAULO CESAR DE SOUZA LUCAS

Foi o ITA que passou em minha vida...

A CULPA É DO BILLY

Antes do ITA, eu morava em Nova Iguaçu – RJ e estudava no Colégio Pedro II, seguindo os passos de minha tia Terezinha, que desde cedo me dava dicas de matemática, que eu adorava. A distância casa-escola não era tão grande, mas eu pegava dois ônibus e levava quase duas horas, de porta a porta. Era bom aluno, principalmente em matemática, meu hobby desde criança, e física, paixão despertada pelo mestre Fernandes, um baixinho de um metro e meio, mas de altíssima estatura com o giz na mão. Billy (William da Silva Mattos, da Turma 82) era da minha sala e, em uma outra turma, tinha um japonês, coisa rara no Rio naquela época, que diziam ser fera: o Fugita (Turma 83). Eu não o conhecia muito bem, mas o Billy era o elo entre nós.

Com a aproximação do vestibular, meu plano era Engenharia na UFRJ, fosse lá qual fosse. Um dia o Billy, que à época ainda era William, me disse: “Nós vamos pro ITA!”. “Que porra é essa? Uma pedra?”, perguntei. Ele, então, me deu um prospecto – naquela época não existia Google – e

me mandou ler e pensar com carinho. Com duas horas de viagem todos os dias, em dois ônibus diferentes, tempo para ler e refletir era o que não me faltava. Fiquei bastante interessado pela descrição da “Engenharia Aeronáutica”, novidade nos idos anos 1970. Billy tinha tudo planejado: “Vamos fazer uma turma IME-ITA no Miguel Couto Bahiense!”. Mesmo que IME viesse à frente de ITA no nome da tal turma, em março de 1978 estávamos os dois em São José dos Campos, desviados da rota para Ilha do Fundão.

“BIXO”, QUAL É O MEU NOME?

Essa pergunta era a primeira coisa que todos os recém-chegados ao ITA ouviam dos veteranos, sempre aos berros. Mas comigo foi diferente: no lugar da tradicional pergunta veio uma afirmação, ou melhor, um batismo. Tromboni e Rais (Turma 79), também aos berros, e à primeira vista, proclamaram: Tim Maia! Daí em diante, até hoje, é assim que sou, de fato, conhecido. No princípio me incomodava um pouco, não mais que à minha mãe, que costumava reclamar: “A gente leva nove meses para escolher o nome do filho para depois, em um segundo, virar Tim Maia! Inaceitável...”. Ela ligava para mim, fosse no H8 ou na Embraer, e pedia para falar com o Paulo Cesar, e o atendente normalmente não sabia de quem se tratava.

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Só depois de meu pai muito insistir, ela dizia: “O Tim!”. “Ah... Tim, é a tua mãe”. Logo muitos já não se lembravam do meu nome original. A tal ponto que, já no 5º ano, um amigo da Turma 83, o Áureo, me perguntou: “Tim, você é parente do Mainha (Álvaro Cláudio Maia, da Turma 82)?”. Olhei para ele e, serenamente, disse: “Áureo, você me conhece há quase quatro anos e nunca desconfiou que esse é o meu apelido?”. Depois de formado, fui trabalhar na Embraer e como lá tinha vários amigos do ITA, o Tim naturalmente se sobrepôs ao Paulo Cesar. Logo no primeiro ano, fui em missão do AMX, na Itália, e quis o destino que o nosso gerente local se chamasse Paulo Cesar. Foi uma confusão! Ele dizia que não podia ter dois Paulo Cesar e que Paulo Cesar era ele, e passou a me chamar de Lima, que pensava ser meu sobrenome. Mesmo que todos dissessem: “Ele é o Tim”, ele se recusava a aceitar. Então, um dia ele me disse: “Paulo Cesar, sei que Paulo Cesar é você, mas Lima não, Lucas”. Mesmo assim, viramos bons amigos. O tempo conserta tudo.

Aos poucos, passei a ser chamado apenas de Tim e não apenas me acostumei, como comecei a gostar e a usufruir desse short name . No decorrer de minha carreira de engenheiro tive contato com vários estrangeiros, principalmente na época do desenvolvimento do E-170/190, e virei então Mr. Tim, Monsieur Tim e até mesmo Tim-San. Nas reuniões ou palestras com os “gringos”, inicialmente me apresentava como Paulo Cesar de Souza Lucas, e via caras assustadas com esse incompreensível e enorme nome latino, mas logo os tranquilizava: “ Don’t worry; call me Tim ”.

Era alívio geral e a certeza de que se lembrariam do meu nome com muito mais facilidade do que do dos meus outros colegas.

LA VECCHIA VARESE

No início dos anos 1980, o Brasil se juntou à Itália em um consórcio para o desenvolvimento e produção de um caça-bombardeiro de ataque ao solo e apoio tático, o AMX – A de Aeritalia, M de (Aer)Macchi e X inicialmente em aberto. Após a assinatura do contrato, em 1981, a Embraer foi contratada como a empresa brasileira participante do projeto. Na divisão de trabalho, a Aeritalia ficou com 34%, pois era o capo servizio , a AerMacchi com 33% e a Embraer com os outros 33%, mas os pacotes que cabiam à empresa brasileira não atingiam o valor combinado (faltavam 3%). Solução: como a Embraer tinha mais facilidade de contratação de engenheiros com formação na indústria aeronáutica, enviaria equipe para trabalhar junto com os italianos no desenvolvimento de seus pacotes. Resultado: um número enorme da moçada da Turma 82 foi para a Itália – principalmente o pessoal da Aeronáutica – por um ou mais anos.

Cheguei a Varese, sede da AerMacchi, no final de setembro de 1983, muito bem-recebido pelos colegas que já estavam lá. Fui acolhido em sua casa pelo Ruizão, que morava numa “mansarda”, tipo uma quitinete no sótão; depois fomos os dois morar em um bom apartamento de dois quartos – uma parceria improvável, mas que deu muito certo.

Desse período na Itália há inúmeras histórias dignas de um texto dedicado. Deixo aqui um registro e um causo.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 341

O registro: estreitei tremendamente minha amizade com o Ruizão e o Segre. Embora eu fosse bastante diferente deles, em personalidade e comportamento, era também muito igual em caráter e valores. Essas coisas ficam para sempre.

O causo: meu restaurante preferido em Varese era o Vecchia Varese e minha massa predileta era o carbonara, tradicionalmente feito com spaghetti . O dono se chamava Claudio e, como eu era um habitué , conhecia todos por lá. Um dia, pedi tagliatelle à carbonara, e o garçom de imediato falou: “ Tagliatelle alla carbonara, non c’è ” – aqui mais no sentido de “não existir”.

O cozinheiro logo se manifestou: “ Dalla mia cucina non esce! ”. Por fim, apelei para o próprio Claudio, argumentando que comia daquele jeito em casa e gostava muito. Ele foi taxativo: “ Paulo, tagliatelle alla carbonara tu mangi a casa tua, non al mio ristorante ”.

Os italianos são muito fiéis às suas tradições. Bem... olhe só quem fala! Os iteanos também.

SÓ O GAGÁ CONSTRÓI

O ITA me ensinou que tudo é possível quando há esforço, dedicação e inteligência. Sempre usei essa máxima, no trabalho e em casa. Meus filhos (Gabriel e Caio) costumam dizer: “Já sei, pai, só o gagá constrói” ou “Trabalho é força versus deslocamento”, e por aí vai...

Neste quesito, o H8 foi fundamental na formação de minha conduta e

valores. Lá aprendi a trabalhar em equipe e a transpor o intransponível.

DE NOVA IGUAÇU PARA O MUNDO

Quem diria que o Paulinho, que morava na Estrada de Madureira, periferia de Nova Iguaçu, iria conhecer o mundo! Meus amigos de futebol, pouco letrados, me achavam o máximo, pois estava na aeronáutica em São Paulo e iria ser sargento – estava feito na vida, pensavam. E não dava para explicar o que de fato estava acontecendo. Sou um afortunado. Embora meus antigos companheiros não tivessem a dimensão da conquista, na verdade, eu também não tinha. Conheci algo em torno de trinta países pelo mundo, passei pelos cinco continentes (Europa, Américas, Ásia, África e Oceania), isso tudo graças principalmente às minhas atividades na Embraer, mas a forma de me relacionar com todos esses povos veio também das experiências que tive no H8 e na CV, quando aprendi muito a conviver com diversas pessoas de diversas culturas. De novo, o ITA.

E AGORA, JOSÉ (TIM)?

Depois de mais de trinta anos dedicados à indústria aeronáutica e aeroespacial (passei quatro anos no INPE), com grande amor e prazer, sinto-me privilegiado e realizado. Aprendi muito e fico extremamente feliz pelo legado que acredito ter deixado para aqueles

PAULO CESAR DE SOUZA LUCAS 342
Os italianos são muito fiéis às suas tradições. Bem... olhe só quem fala! Os iteanos também.

que liderei ou com quem apenas me relacionei, sempre com a marca ITA. Como sempre digo, o legado é o que realmente importa; o resto passa. Agora estou aposentado e feliz com esta nova fase da minha vida. Tenho 61 anos, em melhor forma que aos meus 40, e me dedico aos “ triple B ” ( Bike , Beach e Bolsa).

Meu próximo desafio talvez seja contribuir um pouco mais para a sociedade, como diz a Liza: “Você agora

precisa devolver aquilo que a vida sempre lhe deu...”. Ela tem razão!

O MELHOR DE TUDO SÃO OS AMIGOS/IRMÃOS DA TURMA 82

É incrível como fica evidente que o melhor de toda esta jornada é ter a amizade e a irmandade dos colegas da Turma 82. Isso é eterno, tatuado em todos nós. Que bom! Como dizem em verso e prosa, nada é por acaso...

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 343

Barney

PAULO CESAR STEINKIRCH SOUZA

Paulo Cesar Steinkirch de Souza, nosso querido Barney, veio de Curitiba, onde morava com sua mãe e irmãos.

Após prestar com sucesso o exame de supletivo e finalizar o CPOR no Exército, foi parar no ITA. Já sendo aspirante a oficial, tinha a prerrogativa de manter os cabelos longos e períodos de folga adicionais, o que o tornava especial e popular dentro e fora de nossa turma.

Bem-enturmado com grupos do H-montão, usava seus fins de semana longe de casa para confraternizar e curtir o novo ambiente.

Era curioso e interessado em fenômenos físicos, indagava sobre tudo e logo no início até mesmo tentou colocar em funcionamento os girocópteros que estavam parados no MOF.

Praticante de asa-delta, sofreu uma grave queda que em nada diminuiu seu espírito de aventura e desafios. Certa vez fomos até a divisa do Paraná com Santa Catarina auxiliar a buscar o jipe do saudoso Fendel, que, entre tantos outros usos, iria puxar um paraquedas que ele havia adaptado, preconizando o parasail

Talvez por ser mais velho e experiente, o Barney tinha o respeito de todos e foi quem me iniciou no mundo das viagens de aventura. Logo ao final do primeiro ano, fomos ao Paraguai, à Argentina e à Bolívia, de carona, com automóveis, caminhões e aviões, numa inesquecível expedição de mais de dois meses de duração.

Gradualmente ele foi perdendo o interesse pela escola e, ao final de dois anos, retornou a sua cidade natal. Ainda durante o período de estudantes – ele já na UFPR –, passamos juntos umas

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Era curioso e interessado em fenômenos físicos, indagava sobre tudo e logo no início até mesmo tentou colocar em funcionamento os girocópteros que estavam parados no MOF.

férias pelo litoral do Paraná, na base do mochilão, explorando a Ilha do Mel.

Alguns anos após nossa formatura, estive em Curitiba a trabalho e passamos uma tarde juntos, quando ele me falou de suas atividades em artesanato e me apresentou à família – a esposa e um casal de filhos. A tarde, ao final, foi coroada com uma carona de Karmann Ghia vermelho conversível ao aeroporto.

Passado muitos anos, casualmente o encontrei em São Paulo, descendo de um ônibus, próximo de casa. Tinha vindo comprar material de artesanato.

Ele me visitou e me presenteou com um lindo porta-retrato de metal, que mantenho até hoje. Disse que não estava bem de saúde e que morava só, em uma espécie de assentamento na periferia de Curitiba. Ainda mantinha seu carisma e em nenhum instante deixou de transbordar alegria.

Não soube mais dele até que, em uma comemoração de 50 anos de colegas da Turma, disseram que ele havia nos deixado.

Descanse em paz, grande amigo!

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 345

Volpi

PAULO EDUARDO VAZ VOLPI

Muito criança ainda, eu era muito próximo de um tio, médico, que tinha como hobby a eletrônica. A ideia de agrupar aqueles componentes para formar um equipamento me contagiou e decidi ser engenheiro eletrônico.

Durante o ginásio fiz curso por correspondência de Rádio e TV colorida (pasmem!), fazia parte de uma equipe de bailinhos, onde aplicava o aprendizado, e em seguida passei no vestibular da ETI Lauro Gomes, escola técnica de São Bernardo do Campo. Adorei o curso, mas vi que faltava muito ainda para a minha formação. Durante o estágio obrigatório para a formatura, que fiz na Pirelli, passei a desenvolver muitos projetos interessantes, mas juntamente chegava o trabalho de documentação, incluindo desenhar no tecnígrafo. Um horror…

Nesse período, contei com o encorajamento, aprovação e esforço de meus pais ao permitirem que só me dedicasse aos estudos nos anos vindouros.

Com o estágio fiz cursinho preparatório no Anglo Tamandaré, onde conheci alguns de nossos futuros colegas de faculdade, figurinhas carimbadas da sala A1. Dois colegas da escola técnica (da Turma 83)

também estudavam lá e me influenciaram a prestar o ITA, mas não conseguiram que eu cursasse as aulas de geometria descritiva que ocorriam em outro período pois, além de não apreciá-las, eu perderia uma carona de volta para casa... Deu no que deu: passei em segunda chamada – fui o primeiro dos últimos!

Logo na ida ao exame médico, partindo da rodoviária, sentou-se ao meu lado um futuro colega/amigo, muito importante na minha vida nos últimos 43 anos: o Luiz Cláudio. Lá me surpreendi com muitos colegas que sonhavam ser astronautas e eram muito diferentes de mim.

A convivência no H8, com a pluralidade cultural, social e geográfica, era de uma riqueza tão grande que gerou grandes amigos, cunhado, esposas, padrinhos, afilhados, sócios e referências para a vida. Possibilitou viagens e aventuras fantásticas dentro e fora do país, para quem ainda nem tinha saído do Estado de São Paulo.

A pressão pelas notas e a velocidade do ensino consumiram grande parte daquele tempo, mas em contrapartida ajudaram a solidificar a capacidade de superar grandes obstáculos. Paralelamente ao curso profissional, fiz estágio no Laboratório de Plasma do Inpe, que, além de projetos da área, permitiu a continuidade de uma entrada de receita após a era do CPOR.

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Ao final do curso recebi ofertas na área médica, com a empresa que subsidiou meu TG – Bisturi Eletrônico, oportunidade de doutorado direto na Inglaterra com o Inpe e participação no desenvolvimento do AM-X na Itália pela Embraer. Achei que a área acadêmica não era a minha praia e optei pela última.

Na Itália chegamos substituindo desenhistas de projetos de ensaio em voo da própria Embraer... e fizemos história participando do projeto realmente e sendo reconhecidos, apesar da pouca experiência. Participei dos seis primeiros protótipos e infelizmente vi, literalmente, a queda de um deles. No retorno à Embraer achei que estava sendo subutilizado e, assim, mudei para o mercado de TI, passando por nacionalização de equipamentos na reserva de mercado e software de CAD para substituir o desenho...

Foi nessa época que passei a me interessar em abrir meu próprio negócio, com tentativas na área de TI e, após uma incursão na extração de palmito no Amapá, já casado com uma ecologista, irmã do colega Cícero Granja, repassei o negócio e retornei a São Paulo, adquirindo a empresa de CAD em que tinha trabalhado anteriormente, e passando a representar líderes mundiais da área.

Nessa empresa tive a oportunidade de trabalhar com alguns colegas da Turma e de expandir sua atuação, chegando a desenvolver um software de CAD para arquitetos para o mercado nacional e argentino, formando uma base instalada de mais de 15 mil clientes. Também desenvolvemos software otimizador de linha de montagem de componentes SMD robotizada, auxiliando gigantes da telefonia e entretenimento (Sony, Nokia, Motorola, Gradiente...) a acelerar sua produção.

Após 25 anos de negócios em TI, resolvi mudar de área para uma atividade similar, mas em transformação: Segurança Eletrônica Patrimonial. Pelo porte da empresa, pude novamente participar de projetos e ter como foco principal as atividades técnicas.

Com a pandemia da covid-19, afastei-me bastante da operação e venho me dedicando ao estudo de IoT (Internet das Coisas), que – quem sabe? – além de prazer, dará algum resultado…

Dos três filhos, o primogênito seguiu meu caminho e exerce engenharia de computação na Alemanha, a segunda fez economia na GV com nosso colega Afonso, e a caçula virou japonesa: estuda e fala a língua, trabalha numa empresa japonesa e está se preparando para ir morar no Japão.

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Com a pandemia da covid-19, afastei-me bastante da operação e venho me dedicando ao estudo de IoT (Internet das Coisas), que – quem sabe? – além de prazer, dará algum resultado…

Sinto-me bastante realizado – e muito graças ao ITA, que me possibilitou sempre escolher as atividades com que mais me identifico.

Agradeço ainda o incentivo para escrever este breve texto dado pelos meus grandes amigos Paulinhos – Cesar e Diniz.

PAULO EDUARDO VAZ VOLPI 348

Paulinho Diniz

PAULO MARTINS FERREIRA DINIZ

SONHOS DE VIDA

Para mim, aqueles objetivos de vida presentes na consciência desde a juventude, ou até mesmo, quem sabe, desde a infância, fazem muita diferença na condução da carreira. E aquela pessoa determinada prepara o terreno e “cultiva” o caminho em direção ao “sonho”.

Você, sabendo desse seu sonho, não faria também um grande esforço para poder alcançar a sua realização?

Eu acredito que na vida as oportunidades estão como que “orbitando” em torno das pessoas. Daquelas pessoas que se interessam por uma determinada oportunidade, e por isso mesmo a percebem, conseguem capturá-la primeiro as que melhor se prepararam. Se você não está preparado, terá que aguardar uma nova oportunidade!

Independentemente dos objetivos de vida de cada um, a escola exigente que é o ITA, somada som ao ambiente profícuo entre os colegas, principalmente devido ao H8, nos preparou para enfrentar desafios especiais que podem aparecer ao longo da vida profissional.

Desde criança eu nunca tive grandes ambições. O que sempre me chamou a atenção foi ser uma pessoa justa, honesta e competente naquilo que faz.

ANTECEDENTES E MOTIVAÇÃO

Acredito que não tive nenhuma inclinação especial para uma profissão. Acho que as coisas aconteceram naturalmente na minha vida.

Meu pai havia sido piloto, quando solteiro, e gostava de contar suas aventuras.

Lembro-me, ainda no curso colegial, de passar os maiores intervalos da manhã entretido com um livro de história da aviação brasileira. Achava muito legal ver aqueles aviões antigos com seus motores radiais, típicos do início do século passado!

Num certo momento fiquei sabendo de uma escola especial, considerada uma das melhores do Brasil, se não a melhor! Um veterano meu do colégio entrou no ITA, um ano antes. Procurei o Magno para obter algumas informações do ambiente que devia esperar.

Ele disse que a escola não era “nenhum bicho de sete cabeças”, mas já tinha passado alguns fins de semana inteiros estudando. Disse, também, que o ambiente entre os colegas era ótimo. Assim, não tive mais dúvida. O problema era, então, passar naquele vestibular que provavelmente era o mais difícil do país.

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E em Belo Horizonte, naquela época, não havia cursinhos especializados...

GRADUAÇÃO

Recebi a notícia de que tinha passado no ITA quando já havíamos decidido, em casa, ir passar alguns dias em Guarapari. Fui com eles mesmo assim, mas tive que voltar mais cedo para comparecer ao ITA pela primeira vez.

Foi nessa época que foram formados os apartamentos. Os mineiros Zé Ronaldo, Fonseca, Lopes e eu, e os paulistas de Ribeirão Preto Marcio Mattos e Ribeiro Neto, juntos, formamos o Apartamento 105 do Bloco A. Grandes amigos!

Após um curso fundamental trabalhoso, durante o qual ainda tive que cursar o CPOR duas vezes por semana (quartas à tarde e sábados de manhã), iria finalmente aprender engenharia aeronáutica. E agora posso dizer, com mais convicção, que foi a melhor escolha que poderia ter feito!

Lembro-me das tardes e noites que passávamos resolvendo as séries do “Pio Biga”, das vésperas de provas em que sempre lutava contra o sono que queria atrapalhar o “gagá desespero”! Depois vieram os cursos do Marreco, do Ortega e do Cury. Sem falar nos cursos de aerodinâmica, tão importante para nós! Lembro-me, também, do curso de turbo-hélice, do Rodrigo LaFuente,

assunto que mais tarde vim a usar na vida profissional.

FINAL DA GRADUAÇÃO

Nos últimos meses do 5º ano, já estávamos avaliando as possibilidades de emprego, e alguns casos me chamaram a atenção. Eu fazia estágio na Avibras. Outros colegas estavam lá, também. Lembro-me do Tim e do Shinzato. Quando chegou o momento de falar sobre emprego, a empresa nos ofereceu um salário menor do que aquele oferecido pela Embraer, sendo que ainda havia, no caso da Embraer, muitas oportunidades de estada na Itália por conta do projeto AM-X. O curioso, e até engraçado, foi que o negociador por parte da Avibras ficou bravo conosco quando o alertamos desse fato. Segundo ele, nós não poderíamos “exigir” um aumento de salário naquele momento. E ninguém da nossa turma ficou na Avibras naquele ano.

Eu fazia parte da “Comissão de Empregos” da nossa turma. Após a primeira proposta da Embraer, foi agendada uma reunião nossa com a diretoria da empresa. Estávamos lá com alguns diretores e o coronel Ozires também estava presente. Alguns dias antes da reunião, eu havia conduzido uma pesquisa sobre a proposta da Embraer e a conclusão foi de que a proposta salarial estava abaixo da expectativa da

PAULO MARTINS FERREIRA DINIZ 350
Eu acredito que na vida as oportunidades estão como que “orbitando” em torno das pessoas.

turma. Em certo momento da reunião, pedi a palavra, e comuniquei nossa expectativa aos presentes. O coronel Ozires argumentou que a Embraer era uma empresa estatal e estava sujeita a algumas limitações para aumentar a oferta. “Além do mais”, disse ele, “vocês estão indo para a Itália!”. Eu retruquei que nem todos iriam viajar, e que tínhamos que pensar na carreira. Eles ficaram de dar uma resposta dentro de alguns dias.

De volta ao H8, um colega me criticou por termos feito aquilo: “Poderiam ter botado tudo a perder!”. Mas o fato é que, uns dias depois, a Embraer comunicou um aumento significativo do salário inicial.

VIDA PROFISSIONAL Início

Comecei na Embraer – eu, o Ruy e o Butti – na área de Aeroelasticidade, que considero um assunto de grande relevância no projeto de um avião, principalmente em regimes onde o avião atinge maiores velocidades.

O chefe da seção era o Bove (Turma 76). Como ele estava em missão na Itália, quem cuidava dos trabalhos era o Kamiyama (Turma 79). Mas logo a seção foi transformada em grupo ligado diretamente ao Departamento Técnico por intermédio do nosso novo chefe, o engenheiro Bismarck.

Meu primeiro trabalho foi montar um modelo estrutural para análise dos modos de vibração naturais de um treinador que estava na fase de desenvolvimento.

Como éramos um grupo pequeno, às vésperas do primeiro voo do protótipo do Brasília fomos convocados para ajudar na realização do ensaio de vibração do solo. “Varamos” a madrugada com esse trabalho!

Viagem à Itália

A oferta de emprego da Embraer incluía, para muitas áreas, uma estada na Itália por conta do programa AM-X. Tratava-se de um caça-bombardeiro subsônico, cujo desenvolvimento foi realizado por três empresas: duas italianas e uma brasileira.

Eram dois os destinos principais: a Aeritalia em Turim e a AerMacchi em Varese. Tive a oportunidade de ficar em Turim, e a princípio a missão deveria durar um ano.

Não houve uma preparação adequada, e fui sem entender un cazzo de italiano!

Cheguei em Milão no aeroporto de Malpensa, onde o Tim e o Suguita me aguardavam. De lá fomos para Varese, onde o Tim estava, junto com tantos outros amigos: o Otto, o Ruy, o Guilherme, o Butti e o Hirdes. Passei o dia lá em Varese, e à noite fui com o Suguita para Turim.

Em Turim acabei ficando no apartamento que o Adalto alugava, em Barriera de Milano. Nessa mesma região moravam o Volpi, o Cascelli e o Suguita. O Hayashi devia morar próximo, também. Pode-se perceber que a comunidade de brasileiros era grande naquele momento.

Chegando no Ufficio Dinamica (Aeroelasticidade), conversei em inglês com o gerente e com mais um ou outro também, mas o inglês não era o forte por lá. Assim, após uns três meses, eu já conseguia entender e falar a contento o italiano!

Eles tinham orgulho de terem trabalhado no Tornado, um caça bimotor de geometria variável desenvolvido pelo Reino Unido, Alemanha e Itália. Diversos programas de computador que eles usavam vieram desse projeto. Eu trabalhava justamente no grupo de métodos da gerência – Metodi ,

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 351

em italiano. Até que estava me entendendo bem com os programas que precisava usar...

Já estava na Itália fazia algum tempo, quando surgiu uma oportunidade inusitada – pelo menos foi assim que eu a interpretei, num primeiro momento – e acabei comprando a motocicleta: uma Suzuki GSX-750ES, moderna e potente para a época, uma máquina e tanto! Não tinha muita experiência com moto; na verdade eu nunca tinha tido uma. Quando o Volpi me perguntou se gostaria de ficar com ela, minha primeira reação foi negativa, disse que não tinha experiência para usar uma moto daquela categoria. Mas a curiosidade de pilotar aquela máquina nos conduziu a um acordo: eu iria, primeiro, ficar um tempo com ela, viajando algumas vezes, antes de decidir. Nessa ocasião fomos, eu na 750 e o Volpi numa 450 (emprestada não me lembro de quem) para Cuneo, no Piemonte, próximo de Turim, a meio-caminho de Mônaco. Viajar naquela moto era realmente uma sensação espetacular! Após algum tempo de experiência, resolvi ficar com ela. Em alguns dias ia trabalhar com ela. Nós, funcionários da Embraer, tínhamos direito a estacionar dentro da empresa.

Fui muitas vezes a Varese de moto, usando a autoestrada Turim–Milão. Sempre íamos eu e o Hayashi, que na época estava com uma Suzuki 450. Numa dessas viagens estávamos tranquilos a uma velocidade de aproximadamente 180 km/h. A moto do Hayashi ia na frente, quando surgiu um automóvel Volvo que, após ultrapassar o Hayashi, encostou à sua frente. Depois de alguns minutos, o Hayashi o ultrapassou e encostou também. E esse ciclo se repetiu algumas vezes. Bem, chegou um momento

em que resolvi ultrapassar os dois, acelerando um pouco mais a 750. Esperei o Hayashi um pouco mais à frente.

Lembro-me, também, de um passeio que fizemos no Parco Gran Paradiso, que fica no Piemonte, não muito longe de Turim. Eu de moto, o Volpi e a Denise (primeira esposa do Volpi) de carro. Acho que o Hayashi e o Adalto estavam conosco também. Na região do Parque a pista estava com um pouco de gelo, requerendo cuidado especial.

Numa ocasião fui abastecer a moto num pequeno posto situado bem na beira da Rua Nicola Porpora, perto de casa. Quando cheguei, o senhor que trabalhava lá me recebeu exclamando:

“ Bella macchina! Peró, macchina della morte! ”. Foi algo que não pude esquecer!

A última viagem que fiz na Itália foi até Napoli e redondezas, no início de novembro. Eram pelo menos dois colegas napolitanos, e um deles me convidou para conhecer a região, hospedando-me na casa de seus pais. Fomos de trem, eu junto com o outro colega e sua esposa. O colega que me convidou já estava lá, por conta de acompanhar um ensaio no avião. Fui até perto do Vesúvio e passamos pela Costiera Amalfitana, uma visão muito pitoresca!

O Maradona já estava lá, e era um ídolo para os napolitanos. Conheci, claro, a vera pizza napoletana . Voltamos de carro, e foram junto uma irmã dele com a filha. Uma das últimas lembranças que tenho da Itália é a chegada, já à noite, em Turim.

E chegou o dia fatídico: 17 de novembro de 1984! Combinamos, eu, o Hayashi e o Adalto, de fazer um passeio na catedral de Turim, chamada Superga. Fica no alto de uma serra, com uma estrada de acesso bem

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tortuosa. Parece que o trauma que sofri apagou esse evento de minha memória, pois não me lembro de nada – nem mesmo de ter combinado o passeio! O que sei foi o Hayashi me relatou. Quando resolvemos voltar, os dois partiram e, por algum motivo, eu demorei um pouco mais a sair. Foi quando eles, já um pouco mais à frente, ouviram um estrondo e, então, voltaram para averiguar o que teria sido aquilo e onde eu estaria.

Ao acelerar a moto para pegar a estrada de volta, eu teria encontrado um carro vindo em sentido contrário, em rota de colisão. Não sei dizer quem estava errado, na contramão. A mulher que estava no banco do passageiro do carro teria dito que, ao perceber a colisão iminente, eu soltei as mãos do guidão e passei por cima do carro, caindo mais à frente. A colisão foi frontal, e a moto ficou praticamente destruída. Mesmo usando capacete, o impacto da queda causou-me um traumatismo craniano, e fiquei internado num hospital de Turim por volta de um mês.

Após o acidente, passei uma semana em estado de choque. Mas, quando acordei, meus pais já estavam lá; e assim fiquei muito tempo sem compreender o que havia acontecido.

De imediato, perdi uma temporada de esqui que tinha programado para início de dezembro com os amigos italianos numa estação italiana, se não me engano em Courmayeur. De fato, seria um curso de esqui. Tinha bons esquiadores entre os colegas italianos. Já pensou poder competir de igual para igual com o Hayashi e o Otto?

Um fato curioso, que só tomei conhecimento na época do trágico acidente aéreo com o time da Chapecoense, ocorreu justamente nas encostas da catedral de

Superga, mais de trinta anos antes. O time de futebol do Torino disputou com o Benfica de Portugal um amistoso em 27 de fevereiro de 1949, e ganhou de 4 x 1 do time português. Foi marcada uma revanche para o dia 3 de maio, em Lisboa. Essa partida foi vencida pelo Benfica por 4 x 3, diante um público de 40 mil pessoas. Retornaram em 4 de maio, a bordo de um Fiat G212 da companhia Avio Linee Italiane. Decolaram às 9h52 de Lisboa e fizeram escala de reabastecimento em Barcelona, às 13h15. Ao aproximar-se do espaço aéreo italiano, a tripulação recebeu um informe meteorológico indicando denso nevoeiro, com visibilidade horizontal abaixo de 40 metros. O comandante avisou a torre de Turim que estava iniciando os procedimentos de aproximação às 16h59. A aeronave desceu perigosamente e às 17h05 bateu em cheio contra o muro posterior do terrapleno da Basílica de Superga, matando instantaneamente todos a bordo. Foram 27 passageiros e 4 tripulantes. Visando a continuação do campeonato italiano, no qual o Torino se sagrara quatro vezes campeão de forma consecutiva, o time decidiu colocar os jogadores juvenis para as partidas finais. Os demais times italianos fizeram o mesmo, e o Torino acabou conquistando seu quinto título. O time do Torino, que era um dos maiores times italianos à época, nunca se recuperou dessa tragédia.

Impactos do traumatismo craniano

Após o acidente, num primeiro momento, eu mal conseguia falar. Quando falava era de uma forma muito arrastada. Também não conseguia andar; precisava de uma cadeira de rodas quando passeava pelo hospital com meu pai. Notei, um pouco

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mais tarde, que também não conseguia escrever. E hoje percebo que meu raciocínio estava bem mais lento que o normal.

Bem, acredito que precisei de um bom tempo para recuperar a capacidade normal. Foram muitas sessões de fisioterapia e até aulas de caligrafia eu tive. Mas talvez não o tenha conseguido até hoje! ( rsrs ...)

Ao longo desse período de “recuperação não-oficial” – digo isso porque, do ponto de vista médico e legal, eu estava em condições de trabalhar –, eu percebia claramente que as outras pessoas nem sempre compreendiam a gravidade do acidente pelo qual eu passara e não tinham a devida paciência em relação às minhas dificuldades.

Transferência para a Aerodinâmica

Ao voltar da Itália permaneci no mesmo trabalho até fins de 1985. Em janeiro de 1986 comecei uma nova etapa, atuando na análise de desempenho de aeronaves na seção Aerodinâmica. Lá trabalhei com o Ikebe (Turma 75), que por sinal era um ícone dentro da área técnica da empresa quando se falava em desempenho. E, além do mais, era uma pessoa muito disciplinada!

Alguns anos depois houve uma reestruturação na nossa área, e o Décio (Turma 74) assumiu a chefia da seção Aerodinâmica. Aprendi muito dos assuntos de desempenho, mas era evidente que o Ikebe dava conta da demanda à época. Por isso, naquela ocasião me foi solicitado que assumisse dois assuntos que, então, eram de responsabilidade da seção: o cálculo de painéis de blowout , que servem para redução do esforço estrutural em caso de despressurização acidental do avião, e o

dimensionamento de entradas e saídas de ar para sistemas de escoamento interno.

Foi uma época muito feliz, pois consegui desenvolver métodos a partir de alguns outros já disponíveis e acabei sendo bem-sucedido nos trabalhos que me foram confiados.

A primeira responsabilidade foi a análise dos painéis de blowout do nosso primeiro jato, que posteriormente foi usada na certificação desse modelo. Quando um novo projeto de um avião maior estava se organizando, fui procurado por um engenheiro de interiores que indagou se eu seria capaz de conduzir a análise dos painéis de blowout do novo projeto até a fase de certificação.

Era um grande desafio, mas era preciso encará-lo! A essa altura, já havia percebido uma oportunidade de evolução do método que tínhamos naquela época. Entre outras considerações, passaria a levar em conta alguns parâmetros aerodinâmicos empíricos na análise dos escoamentos. Esse novo método foi implementado no computador e toda a análise foi feita com ele.

Tantos outros novos projetos foram analisados e certificados com esse novo método. É preciso salientar que nenhum dos órgãos certificadores apresentou questionamentos a ele.

Quando recebi a atribuição de atender às demandas de dimensionamento das “interfaces aerodinâmicas” dos vários sistemas de ventilação de que os aviões dispunham, tive um breve período de “calmaria”, em que consegui desenvolver um método baseado nos conceitos físicos básicos, que dependia de dados aerodinâmicos que estavam ao nosso

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alcance. Ao longo do tempo alguns novos parâmetros foram acrescentados, melhorando a resposta do programa que foi escrito à época.

Com isso, dispúnhamos de um método que se mostrou bem-sucedido em atender de maneira satisfatória às demandas que nos eram apresentadas.

Pouco tempo depois, as demandas relativas a sistemas de ventilação começaram a aparecer. Com isso, alguns requisitos específicos levaram o método a ser enriquecido com a capacidade de atendê-los.

O primeiro sistema que analisei foi o ar-condicionado de uma aeronave de treinamento avançado. Após algumas tentativas malsucedidas, percebi que a vazão requerida que estava sendo considerada era superior à pressão dinâmica de voo. Foi necessário, então, ajustar a capacidade do sistema à sua necessidade de refrigeração.

Outro caso relativo a esse treinador avançado refere-se às entradas e saídas de ar do radiador do motor. Já havia dimensionado as NACAs do capô para tal finalidade, e elas funcionavam muito bem. Mas eis que o trem de pouso foi modificado, e isso causou uma interferência no escoamento aerodinâmico que alimentava o radiador na situação em que o avião estava parado, antes de decolar. Para acomodar essas novas modificações, foi acrescentada uma pequena scoop à NACA existente, o que garantiu uma captura satisfatória de vazão naquela condição crítica.

Os novos projetos de aeronaves comerciais, assim como aquelas derivadas, também tiveram as entradas de ar auxiliares desenvolvidas dessa forma.

Outro caso que merece atenção é a entrada de ar do sistema de refrigeração da APU de algumas versões especiais que surgiram. Na época, usei os parâmetros simplificados que o método empírico de dimensionamento da scoop sugeria e obtive uma entrada de ar que não funcionou. Conversando com os colegas de Aerodinâmica Numérica (CFD), percebi que a camada limite na posição longitudinal da scoop era maior do que aquela prevista pelo método. Com isso, simulei essa altura de camada limite, obtendo uma scoop bem maior do que a calculada anteriormente. Os ensaios feitos na sequência demonstraram o acerto das novas dimensões.

Era de minha responsabilidade, também, o dimensionamento das entradas de ar para ventilação do tanque de combustível. Usei um método disponível na literatura especializada. Esse sistema me chamou a atenção porque a entrada de ar também era a saída de ar. Na verdade o sistema faz com que a pressão interna do tanque seja próxima da pressão externa, reduzindo-se a carga estrutural.

Num certo momento foi formado um grupo de trabalho, chamado “Time de CFD”, para estudar e propor um novo código de aerodinâmica computacional para a empresa. Como era um assunto técnico muito especializado, muito diverso da minha área de atuação, pensei em recusar o convite feito por um colega ligado a esse assunto. Mas, segundo ele mesmo disse, a minha participação seria interessante para levar uma visão diferente ao grupo, e, afinal, alguns dos métodos que

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eu usava podiam ser classificados como aerodinâmica numérica simplificada!

Uma curiosidade associada a esse trabalho foi o curso de nivelamento que o próprio Time organizou. O instrutor foi o Azevedo (Turma 81) e o curso foi bastante proveitoso.

Novos planos

Apesar da grande aplicação de conhecimentos aerodinâmicos no escoamento interno do ar e das interações aerodinâmicas das entradas e das saídas de ar com o escoamento externo, eu sentia falta do avião.

Pedi ao meu chefe para retornar à disciplina de desempenho. As minhas responsabilidades, naquela altura, foram repassadas para outros grupos e para outras divisões e, assim, pude reassumir a análise de desempenho.

Logo que retornei aos assuntos de aeronáutica resolvi fazer um curso de mestrado no ITA. Escolhi a área de Mecânica do Voo com ênfase em desempenho de aeronaves.

Já havia conhecido o Professor Paglione (Turma 76), já então famoso como o “terror” da Aeronáutica e já havia feito com ele alguns cursos como matérias isoladas, isto é, não ligadas a um curso de mestrado ou doutorado. Mas nesse meio-tempo ele viajou ao exterior, ficando alguns anos fora: foi dar aulas numa Universidade em Portugal. Lembro-me que o Oliva (Turma 77) foi também.

Eu gostava do Professor Paglione. Era realmente muito exigente, mas ao mesmo tempo amigável. Ele certamente seria meu orientador. Quando chegou o momento de definir a banca da arguição final, foi

meu orientador, o Professor Atair Rios Neto, quem sugeriu o nome do Paglione, que àquela altura já havia retornado.

Senti uma grande satisfação ao terminar o mestrado, ao ver a dissertação escrita, fruto de muito trabalho por um período de alguns anos. Nos últimos anos, trabalhava o dia inteiro na Embraer e ainda precisava cuidar da tese. Não foi nada fácil, mas foi muito gratificante!

No final, já bem próximo da defesa da tese, o Professor Atair me perguntou: “Que tal um doutorado, Diniz?” Já havia pensado nisso, e respondi: “Se fosse mais jovem seria uma boa ideia, Professor”. Era realmente um empreendimento muito atraente, mas também muito trabalhoso. E já havia passado o momento certo!

Engenharia Aeronáutica de Defesa

Algum tempo depois fui chamado pelo Kamiyama, que tinha sido meu primeiro chefe na Embraer, para cuidar do grupo de desempenho da nova área de Engenharia de Defesa.

Um pouco antes disso, já havíamos vendido para a Força Aérea Grega (Royal Hellenic Air Force) alguns aviões de vigilância aérea, e acabei participando de algumas reuniões técnicas de entrega com oficiais da RHAF. Estive em Atenas duas vezes por conta disso.

Também, por exigência dos gregos, fizemos vários ensaios para comprovar o desempenho do avião. Participei do ensaio de verificação da autonomia prometida, voando em velocidade de patrulha até Florianópolis.

Pouco depois foi a vez dos aviões de vigilância brasileiros. Na primeira reunião de entrega, encontrei o então já reformado

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coronel Cledi, chefe de uma equipe de oficiais, que iria discutir conosco os aspectos técnicos da aeronave. O Cledi foi um dos poucos oficiais, à época primeiro-tenente, a cursar conosco a graduação e é, portanto, integrante pleno da Turma 82!

Um pouco mais tarde houve algumas reuniões para a entrega do avião de ataque e treinamento. O coronel que chefiava o grupo da FAB, assim que a reunião começou, tomou a palavra e disse: “Sou aviador, fiz a Academia da Força Aérea, sou piloto de caça, piloto de Mirage, fiz o ITA, fiz pós-graduação, e vocês não vão me enrolar!”.

Poderia ter tomado aquele discurso como afronta, pois nós nem tínhamos conversado ainda. Afirmei que o nosso compromisso era o de apresentar dados confiáveis, originados de ensaios em voo, e que os dados apresentados poderiam ser facilmente verificados por eles, depois, voando o avião. No final, tínhamos estabelecido uma relação de confiança, e todo o processo acabou bem. A última reunião foi até tarde da noite. Eu me lembro de pegar uma pizza “brotinho” às 23 horas, numa pizzaria da cidade. E eles ainda iam voltar para Pirassununga voando!

Anteprojeto

Alguns anos depois fui convidado pelo Hirano (Turma 76) para trabalhar no grupo de Estudos Conceituais do Departamento de Estudos Avançados (nome “bodoso” para anteprojeto).

O diretor na época era o Zé Renato (Turma 71). Já o conhecia fazia muito tempo, pois foi ele o nosso contato com

a Embraer na época da formatura, e lembrava-me dele tocando violão num bar da cidade, ainda na época de estudante.

Lá eu atuava no grupo de análise, modelando o avião em termos aerodinâmicos, de massa e características propulsivas. Em pouco tempo desenvolvemos nossas capacidades, incluindo otimização genética nas análises. O grupo tinha capacidades ainda mais avançadas quando encerrei a carreira, pois estava sendo desenvolvido um método para otimização robusta, com a consideração de probabilidades.

APOSENTADORIA

Aposentei-me com quase 38 anos de Embraer. Hoje, posso fazer o que sempre gostei: estudar e viajar!

Meu filho e minha filha, já adultos, estão se encaminhando na vida.

Agora tenho bastante tempo para fazer o que gosto. Quero, ainda, poder viajar muito com minha esposa.

Acredito que nós começamos a montar a estrutura do que vai ser a nossa vida profissional bem cedo. Cada um tem o seu começo. Eu tive a sorte de entrar numa escola como o ITA, e exatamente numa turma do calibre da Turma 82!

É muito gratificante que, lá na frente, onde estou agora, possa olhar para trás e dizer: ”Valeu a pena!”.

Uma mensagem final que eu poderia deixar: cada um pode ser feliz à sua maneira. É bom você ter uma ideia de qual é o seu caminho.

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Outi

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Valeu a pena escutar a minha mãe Meus avós emigraram para o Brasil, partindo de Fukushima no Japão, no início do século XX. Como muitas outras famílias de imigrantes, vieram fugindo da fome e em busca de novas esperanças, atraídos pela propaganda “enganosa” de que no Brasil se “colhia dinheiro em árvores” (monocultura do café). Tanto os meus avós, quanto os meus pais sempre viveram da agricultura, e até a minha aprovação no ITA eu também trabalhava ajudando os meus pais, plantando e colhendo verduras e hortaliças a serem despachadas ao Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo). Lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje, de quando, durante as férias escolares de verão, eu, com meus 13 anos de idade, reclamei para minha mãe que meus amigos estavam aproveitando as férias na praia, enquanto eu tinha que trabalhar na roça de segunda a sábado. A resposta de minha mãe foi: “Quer sair dessa vida? Então estude”. Até então, eu só imaginava que o meu futuro

“Quer sair dessa vida? Então estude.” (Tomiko M. Outi – minha saudosa mãe)

seria como o de meus avós, pais, tios e primos que viviam da agricultura familiar havia gerações, e assim não via muita utilidade em me dedicar aos estudos.

Aquele foi o chacoalhão que mudou a minha vida, pois desde então passei a me dedicar com afinco aos estudos, a ponto de me tornar o melhor aluno da classe no antigo Ginásio e Colégio Técnico. No vestibular da Escola Técnica Federal de São Paulo (ETFSP), que era bastante concorrido, com mais de 5 mil candidatos disputando 160 vagas, fui aprovado em primeiro lugar em 1974. Nessa época vivíamos num sítio na zona rural a 10 km da cidade de Itapecerica da Serra, e como a escola situava-se na Barra Funda, no centro de São Paulo, a minha maratona diária para chegar em tempo para a primeira aula, às 7h20, iniciava-se às 4h00 da manhã. Percorria de bicicleta o primeiro trecho do percurso do sítio até a estrada onde passava o ônibus, pois não tínhamos carro. Pedalava aproximadamente 4 km em estradas de terra batida, no escuro, e depois mais duas horas e meia em dois, às vezes três ônibus, e caminhadas até chegar à escola. Os percursos de ônibus eram aproveitados para estudar, pois chegando em casa teria que ajudar meus pais na lavoura. Meus colegas

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diziam que eu era louco, mas a verdade é que eu tinha um objetivo em mente.

ITA: A única alternativa viável para estudar Engenharia em tempos de dificuldades financeiras

Foi durante o Colégio Técnico com duração de três anos e meio, mais meio ano de estágio para me formar Técnico Mecânico de Ensino Médio, que tive oportunidade de participar de uma excursão promovida pela escola para conhecer o ITA. Para mim, estudar numa escola com bolsa integral como o ITA, na época, era a única alternativa viável para estudar Engenharia, em face das dificuldades financeiras vividas pelos meus pais para manter três filhos em idade escolar. Foi graças ao trabalho incansável deles, e aos socorros financeiros de meus tios, que consegui concluir o curso técnico e fazer o cursinho preparatório para o ITA no Curso Universitário, em 1977.

Filho aprovado no ITA: Realização de um sonho

A notícia de minha aprovação no ITA foi dada pelo meu irmão, que trouxe o jornal com a lista dos aprovados. A minha mãe se encheu de orgulho, pois era seu sonho ver um filho estudando no ITA. Ela conhecia um amigo de sua juventude, da colônia japonesa, que se formara nessa escola e era bem-sucedido profissionalmente.

Para mim foi um alívio, e um peso de mil toneladas que saiu de meus ombros. Na

semana seguinte saiu a lista dos aprovados na Escola Politécnica da USP, onde eu também havia sido aprovado. Minha felicidade foi completa, pois vi coroados de êxito todos os meus esforços e os de meus pais e tios.

Vida acadêmica no ITA: Forjando a resiliência e criando laços de irmandade

Eu estava ciente de que entrar no ITA era apenas o primeiro passo de uma jornada árdua que ainda exigiria muita dedicação, então mantive o ritmo de estudos a que já estava acostumado e, assim, não tive muitas dificuldades para concluir o curso de Engenharia de Mecânica Aeronáutica em cinco anos. Foram cinco anos de muita luta, mas principalmente de construção do espírito de amizade, respeito e união entre os colegas da Turma 82 e com outras turmas, além do respeito e amizade com os professores e conselheiros (Antonio Marussig e Flávio Freitas Farias, da Turma 74). O nosso convívio diário no H8 e no refeitório H15, as sessões de cinema de arte do CTA, a prática de esportes (treino de baseball da “colônia nipônica” e caminhadas em volta do CTA) e as farras foram muito importantes para aliviar o estresse resultante de muito gagá, e muitas aulas, labs, resoluções de séries e provas, além dos critérios exigentes para aprovação nas disciplinas. O ITA era bastante exigente com o aluno, mas isso contribuiu para forjar nossa resistência, tornando-nos resilientes e com autoestima elevada ao

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Meus colegas diziam que eu era louco, mas a verdade é que eu tinha um objetivo em mente.

término do curso. Entre vários aprendizados, a Disciplina Consciente (DC) é um dos princípios mais valiosos do ITA, pois fortalece o senso de honestidade consigo próprio e com os professores e colegas; um legado que se carrega para toda a vida. A Turma 82 sofreu muitas baixas ao longo dos cinco anos, por motivos diversos. Creio que isso também acabou unindo mais ainda a turma, criando uma irmandade que se mantém cada vez mais sólida, mesmo após 40 anos de formados, independentemente de onde cada um dos seus integrantes tenha concluído sua graduação.

A vida profissional e familiar:

A importância de contar com a família

No dia 14 de dezembro de 1982 iniciei a minha carreira profissional na Kodak Brasileira, onde trabalhei por 21 anos, até dezembro de 2003. O meu primeiro chefe foi Sérgio Fuchs (Turma 75), que era o gerente da área de projetos da Divisão de Manufatura de Equipamentos (DME). Atuando como Engenheiro de Projetos, desenvolvi vários projetos de estampos progressivos de precisão para estampagem de componentes de mecanismos de câmeras fotográficas, além de dispositivos automáticos de inspeção e montagem de equipamentos fotográficos. Na década de 1980 foram desenvolvidos vários projetos de câmeras fotográficas destinados ao mercado mundial; e a linha de montagem da fábrica em São José dos Campos chegou a contar com mais de 1.000 montadoras. Todo o sistema de produção e de abastecimento de componentes, bem como de montagens na linha de produção, era controlado, visualmente, por meio do sistema Kanban ; uma solução simples e eficaz de técnica

japonesa que depois se estendeu para todas as demais divisões produtivas (Fotoquímicos, Raios x, Filmes e Papéis Fotográficos).

A Kodak foi uma grande escola, que me proporcionou trabalhar em todas as áreas de meu interesse com base no meu Employee Development Plan (EDP) desenvolvido em conjunto com minhas gerências ao longo de minha carreira. Possibilitou estudos de especialização e pós-graduação em Auditoria Contábil (KPMG), Planejamento Estratégico de Marketing (FGV), Administração Hospitalar (PUC-SP), além de inúmeros cursos internos de desenvolvimento e aperfeiçoamento gerencial da organização. Assim, atuei como Engenheiro de Projetos, Engenheiro de Produtos, Engenheiro de Ferramentas (Moldes de Injeção de Termoplásticos e Estampos Progressivos de Precisão), Supervisor de Ferramentaria e Laboratório de Metrologia, Analista Financeiro, Gerente de Manufatura de Produtos Sensibilizados, Gerente de Serviços de Assistência Técnica/ Região Latino-Americana Sul e Gerente Geral da Kodak da Amazônia, em Manaus). Além dessa rotatividade de funções, a empresa me proporcionou experiências internacionais, seja representando a Kodak do Brasil em inúmeras conferências internacionais nas áreas de manufatura, serviços e vendas, ou trabalhando como expatriado no Japão (Suwa, Nagano) e nos Estados Unidos (Rochester, NY) acompanhado de minha família.

Constituí família em 1984 com a minha querida esposa Suely Megumi e temos dois filhos maravilhosos: Karen Tamie (publicitária – ESPM; CEAG – FGV), que iniciou sua carreira como trainee no Citibank

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e atualmente trabalha na Adobe Brasil, e Hilton Koji (Médico Veterinário – USP), que vive e trabalha como veterinário nos Estados Unidos (Berkeley, CA). O apoio da Suely, nutricionista, foi fundamental para minha dedicação profissional e para a boa formação e desenvolvimento dos nossos filhos, que puderam contar com uma mãe sempre presente. A Karen e o Hilton, também, se empenharam nos estudos, e apesar das inúmeras mudanças de escolas por causa dos diferentes locais onde moramos, sempre se saíram bem e desenvolveram um elevado nível de inteligência emocional e de empatia para lidar com pessoas de culturas diversas. Com a revolução digital, os produtos analógicos perderam espaço. A Eastman Kodak Co. precisava fazer caixa para concentrar esforços no desenvolvimento de produtos digitais na área de Consumer and Professional Imaging; como resultado, a Divisão de Produtos Médicos (Health Imaging) foi vendida para um fundo de investimentos canadense (ONEX Corporation), e assim, em 2004, passei a compor o time da Carestream Health do Brasil como Diretor de Serviços, Operações Internas e Vendas, trabalhando com Sistemas de Geração de Imagens Médicas e Soluções de TI, além dos produtos médicos com a marca Kodak, que continuariam no mercado por mais cinco anos. Fomos responsáveis pela digitalização completa dos sistemas de diagnósticos médicos por imagens (ultrassom, tomografias, ressonância magnética, hemodinâmica, raio x etc.) do Hospital Israelita Albert Einstein, possibilitando aos médicos receberem e compartilharem imagens de diagnósticos online com seus pares no exterior, e

permitindo maior precisão e segurança na elaboração dos laudos médicos.

Projetos pessoais: Nova fase da minha jornada

Em 2008, já com os filhos encaminhados na vida e independentes financeiramente, resolvi me dedicar aos projetos pessoais, deixando a Carestream Health Brasil. Livres dos compromissos profissionais que acabavam me consumindo mesmo durante os períodos de férias, Suely e eu passamos a realizar várias viagens para conhecer o mundo e aproveitar suas belezas naturais e culturais. Comecei, também, a atuar no Terceiro Setor em 2012, realizando trabalhos voluntários como Agente Educacional com crianças e adolescentes em tratamento de câncer no Grupo de Apoio a Crianças com Câncer (GACC) em São José dos Campos. Na minha atuação como Agente Educacional, dando aulas para os pacientes impossibilitados de frequentar a escola por estarem debilitados e com a imunidade baixa devido ao tratamento de quimioterapia, havia demanda por suporte psicológico, não apenas aos pacientes, mas também aos seus cuidadores (pais e familiares); assim, resolvi voltar aos bancos escolares e fazer o curso de Psicologia (5 anos) e me formei em 2016. Desde então, além do trabalho voluntário no GACC-SJC, tenho atuado como Psicólogo

Clínico e realizado vários cursos de pósgraduação em saúde mental (Medicina Comportamental – Cemco/Unifesp, Neurociência Aplicada à Psicanálise –GEPECH) para especialização nas áreas de interesse. É um novo mundo, à parte da Engenharia, que tem despertado cada vez mais interesse em me aprofundar, pois o

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comportamento humano é bastante complexo e o diagnóstico de sua normalidade é muito relativo, visto que, diferentemente das Ciências Exatas, na área de Humanas a abordagem cartesiana não se aplica.

O ITA foi fundamental na minha vida: Valeu muito a pena ter seguido o conselho de minha saudosa mãe

“Quer sair dessa vida? Então estude.” Estudei, me formei no ITA e conquistei tudo que desejei em minha vida: consegui pagar o cursinho para minha irmã caçula Amélia, que se formou em Medicina (UnespBotucatu); realizei os sonhos de minha mãe de ter um filho formado no ITA e de conhecer o Japão e conviver conosco em sua terra natal, de onde emigrara aos 4 anos de idade, e de meu pai, de ter os filhos formados (meu irmão Júlio é dentista) e de realizar muitas pescarias no Amazonas. Além disso, constituí minha família, tivemos filhos e hoje curto o meu netinho Nicolas, filho da Karen e do Artur Duarte Nehmi (Turma 06).

Nesta minha jornada o ITA foi fundamental. Lembro-me de uma palestra do Capitão Engenheiro Sidney da Silva Mourão (Chefe da Divisão de Alunos) no início do 1º ano, que disse: “Não pensem que vocês sairão do ITA sabendo de tudo...; mas certamente sairão sabendo onde buscar a informação para solucionar os problemas que tiverem que resolver como engenheiros”. Durante a minha vida depois de formado essa frase ecoou várias vezes em minha mente. Ao longo de minha formação o ITA me entregou uma série de ferramentas que nem tinha ideia de para

que me serviriam, mas das quais, ao longo da vida profissional, tive que lançar mão diante dos problemas que se apresentaram.

A vida acadêmica e, sobretudo, o convívio com os colegas no H8 foram fundamentais na minha formação como pessoa. Uma experiência ímpar que o ITA proporciona aos seus alunos, e que é o grande diferencial que mantém a Turma 82 unida e ativa após tantos anos.

Aproveito para agradecer aos meus pais, que não tiveram a mesma oportunidade proporcionada a mim de estudar, mas que não mediram esforços para que os filhos estudassem para mudarem de vida; à minha querida esposa Suely, pelo companheirismo e dedicação irrestritos; aos meus filhos Karen e Hilton, que sempre foram exemplares nos estudos e nos relacionamentos sociais e familiares; aos meus tios, que socorreram meus pais, financeiramente, em diversas oportunidades para que eu pudesse continuar estudando; aos mestres do ITA, sem exceção, pelos quais nutro eterna gratidão pelos conhecimentos e experiências compartilhadas durante minha graduação, e a todos os colegas da Turma 82, pois me fazem sentir que tudo pelo qual lutei e que conquistei em minha vida tem valido muito a pena.

Desejo que as novas gerações de jovens possam se dedicar aos estudos com afinco, em busca de um objetivo, e que também consigam realizar os seus sonhos.

Muito obrigado à Comissão ITA –Turma 82 pela oportunidade de compartilhar um pouco de minha história de vida.

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REINALDO ALVARENGA BERGAMASCHI

“Reinaldo, acorda que tem iogurte…” Essa frase era, supostamente, para me incentivar a levantar e experimentar o delicioso café da manhã no refeitório. Eu certamente não teria me formado no ITA sem a ajuda dos meus companheiros de quarto para me tirarem da cama.

Exceto por acordar cedo, eu sempre fui muito determinado no que eu queria fazer, e isso acabou permeando todos os aspectos da minha vida e carreira.

Cresci em São Paulo, capital, numa família de classe média. Meus pais sempre trabalharam e estudaram muito – sempre lembro de meu pai e minha mãe sentados lendo algum livro, jornal ou artigo científico. Minha mãe se formou em psicologia quando eu tinha uns 12 anos, e meu pai, dentista, foi fazer doutorado quando eu já tinha uns 14.

Comecei o ginásio numa escola chamada Liceu Eduardo Prado. Mas não durou mais que um ano. Certa vez o diretor me chamou (junto com o meu irmão) e falou que nós não poderíamos mais ir à escola com o cabelo tão comprido (pelos ombros, na época). Falamos isso em casa, e obviamente nos recusamos a cortar. No dia seguinte meu pai foi à escola e disse que os filhos não iriam cortar o cabelo – se fosse um problema, nós sairíamos da escola. O diretor voltou atrás, mas no fim do ano saímos de qualquer jeito – onde já se viu não permitir cabelo comprido!?

Depois disso fui para o Bandeirantes, onde fiquei até terminar o colegial. Nunca tive muita pressão familiar por estudar e ir bem – o fato é que eu gostava de estudar e me sair bem nas provas. Era um supercdf, mas com alguma diferença: jogava muita bola, namorava, saía com amigos, etc. Fora isso, estudava muito. De uma certa forma eu já tinha incorporado a máxima iteana (©Tim Maia?): “Só o gagá constrói”. Como consequência, passar no vestibular foi difícil, mas não foi muita surpresa –acabei entrando no ITA e na Poli. Falo isso com plena consciência de que eu tive o privilégio de cursar um ótimo colégio, o que me ajudou muito a atingir o objetivo, que era passar no vestibular.

No início de 1978 fui para São José e, de cara, fiquei num quarto junto com um amigo do Bandeirantes (Marcelo Bortman), e mais quatro caras, com quem logo viríamos a formar a mais famosa panela da história do ITA: o 116.

No campo pessoal, senti um pouco a saída de casa e a ida a SJC – e resolvi, lá pelo fim de março, vir passar uma semana na Poli. Foi uma semana reveladora – pegando ônibus da Vila Mariana para a Cidade Universitária (longe pacas!) – e decidi que, sem sombra de

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Berga

dúvida, não queria a Poli. E na fatídica sexta-feira, 31 de março de 1978, voltei ao H8 para encontrar uma guerra d’água fantástica – algo que só o H8 podia proporcionar. Na realidade, eu me decidi pelo ITA não pela qualidade da escola, mas pela experiência que aquele convívio fora de casa poderia me dar. E nunca me arrependi.

Os laços formados no H8 e as dificuldades enfrentadas conjuntamente criaram fortes raízes. Os amigos da panela e da Turma 82 sempre foram uma constante presença na minha mente, principalmente depois, quando saí do Brasil por vários anos e não tive muito contato. Sempre que eu precisei de alguma coisa – contatos, conselhos, ou mesmo só para jogar conversa fora – pude contar com a ajuda de várias pessoas (mais esclarecidas que eu) da Turma 82.

Comecei em aeronáutica, mas logo percebi que eletrônica tinha muito mais física e matemática que outros cursos, e no 3º ano resolvi mudar. As aulas no ITA na época não eram de grande qualidade. Eu me lembro muito de três professores e de suas ótimas aulas: Lacaz de matemática, Darci de eletrônica, e o Sakane de processamento de sinais. O resto dos cursos, com algumas exceções, era fraco. O que nos faz iteanos não é o conhecimento vindo dos cursos, mas o esforço e a determinação em aprender, mesmo em situações adversas (como muitos dos casos de conflitos entre alunos e os militares da época). Além, é claro, do mais importante: as amizades e vivências no H8.

A panela do 116 foi algo natural e fantástico. De alguma forma, nós nos juntamos e não vimos nenhuma razão para nos separar. Foi meio como uma banda de rock onde todos se dão bem, mas também

podem fazer música com outras bandas. E fizemos. Eu tive uma experiência fantástica viajando pela Bolívia e pelo Peru com o Akutso e o Busatto, e outra experiência maravilhosa viajando pela Europa (na CV) com o Tim e o Luisão.

Essa viagem à Europa no fim do 4º ano foi marcante – e gostei tanto de viajar que resolvi que iria fazer tudo para sair do país depois de formado.

No 5º ano, soube de um mestrado que a Philips oferecia em Eindhoven em seu próprio instituto – o Philips International Institute (PII) – , em inglês e com tudo pago. A Philips tinha um processo de seleção em uns 15 países (a maioria do terceiro mundo), e escolhia dois alunos de cada país. Eu não tive dúvida: apliquei e não procurei mais emprego nenhum durante o 5º ano. A seleção durou vários meses, com várias provas, nenhuma técnica – e, no fim, fui um dos dois brasileiros selecionados. Recebi a resposta no telefone do CTA em novembro, e no comecinho de janeiro de 1983 fui para Holanda, sem ter a menor ideia do que esperar. Lembro-me bem de um livrinho que o consulado holandês me enviou, sobre os costumes na Holanda, que dizia, entre outras coisas “Se você vir duas mulheres conversando em um bar, isso não quer dizer que elas queiram ser abordadas por algum homem” – fato que comprovei in loco diversas vezes.

Cheguei a Eindhoven num frio danado, mas com muita vontade. Meus colegas eram da Índia, Paquistão, Singapura, Austrália, Sri Lanka, México, Argentina, Chile, Irlanda, Panamá, e alguns outros países. Esses caras eram phoda; os melhores de cada país. Eu me senti meio fora de minha liga.

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Acabei dividindo um apartamento com o cara da Austrália e o do Sri Lanka. Eu até achava meu inglês bom – mas daí a entender o sotaque australiano e “sri-lankês” (cingalês) é outra história. No fim do curso eu era um dos únicos que conseguia entender o australiano. Acabamos nos tornando ótimos amigos. Assim que aulas começaram eu vi o quanto os cursos no ITA eram defasados das boas escolas no mundo (mesmo de países não “tão avançados”). Logo no início tive dois cursos: compiladores e projetos de circuitos integrados – coisas das quais o ITA nem passava perto e aparentemente eram cursos básicos em outros lugares. Mas com muito gagá foi tudo bem. No fim saí com um Masters in Electronic Engineering with Distinction, por ter tido L em mais de 90% dos cursos e na tese. Quando não estudava, eu aproveitava cada momento de folga para viajar, ver concertos de rock e ver os amigos na Itália.

A Philips da época fazia de tudo, desde lâmpadas até circuitos integrados, incluindo a então recente invenção do CD, junto com a Sony. Eu me lembro de uma demo que eles nos deram, jogando um CD no chão, deixando bem sujo, depois pegando-o e tocando perfeitamente de novo. O curso

na Holanda era muito bom. Vinham os melhores profissionais da Philips dar aula e você ainda escolhia, entre os laboratórios da Philips, onde fazer sua tese. Eu escolhi fazer a minha no NatLab, o laboratório de pesquisas da Philips, justamente no projeto de um circuito integrado.

Uma das melhores experiências na Holanda foi no time de futebol da Universidade de Eindhoven, no qual eu era o centroavante. Nos jogos de outono eu fiz 19 gols e era o top-scorer do campeonato. Quanto entrou o inverno, jogando na neve, não marquei mais nenhum gol. Mas ainda acabei artilheiro da temporada. O problema não foi realmente o frio, e sim as festas que havia nos sábados à noite, antes dos jogos dos domingos de manhã. Na Europa é comum você levar uma garrafa de bebida quando vai a uma festa. Nas festas em que eu ia na Holanda, porém, cada um levava um engradado de cerveja. Aí ficava difícil jogar no dia seguinte.

Uma das minhas difíceis experiências na Holanda foi no término do curso. O meu orientador de mestrado tinha que me dar um 9 de nota para eu pegar “ distinction ” –aí ele me chamou e disse que não iria dar, apesar de o meu trabalho ter sido excelente – e não iria dar porque era muito difícil para um holandês pegar “ distinction ” e eu,

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O que nos faz iteanos não é o conhecimento vindo dos cursos, mas o esforço e a determinação em aprender, mesmo em situações adversas

como estrangeiro (de um país do terceiro mundo), não deveria merecer. Obviamente, fiquei possesso, e depois de alguma argumentação delicada, ele concordou em me dar o 9 de que eu precisava (e acho que merecia). Foi uma atitude discriminatória, que felizmente eu conseguir reverter, mas que me marcou e me ajudou a embasar minhas próprias atitudes futuras.

O período na Holanda foi de muito crescimento pessoal também – a solidão e a saudade do Brasil pesavam. Quando você tem muita saudade de outro lugar, isso o impede de aproveitar ao máximo o lugar em que você está. Foi nesse período que decidi que ao me mudar para qualquer país eu iria me comportar como se eu nunca mais fosse voltar ao Brasil . Uma vez com isso na cabeça, comecei a aproveitar bem mais, tratar amizades como se fossem duradouras, dedicar-me mais à vida local. Essa mentalidade me foi muito útil depois, quando eu fui para a Inglaterra e os Estados Unidos.

Ao acabar o mestrado, resolvi passar três meses mochilando pela Europa. Tinha guardado um dinheirinho que me permitia um gasto de uns $25 por dia, ficando em albergues, ou dormindo no trem e comendo de supermercado. Foi sem dúvida a viagem mais incrível que fiz, passando por toda a Europa ocidental, Grécia, Bulgária, Tchecoslováquia, Escandinávia e URSS.

De volta ao Brasil em setembro de 1984, com mestrado e querendo trabalhar com circuitos integrados, acabei arrumando um emprego na Itaucom, que, na época, era a divisão do Itaú que projetava CIs, principalmente para os PCs da Itautec (lembram da reserva de mercado?). O Brasil

daquela época estava em transição ( e.g ., Diretas Já), mas o potencial e a necessidade de explorar áreas inovadoras eram grandes nas empresas. Infelizmente, o governo e as grandes empresas não continuaram apoiando, e a Itaucom parou de projetar chips alguns anos depois. Algumas outras empresas continuaram, como a Vértice, e depois o Von Braun, mas o bonde tinha passado.

No meu caso, eu já tinha decidido sair novamente do Brasil, agora para um PhD. Apliquei para a França (onde o prof. Darci tinha um conhecido) e para Southampton –UK, que era um lugar muito bem considerado para pesquisa em semicondutores. Saíram as duas vagas, e eu preferi ir para a Inglaterra, pois, já tendo mestrado, eu conseguiria fazer o PhD em três anos. Fica aqui meu agradecimento ao CNPq pela bolsa que viabilizou minha viagem, mesmo sem eu ter nenhum vínculo acadêmico. Assim, depois de onze meses na Itaucom, eu pedi as contas e fui embora de novo.

A Inglaterra é um país diferente. Apesar dos vínculos históricos com os EUA, eles são o lugar da Europa que talvez seja o mais oposto ao materialismo americano. Na Inglaterra, se fala sobre os americanos, desde a época da Segunda Guerra, como “ Oversexed, overpaid and over here ”. Mas é um lugar fantástico, onde fiz muitas amizades, discuti muita política (sempre contra a Thatcher, of course !), joguei muito futebol, e tive a sorte de arrumar uma namorada que depois de alguns anos se tornaria minha esposa.

Três meses após eu começar meu doutorado, o meu orientador resolveu ir para um sabático de 18 meses na Austrália

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ou seja, fiz meu doutorado sem orientador. Mas foi muito melhor assim – sem orientador, eu mesmo tive que decidir o que era pesquisa relevante e isso me deu muita experiência para a minha futura carreira de pesquisador. No fim, ele voltou, gostou do trabalho, e eu me formei.

Fazer um PhD é um trabalho enorme.

A gente acha que na graduação trabalhou muito, depois no mestrado trabalhou um pouco mais, e aí vem um PhD onde é tudo por sua conta, e você percebe que consegue trabalhar mais ainda. Eu sempre encarei o mestrado e o doutorado como um means to an end , nunca um objetivo final. Para mim a única função do PhD era aprender o mais possível e depois ir fazer coisas interessantes.

Acabei em três anos e pedi emprego no único lugar do mundo onde eu queira trabalhar: IBM Research, em Nova York. Era o lugar onde se faziam os grandes avanços na minha área, além de algumas universidades, mas eu não queria saber de dar aulas. Queria fazer pesquisa aplicada.

Um pouco antes de me formar, no fim de 1988, recebi a carta com a oferta de emprego. Eles iriam me pagar $60 mil por ano, durante 2 anos. Para quem tinha vivido com bolsa de $300 por mês, isso era uma fortuna! Aceitei rapidamente, passei umas férias no Brasil e em abril de 1989 comecei na IBM em Yorktown Heights – NY.

Assim que cheguei na IBM comecei a programar usando um terminal de mainframe , e logo no primeiro almoço vem uma mensagem na tela: “ Lunch now, you scumbag! ”. Alguém tinha programado um insult app ( yes , num mainframe ) que gerava insultos aleatórios na tela do

destinatário. Tinha também um programa de agendamento de futebol, aliás uma peladinha que jogávamos umas três vezes por semana na hora do almoço – você colocava seu nome na lista, e quando dava um mínimo de quatro pessoas o programa enviava e-mails para todos confirmando a peladinha, e quase sempre aparecia mais gente. Então um dos jogadores mais assíduos criou um jogador fantasma que se autoassinava na lista quando esta já tinha três pessoas, gerando o quórum de quatro, e o futebol rolava.

Eu sempre achei a IBM Research o melhor lugar do mundo para trabalhar. O lugar era incrível, tinha ganhador de Nobel, de Turing Awards (o Nobel de computação), tinha Benoit Mandelbrot (dos fractais), Bob Dennard (inventor da memória DRAM), Frances Allen (de compiladores), John Cooke (inventor das CPUs Risc), e muitos outros que eu admirava de muitos artigos científicos, mas nunca imaginei que, um dia, eu iria trocar ideias com alguns deles.

Cerca de 90% dos funcionários da IBM Research tinham PhD e uns 40% eram estrangeiros. Em 1989, de brasileiro só tinha eu e o Alberto Elfes (Turma 75), mas depois ele saiu e eu fiquei como único brasileiro por alguns anos. Comecei na IBM em abril de 1989, para ficar dois anos, mas acabei ficando 19.

No início dos anos 1990 a IBM passava por uma crise enorme. A revolução dos PCs estava em alta, os mainframes estavam em baixa, e dizia-se que iriam acabar. Falava-se em breaking up a empresa em empresas menores e mais ágeis. Foi quando o Board teve a grande ideia de trazer o primeiro CEO de fora dos ranks , e trouxe o Louis Gerstner.

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Ele era ex-CEO da Nabisco (que fabricava biscoitos), e nem o mercado nem os IBMers botavam muita fé nele. Mas, apesar dos muitos layoffs na época (aliás até então, em quase 85 anos, a IBM nunca tinha demitido ninguém sem justa causa), ele foi talvez a salvação da empresa. Ele deu prioridade aos clientes, à tecnologia de ponta, e a manter os bons empregados. A IBM Research foi mandada se “alinhar” mais com as divisões de produto e se tornar mais relevante para e empresa. A minha área já era bem aplicada às necessidades futuras de produtos, mas tinha muita gente trabalhando em coisas que nunca seriam usadas dentro da empresa. A IBM ofereceu a todos os físicos, químicos, matemáticos, e quem mais quisesse, um treinamento de quase um ano em projeto de circuitos integrados, que era um dos grandes focos na época. Eu e outros do departamento, junto com professores de Columbia e do MIT, demos aulas para esses profissionais, que acabaram se tornando projetistas fantásticos. Isso manteve os melhores pesquisadores, a IBM Research continuou relevante, e a IBM deu a volta por cima (pelo menos por mais alguns anos).

Trabalhar na IBM Research era muito motivante. Você tinha liberdade para tentar fazer algo inovador, escrever artigos, patentes, mas ao mesmo tempo tinha que trabalhar para que o resultado da pesquisa fosse usado em algum produto futuro. Isso sempre me motivou muito mais do que trabalhar em algo acadêmico.

No meio-tempo, a Cath, minha namorada na Inglaterra, veio para os EUA e depois de uns anos nos casamos. No início de 1999, nasceu nosso primeiro filho. Eu e minha esposa sempre fomos workaholics

ao extremo. Quando vieram os filhos isso não mudou, só adicionou o tempo para eles. Se antes a gente trabalhava até umas 10 da noite, com filhos a gente parava de trabalhar enquanto eles estavam acordados, e trabalhava depois que eles iam para a cama. Em 1998 eu já tinha o Green Card , e minha mulher tinha um H1B do trabalho dela. Quando esse H1B expirou, e não podia mais ser renovado, nós tínhamos um problema: a Cath não poderia mais ficar nos EUA e, mesmo se ficasse como visitante, não poderia trabalhar. Isso não era aceitável. Eu fui para a advogada na IBM e perguntei qual seria o jeito mais rápido de conseguir um Green Card para minha esposa. Ela respondeu que o mais fácil seria eu me tornar um US Citizen, processo que normalmente demorava um ano, e depois pedir o Green Card como esposa de americano. Então eu pedi para a IBM me deixar trabalhar remotamente no Brasil, onde a Cath poderia trabalhar. Eu passaria quatro semanas no Brasil e uma semana em Nova York, até sair a citizenship (cidadania) e depois o Green Card da Cath. A IBM concordou, e no fim de 1999 nós viemos para o Brasil contando que tudo seria resolvido em uns seis meses. Eu ia ao prédio da IBM na Rua Tutoia, em São Paulo, e me logava na minha máquina em Nova York. Mesmo para o ano 2000, o trabalho remoto já funcionava muito bem em IBM-land. Depois de muitas pontes-aéreas SP–NY, o processo que deveria demorar seis meses já demorava dois anos. Certo dia recebi uma carta do serviço de imigração, dizendo que o meu pedido tinha sido negado porque eu não tinha apresentado certos documentos. Mas eu tinha, sim – eles é que tinham perdido

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meus documentos. Meio no desespero, um amigo sugeriu que eu escrevesse para os representantes de Nova York no Congresso. Sem muita esperança, escrevi para os dois senadores do estado de Nova York, Chuck Schumer (que hoje é o senador líder dos democratas) e Hillary Clinton (que viria a ser candidata a presidente).

Para minha surpresa, ambos responderam rapidamente, e o Schumer disse que iria “perguntar” ao serviço de imigração sobre o meu caso. E por um “milagre” burocrático, a imigração me chamou logo em seguida para uma entrevista, que é a parte final da naturalização.

A minha citizenship saiu em setembro de 2001, bem a tempo para o nascimento de meu segundo filho em novembro de 2001. O Green Card da Cath demorou mais alguns meses, e no meio de 2002 nós voltamos em caráter definitivo para Nova York.

Fiquei na IBM até o fim de 2007. Nesses 19 anos tive a oportunidade de trabalhar em projetos de pesquisa muito interessantes, incluindo os primeiros programas de síntese automática de circuitos, o primeiro mainframe CMOS, o computador BlueGene (um precursor do IBM Watson), além de diversos outros. Tive a oportunidade de publicar muitos artigos e conseguir certo reconhecimento da comunidade científica, sendo eleito IEEE Fellow e ACM Distinguished Scientist (talvez os eletrônicos saibam o que é a IEEE e ACM). Um dos melhores perks foi, sem dúvida, viajar representando a IBM em conferências e palestras em diversos lugares do mundo. Uma hora, porém, esse rat race acabou ficando menos interessante e eu buscava outros desafios. Mas tinha que ser um

desafio meu, e não simplesmente outro emprego. Foi quando eu pensei em voltar ao Brasil. Sempre me perguntam por que eu voltei. Parte da resposta é a família e os amigos – eu queria que meus filhos conhecessem os avós, aprendessem bem o português e um pouco da cultura brasileira. A outra parte da resposta é o desafio que o retorno ao Brasil representaria, em termos pessoais e profissionais. A minha esposa, sendo inglesa e já tendo vivido no Brasil, não estava nada a favor da volta, mas felizmente concordou. Em dezembro de 2007 pedi demissão da IBM e voltamos para o Brasil sem casa e sem emprego.

Viemos para Vinhedo, graças à hospitalidade do Carmo e da Valéria, que nos receberam superbem. E sou muito grato a eles por isso.

Nos primeiros 12 meses eu fiquei como professor visitante no Departamento de Computação da Unicamp. Poderia ter prestado um concurso para ficar, mas eu queria voltar a fazer coisas interessantes e comecei uma empresa.

Em 2008-2009 a “busca” na internet era o buzz do momento. O Google ia de vento em popa e algoritmos de busca eram os tópicos da moda. Resolvi, então, abrir uma empresa – Odysci – para desenvolver um produto de busca de artigos científicos na internet. Fui à Unicamp e contratei os melhores alunos de maratonas de programação, e começamos. Tudo na base do bootstrap , botando dinheiro que eu tinha guardado nos EUA para a universidade dos filhos e a aposentadoria. Foi um tiro completamente no escuro, e nessa versão a empresa não deu certo. Nós desenvolvemos um produto fantástico, bem comparável a algumas coisas

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que o Google e a Microsoft faziam nessa área. Mas não soubemos ou não conseguimos monetizar. E a empresa teve que pivotar.

A Odysci passou por duas aceleradoras de startups , teve pequenas subvenções da Finep e Fapesp, e teve muitos altos e baixos. Eu me recusei a transformar a empresa em uma empresa de serviços de TI, que é o caminho de muitas startups para sobreviver. Queria desenvolver produtos de software e vender, escalar etc. Na nossa última e atual pivotada desenvolvemos uma ferramenta de monitoramento de redes sociais. Estamos ainda na batalha para conseguir clientes e investimentos. O desafio é grande e as chances de dar errado são enormes, mas, como diz o Ruy, a gente se diverte.

A volta ao Brasil me possibilitou passar mais tempo com meus filhos. Eu sempre fiz questão de cozinhar para a família, pegá-los na escola, passar tempo à toa com eles. Com filhos, você tem que ter o ouvido perto quando eles querem conversar – não adianta forçar conversa. Um dos grandes prazeres foi começar a praticar Kung Fu com eles. Eles chegaram na faixa preta e foram para a universidade. Eu continuo até hoje – o Kung Fu tem sido um constante desafio físico e mental, e uma enorme fonte de satisfação pessoal.

Uma das nossas grandes preocupações ao voltar para o Brasil era com os filhos, pois nós queríamos muito que eles fizessem universidade nos Estados Unidos. Há, certamente, ótimas escolas no Brasil, mas nós sempre sentimos que a educação nas

faculdades americanas (as boas!) poderia lhes proporcionar experiências acadêmicas e pessoais que eles não teriam no Brasil. No ensino médio, eles se destacaram nas olimpíadas de física, o que ajudou a abrir as portas de algumas universidades. Meus dois filhos acabaram entrando no MIT, e nós somos superorgulhosos disso. Mas eles realmente só foram para lá para poder dizer que iam para uma escola mais difícil que o ITA! ( Fake News , obviamente.)

Eu tive muitos privilégios: tive pais que me deram oportunidades, tive educação, tenho amigos, saúde, e família para amar, que aliados a muito esforço me permitiram ter uma carreira interessante. Fazer parte do ITA e da Turma 82 é um enorme privilégio e orgulho. O país e a sociedade perdem muito por não possibilitar a mais pessoas estudar e trabalhar em algo de que gostem. Daí, sim, é que vêm a verdadeira inovação e o progresso. Refletindo sobre esses quase quarenta anos de carreira, acho irrelevante pensar no que fiz de certo ou de errado, pois há muitos caminhos possíveis. Sempre optei por fazer o que eu queria, sem me preocupar com sucesso ou recompensa financeira. Essas coisas são importantes, mas teriam que vir como consequência, e não como razões iniciais.

Eu tomei as decisões que achei melhores e que me fariam mais feliz naqueles momentos, sempre levando em conta a família, os amigos, e o prazer de trabalhar com o que eu gosto.

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Sakumoto

REINALDO SHUHEI SAKUMOTO

Acho que a história de todos nós começa com a história da nossa família, principalmente dos nossos pais, por isso achei justo começar este relato falando um pouco sobre eles. O começo da minha história é semelhante ao de outros colegas descendentes de imigrantes, cujos avós sentiram que não havia horizonte em seus países de origem devido às difíceis condições de vida, especialmente no período entre as duas guerras mundiais. No meu caso específico, os meus avós vieram do Japão movidos pelas incertezas reinantes naquele país na transição entre as eras Taishô e Showa e também seduzidos pela propaganda do governo brasileiro que garantia uma vida boa e próspera para todos os que para cá viessem (embora o ciclo do café já estivesse em declínio, havia ainda muita necessidade de mão de obra na lavoura). Meus avós então decidiram deixar para trás a sua terra natal com a esperança de poder voltar um dia, quando a situação estivesse melhor. Meu pai chegou no Brasil a bordo do Bingo-Maru , um navio de pesca que fora adaptado para transporte de pessoas. Ele desembarcou em Santos no primeiro dia de outubro de 1929, data em que completaria 7 anos de idade, e minha mãe chegou quatro anos depois, em 27 de julho de 1933, a bordo do Arizona-Maru Ambos foram deslocados para o centro-oeste paulista, na região de Marília, para trabalhar

nas plantações de café. A comunidade japonesa na região era até expressiva e com o tempo meus pais se conheceram, acabaram se casando e lá tiveram três filhos, mas como a vida na lavoura não era bem o que a propaganda brasileira afirmava, a família do meu avô paterno resolveu vir tentar a sorte em São Paulo. Instalaram-se na região do Planalto Paulista e foi lá que eu nasci, pertinho do aeroporto de Congonhas.

Meu pai às vezes nos levava ao aeroporto para ver os aviões pousando e decolando, e eu achava aquilo bem impressionante. Isso e as estórias de pilotos e robôs voadores que eu lia nos mangás (revistas em quadrinhos japonesas) me faziam querer um dia ser piloto de caça. Com a idade foram aparecendo novos interesses e com a miopia piorando, acabei desistindo dessa ideia durante a adolescência.

Diferentemente de muitos dos meus colegas de faculdade, a minha chegada ao ITA foi muito obra do acaso. Eu sempre estudei em escolas públicas (minha família não dispunha de muitos recursos e as melhores escolas na minha região eram as públicas), exceto pelo período dos 5 aos 12 anos, em que também frequentei uma escola particular japonesa que tinha aula

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todos os dias, e às vezes tinha aula também aos domingos, que era facultativa (acho que tinha taxa extra), e ia quem queria, mas eu sempre ia. Meu pai sempre levou esse negócio de educação muito a sério – faltar a uma aula, nem pensar! Talvez porque ele mesmo não pôde se dedicar mais aos estudos... Acho que isso e a vida difícil na lavoura e depois na cidade foi o que o levou a estabelecer como meta pessoal que todos os seus filhos se formariam na faculdade.

Como já mencionei, fiz o ensino elementar (antigos grupo escolar e ginásio) em escolas públicas perto de casa e na época do colegial decidi fazer uma escola técnica. Como a grana era curta, talvez eu precisasse trabalhar para poder fazer a faculdade, então fiz um curso de técnico em eletrotécnica, no CIE Getulio Vargas (GV) no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Quando entrei na GV, meu irmão mais velho entrou em engenharia civil na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli); quando eu estava no 2º ano do colegial, minha irmã entrou em medicina na Santa Casa e, no ano seguinte, meu outro irmão também entrou na Poli. Consequentemente, por uma questão de honra, e principalmente para não ficar por baixo, eu também precisaria entrar na Poli.

O curso na GV era atípico, porque lá eu estudava o conteúdo técnico às segundas, quartas e sextas e o conteúdo do currículo do ensino médio às terças, quintas e sábados no Colégio Alexandre de Gusmão, distante mais ou menos um quilômetro da GV. Após três anos de colégio, recebi o diploma do colegial e poderia prestar o vestibular, mas para ter o diploma de técnico ainda precisaria fazer o 4º ano do técnico

e também o estágio. Na época, eu tinha a consciência de que o que eu havia aprendido no colegial não me habilitava a ter sucesso no vestibular pelo simples fato de que eu desconhecia uma grande quantidade do conteúdo exigido. Resolvi então fazer um cursinho pré-vestibular, junto com o estágio e o último ano do curso técnico. Fiz alguns testes para estágio e acabei sendo aprovado na Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metro) e, como a minha classificação havia sido muito boa, eu poderia escolher onde fazer o estágio, no CCO (Centro de Controle Operacional) na Rua Vergueiro (perto do cursinho) ou no Pátio de Manobras no Jabaquara (longe de tudo, mas com uma variedade maior de atividades). Não sei por que eu achei que conhecer o pátio de manobras ia ser mais legal e por isso o escolhi, o que se mostrou ser uma escolha bastante estúpida para efeito de logística da estratégia de cursinho+estágio+colégio. Guardo na lembrança que aquele foi o ano mais puxado da minha vida: eu saía de casa cedinho, pegava um ônibus superlotado para ir para o cursinho que ficava na rua Direita, no centro da cidade, saía do cursinho correndo para pegar o metrô para ir para o estágio, saía do estágio correndo, pegava o metrô e um ônibus para ir ao colégio, saía correndo do colégio às 22h00, andava (velozmente) dois quilômetros para pegar um ônibus que me deixava perto de casa, aonde finalmente chegava por volta da meia-noite. Logo percebi que nesse ritmo alguma coisa ia ter que ser feita “nas coxas”, e como eu pretendia acabar o curso técnico, o cursinho foi o escolhido, obviamente. Não deu para entrar na Poli naquele ano, então refiz o cursinho no ano seguinte.

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Acho que a estória do cursinho também vale a pena contar. No colégio havia um professor de matemática que dava aula somente para o 3º ano e era meio que uma lenda viva (de “escrotidão”). As aulas dele eram muito boas, mas as provas eram bem difíceis, tanto que no último bimestre ele dava um trabalho para dar chance ao pessoal de melhorar a nota e ir para o exame precisando de menos. Nessa época ele fazia uma enquete na sala de aula de quanto cada um precisava no trabalho e de quanto iria precisar no exame, com um sorrisinho sacana na cara (quase que um Tossio, mas não era tão fdp) – aliás um dos meus momentos de glória no colégio foi dizer para esse professor que eu não precisaria da nota do trabalho (fui aplaudido de pé pela classe).

Voltando ao que interessa, esse professor era dono de um cursinho pré-vestibular chamado Ceca Vestibulares, que hoje já não existe mais. O Ceca tinha certa fama em vestibulinhos (exames para ingresso nas escolas técnicas de ensino médio) mas tinha algumas turmas de vestibular também. Fui convidado pelo professor a passar lá no cursinho para fazer um teste para bolsa – a mensalidade do cursinho já era muito menor que a do Anglo ou do Universitário, que eram os mais famosos de São Paulo na época, e com uma bolsa de 90% (o máximo possível) o custo do cursinho foi bem baixo. Com o fracasso no primeiro vestibular, fui para o meu segundo ano de cursinho – esse bem mais tranquilo do que o anterior, pois só precisava fazer o cursinho e, para melhorar, era tudo repetição! Como o ano anterior havia sido muito puxado, resolvi que aquele ano deveria ser menos desgastante e fiz vários novos amigos, que não tinham nada a

ver com estudo e muito menos com vestibular. Eu saía muito com eles, tanto que de sexta a domingo eu praticamente não ficava em casa. A bengala moral para legitimar o “corpo mole” foi que eu não precisaria estudar muito, uma vez que já tinha visto o conteúdo programático exigido no vestibular da Fuvest (tendo em mente que a intenção era entrar na Poli), portanto eu já sabia onde concentrar esforços – sim, sempre fui um devoto do equilíbrio entre custo e benefício. Quanto ao desempenho, eu tinha uma estratégia. O Ceca era um cursinho pequeno e de pouca expressão em termos de resultados no vestibular, mas conseguia colocar um ou outro aluno nas melhores escolas de engenharia quase todos os anos – tinha até conseguido colocar duas pessoas no ITA: o primeiro foi o Ikedo (ELE-Turma 78) e o segundo não chegou a cursar. Como a meta era entrar na Poli com suas 600 vagas, bastava eu me dedicar o suficiente para ser o melhor aluno do Ceca que estatisticamente conseguiria atingir o meu objetivo. A execução da estratégia foi assim: o Ceca fazia quatro simulados ao longo do ano. No primeiro deles, eu fui o melhor colocado do cursinho com uns 30 pontos à frente do segundo; no segundo simulado, eu fui o primeiro com uns 15 pontos a mais que o segundo colocado; no terceiro, fui o primeiro com uns 2 ou 3 pontos à frente do segundo; no quarto e último, fui o segundo colocado, ficando 1 ou 2 pontos atrás do primeiro colocado – e nessa hora logo pensei: “Ainda bem que o ano acabou!”.

Certo dia, no segundo semestre de 1977, fui visitar um amigo lá do bairro e ele disse que estava indo fazer a inscrição para o

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vestibular do ITA. Depois de muita conversa, ele me convenceu a fazer a inscrição também, e eu achei que seria um bom treino para o vestibular da Fuvest. Embora eu tivesse um amigo iteano, o Yamaguti (ELE-Turma 76, em cuja colação de grau cheguei até a visitar o H8), do ITA mesmo eu conhecia muito pouco, além da reputação de ser a melhor escola de engenharia. Só depois da inscrição feita eu fui descobrir que o vestibular do ITA tinha algumas coisas diferentes em química orgânica e, principalmente, que tinha uma prova de Desenho Técnico e Geometria Descritiva (GD)! A parte de desenho técnico estava sob controle por causa do colégio técnico, mas GD eu nunca tinha visto, nem sabia o que era. Comprei o livro do Marmo e tentei estudar por conta por uns dois meses, mas após perceber que a coisa não estava evoluindo, desisti de GD e resolvi que teria que me garantir no desenho técnico.

Na época do vestibular a minha família morava na zona norte de São Paulo e a prova do ITA seria realizada no Anfiteatro da Poli, na Cidade Universitária, que ficava do outro lado da cidade – eram duas horas de ônibus (lotado) para chegar lá. Fui no primeiro dia, fiz a prova, fui mal, achei até que não tinha tirado a nota mínima. Por isso, no segundo dia, eu nem me esforcei para acordar para ir fazer a prova. Mas a minha mãe foi lá me acordar e perguntou por que eu ainda estava dormindo se tinha uma prova para fazer. Quis argumentar que havia ido mal no dia anterior e que por isso não valia a pena continuar, mas ela não entendia nada disso e disse que eu deveria fazer as provas de qualquer jeito. Falei que já estava atrasado e que não chegaria

a tempo para a prova. Então o meu irmão mais velho, que nunca havia feito nada por mim na vida, disse que me levaria de carro. Aí não teve jeito: eu fui de carona fazer a prova do segundo dia, e os outros dias foram consequência, mas, sinceramente, nunca achei que teria sucesso naquele vestibular. Passado um tempo, fui visitar o pessoal do cursinho e fiquei sabendo que coincidentemente naquele dia tinha saído a primeira lista de aprovados do ITA. Nem me interessei, mas uma amiga que estava comigo comprou o jornal para verificar. Acho que ela tinha mais confiança em mim do que eu mesmo. Quando ela disse que meu nome estava na lista em Aeronáutica (minha segunda opção), achei que era sacanagem. Peguei o jornal e, com espanto, vi que havia passado mesmo. Fiquei muito surpreso, mas também muito contente. Acho que as notícias boas têm um efeito de felicidade muito maior quando são inesperadas. Depois de alguns dias, chegou uma carta com a confirmação e com instruções para “o candidato” comparecer ao CTA com os documentos necessários e para fazer o exame médico. Quanto ao meu objetivo primário, deu tudo certo: acabei entrando na Poli também, fiquei alguns dias avaliando os prós e contras de estudar na Poli ou no ITA e acabei pendendo para o ITA, mas decidi me matricular na Poli também, para me garantir de qualquer problema de adaptação ao esquema do ITA. Aliás, conheci o Zé Luís (que esteja em paz) na fila da matrícula da Poli. Ele estava logo atrás de mim na hora de preencher a papelada, o que foi muito bom para ele porque, por minha causa, ele escapou de levar trote. Um pouco antes de eu

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entrar na fila da matrícula, eu e meu irmão mais velho havíamos nos desentendido com os caras do 2º e 3º anos que estavam lá pentelhando e querendo dar trote nos calouros. Meu irmão, que estava no 5º ano, deu um “chega pra lá” neles, dizendo que eu era o “bixo” dele e que todos eles também eram “bixos” para ele e, portanto, não deviam ficar enchendo o saco, o que só serviu para deixar os caras mais putos e motivou uma série de xingamentos e empurrões, até eu conseguir chegar no local da matrícula. Já na fila, percebi que os caras ficaram lá me esperando. Então, logo depois de preencher e assinar os papéis, eu tive que sair correndo para o carro com os caras correndo atrás de mim. Como o meu irmão tinha deixado o carro em um lugar estratégico, atrás de um dos prédios da Poli, conseguimos sair de lá sem nenhum dano físico ou material. Pensando bem, e considerando que tudo deu certo, o negócio foi até divertido.

A chegada ao CTA em São José dos Campos para o exame médico, no dia 25 de janeiro de 1978, marcou o início de uma longa jornada para a obtenção do título de engenheiro em 12 de dezembro de 1982. Guardo em minha memória que esse período foi fundamental para o meu crescimento profissional e pessoal. Foram vários desafios,

muitos deles superados com colegas que foram se tornando amigos à medida que o tempo ia passando. Do dia do exame médico até a formatura se passaram quase cinco anos e nós passamos de um grupo de jovens desconhecidos, cada um com seus sonhos e suas expectativas, a colegas com objetivos em comum, que viraram amigos – uma amizade duradoura. O convívio diário no H8, a carga de estudos exigida, a rotina de atividades e principalmente a existência, na turma, de colegas “aglutinadores” (aqueles que por personalidade, características pessoais ou comportamento favoreceram a união das pessoas), foram determinantes para a criação de laços que nos mantêm unidos até hoje, passados quase 40 anos.

O início das aulas foi bem marcante para mim. Até então eu me considerava um sujeito bastante inteligente, aí eu percebi que a régua tinha mudado de lugar... Não que eu tenha ficado burro de repente, mas vi que todos eram bem inteligentes e alguns eram verdadeiras “feras” e, por isso, eu precisaria me dedicar mais para acompanhá-los. Outro choque de realidade foi a minha primeira nota de Física, do professor Segre: tirei um 2 (em 10 possíveis)! Nunca havia tirado uma nota tão baixa na vida e, para piorar, a média mínima para passar era 6,5, portanto,

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O início das aulas foi bem marcante para mim. Até então eu me considerava um sujeito bastante inteligente, aí eu percebi que a régua tinha mudado de lugar...

mesmo se eu tirasse 10 na segunda prova, a média daria 6, o que seria insuficiente para passar. Nessa hora tive a sensação de que aquela “longa jornada” citada anteriormente havia terminado ali mesmo. Por sorte, ou por providência divina, mais gente tinha ido mal na prova e por isso foi dada uma prova chance (substitutiva) – foi a minha salvação! Em todos os semestres havia cursos mais fáceis e outros mais difíceis, geralmente a gente se lembra mais dos difíceis e nessas era comum, nas vésperas de prova, ficar estudando, revendo a matéria ou resolvendo exercícios até altas horas da noite. Em algumas dessas ocasiões, já noite adentro, a cada minuto que passava ia crescendo aquela sensação de que iria tomar o maior “ferro” na prova, quando de repente se ouvia um brado de “méééélaaaaa” vindo do corredor, seguido pelo som de várias portas se abrindo e mais gente gritando “mééélaaaa”... Geralmente esse era o sinal para dar início à “lista de melação” (instrumento do corpo discente para solicitação de adiamento da prova). A lista era então preenchida pelos alunos a favor da “melação” e, em seguida, encaminhada para o professor, geralmente a altas horas da noite (por sorte a grande maioria dos professores também morava no CTA). Enquanto isso, a turma ficava aguardando ansiosamente o resultado da solicitação, e o resultado positivo (adiamento da prova) era bastante comemorado. Por várias vezes a turma se transformou em uma turba ensandecida dançando no hall do H8-A ao som de viola e sanfona que apareciam de repente, como que por mágica.

Na época em que entramos no ITA todos os alunos brasileiros deveriam fazer o curso de

preparação de oficiais da reserva (CPOR) no CTA (nos dois primeiros anos do curso), exceto aqueles que já haviam feito curso equivalente. Os treinamentos aconteciam nas tardes de quarta-feira e nas manhãs de sábado, e eram uma das coisas mais chatas e desestimulantes do curso do ITA. A nossa turma foi designada ao tenente Bosco, que embora demonstrasse ser mais esperto que o outro tenente, que ficou com a Turma 81 e depois com a Turma 83, não tinha a menor habilidade para lidar com uma turma diferenciada como eram os alunos do ITA. Eu não gostava nem um pouco do Bosco e acho que isso era recíproco, porque que ele sempre dava um jeito de me sacanear, me mandava direto cortar o cabelo lá com o barbeiro do CPOR (que representava muito bem o conceito que se usa quando se diz “este cara é barbeiro”, significando que a pessoa faz as coisas malfeitas), sem contar as detenções –acho que eu fui o segundo mais detido da nossa turma; perdi para o Solon, que costumava se evadir do hospital do CTA sem a devida alta do médico, o que gerava punições pelo CPOR. Ao final do 2º ano, decidi mudar para o curso de Mecânica. Lembro que quando fui falar de mudar de opção para a Teresinha, que trabalhava na Divisão de Alunos, ela disse que como a minha média de notas do Fundamental era muito boa, não teria problema algum para mudar para a Eletrônica, que havia sido a minha primeira opção no vestibular, e ficou surpresa por eu querer ir para a minha terceira opção. Na época eu achava que Mecânica me daria mais opções de emprego e não dava para saber que eu iria acabar trabalhando na Embraer.

Ao final do 5º ano, eu havia criado laços em São José e por isso decidi ficar por aqui.

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Na época a Embraer estava contratando muita gente, vários colegas da turma estavam se candidatando às vagas oferecidas pela empresa, e eu decidi tentar a Embraer também. A primeira tentativa foi a seção de Ensaio em Voo, mas o selecionador estava contratando somente os aeronáuticos. Aí pensei que eu não deveria ter mudado de curso no 3º ano, mas naquele momento eu não me via trabalhando em São José, então fui para a minha segunda opção e, nos primeiros dias de 1983, fui pedir emprego para o Bismark, que embora fosse o assessor de Aeroelasticidade do diretor técnico, também era o chefe da seção de CAD-CAM. O que me atraiu no CAD foi que essa tecnologia ainda estava começando, portanto, havia muito desenvolvimento a ser feito e muitas oportunidades. Gostei do pessoal de lá; inclusive havia vários iteanos – acho que eram três da Turma 81, dois da Turma 80 e mais dois da Turma 79 –, além de outros que não eram iteanos mas me ajudaram muito nos meus primeiros meses na empresa. Após nove meses houve uma dança de cadeiras e a chefia do CAD passou para o Luciano Lampi (Turma 76) e o Bismark assumiu o time de Aeroelasticidade e me levou para lá, junto com os dois colegas da Turma 79. Embora essa fosse uma área na qual eu jamais imaginaria que iria trabalhar, acho que a mudança foi positiva, tanto é que acabei trabalhando nela por quase 37 anos. Outro fator positivo foi a presença de colegas de turma naquele time, pois lá estavam o Ruy, o Diniz e o Butti. Os primeiros anos foram de muito aprendizado: de um lado fazíamos alguns cursos de pós-graduação no ITA, aos sábados, focados em dinâmica de estruturas

e aeroelasticidade, e de outro precisávamos aprender as ferramentas de análises dinâmica e aeroelástica, as técnicas de modelamento para essas análises e os setups para conseguir rodar no ambiente disponível. A análise aeroelástica do Bandeirantes havia sido feita com o programa de autoria do Bismark, mas em 1983 já estava em curso a migração para se usar o Nastran® da MsC como ferramenta de análises estruturais, inclusive para análises dinâmicas e de aeroelasticidade ( flutter e rajada) – o Brasília já foi todo feito no Nastran®. O time de aeroelasticidade sempre teve que lidar com uma série de problemas operacionais devido à limitação de TI. Na década de 1980 o sistema era mainframe com acesso remoto através de terminais burros, a engenharia tinha o uso compartilhado de um IBM 148 e um IBM 3090, a quantidade de memória RAM também era um problema para as análises e a quantidade de espaço em disco para armazenar resultados também era precária para as necessidades do time. Isso impactava na qualidade dos modelos e das análises. Havia também problemas mais prosaicos: às vezes um job batch ficava rodando de três a quatro dias e no finalzinho ocorria uma queda de energia e, por falta de um nobreak , toda a análise era perdida.

O Bismark era um chefe de poucas palavras. Geralmente ele dizia o que precisava, sem dar muitas explicações, e ficava esperando os resultados. Uma das minhas primeiras tarefas no time de aeroelasticidade foi bem chatinha e “pentelha”; achei até que era um trote. Um belo dia o Bismark largou uma listagem enorme na minha mesa e disse: “Está assimétrico; tem que ser simétrico!”...

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e só! Aí ele foi embora. Bem, concluí que eu precisaria ler o que estava na listagem e procurar por assimetrias. A listagem era o modelo estrutural completo do AMX no formato Nastran® e tinha “trocentas” páginas. Como eu não sabia nada de Nastran®, tive que aprender todos os cartões usados na modelagem, com todos os detalhes e opções de cada um, a fim de achar as coisas que pudessem gerar assimetrias. Foi demorado, tedioso e trabalhoso (lembrar que eu só tinha o modelo impresso em papel), mas me deu a oportunidade de conhecer bem a ferramenta de modelamento estrutural (o que me foi muito útil nos anos seguintes). Depois de uns 10 dias encontrei os dados que geravam o comportamento assimétrico do modelo. O time era dividido em pessoas que se dedicavam mais à análise de estabilidade e pessoas que se dedicavam mais à análise de resposta dinâmica e aeroelástica. Eu fiquei nesse segundo grupo, além de ajudar na construção de modelos. O tempo foi passando com uma aprendizagem contínua de detalhes que melhoravam a qualidade das análises, descobertas de bugs no Nastran® e nos nossos processamentos, luta eterna para conseguir mais CPU, mais espaço em disco, prioridade nos job batches , mais filas para rodar as análises, mudanças de processos e desenvolvimento de pré- e pós-processadores para agilizar as análises e preparar dados para os clientes dos resultados. À medida que a capacidade de processamento e de espaço em disco ia melhorando, os modelos foram ficando mais sofisticados e a quantidade de condições analisadas também ia aumentando. Ao longo dos anos, houve uma melhoria substancial de processos e de qualidade dos resultados,

natural, pois a melhoria contínua é basicamente a essência do trabalho da engenharia.

Voltando no tempo, no final de 1985 eu fui para a Itália. Fiquei alocado no time de estruturas da AerMacchi porque havia um problema de dimensionamento devido às cargas de disparo de canhão, mas depois de dois meses eu mostrei que as cargas de disparo de canhão, calculadas de forma dinâmica, ficavam dentro do envelope já analisado, o que foi um problema porque a maior parte da minha missão era para revisar o dimensionamento do avião, então desnecessário.

Quando voltei ao Brasil no início de 1987, havia dois grupos de aeroelasticidade na Embraer: um era o time do Bismark e outro o do Fred Nitzsche (Turma 76). Acho que o Fred havia sido contratado pelo Guido Pessotti (diretor técnico) para ter uma segunda opinião para os assuntos de flutter e que, de quebra, incumbiu-o de fazer as análises dinâmica e aeroelástica do desenvolvimento inicial do CBA-123, alocando-o dentro da gerência do AP (anteprojeto). Logo que voltei da Itália ele me convidou para trabalhar no time dele. Ele ficaria com a estabilidade e eu com as cargas e o modelo. Também tínhamos um planejador e uma assistente. Depois de um tempo, vi que a coisa não estava andando, muito devido ao fato de o Fred não ter tempo para fazer a parte dele. Aí foi fácil convencêlo de que precisávamos de alguém experiente em flutter no time. Perguntei ao Fred como estava a moral dele junto ao Guido, e se estava melhor que a do Bismark, uma vez que o Bismark iria chiar muito por tirar alguém dele. Falei, então, para trazer logo o

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Kamiyama (Turma 79), que era o cara que efetivamente tocava o outro time. Com a chegada do Kamiyama o nosso time melhorou muito, mas ainda faltava mão de obra e por isso ao longo dos meses (enquanto a moral ainda estava alta), fomos retirando mais gente do Bismark até montar um time pequeno mas consistente com o trabalho a ser feito. Chegamos até a fazer um modelo de túnel de vento aeroelástico, que através do esforço conjunto de várias áreas da Embraer projetamos, construímos e testamos no túnel do CTA.

Quando o time do Fred foi desfeito, algumas pessoas puderam decidir onde trabalhar. Eu, então, trabalhei por dois anos em um time que dava suporte de ferramentas para a Engenharia. Fiquei lá até a primeira grande crise da Embraer, quando houve uma restruturação profunda que também atingiu a Engenharia. A empresa ficou fechada por vários dias, uma parte considerável de empregados foi demitida e os que ficaram foram sendo notificados pelos seus gestores, muitas vezes pelos novos gestores, como foi o nosso caso. Nessa mudança, eu fui trazido de volta para o time de aeroelasticidade, porém o grupo todo também incluiria o time de cargas estáticas. Continuamos a desenvolver o CBA por mais algum tempo, até ele ser oficialmente enterrado. A empresa passava por dificuldades financeiras, a conjuntura da época e a administração Collor/Itamar também não ajudaram nem um pouco e em 1994 veio a privatização. A transição, como toda transição, foi um caos; melhorou com a chegada do Mauricio Botelho, que trouxe novos conceitos de gestão e visão estratégica. Em paralelo, estávamos desenvolvendo o EMB-145, que foi um grande sucesso de

vendas e fundamental para o reerguimento da Embraer. Esse avião gerou vários derivativos, inclusive alguns para uso militar, que conseguiram encher o caixa da empresa durante a recuperação. Depois veio a família do ERJ-170/190 e a incursão no mercado de aviões executivos, primeiro com uma versão do EMB-135 (este já sendo um derivado do EMB-145) e depois com um avião novo na categoria de entrada do mercado. Outros executivos foram se somando ao leque de produtos, na aviação comercial veio a nova geração da família do 170/190 e na defesa o KC-390, que foi o grande desafio de engenharia da Embraer na última década. Enfim, a Embraer ia driblando as dificuldades desenvolvendo derivativos, novos modelos, explorando novos mercados e colocando muito esforço no estabelecimento de uma cultura empresarial própria, cultivando valores e investindo na eficiência operacional para manter a competitividade. Tive o privilégio de acompanhar todas essas etapas, algumas muito complicadas mas outras de muita satisfação – quem não ficaria feliz de ver um novo avião voando pela primeira vez? Passei um tempo em gestão como chefe de algumas seções, gerente de cargas e aeroelasticidade e responsável pelo airframe (cargas, aerodinâmica, estruturas e projeto de estruturas) do Lineage, mas no início do desenvolvimento do KC-390 optei por participar do programa como engenheiro sênior e ajudar no desenvolvimento e nas certificações do avião. Deixei a empresa em julho de 2020, logo depois do fracasso da venda da parte da aviação comercial para a Boeing. Hoje, já aposentado pelo INSS, passo o dia todo de pijama e pantufas e nas horas vagas estudo línguas, jogo um pouco de

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xadrez (coisa que eu havia abandonado há muitos anos), assisto a filmes, passeio com os cachorros, e também estou seguindo o caminho já trilhado pelo nosso caro colega Clovis Eça, fazendo um curso de Licenciatura

em Matemática que, se tudo der certo, termino ainda este ano ou, se não conseguir fazer o estágio presencial em alguma escola de educação básica, terminarei no ano que vem.

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Horioka

RENATO HORIOKA

Resolvi escrever para o Álbum apenas depois de ler vários relatos de outros colegas, muito interessantes para mim.

Nasci em São Paulo, filho de imigrantes japoneses que vieram, ambos ainda pequenos, com seus pais para trabalhar em colônias agrícolas.

Sempre estudei em escolas públicas, exceto o cursinho.

Tenho dois irmãos mais velhos, engenheiros eletrônicos, e uma irmã mais nova, engenheira civil.

Saí de São Paulo, como meus irmãos, para fazer o curso técnico em eletrônica na Etep em São José dos Campos, escola de vários colegas da Turma 82 e de outras turmas.

Antes de mim, meu irmão mais velho foi aprovado no vestibular do ITA, mas com força um pouco limitada em um dos braços, em decorrência da paralisia infantil, e com a demora para confirmarem se seria ou não aprovado no exame médico, resolveu ir para a USP. O outro irmão também fez engenharia eletrônica, mas na Unicamp. Formou-se em quatro anos e meio.

Fiz cursinho no Anglo Tamandaré junto com alguns da Turma 82, mas ainda não conhecia ninguém. Durante o cursinho, trabalhava como técnico no Metrô de São Paulo para ajudar a família, e ficava no cursinho quase que estritamente nos horários de aulas: chegava em cima da hora e, após as aulas, saía rapidamente para almoçar em casa, descansar um pouco e ir para o trabalho.

Como não tinha muito tempo para estudar, prestava atenção às aulas e conseguia entender praticamente tudo. No ITA tentei usar a mesma estratégia, mas não funcionou: em várias disciplinas, saía da aula sem entender praticamente nada. Não era tão inteligente como alguns que, nas aulas de matemática, apontavam: “Mestre, está errada aquela passagem...” e o mestre precisava consultar o papel que tinha levado, para corrigir o erro.

Eu já havia morado em república no tempo de Etep e morei depois em Campinas,

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Fundamos o Integral, inicialmente com sócios sem remuneração para viabilizar a empreitada.

mas a vida no H8 foi bastante diferente, com um contato mais próximo com todos os colegas, não só os de quarto mas também os de outras turmas. Experiência muito interessante, e muitas amizades para a vida.

Entrar no ITA foi uma volta a São José dos Campos, onde encontrei antigos colegas de república, alguns que estavam se formando na EEI, e pude viajar em alguns finais de semana e feriados com eles.

Fiquei só dois anos no ITA. Ao terminar o 1º ano já não estava suportando, mas tinha perdido a inscrição para o vestibular...

Ao final de 1979 deixei o ITA para a Unicamp. Dos seis ocupantes do apartamento 112, saíram quatro: Alckmar, Arthur Oliveira, Fuad e eu.

Fui para Campinas com Alckmar, Arthur e Luiz Cláudio, e procuramos Luiz Antonio Fernandes e Dirceu Tornavoi, que haviam deixado o ITA antes. Luiz Antonio, que dava aulas, apresentou sua ideia de abrir um cursinho. Fundamos o Integral, inicialmente com sócios sem remuneração para viabilizar a empreitada. Deixei a sociedade depois de uns sete anos, ainda pequena, mas já estabelecida e em ascensão, quando restaram sócios Luiz Antonio e Luiz Cláudio. Excelente experiência!

Também foram professores no Integral Charlão Alcarde, mais tarde sócio, e Balster (Turma 78).

Em 1982 reconfigurou-se a república com a chegada de Cícero, Peverari, Laertes – e a saída de Luiz Cláudio e Luiz Antonio.

Também passaram pela Unicamp Loures, Ribeirão, Catarina, Chamon, Gusella, Svoll, Jonas...

O curso na Unicamp foi tranquilo, mas as disciplinas eliminadas pela equivalência complicaram os horários e acabamos tendo

aulas com diversas turmas. Em uma escola com muito mais alunos por turma e inúmeros cursos, a interação com colegas era bem diferente do que foi no ITA.

Mesmo depois de desligado do ITA, a convivência com ex-colegas de turma foi muito intensa, pelo menos enquanto estive em Campinas e fui sócio dos ex-colegas.

Casei-me e tive um casal de filhos: Renata, engenheira ambiental, e Marcelo, bacharel em Sistemas de Informação.

Na carreira profissional, trabalhei sempre na área técnica. A maior parte do tempo na Alstom, anteriormente CMW Equipamentos, cujo presidente era Maurício Novis Botelho, que seria presidente da Embraer após a privatização. Trabalhei com sinalização ferroviária, com desenvolvimento de hardware e sistemas críticos de segurança. Entre os produtos, um intertravamento desenvolvido a partir do zero e que foi utilizado em várias linhas de metrô e trens urbanos no Brasil, Argentina, Chile e em São Francisco. Aposentei-me pelo INSS em 2017. No mesmo ano, fui desligado da empresa. Tive covid em 2020 – foi grave; fiquei internado mais de sete meses, de maio a dezembro. A covid deixou-me algumas sequelas, como capacidade pulmonar reduzida, fraqueza, insuficiência renal, hipotireoidismo. Mas dependendo apenas do hormônio da tireoide, venho melhorando continuamente da fraqueza, embora muito lentamente, desde a alta.

Agora, aos 64, estou voltando a fazer alguns serviços de consultoria na minha área. Um grande abraço a todos desta excepcional Turma 82! Muitos tiveram e têm grande importância para mim.

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Fráguas

RENÉRIO FR Á GUAS JUNIOR

ATIVIDADES

Li o relato do Verdi, feliz por ser considerado da Turma 82 tendo ficado apenas dois anos.

Eu fiquei dois meses! Foi difícil aceitar meu privilégio.

Obrigado pelos dois meses, pelos encontros da Turma e por mais esta oportunidade.

A DIFÍCIL ESCOLHA: ITA OU MEDICINA?

Morava em São José dos Campos, visitara a primeira Feira Aeroespacial no CTA. ITA era o sonho de trabalhar com tecnologia de ponta, trabalhar com os desafios, em padrão internacional. ITA era a primeira opção – não era engenharia, era ITA. Medicina seria a escolha natural. Em casa tinha o modelo: pai, Renério Fráguas, médico psiquiatra; mãe Ivone

K.M. Fráguas trabalhava em hospital.

Consegui passar no vestibular do ITA.

Antônio Guilherme Arruda Lorenzi, o grande amigo, colega de classe no Olavo Bilac, também passara no ITA. Não poderia ser melhor! Outro grande amigo, João Roberto Moreira Neto, colega de classe do ginásio no João Cursino, também passara no ITA. Eu estava em casa, e iniciei o ITA. Também havia passado no vestibular da Medicina da USP, mas realizei apenas a inscrição provisória.

O INÍCIO NO ITA

Foi impactante o início: “disciplina consciente” (era assim que se chamava?) – o professor deixava a prova na sala de aula e ia embora, e ninguém colava!! (é o que me lembro – não me corrijam se eu estiver errado). Era inacreditável!

Do apartamento, além do Guilherme, a lembrança do Christophe que logo pela manhã ficava em posição de oração, imóvel, inspirando muito respeito. Como morava em São José, nos finais de semana ia para casa; hoje sinto ter perdido o convívio no H8.

Embora por pouco tempo, tive a oportunidade de receber o convite para me retirar da sala de aula do CPOR – por estar dormindo!!! Fui acordado de um sono profundo pelo oficial-professor, que em pé ao meu lado muito gentilmente perguntou “O senhor não quer se retirar da sala para lavar o rosto?”. Nada como passar a noite toda acordado marchando no H8, ao ritmo das saudosas músicas com letras não muito eruditas, para ter uma experiência rica como essa!

A DECISÃO POR MEDICINA

Com um mês de ITA percebi que minha paixão por física era paixão, minha

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cabeça não estava mais lá. Parecia uma virose (covid), sentia febre, “freio de mão puxado”, o clima com os colegas era ótimo, mas minha cabeça não queria funcionar. Se não era ITA, era medicina; não existia a opção de engenharia.

Não tinha dado continuidade à matrícula para a medicina. O caminho seria mais um ano de cursinho.

SORTE DE ELEVADOR

Médico, ex-aluno da Faculdade de Medicina da USP, meu pai foi falar com o amigo, então Secretário da Faculdade de Medicina, para tentar resgatar a “inscrição provisória”. Com a afirmação taxativa do Secretário – “Se ele não fez a inscrição definitiva, perdeu a vaga” –, saiu decepcionado da sala. Como era seu costume, foi cumprimentando e conversando com quem encontrava no caminho.

Ao entrar no elevador, puxou assunto com a senhora a seu lado. Carismático, logo estava contando a história de seu filho que perdera a vaga porque havia feito apenas a inscrição provisória. Por uma “convergência estelar”, tratava-se da Dona Egle, secretária da graduação e mãezona de

muitos alunos. Tão logo meu pai iniciou a história, Dona Egle indagou: “Seu filho se chama Renério?”. Secretária como nunca, foi assertiva: “Ele precisa vir logo, senão vai repetir por faltas!” Pronto! Como era a primeira opção, a inscrição provisória tinha caráter definitivo, e minha vaga estava lá, salva pela conversa de elevador!

MAIS DO QUE SORTE DE ELEVADOR

Na primeira semana de pausa do ITA, sem sequer conseguir falar com meus amigos, fui para a medicina, onde me encontrei com as doenças e com a possibilidade de cuidar de pessoas –estava em casa. Seguindo as orientações e dicas da Dona Egle, fui ter com cada professor em companhia do Wagner, querido representante de classe. Depois de longas tratativas e muito estudo, pude, ao longo do ano, recuperar o período perdido e, enfim, acompanhar a turma.

A ESCOLHA ESTAVA ESCRITA EM UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO

Medicina e psiquiatria, historicamente, eram minha primeira opção. Pai psiquiatra, mãe trabalhando em hospital

RENÉRIO
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FRÁGUAS JUNIOR
Medicina e psiquiatria, historicamente, eram minha primeira opção. Pai psiquiatra, mãe trabalhando em hospital psiquiátrico, desde o nascimento “morei em um hospital psiquiátrico”.

psiquiátrico, desde o nascimento “morei em um hospital psiquiátrico”.

As instituições psiquiátricas estaduais de então, Chácara do Paraíso e Hospital Pinel em Pirituba, em São Paulo, capital, ofereciam moradia para alguns funcionários como diretor, administrador, secretário.

A residência em que eu morava era separada do Hospital Pinel por um portão (cuja chave, obviamente, eu pegava e entrava).

A casa dispunha de vários quartos anexos, onde moravam pacientes que, ao receberem alta, não tinham acolhimento da família nem local para morar, e então ficavam morando ali, em casa. Assim, até os 11 anos de idade, a convivência com esses pacientes e suas crises de ansiedade, delírios de perseguição, sintomas obsessivos, eram parte do meu dia a dia. Minha irmã, Adriana Mattos Fráguas, aos 10 anos de idade reunia cinco ou seis pacientes e dava aulas de alfabetização. Adriana hoje é psicóloga, professora e uma das fundadoras do Sistemas Humanos, um centro de excelência em formação de terapeutas familiares. Psiquiatria era o meu futuro. Nem o ITA e os queridos amigos e colegas podiam competir com tamanho determinismo.

A FMUSP

Em 1982, no 3º ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na Liga de Combate à Febre Reumática, tive o marco inicial da experiência em cuidar de um paciente e aprender com os mais experientes. Um dos pilares da formação médica. Naquela ocasião o aprendizado era com alunos do 4º ano (queridos Veloso e Elvira) – e, claro, também havia um professor formado. No ano seguinte, no 4º ano, o

início da trajetória de ensinar, então como monitor de alunos do 3º ano. Ficávamos quase duas horas com cada paciente, perguntando tudo. Via de regra o paciente agradecia muito o cuidado recebido. Minha vida acadêmica se completou com o futebol. Com o incentivo do amigo e colega de classe Tulio passei a jogar no time de futebol de campo da faculdade. Ao lado de dois outros psiquiatras, Eurípedes C. Miguel Filho e Geraldo Busatto Filho, formávamos o ataque da faculdade. Conseguimos o sonho da MED: ganhar uma MAC-MED (medicina da USP versus engenharia do Mackenzie), então a competição mais acirrada e almejada para nós. Talvez não tenha nada equivalente no ITA.

FORMAÇÃO EM PSIQUIATRIA

Fiz a residência médica em Psiquiatria, especialização formal em psiquiatria, no Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.

PRIMEIRA “PESQUISA” CIENTÍFICA

No primeiro ano de residência participei, como voluntário, de pesquisa em que recebi o benzodiazepínico flunitrazepam endovenoso – um indutor de sono. Dormi de imediato, acordei, escolhi meu almoço e almocei. No final do dia, irritado, pedi por meu almoço. Não tive nenhum registro na memória de ter almoçado!! Nem mesmo quando me mostraram o prato que eu havia escolhido no almoço foi possível resgatar o registro de memória. Tratava-se de uma pesquisa do professor Valentin Gentil Filho – a meu ver o psiquiatra responsável pelo desenvolvimento da psiquiatria baseada em evidências no Brasil –, investigando

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antagonista de benzodiazepínico para reverter quadros de intoxicação. Foram dois grandes aprendizados: primeiro, a ética e responsabilidade em pesquisa (diante do quadro amnésico pós-benzodiazepínico, fui levado para casa pelo próprio professor Valentim); segundo, colocar-se no lugar do paciente ao prescrever um medicamento!

Após a residência médica em Psiquiatria veio a preceptoria, primeiro passo em direção à carreira de professor.

Como preceptor, a responsabilidade era cuidar do estágio de psiquiatria para os alunos do 5º ano da FMUSP, tarefa que me levou a ser um dos professores homenageados na formatura daquela turma.

FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE

Ainda como médico residente iniciei minha formação em psicanálise fazendo os seminários clínicos e teóricos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Fiz minha análise pessoal e didática com a Dra. Stella Maris Garcia Loureiro por aproximadamente 10 anos com uma frequência de quatro vezes por semana. No final da década de 1990 foi preciso optar entre psiquiatria e psicanálise, pois não era possível continuar o aperfeiçoamento e o desenvolvimento com qualidade nas duas áreas de atuação. A opção foi pela psiquiatria e deixei de atender em psicoterapia.

A FORMAÇÃO NO BRASIL ERA SUFICIENTE – UMA CRENÇA VÃ

Por estar na USP, acreditava não haver necessidade de experiência no exterior. Convidava os melhores professores

americanos e ingleses para virem ao Brasil. E os convites eram aceitos! Na década de 1990 e início de 2000, organizava eventos, como o primeiro simpósio internacional sobre depressões secundárias (relacionadas a outras doenças), com quatro convidados internacionais, e também editava livros como o Depressões secundárias (617 páginas), publicado pela Atheneu.

UM ALMOÇO E O PÓS-DOUTORADO

NOS ESTADOS UNIDOS

Fiz o doutorado sobre Depressão após a Cirurgia de Revascularização Cardíaca. Naquela pesquisa encontrei algo intrigante: pacientes com doença coronariana tinham uma depressão peculiar, marcada por irritabilidade e não por tristeza.

No início dos anos 2000, em um almoço, o grande amigo Eurípedes C. Miguel Filho (hoje professor titular de psiquiatria), que insistia na importância de uma experiência no exterior, comentou sobre Maurizio Fava, professor da Harvard, que na visão de Euri seria um ótimo mentor. Pronto! Maurizio Fava era e é o maior pesquisador em depressão com irritabilidade/raiva, autor que dava os fundamentos para os achados da minha tese de doutorado.

Assim deixei meu consultório, irmã, mãe (pai era falecido) e fui com Mônica (querida esposa), Marina (querida filha) e Gustavo (querido filho) para Newton, cidade perto de Boston.

PÓS-DOUTORADO NA DCRP DA HARVARD MEDICAL SCHOOL

Por dois anos e dois meses, vivi a realidade do sonho americano. Oportunidade, justiça, respeito, segurança,

RENÉRIO FRÁGUAS JUNIOR 386

liberdade e, por incrível que pareça, muito calor humano foram os temperos desses anos.

No Depression Clinical and Research Program da Massachusetts General Hospital da Harvard Medical School, sob a coordenação do prof. Maurizio Fava, pude participar do maior estudo de tratamento de depressão realizado até hoje: o Star*D. Tive a oportunidade de ser o principal autor de um dos artigos do estudo. Era preciso trabalhar, aprender, mas existia a oportunidade e o suporte. Maurizio Fava era o modelo de coordenador de equipe. Iguais oportunidades, 1. você aprende, 2. você faz, 3. você ensina.

A vida por lá parecia propaganda americana. Uma semana depois de iniciadas as aulas das crianças, no site da escola tinha uma bandeirinha do Brasil onde, ao se clicar, aparecia o nome dos meus filhos – era assim com as demais crianças estrangeiras que ali estudavam. Festinhas na escola? Quem organizava eram pais, mães e professores. Quem brincava com as crianças nas festinhas? Pais, mães e professores. No treinamento de times de futebol das crianças, quem eram os técnicos? Pais e mães das crianças.

Mônica fez estágio no Boston

Children’s Hospital, onde participava das visitas médicas e discussões de caso interdisciplinares. Nas reuniões, a professora do Gustavo o abraçava ao falar dele, a professora da Marina disse que, ao voltarmos para o Brasil, ela adotaria a Marina se a Marina quisesse morar nos Estados Unidos.

BRASIL PÓS-BOSTON

De volta ao Brasil, retomei minhas atividades acadêmicas na FMUSP. Aprovado para Professor Livre-Docente, venho atuando como professor associado do Departamento de Psiquiatria.

Graças ao empenho dos professores Eurípedes Miguel, Sandra Grisi e outros, pude participar da criação da Divisão de Psiquiatria e Psicologia do Hospital Universitário da USP, da qual sou o atual coordenador.

A parceria com o amigo do pós-doutorado Dan Iosifescu, atualmente na New York University School of Medicine , permitiu o desenvolvimento de pesquisas em colaboração e a publicação de vários artigos científicos.

No Hospital Universitário tive o privilégio de trabalhar com o professor André Brunoni e de participar de pesquisas internacionalmente mais influentes com estimulação elétrica transcraniana por corrente contínua para o tratamento da depressão.

Atualmente, em conjunto com os alunos da Diretoria Científica e da Revista da FMUSP, ofereço a disciplina optativa “Abordagem Prática à Escrita Científica”, onde os alunos, ao final do curso, escrevem uma revisão de literatura em inglês sob a tutoria de um professor – experiência extremamente rica, em que conto com a parceria do professor Heraldo Possolo de Souza, outro ex-aluno do ITA!

Mônica, querida esposa e extremamente companheira, hoje é chefe do berçário da ProMatre Paulista, função que exerce com dedicação e competência incomparáveis.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 387

RENÉRIO FRÁGUAS JUNIOR

Meus queridos filhos são motivo de orgulho pelo modo como cuidam dos amigos da família e de nossos cachorros! Gustavo é engenheiro ambiental e Marina é designer . Aproximadamente metade de meu período dedico-me ao consultório com a inestimável ajuda da Ângela Ferreira,

secretária insubstituível. Conto ainda com a parceria do grande amigo Dr. Bruno Pinatti. A psiquiatria evoluiu muito. Felizmente os pacientes melhoram e o trabalho é muito reconhecido. Queridos amigos da Turma 82, até o próximo encontro!

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Bebeto

ROBERTO CASTAÑON PENHA VALLE

Eu tinha 17 anos e estava no ponto de ônibus no Méier, junto à linha de trem, num certo dia de 1976, quando fui abordado por um rapaz mais velho que eu, me pedindo dinheiro. Eu disse que estava com o dinheiro contado para a passagem (na verdade, não queria abrir a carteira na frente dele, treinamento básico de sobrevivência no Rio), e ele retrucou: “E se eu te enfiar a faca?”. Nem me lembro o que gaguejei em resposta. O fato é que a faca, se existia, não foi enfiada, e essa foi a primeira vez em que eu passei a considerar mais seriamente a possibilidade de fazer faculdade fora do Rio.

O segundo sinal, de forma mais positiva, surgiu também no Méier, uma noite, quando eu andava na passarela sobre a linha do trem e vinha, em sentido contrário, um sujeito bem alto, com uma tremenda cara de estrangeiro, com uma câmera fotográfica Reflex pendurada no pescoço. Ele olhou para mim, se aproximou e perguntou, arranhando um português de gringo: “Onde estar Copacabana?”. Percebi logo que ele havia tomado o ônibus Méier-Copacabana no sentido errado. Levei-o de volta ao ponto final do ônibus, expliquei a ele como proceder, avisei motorista e cobrador, e segui meu caminho. Depois fiquei pensando com meus botões como seria interessante se eu pudesse fazer como ele: viajar a turismo

ou a trabalho para lugares distantes – e o que seria necessário para viabilizar isso. Terminando a Escola Técnica Federal, e ciente de que a base era forte em exatas mas fraca em biomédicas e humanas, matriculei-me na turma IME-ITA do curso Impacto. Foi um ano extenuante, com aulas de segunda a sábado, domingos para revisar e estudar as matérias e, no frigir dos ovos, fui aprovado em engenharia no IME, no ITA, na UERJ e na UFF. A combinação da magia em torno do curso de engenharia aeronáutica (que eu sequer entendia direito do que se tratava), a possibilidade de iniciar uma nova etapa da minha vida fora do Rio e a perspectiva de uma vida mais independente, longe da família, me levaram a escolher o ITA.

Os cinco anos de ITA correram num clima muito bom de camaradagem, bastante estudo, pressão por notas (maior nas matérias que envolvessem eletricidade, eletrônica etc.), tristeza com a perda de alguns colegas falecidos prematuramente, minha dedicação ao atletismo (opção natural para pessoas como eu, sem a menor adaptação a esportes com bola, ressalvada a sinuca) e exploração da vida noturna joseense, que frequentemente terminava com o

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encerramento das atividades dos bares e longas caminhadas de volta ao CTA. Era dura a vida de quem não tinha berço nem carro.

Uma vez formado, segui trabalhando na indústria vidreira, onde já era estagiário fazia um ano. Muito pode ser especulado sobre o porquê de um engenheiro aeronáutico deixar de trabalhar na Embraer e preferir a Providro, mas o fato é que não havia nenhuma grande estratégia por trás dessa decisão, e sim que meu chefe e o CEO do grupo vidreiro eram iteanos, e me foi prometida uma viagem de treinamento ao exterior por um ano, além de um salário marginalmente mais alto que o da Embraer – ou seja, meu horizonte de planejamento de longo prazo mal chegava a um ano.

Na minha vida profissional não tive grande rotatividade. Basicamente trabalhei em três segmentos distintos: vidros, lâmpadas e energia solar fotovoltaica. No setor de vidros, passei por todas as principais áreas: vidros planos, vidros automotivos e para construção civil. No setor de lâmpadas, me envolvi com produção, engenharia, qualidade, logística, e tive oportunidade de travar contatos externos com entidades patronais (Fiesp) e governamentais

(Conama, MMA). No setor de energia solar fotovoltaica, pude me envolver com o relevante tema das energias renováveis, fazendo algumas apresentações para pessoas e empresas interessadas, em feiras de negócios.

O ITA certamente abriu portas para profissões que me permitiram viajar bastante, a trabalho ou a turismo, pelas Américas, Europa, Ásia e África. Essas viagens foram muito importantes na minha formação como ser humano, por me ajudarem a ver que sempre podemos aprender e melhorar, e também a derrubar barreiras de preconceito.

Casei-me, tive um filho, me separei, casei-me novamente e sosseguei. Meu filho Rodrigo é, por gosto e pela faculdade que cursa, mais ligado do que eu à sociedade digital contemporânea, e eu espero sinceramente que ele e sua geração façam um Brasil melhor que o que estão recebendo da minha geração. Hoje estou aposentado, sem ter planejado isso nem por um minuto (assim como ninguém planeja ser pego numa tempestade na rua sem guarda-chuva), mas somente no sentido profissional, pois no mesmo dia

ROBERTO CASTAÑON PENHA VALLE 390
Essas viagens foram muito importantes na minha formação como ser humano, por me ajudarem a ver que sempre podemos aprender e melhorar, e também a derrubar barreiras de preconceito.

em que deixei meu último emprego como consultor, já comecei uma nova etapa na vida como tutor de uma border collie adotada (Dina), hoje com sete anos; tornei-me um ávido consumidor de livros e de filmes e

séries da Netflix, e provador-chefe das guloseimas inventadas e cozinhadas pela minha querida esposa nutricionista Rosana.

Haverá um novo capítulo nessa história? Nem eu nem ninguém sabe.

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 391

Ruyzão

RUY ANTONIO MENDES AMPARO

“Yo tengo tantos hermanos, que no los puedo contar.”

Há duas características que carrego comigo desde sempre. Uma delas ter a noção de “bando” (quem viu a Era do gelo com filhos ou netos sabe do que se trata), ou seja, ter um comportamento gregário, com gente que pode ser até diferente de mim, mas que compartilhe dos mesmos valores pessoais. A outra é acreditar que o bom-humor é muito importante, desde que na medida de cada situação e com o devido respeito. Foi assim desde o ginásio e o colégio; em ambos os casos até como muletas que me ajudavam a vencer (ou disfarçar) uma timidez gigante. Entrar no ITA foi uma das primeiras ocasiões na vida em que tive de ser egoísta no sentido de ir para onde meu instinto (ou meu coração) mandava. Nos “bandos” a que pertencia nenhum dos meus amigos gostava tanto de aviões ou tinha a mesma dúvida cruel entre engenharia e medicina (filho de dois médicos, essa dúvida me perseguiu até os primeiros anos do curso; nas primeiras provas de algumas matérias confesso que bateu um impulso

de largar tudo e seguir a profissão dos meus pais). Havia até alguns tentando o ITA, mas muito mais pela qualidade da escola do que propriamente pela paixão pela aeronáutica (curiosamente, no meu caso, inoculada por meu pai, em uma história talvez para outro texto do nosso Álbum de recordações).

A USP também estava valendo para aqueles amigos, enquanto virar um ser de branco (não uma assombração, bem entendido) seria minha decisão, caso não passasse no ITA em duas tentativas.

As divindades, no entanto, me colocaram no ITA (até hoje tenho a certeza de que tive ajuda sobrenatural nas provas de Física e Matemática, certeza aumentada quando vi a qualidade impressionante de vários de nossos colegas – eu vinha de escolas públicas e de um cursinho modesto, feito à noite).

E essa ajuda me manteve lá. Os amigos do 116 perderam a conta de quantas vezes, em noites anteriores a provas difíceis, fiz promessas (mesmo não sendo religioso, mas no desespero o sujeito perde alguns pudores) de ir de joelhos até Aparecida do Norte se rolasse ao menos um “R” no dia seguinte. Por vezes, a coisa se sofisticava: em algumas

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O ITA E OS ITEANOS EM MEU CAMINHO

provas do Mestre Tossio cheguei a prometer ir num joelho só e pela pista esquerda da Dutra. Promessas nunca cumpridas, devo confessar, mas também nunca cobradas. Acho que os santos já deviam estar acostumados a iteanos desesperados. Esses santos, a quem agradeço sempre, além de me proporcionarem fazer parte do ITA e, para além do diploma, ganhar uma formação profissional e pessoal que me ajudou de modo decisivo ao longo destes quase 40 anos, sobretudo me deram uma segunda família: a Turma 82. O curioso é que, como numa família, há aqueles mais próximos, há os que não vejo sempre mas com quem tenho uma afinidade muito grande, então tempo e espaço não atrapalham, há os mais distantes, há os com quem não tenho liberdade porque já não tinha muita ligação no ITA, há um número razoável de pessoas que as últimas iniciativas (as lives , o Álbum, a foto) trouxeram para mais perto. Aqui há que se lembrar o esforço do Sartô e dos colegas que abraçaram a causa de (re)unir a Turma. Há também colegas dos quais discordo fortemente em várias posições pessoais e –não há por que ter hipocrisia aqui – alguns poucos com quem (na minha família também tem desses) não faço muita questão de me relacionar (são poucos, mas existem).

O ITA então nos colocou algumas extensões na cadeia de DNA que trouxemos de nossas casas, de nossa formação básica, e isso também foi decisivo no que nos aconteceu, isoladamente ou em grupos, nos campos profissional e pessoal, nas quase quatro décadas que se seguiram àqueles dias do início de dezembro de 1982, quando o grosso da Turma (comigo junto) deixava finalmente e de vez o H8. Como todos

sabemos, o pertencimento à Turma 82 significa ter estado nela por tempo suficiente para a memória prodigiosa do Afonso registrar, o que faz com que tenhamos colegas na Turma que saíram do ITA (por vontade própria ou não) ao longo do tempo em que lá estivemos, e se formaram em outras escolas (não necessariamente de engenharia), ou alguns que trancaram e tiveram a formatura no ano seguinte, ou ainda alguns que trancaram de turmas anteriores e se formaram em 1982.

“Réxi-tégui” somos todos Turma 82! Este grupo, com a característica de família que coloquei antes, foi de enorme importância em diversos estágios de minha vida profissional e pessoal pós-ITA (graduação), e há algumas histórias que, esmiuçadas, dariam (e talvez ainda isso aconteça) outros textos para nosso Álbum. Vou aqui apenas sintetizar algumas delas.

Se a turma era minha família, o apartamento 116 era então (continua sendo, na verdade) a família próxima. Ficamos juntos os cinco anos, no mesmo lugar, dividindo as alegrias e agruras de um modo aberto e sensacional. Seis sujeitos muito próximos, muito iguais em alma mas muito diferentes no que queriam para sua vida profissional, tanto que cada um seguiu um caminho final diferente, embora Carmo, Suguita e eu tenhamos começado a vida na Embraer, como boa parte da Turma 82. Aliás, os aeronáuticos (outras especialidades também, mas em menor proporção das respectivas turmas) em peso foram para a Embraer logo de cara, tanto pela afinidade com o mundo aeronáutico quanto pela sedutora possibilidade de expatriação.

A Embraer era um lugar delicioso de

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 393

trabalhar, eu fazia o que gostava (aeroelasticidade), em meio a um mundo de iteanos, muitos da Turma 82, com acesso a ferramentas tecnológicas que, se hoje estão mais para exposição em museu, à época eram o que de mais avançado se tinha. E eu cruzava com alguns dos meus ídolos iteanos a todo momento: Ozires, Ozilio, Guido, Michel Cury, o pessoal que fez nascer a indústria aeronáutica brasileira. (Alguns anos mais tarde, já na TAM, meu caminho cruzou novamente com alguns deles, falo um pouco mais disso à frente.) Vários de nós fomos expatriados pelo projeto AM-X na Itália, um período em que grandes amizades dos tempos da escola se fortaleceram (Otto, Guigui, Segre, Shinzato, Hayashi e outros) e outras fortíssimas acabaram se estabelecendo, com colegas da Turma 82 que eram de outras panelas (Butti, Hirdes e vários outros). Aqui vou ter de escrever algo em separado para o nosso Álbum sobre o Tim Maia. O tempo em que dividimos apartamento em Varese foi simplesmente incrível! Um entendimento enorme de personalidades diferentes, resumido em uma frase inesquecível: “Ruyzão, você é legal, eu sou legal; então tá tudo certo!”, obviamente dita com um forte sotaque carioca...

A Itália deu muita diversão para a (então) garotada de 22 anos, mas também nos trouxe o prazer de mostrar aos italianos que nossa formação não era de brincadeira. Onde não houve uma certa contenção (a palavra “sabotagem” é exagerada, mas em alguns casos beirou a isso), o que não foi meu caso, deixo claro, fizemos alguns trabalhos muito bons, surpreendendo alguns italianos que tinham uma visão preconceituosa tanto sobre a formação de

engenheiros no Brasil quanto pela nossa idade – nossos vinte e poucos anos, como cantaria Fábio Jr. (nada a ver com o filho do Segre). E novamente o apoio da moçada da Turma em terras estrangeiras era muito legal e importante. Era muito bom viajar em conjunto, sempre que podíamos, inclusive para visitar Luisão e Christophe em Paris (vamos combinar que é um lugar muito bom para se ter amigos). Tive a honra de estar presente na formatura do Reinaldo no mestrado (em Eindhoven, Holanda), uma viagem curta mas interessante. Enfim, boas (algumas divertidíssimas) histórias, também já pedindo outro texto. Voltando da Itália, a Embraer ainda estava a todo vapor. Em 1986 Ozires Silva aceitou o convite para presidir a Petrobras e Ozilio Silva ficou em seu lugar. Em 1987 recebi e aceitei um convite para trabalhar em uma empresa de desenvolvimento e fabricação de mísseis, sociedade de Engesa e Embraer, também repleta de iteanos (muitos da Turma 79), onde já estava o Shinza, chamada Órbita. Otto também foi para lá, e ficamos ambos na Aerodinâmica, chefiados pelo Wagner Amaral (Turma 79). Por diversos motivos, entre eles as nuvens negras que se abateram sobre o Brasil e em especial sobre a indústria aeronáutica, a empresa não foi para a frente, e Otto e eu acertamos nossa volta à Embraer. Em um fato que acabou decidindo muita coisa que aconteceu em minha vida profissional e pessoal, depois de tudo acertado, quase no início dos trabalhos recebi um telefonema –honesto mas constrangedor – dizendo que havia restrições à minha admissão na Embraer, por questões da segurança patrimonial. Mais tarde descobri que, tendo

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assinado um manifesto (nem tenho ideia se aconteceu mesmo; não lembrava e ainda não lembro disso) contra a violência dos guardas da portaria (que supostamente haviam batido em sindicalistas ou coisa que o valha), eu estava vetado para ser admitido de volta. Era uma situação estranha... como se minha mãe não me recebesse em casa no fim de semana. Fiquei passado! Anos mais tarde, Ozilio (que no fim dos anos 1990 foi nosso consultor na TAM e viajamos juntos para fazer benchmarking de hangares) me contou que o caso chegou até ele (então presidente da Embraer), com o pessoal técnico (todos iteanos) fazendo uma força para o meu lado, e o time de segurança patrimonial (sei lá quem seriam...) insistindo na manutenção dos critérios internos, o lado que ganhou. O fato é que, apesar de ter sido uma situação bem desagradável para mim, ela acabou involuntariamente me colocando em caminhos profissionais bem diferentes. Eu gostava muito dos trabalhos com aerodinâmica, aeroelasticidade e afins, e, não fosse esse percalço, talvez trabalhasse na área ainda hoje, como tantos colegas que admiro. O pessoal da Órbita foi sensacional, e embora eu já houvesse comunicado minha volta para a Embraer, me acolheu de volta sem problemas. A empresa já não vinha bem, no entanto (demitiu dois terços dos funcionários, Shinza e eu ficamos, escapamos

da “foice”), e eu sabia que teria de fazer algum movimento de carreira. Como estava terminando os créditos do mestrado, uma opção era a carreira acadêmica, que seria uma forma de permanecer na área. Terminar o mestrado (os créditos estavam completos, e já iniciava os estudos para a tese, com o Mestre Soviero, da Turma 77), fazer talvez um doutorado fora e possivelmente me tornar professor... Não era má ideia. Eu gostava de aprender e seria um modo de deixar a crise passar, mas aí as coisas mudaram novamente, e as divindades que escreveram meu caminho me aprontaram mais uma (boa) surpresa...

No Sábado das Origens de 1989, ali pelo início de setembro, enchendo a cara com a moçada da Turma 82 e outros iteanos de São José, me aparece o Falco e faz um convite para trabalhar na (então) TAM Regional, onde ele já estava desde formado (foi um dos poucos aeronáuticos que não quis ir para a Embraer e enxergou o potencial da TAM já como estagiário). Estava montando uma equipe para introduzir na companhia o primeiro jato digital, e queria um time de iteanos por lá – e, de fato, o grupo acabou sendo formado pelo Anderson (Turma 61), Alcides (Turma 79), Novato (Turma 81), o próprio Falco e eu. Uma frase inesquecível foi “Você vai trabalhar muito, ganhar pouco, mas é muito legal”. Tudo verdade. Apesar

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Uma frase inesquecível foi “Você vai trabalhar muito, ganhar pouco, mas é muito legal”.
Tudo verdade.

de ter de botar na prateleira os sete anos e pouco de experiência, e abandonar o mestrado, a situação ruim do mercado em São José (eu ainda estava empregado, mas as coisas não estavam bem para a indústria aeronáutica) e as lembranças de meu pai me levando para ver aviões comerciais pousando e decolando em Congonhas, mais a certa fama de competência empresarial do Comandante Rolim (que depois cresceu muito) e o poder de convencimento do Falco tornaram a decisão muito rápida – meu instinto dando a certeza de ser o caminho certo. E foi mesmo! Em pouco mais de 26 anos por lá, tive a felicidade de trabalhar com gente muito competente, o prazer de trabalhar com aviação tornando fácil a enorme dedicação necessária, e o crescimento da TAM também acabou fazendo minha carreira andar de um modo que não poderia imaginar. Chegamos a ter mais de vinte iteanos por lá, alguns icônicos, como Prim (Turma 53) e Arthur Araújo (Turma 54), este um grande mentor. Shinzato se juntou a nós ainda no início dos anos 1990, e Butti fez um “toque e arremetida” (como dizem os aviadores): estava no início dos trabalhos (em 1997) quando o Schalka “comprou seu passe” para ir cuidar da Dixie na Argentina. Ao mudar de São José para São Paulo também comecei a namorar minha esposa, que há mais de trinta anos tem uma enorme paciência com minha dedicação profissional pela aviação.

Foram anos de intensidade incrível, sendo os iniciais realmente de salários baixos e muito trabalho, mas havia a visão de que se construía algo, o que de fato aconteceu. Muito aprendizado (os lançamentos de ações em 2005 no Brasil e em 2006 em Nova York

mexeram com a Companhia toda, e até a sua venda para os chilenos me trouxeram cinco anos interessantíssimos – mesmo sabendo que minha posição não existiria mais ao fim do processo) se somou a situações duríssimas – caso dos dois acidentes em Congonhas, em 1996 e em 2007, em que a resiliência e a confiança de um profissional no que faz são testadas ao extremo, e em que tive um sensacional e emocionante apoio maciço e decisivo da Turma 82, por mensagens, telefonemas ou conversas nas quais colocavam seu apoio e sua confiança em nós (Shin e eu, e Falco no primeiro deles) para seguirmos em frente. Não custa repetir aqui o quanto sou grato ao pessoal da Turma por isso, e novamente às divindades por fazer parte da Turma 82. Falco foi meu chefe direto na TAM entre 1989 e 1997. Sabíamos sempre separar o fato de sermos colegas de turma da hierarquia profissional. Ele sempre foi um trator, e o crescimento da TAM nos anos 1990 tem muito do seu espírito “indomável”. Acabou sendo o iteano ao qual me reportei por mais tempo na carreira, “entre tapas e beijos”, como na canção sertaneja. Por outro lado, chefiei direta ou indiretamente muitos iteanos, e é sempre muito fácil lidar com eles. Shinzato, esquecendo toda a amizade que temos, é um profissional de uma competência enorme, do tipo que faz com excelência qualquer projeto ou missão que você der. Trabalhávamos com um entrosamento sensacional, e ele me substituiu na Latam.

Além de Falco e Shinzato, alguns iteanos foram também importantes referências dentro da TAM nas quase três décadas em que lá estive, mas tenho de citar três deles, com os quais aprendi muito: Astrogildo

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Anderson, que entrou comigo na TAM e que, com mais de 55 anos de vida à época e uma experiência enorme em supply chain em grandes companhias, nos tratava como iguais; Sérgio Novato, da Turma 81 (cujo pai, curiosamente, foi amigo de infância do meu em Franca, uma ligação perdida nos anos 1940 e que resgatamos no ITA e depois na TAM), um talento da engenharia estrutural e um conhecimento gigantesco do lado técnico da aviação comercial; e Arthur Araújo, da Turma 54, que se aposentou como diretor técnico da Rolls Royce e o Falco capturou para trabalhar conosco. A este veterano iteano devo uma generosa orientação em momentos complicados, com um inigualável humor estilo inglês. Ele trabalhou conosco até um mês antes de falecer (e ainda com entregas importantes), não se deixando abater por um câncer de pulmão que finalmente o levou.

Em outra prova de que a vida dá sempre muitas voltas, acabei tendo a chance de me encontrar na TAM com os iteanos que eu idolatrava na Embraer. Ozires Silva era muito amigo do Comandante Rolim (presidente da TAM) nos anos 1990, e volta e meia nos encontrávamos por lá.

Curiosamente fui junto com esses dois “monstros”, referências em minha vida profissional ao roll out do EMBRAER 135.

Ozilio Silva nos prestou consultoria no fim da década de 1990, fizemos algumas viagens juntos e foram muitas horas ótimas ouvindo as histórias dos veteranos (seu filho, Daniel Silva, também iteano, foi estagiário meu e do Otto na Órbita e o reencontrei anos depois na Boeing, já como um VP Comercial por lá). Guido Pessotti, o famoso e temido (mas também admirado) “Guidão”, diretor

técnico da Embraer no começo da minha carreira, nos visitou na TAM junto com um grupo de pessoas ligadas à indústria aeronáutica do sudeste asiático, e os (acho) coreanos notaram que eu tinha um respeito enorme por ele e pelo que havia feito pela aviação no Brasil. Por fim, Michel Cury, o copiloto do primeiro voo do Bandeirante, se tornou um representante comercial de equipamentos de solo para aviação, e de vez em quando nos encontrávamos.

Esse tempo todo na TAM dá um livro, que de fato já comecei a escrever, para não deixar que a senilidade leve várias histórias boas –algumas tensas, mas muitas bem engraçadas. Como não tem o Guigui pra cobrar, de repente o Alzheimer ganha a corrida!

Seguindo em frente, a saída de um trabalho de quase 27 anos é quase como o fim de um casamento. Apesar de não ter reclamações sobre como o pessoal da LAN me tratou, garanto que psicologicamente foi muito dura essa transição. O corte do cordão umbilical contou novamente com a preciosa ajuda dos amigos iteanos. Butti e eu almoçávamos com alguma frequência (ele também em transição de carreira), discutindo o futuro. Soiza me cedeu uma sala em seu escritório, o que foi importante para um recomeço. Loures me convidou a falar para seus alunos no ITA. Bortman, Berga, Hirdes, Ponte e alguns outros colegas da Turma também deram muita força, tendo ou não consciência disso. Em seguida, voltei ao trabalho na empresa da família do Comandante Rolim que não foi vendida no negócio da Latam – a TAM Executiva – e foi divertidíssimo. Como curiosidade, eu era responsável pela Unidade de Negócios de Manutenção, e um

40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA 397

dos meus competidores era uma empresa de propriedade do Falco. Que ironia!

Já estabilizado depois do “divórcio” com a Latam, eu me dei conta de que a hora era de “retribuir à sociedade”, ou manifestar minha gratidão aos santos pelo que já me havia acontecido. Saí da TAM, aceitei um convite para colaborar com a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), o que na pandemia tem sido extremamente demandante (mas gratificante), onde havia dois iteanos (um deles, o Benevides, da Turma 84) em um time de quatro (os outros dois são pilotos), dei aulas gratuitas

em um MBA para pessoal da aviação, junto com (novamente ele) o Shinzato; colaboro com o ITA sempre que me chamam, como membro independente de Banca de Mestrado em Segurança de Voo; me divirto com os “embates” nos grupos de WhatsApp da Turma, e tenho um prazer enorme em rever todos nos trabalhos do Álbum com Guigui e Afonso ou nas lives com Swiba e companhia. E sigo agradecendo às divindades que, vez por outra, me colocam nos caminhos certos, em especial pelo grande privilégio de ter feito o ITA... e na gloriosa Turma 82!

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Vaguinho

VAGNER LAERTE ARDEO

AS SEMENTES, ALGUNS FRUTOS, E A ETERNA PAIXÃO PELAS FLORES

Nasci numa família de classe média baixa no bairro da Água Funda, na cidade de São Paulo. Meu pai – Laerte – trabalhava como motorista numa empresa siderúrgica. Desde cedo meus pais me incentivaram muito a estudar. Minha mãe – Clara – me alfabetizou aos 4 anos; de modo que, quando comecei o pré-primário, eu já sabia ler.

O primário eu fiz numa pequena escola pública de bairro. Naquela época os meus avós maternos me compravam semanalmente a revista Recreio , que era muito divertida. Depois passei no antigo exame de admissão, e fui para uma escola pública estadual – o “Brasílio Machado” –no bairro da Vila Mariana, que era, então, uma das boas escolas públicas paulistanas. Fiz lá o antigo ginásio, numa das chamadas turmas “experimentais” – proposta pedagógica que enfatizava trabalhos em grupo, criatividade e responsabilidade social, desenvolvida e coordenada por duas jovens professoras formadas pela USP. Essa fase foi muito importante para a minha formação. Depois fiz, lá também, o colegial, já no formato normal, optando pela área de exatas, porque eu gostava de matemática.

Ao final do 2º ano do colegial, obtive bolsa quase integral junto ao curso pré-vestibular Objetivo, na Avenida Paulista. Assim, em

1977, pela manhã eu cursava o 3º ano no Brasílio, à tarde descansava, e à noite fazia o cursinho no Objetivo. A meta era entrar na Poli, mas resolvi tentar o ITA, mesmo achando que seria difícil passar. Na inscrição optei pela Engenharia Aeronáutica, porque me pareceu a opção mais charmosa.

Fiz as provas do vestibular do ITA, que foram extremamente difíceis. No entanto, certa manhã fui acordado por meu pai com um esfuziante abraço de parabéns. Ele havia comprado o jornal com a lista dos aprovados, e o meu nome lá constava! Foi um dia muito especial para mim e para toda a minha família.

Acabei sendo também aprovado na Poli e cheguei a fazer matrícula lá, mas, depois de refletir um pouco, optei pelo ITA. A oferta de alojamento, alimentação e alguma remuneração implicava que eu deixaria imediatamente de onerar meu pai. Além disso, havia o desafio que o ITA representava. Assim, em janeiro de 1978 cheguei ao hotel de trânsito do CTA, com 17 anos, pronto para um novo ciclo em minha vida.

O início do curso foi bastante intenso. Logo entendi que a dedicação aos estudos deveria ser total. Aos poucos fui me

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acostumando a isso e ganhando mais confiança. E, a partir daí, comecei a frequentar atividades culturais, porque tinha necessidade de complementar a minha formação em humanas, e compreender melhor o Brasil e as suas necessidades.

Também comecei a dar aulas particulares em São José dos Campos, e no cursinho CASD. No 3º ano do ITA comecei o estágio no Inpe, com o Nelson Mascarenhas, em sensoriamento remoto, e passei a colaborar mais com o centro acadêmico, o que me levou a candidatar-me à presidência do CASD quando estava no 4º ano. Em verdade o meu candidato era o José Auri, mas como ele decidiu deixar o ITA para fazer filosofia, tive que aceitar a candidatura. Fui eleito por pequeníssima margem de votos, em sua maioria vindos das turmas mais jovens. E a partir daí dediquei-me ao processo de reforma do estatuto do ITA, com o objetivo de que os alunos pudessem ter algum nível de participação na gestão da escola, visando aperfeiçoá-la.

Numa reunião de ex-alunos do ITA realizada em 1981 no auditório, pedi a palavra ao Reitor, que a contragosto a concedeu, e falei de improviso sobre os problemas então vividos pelos alunos, e de como juntos – gestores, professores, alunos e ex-alunos – poderíamos equacionar as dificuldades e trabalhar por um ITA melhor. Fui aplaudido de pé durante alguns minutos. Porém aquele discurso de improviso foi percebido pela reitoria (e talvez pelo MAER) como uma ingerência na gestão do ITA, e decidiu-se que eu deveria ser punido por aquela ousadia. Na semana que antecedeu as provas finais do segundo semestre do 4º ano, eu e o meu querido amigo Mauricio

Fulco faltamos juntos, por acaso, a uma determinada aula e com isso ultrapassamos, também juntos, o limite de faltas – uma regra que na prática não se aplicava havia muitos anos, porque os professores normalmente aceitavam a posteriori as justificativas de ausência e abonavam as faltas, uma vez que o mais importante eram as notas. Nesse caso, porém, não seria assim. Descobri depois que todos os meus passos (literalmente) vinham sendo monitorados por agentes da Aeronáutica. E assim, malgrado todos os esforços liderados pelos amigos da Turma 82 (manifestação, reuniões) junto à reitoria do ITA, e acima, eu e o Mauricio Fulco tivemos a nossa matrícula trancada. Algo muito triste e injusto, principalmente pela punição dada ao Mauricio, que nunca teve qualquer envolvimento político. Passei o primeiro semestre de 1982 na Unicamp, frequentando alguns cursos como ouvinte, quando tomei duas decisões:

(i) nunca mais me candidatar a cargo político de qualquer espécie, e (ii) estudar economia. Isso porque compreendi que era imprescindível para entender o Brasil. E para tal, dado que faltava tão pouco, o melhor a fazer seria voltar e me graduar no ITA, o que depois me qualificaria para um mestrado em outra área. Foi o que fiz. Voltei, e acabei me formando. Nessa volta ao ITA, Mauricio Fulco, Marco Antônio Lopes e eu nos tornamos amigos inseparáveis, formando o que foi chamado de o “SURULOPARDEO” pelos colegas da Turma 83.

Ao longo do 5º ano do ITA a minha expectativa era, depois de formado, ir trabalhar na área de sensoriamento remoto do Inpe, dando sequência ao meu trabalho de graduação. Porém, a criação da vaga para

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a qual eu seria contratado não aconteceu em tempo hábil, e acabei decidindo ir para o Rio de Janeiro, para trabalhar na Cecia (hoje Anac). Poucos meses depois surgiu uma vaga e fui contratado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também no Rio de Janeiro, à época dirigido pelo Prof. Michal Gartenkraut (Turma 69). Ele foi o meu orientador no ITA, e um exemplo para toda a minha vida. Ao que eu saiba, ele foi o primeiro iteano que se dedicou a estudar a fundo a economia brasileira, tendo chegado a ocupar a posição de secretário-executivo do Ministério da Fazenda. Já bastante maduro, foi reitor do ITA, e em sua gestão obteve aprovação da congregação para a entrega de diplomas de graduação aos alunos do ITA expulsos por motivos políticos nos anos do regime autoritário. Lembro de ouvir diretamente dele que isso era fundamental para corrigir erros históricos, pois em instituições de caráter científico a liberdade de pensamento é elemento imprescindível. Quando cheguei ao Ipea encontrei por lá alguns ex-alunos do ITA, entre eles Kaizô Beltrão (Turma 76), que trabalhava com modelos estatísticos de projeção do sistema previdenciário do Brasil (e já em

1984 previa que isso seria futuramente um grande problema); Ricardo Paes de Barros (Turma 79), dedicado às questões sociais; Lauro Ramos (Turma 79), dedicado ao estudo do mercado de trabalho; e Armando Castelar (Turma 79) dedicado às questões macroeconômicas. Todos eles eram, assim como eu, “pupilos” do Michal. Além desse grupo oriundo do ITA, lá no Ipea tive a felicidade de conhecer muitos dos melhores economistas do Brasil. Assim, pude participar das principais discussões da economia brasileira. Inicialmente passei a integrar o Grupo de Energia, que estudava o impacto dos choques da elevação dos preços de petróleo (1973 e 1979) sobre a economia brasileira, bem como formas de reduzir a dependência do Brasil em relação ao petróleo importado. A reação tardia do Brasil a esse problema acabou por gerar forte crise de balanço de pagamentos e consequente moratória dos pagamentos da dívida externa brasileira, aceleração da inflação e recessão econômica.

Os meus primeiros meses e anos no Rio de Janeiro também foram decisivos para a minha vida pessoal. No Ipea conheci a economista Sônia Maria, linda

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Além desse grupo oriundo do ITA, lá no Ipea tive a felicidade de conhecer muitos dos melhores economistas do Brasil. Assim, pude participar das principais discussões da economia brasileira.

e jovial carioca, com quem me casei em outubro de 1985 e, juntos, criamos uma linda família. Nove meses depois nasceu Fabiana, nossa primeira filha – uma lourinha linda e muito inteligente.

Em 1986 passei a ser responsável pela secção de nível de atividade do Boletim de Conjuntura do Ipea. E, em função disso, desenvolvi como tese de mestrado uma metodologia para o cálculo do PIB trimestral do Brasil (1980-1990), orientado por Regis Bonelli e Paulo Coutinho. Esse foi um avanço importante, pois até então o PIB do Brasil era calculado pelo IBGE em bases anuais, e divulgado apenas em abril do ano seguinte. A partir do meu trabalho, o Ipea passou a calcular e divulgar o PIB do Brasil em cerca de 45 dias após o final de cada trimestre canônico, possibilitando um acompanhamento mais rápido da conjuntura econômica. Posteriormente, por acordo entre o Ipea e o IBGE, a metodologia, série histórica e os programas computacionais que desenvolvi foram transferidos ao IBGE, que passou a utilizá-los integralmente no cálculo oficial do PIB trimestral do Brasil. Até hoje essa é a base da metodologia utilizada pelo IBGE no cálculo PIB trimestral.

Fiz o meu mestrado em Economia Matemática no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), entre 1987 e 1989. O Impa fica praticamente dentro da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, cercado de árvores nativas, pássaros e macacos – ambiente esplêndido para se estudar. Escolhi fazer lá o mestrado porque pensei que teria alguma vantagem comparativa em matemática, dados os oito cursos feitos no ITA. Mas, lá chegando, percebi que a matemática necessária era muito mais profunda do

que aquela que aprendemos no ITA. O meu orientador no Impa foi o Prof. Aloísio Pessoa Araujo, que é o brasileiro que mais publicou artigos na Econométrica , a principal revista acadêmica de economia no mundo.

Em 1989 fiz os exames para fazer PhD em economia nos Estados Unidos, e fui aprovado pela Universidade da California, em Berkeley. Mas, em decorrência de um artigo que escrevi em 1989 em coautoria com o Fabio Giambiagi, com um modelo de três hiatos para a economia brasileira, fui convidado por Maria Sílvia Bastos Marques para ir trabalhar na Secretaria de Política Econômica (Sepe) do Ministério da Fazenda. Ao aceitar o convite, acabei, infelizmente, tendo que desistir do doutorado.

Cheguei em Brasília em fevereiro de 1990, um mês depois da decretação do Plano Collor I. O meu foco de trabalho era estimar modelos macroeconômicos associados a eventual renegociação da dívida externa brasileira – que foram inicialmente usados nas reuniões que tínhamos com a equipe do FMI incumbida de monitorar o Brasil. A equipe da Sepe era muito jovem e dedicada – ficávamos trabalhando até altas horas da noite. Depois de uma análise profunda, concluímos que o problema da dívida externa era fundamentalmente de ordem fiscal, e não propriamente de balança de pagamentos. Com base nisso, elaboramos proposta de renegociação da dívida externa baseada no conceito de capacidade de pagamento do setor público.

Acabei sendo indicado para compor a equipe que renegociaria a dívida externa junto ao bancos credores, o que se faria presencialmente em Nova York.

Inicialmente, as negociações foram bem

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difíceis, porém com a saída da Zélia Cardoso do Ministério da Economia, e sua substituição pelo embaixador Marcílio Marques Moreira, as conversas começaram a avançar.

A equipe incumbida da negociação era formada por oito pessoas, lideradas por Pedro Malan, e colideradas pelo Armínio Fraga. A cada rodada de negociações ficávamos em média três semanas em reuniões em Nova York, seguidas de cerca de duas semanas de trabalho e consultas em Brasília. Coordenei o grupo de engenharia financeira da equipe brasileira, que foi chamada de “ the rocket scientists ” pelos representantes dos bancos. Nessa função desenvolvemos métodos então inéditos para precificar os títulos ao portador que seriam emitidos para substituir os empréstimos antigos.

Depois de cerca de nove meses de negociação, chegamos a um acordo em princípio com os bancos credores na madrugada de 9 de julho de 1991. Obtivemos uma redução de 35% do estoque da dívida e escalonamento do seu vencimento por até 30 anos. A redução que conseguimos então equivaleria hoje a aproximadamente 47 bilhões de dólares americanos. E com a implementação desse acordo, a estrutura de encargos futuros da dívida externa passou a caber dentro da nossa restrição fiscal.

Foi uma honra ter podido dar a minha contribuição para a solução do que foi considerado por muitos o maior entrave ao desenvolvimento econômico do Brasil nos anos 1980.

Fiquei em Brasília até dezembro de 1992, quando então resolvi voltar à pesquisa econômica no Ipea, no Rio de Janeiro.

Após o impeachment do Collor, as trocas de ministro da economia passaram a ser muito frequentes e, por consequência, o ambiente de trabalho em Brasília se tornou instável.

Mas em janeiro de 1993, Maria Sílvia Bastos Marques foi convidada pelo recém-eleito Prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, para assumir a secretaria de fazenda da cidade do Rio de Janeiro. Ela me convidou para ser o secretário adjunto dela, e eu aceitei o desafio. Recebemos a cidade praticamente sem um centavo em suas contas bancárias, mas rapidamente conseguimos formar uma excelente equipe e, como resultado, conseguimos sair do vermelho. Em abril desse mesmo ano nasceu a minha segunda filha, Thaís –levemente ruiva, muito linda e inteligente.

Em um ano conseguimos ajustar as contas da cidade e ampliamos esse ajuste ao longo de 1994. No início de 1995 atingimos uma posição financeira excelente, com mais de um bilhão de dólares em caixa – e com dívida líquida negativa, o que é muito raro em termos de qualquer nível de governo. Isso possibilitou a realização, em 1995-1996, de um grande programa de investimentos, com destaque para a construção da Linha Amarela, que redesenhou a mobilidade carioca, sendo, ao que se saiba, a primeira parceria público-privada do período republicano no Brasil. Em maio de 1996 a cidade do Rio de Janeiro seria a primeira (e única) cidade no Brasil a emitir título ao portador no exterior. Foram anos vibrantes e de reconstrução da autoestima dos cariocas. Um fato curioso daquela jornada foi que demos o primeiro estágio a um certo aluno de economia da PUC-Rio que muitos anos depois viria a ser presidente

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da Câmara dos Deputados do Brasil. Trata-se de Rodrigo Maia, que, aliás, foi um estagiário muito dedicado e competente.

Ao final de 1996 voltei ao Ipea, e pedi licença sem vencimentos para aceitar novo convite da Maria Sílvia, agora para a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), cuja presidência ela acabara de assumir. A CSN tinha sido privatizada no ano anterior, e buscava renovar os seus quadros. Foi a minha primeira experiência no setor privado. Fiquei responsável pelo planejamento estratégico. Os desafios eram grandes. Constatei de perto os efeitos acumulados da corrupção que o comando político de estatais gera ao longo de décadas – conluio com os interesses locais na compra de insumos a preços vis, e na venda de aço a preços ínfimos a setores favorecidos, e falta crônica de investimento em atividades com elevado potencial econômico, o que implicava excelentes oportunidades de geração de resultado para os novos acionistas.

A ação da nova equipe de gestão da CSN gerou enormes ganhos de rentabilidade e elevação igualmente enorme nos pagamentos de impostos para o Brasil, e reservas financeiras no nível da empresa foram constituídas, e depois usadas para investimentos físicos e aquisições estratégicas. Acabei assumindo a presidência do Clube de Investimentos dos empregados da CSN, o que me levou por força do acordo de acionistas a uma posição do conselho de administração da empresa. Assumi também a coordenação do programa de participação dos empregados nos resultados da empresa, que visava dividir com eles parte dos bons resultados obtidos.

Entre os investimentos estratégicos, participei ativamente do processo de privatização da Vale do Rio Doce em 1997. Foi um leilão histórico, interrompido por várias liminares, que finalmente foram cassadas, e pôde-se, então, apurar o vencedor: o grupo liderado pela CSN. Através de uma iniciativa minha, a CSN patrocinou em 1998 a recuperação do entorno dos profetas em pedra-sabão do Aleijadinho, em Congonhas do Campo – MG, sem uso de recursos da Lei Rouanet. Ao longo de 2001 e início de 2002 estive envolvido na negociação de uma fusão entre a CSN e a British Steel (à época chamada Corus) – algo que faria muito sentido para ambas as empresas. Foram inúmeras viagens a Londres. E quando, após longa e difícil negociação, todos os muitos volumes de contratos estavam prontos para serem finalmente assinados, ocorreu uma inesperada desistência por parte dos ingleses. Eles ficaram com medo do que poderia advir após uma eventual eleição do Lula, àquela altura muito provável. Eu soube que, depois, os ingleses se arrependeram dessa decisão, pois o governo de esquerda do Brasil preservou todos os contratos. Logo depois os ingleses acabaram sendo comprados pela empresa siderúrgica dos indianos e, assim, Lakshmi Mittal veio a se tornar o novo rei global do aço.

Em abril de 2002, Luiz Guilherme Schymura, professor titular da FGV EPGE, foi indicado para a presidência da Anatel –Agência Nacional de Telecomunicações, e me convidou para ser o secretário executivo da Agência. Ao aceitar o convite, tive que retornar para Brasília – então sem a

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companhia da família, para não prejudicar as atividades escolares das minhas filhas. A privatização das empresas de telefonia fixa feita fazia pouco tempo tinha sido exitosa e, naquele momento, as empresas de telefonia móvel estavam ganhando espaço. Assim, a nossa principal missão era garantir o cumprimento das regras estabelecidas na privatização, e estimular a competição no setor, de modo que parte adequada dos ganhos de produtividade fossem transferidas aos usuários. Nessa função, encontrei-me algumas vezes com o Luiz Eduardo Falco (Turma 82), então presidente da OI. Outra missão importante naquele momento da Anatel era o desenvolvimento de regras que permitissem expansão rápida do uso da internet no país.

Foi realmente uma experiência intensa, que gerou excelentes frutos. Talvez o principal deles foi a elevação do acesso das camadas mais pobres aos celulares, o que antes da privatização era algo apenas para os ricos. Diaristas, peões, enfim todos podiam então ter o seu celular, mesmo que na modalidade pré-pago, e assim se inserir melhor no mercado de trabalho, e melhorar sua qualidade de vida. Porém, o dia a dia dessa função era extremamente desgastante, devido às inúmeras disputas importantes que tínhamos que arbitrar, envolvendo interesses das diversas empresas do setor. E as noites eram bem difíceis nos hotéis brasilienses. Por isso acabei optando por deixar a função ao final de 2002.

Em janeiro de 2003 retomei as atividades de pesquisa no Ipea do Rio de Janeiro, e gostei muito de tocar a vida numa velocidade mais lenta e previsível. Em junho de 2004, Luiz Guilherme Schymura voltou para a

Fundação Getulio Vargas, como diretor do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE), e me convidou para o cargo de vice-diretor do Instituto, o que acabei aceitando.

O FGV IBRE foi fundado pelo Eugênio Gudin há mais de 70 anos e tem longa tradição na produção de estatísticas macroeconômicas e de estudos sobre a economia brasileira. Assim, eu poderia continuar em atividade de pesquisa e, de certo modo, dar sequência aos meus esforços no aperfeiçoamento das estatísticas macroeconômicas do Brasil, que havia iniciado com a minha tese de mestrado. Estou já há 17 anos nessa função, onde pude introduzir muitas inovações, tais como: (i) sistema mensal de monitoramento da confiança empresarial e do consumidor; (ii) comitê de datação de ciclos da economia brasileira – coordenado pelo Prof. Afonso Pastore; (iii) indicador mensal de incerteza da economia brasileira; (iv) indicador mensal de comércio exterior; (v) monitor mensal do PIB; e várias outras. Essas informações hoje alimentam em tempo real o Banco Central, o Ministério da Economia e o mercado em geral. E normalmente antecipam bastante bem o que o IBGE irá divulgar oficialmente mais à frente.

Acabei também participando de entidades internacionais dos produtores de estatísticas econômicas, sendo hoje vice-presidente do Centro Internacional de Research em Tendências Econômicas, sediado em Zurich. Também sou atualmente representante do Brasil na Unece, braço da ONU dedicado à mensuração econômica, com sede em Genebra. Nessas funções criei dois prêmios internacionais, inspirados na governança do prêmio Nobel: um para a pesquisa em mensuração de tendência econômica; outro

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para a pesquisa em mensuração de inflação, nas suas diversas formas. Através desses prêmios tive o privilégio de homenagear alguns dos mais importantes pesquisadores desses campos de investigação científica.

Estou agora engajado em dois projetos interessantes. Um é a construção de um sistema de monitoramento mensal das tendências do mercado de trabalho no Brasil, que vem sofrendo mudanças estruturais em todo o mundo, aceleradas com a pandemia e a transformação digital, gerando grande volatilidade na renda real das famílias, principalmente na das famílias mais pobres. Medir isso rapidamente é fundamental para alimentar políticas que objetivem mitigar o dano social causado por essa volatilidade. O outro projeto é um esforço de construção de indicadores mensais (no limite diário) de emissão de gases de efeito estufa no Brasil por classe de renda, setores econômicos e localização. Essa medição é crucial para o monitoramento do cumprimento das metas de redução de emissão anunciadas pelo país e para fazer ajustes na política pública de enfrentamento da questão climática.

Tenho muita satisfação em meu trabalho, penso que porque não priorizei remuneração, mas missão e qualidade de vida. E é na família que encontro o meu lastro. Minha primeira filha, Fabiana, tornou-se médica cirurgiã ginecologista, com mestrado pela Universidade Federal Fluminense, casou-se e foi morar em Brasília, onde, através do seu trabalho, ajuda milhares de mulheres. Ganhei dela duas netas lindíssimas: Helena, hoje com

4 anos, e Maria Eduarda com quase 2. Minha segunda filha, Thaís, formou-se em economia pela PUC-Rio e fez mestrado pela FGV EPGE com um sandwich pela Toulouse School of Economics. Há pouco tempo, ela me deu a terceira neta, a lindíssima Olívia. Tenho verdadeira paixão por plantas e flores, que vem desde a minha tenra infância. Já há alguns anos venho dedicando parte do meu tempo livre ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), através da Fundação Flora, cujo objetivo é levantar recursos para a realização de pesquisas botânicas lideradas pela equipe de cientistas do JBRJ. Presenciei a descoberta de novas espécies botânicas em vários dos biomas do Brasil, principalmente na Amazônia – infelizmente ainda tão pouco estudada, e que está sendo destruída, antes mesmo que a possamos conhecer. Por fim, acredito que, dentro dos meus limites e aptidões, tentei cumprir a missão que escolhi: a de contrib uir de algum modo para o aperfeiçoamento do Brasil, e com isso honrar o investimento feito pela sociedade brasileira em minha educação através do ensino público.

Ao final deste relato, e com a reflexão advinda de sua elaboração, me dou conta da enorme importância que a passagem pelo ITA teve em meu percurso. Lá tive a felicidade de conhecer colegas e professores que foram imprescindíveis em minha vida profissional e pessoal, aos quais quero aqui agradecer profundamente pela amizade e pelo exemplo de vida, que foram – sem a menor dúvida – o maior legado que recebi do ITA.

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Schalka

WALTER SCHALKA

“A beleza de ser um eterno aprendiz”

Cantando Gonzaguinha... foi isso que tentei fazer da minha vida e da minha energia a cada manhã.

CAPÍTULO 1 – PRÉ-ITA

Nasci no Jardim São Paulo, bairro na zona norte da cidade de São Paulo, em uma família de classe média, que ao longo da minha infância teve uma gradual ascensão social pela competência e dedicação profissional do meu querido pai (Luiz) e o amor infinito aos filhos da minha amada mãe (Dora). Tenho uma irmã mais velha e um irmão mais novo e, apesar das questões normais de família, sempre fomos e somos muito carinhosos e apegados.

Desde o início dos meus estudos, inicialmente na escolinha do bairro (Externato Nossa Senhora das Graças), passando em seguida para um colégio mais bem-estruturado (Colégio Jardim São Paulo), e a partir da antiga 8ª série no Colégio Rio Branco, meu pai sempre me cobrou notas elevadas e dedicação aos estudos, fazendo comparação constante com meus colegas. Ele era implacável! “Por que você não foi melhor?”, “Qual foi a maior nota da turma?”, eram perguntas recorrentes. Desse período maravilhoso da minha vida tenho recordações fantásticas de muita

brincadeira de rua, muito esporte (aprendi muito com o professor Franco todos os esportes... e o gozado é que agora ele me lembrou o professor Marson, que comentarei posteriormente), uma paixão pelo futebol e pelo Santos F.C. (marca importante da minha vida) e muito estudo. É inacreditável como tudo era mais simples e os objetivos do próximo dia eram muito triviais e frugais. Quando me mudei para o Colégio Rio Branco, minhas notas, que anteriormente eram as melhores da classe, passaram a ser medianas (esse filme se repetirá algumas vezes na minha vida) e aprendi rapidamente que a capacidade de adaptação seria uma necessidade constante. A partir de meados do 1º ano do colegial (hoje ensino médio) voltei a figurar entre os melhores da classe e sempre me destacando muito em matemática, química e física (viu, professor Tossio?... Vocês verão esta história mais pra frente). “Se o menino é bom nisso, deve tentar cursar engenharia” era o que todos diziam... Naquela época parecia que só existiam três caminhos: engenharia, medicina e direito. E lá fui eu... Ganhei bolsa para cursinho, mas preferi fazer o “melhor” da época (Anglo), para poder

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sonhar em entrar na Poli, que parecia ser o máximo do desejo possível. Estudei muito... apesar de matar algumas aulas para jogar bola com amigos... e quando decidi prestar, me inscrevi na Fuvest, na Mauá e no ITA. O vestibular do ITA era muito diferente e claramente não me foquei nessa opção, mas como ocorria antes dos outros achei que seria um bom teste.

Fui ao vestibular do ITA junto com um amigo de classe que sonhava em entrar (Maurício Mattos, que depois entrou na Turma 83) e estava muito preparado, bem mais do que eu. Lembro que foi na USP o vestibular. Ele estava sempre superansioso e nervoso e eu quase sem expectativa, tranquilo, no carro que nos levava diariamente. Nos dias seguintes ao vestibular, os cursinhos distribuíam o gabarito do dia anterior e eu nunca analisava – à exceção do dia após a prova de matemática que, para minha surpresa, constatei que havia acertado cerca de 85%. Pensei naquele dia que algo poderia acontecer, mas a prova de geometria descritiva (acho que foi a última) acabou de vez com minha expectativa. Saiu a primeira lista e eu não estava lá... Meu sonho de consumo da Poli terminou em uma questão estatística. Analisei que a prova de Biologia na Fuvest valia apenas 20 pontos, enquanto outras matérias representavam 100 ou até 150 pontos. Não gostava da matéria e achava que não valia nada. Achei melhor analisar o que tipicamente caía e estudar apenas isso para não zerar, o que levaria à eliminação. Pois bem... sobre célula e genética sempre havia ao menos uma questão. Estudei apenas as duas matérias, sobre as quais efetivamente houve questões e... errei as duas!

Lembro-me do desespero durante a prova. Tivemos uma questão referente à “classe” a que certos animais pertencem. Como não sabia nada, respondi “gato, peixe e pássaro”, para ver se acertava algo e não zerava... Não deu, zerei e por isso (fiquei sabendo muito depois). Apesar de ter feito 575 pontos e o necessário ser 525 pontos, eu fui eliminado! Assim meu destino seria a Mauá, onde entrei na primeira chamada. Inscrição feita, cabelo raspado, era só esperar iniciarem as aulas e, enquanto isso não acontecia, jogar bola. Um dia, quase saindo para jogar, na hora do almoço, recebi uma ligação de uma pessoa da divisão de alunos do ITA: “Walter, você está sendo chamado na próxima lista, e como estamos no final das inscrições, quero saber se você tem interesse” (ao escrever isto, percebo que me arrepio até hoje de pensar naquele momento). Meu pai saiu exultante de volta para o trabalho e para me ajudar a providenciar os documentos necessários, mas, de tão incrédulo (achou que poderia ser um trote), ao chegar ao trabalho, ligou para o ITA para confirmar a veracidade do convite. Depois fiquei sabendo que dos 127 finalmente chamados fui o centésimo vigésimo quinto. Isso mudou a minha vida!

CAPÍTULO 2 – ITA

É muito claro, apenas ao escrever este relato, o quão importante foi o ITA para todos e para cada um de nós. Depois de 40 anos, estamos aqui nos reunindo nesta resenha e trazendo à tona momentos e aprendizados que nos marcaram para sempre. É incrível a irmandade que, apesar das diferenças de visão de vida e ideológicas, a nossa relação se tornou.

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Cheguei para fazer a inscrição na divisão de alunos e senti algo a que não estava acostumado: um rigor de postura e uma burocracia sem tamanho... “Será que vou me adaptar aqui?”, pensei. Solicitaram que eu chegasse no primeiro dia até às 17h30, e eu entendi erroneamente que deveria ser às 17h30. Moral da história: terminei no apartamento 119 (a nossa turma iria até o 120) e tive o prazer em estar nesse apê com os piracicabanos Charlão (o maior contador de piadas e “apaixonado” pela filha do Coronel do CPOR) e Edmur (que depois me acompanhou na Infra e no Citibank), e com Brucutu (grande Gelson Baronto dos Reis, de quem tenho ótimas lembranças, menos uma que não contarei neste relato... hahaha ... mas todos da Turma sabem a que me refiro), Dirceu Tornavoi (uma alma enorme e espírito agregador) e Claudio Roberto (CRAF, muito quieto mas com opiniões firmes). Primeiro dia de aula... de manhã, aula magna com o reitor (se não me engano, professor Jessen) e depois do almoço aula de Laboratório de Física. O professor, superjovem e parecendo apenas um veterano, entra na sala e diz: “A aula hoje consiste em jogar dois dados duzentas vezes e a cada jogada marcar a soma em uma tabela, que depois será convertida em um gráfico, a curva de Gauss”. Pensei: “Isto é claramente um trote; não vou fazer nada e vou aguardar...”. Depois de alguns minutos em que muitos colegas jogavam seus dados, eu descobri que aquela era mesmo a nossa primeira aula e eu um “bixo”!

O ambiente era muito legal e a relevância de morarmos juntos, em apartamentos enfileirados, considero ser a marca mais importante da escola. Acordávamos,

tomávamos café da manhã, aula, almoço, aula, esporte, jantar, truco ( ops! ), e estudar (“meter gagá”, na nossa gíria) juntos todos os dias – isso criou um ambiente de intimidade e conhecimento mútuo incríveis. Durante as primeiras semanas (até 13 de maio – libertação dos escravos) ainda estávamos sob o regime de trote, e para quem morava no 119, próximo do 121 (onde iniciava o pessoal do 2º ano – chacais), era ainda mais difícil: inúmeras velvas (técnica de aplicação de produtos que contêm álcool nas partes íntimas do sujeito), cubol (o nome já diz...) e, quando voltavam da cidade de madrugada, g-seno-teta ou cama simulando um plano inclinado (técnica utilizada com meus filhos no futuro). Mas aquela dificuldade inicial nos uniu e, em pouco tempo, tivemos a revolta dos “bixos” e, a partir daí, as velvas passaram a ser gerais, inclusive na turma... haja saco... hahaha ! Além disso, nos dois primeiros anos fomos obrigados a cursar, às quartas à tarde e aos sábados pela manhã, o CPOR, onde não aprendi nada que me preparasse para coisa alguma.

Os dois primeiros anos foram bem difíceis, pois novamente me tornei um aluno medíocre no meio de tantas feras e as minhas notas foram reflexo disso: tirei três Is (insuficiente – nota final entre 5 e 6,5) quando o máximo para todos os cinco anos eram cinco Is, e além de tudo todos em Física, com um professor Tossio (que diziam fazer parte do TFP – Tradição, Família e Propriedade), uma das poucas pessoas na vida de quem guardo mágoa... Aqui fica uma estória paralela, pois em um dos semestres fui, junto com outros colegas, pegar a nota final com esse professor e, quando ele falou a minha, eu disse “Ufa... desta vez passei!”. Ele

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olhou para mim e disse: “Se com esta nota você passou, estou alterando agora para você não passar…”. Mas também foram anos com muito esporte (e aqui lembro o professor Marson, que sempre nos incentivou), tendo me envolvido na construção e participação das OI (Olimpíadas Internas entre turmas) e praticado basquete, vôlei e as peladinhas atrás do alojamento H8, onde quase diariamente deixava minhas marcas de artilheiro e, à noite, tinha que pagar cerveja ao Tim pela aposta feita, de que ele me daria uma “caneta“ (bola debaixo das pernas, para quem não entende de futebol-arte).

Ao final do Fundamental pensei em desistir do curso, mas uma conversa com o professor Wolney (pai da saudosa Viviane), que futuramente seria meu professor de Terraplenagem (na realidade de vida, pois as conversas nas aulas dele na Infra eram muito filosóficas), me fez repensar e continuar, na esperança de que emergisse o meu interesse na área técnica... o que nunca aconteceu. Mas foi importante eu ter me formado no ITA. Mudamos de quarto ao final do 2º ano e constituímos um grupo básico com Swiba (Marcio Andreazzi – e aqui tem uma curiosidade: minha filha na fase final da graduação foi fazer estágio na P&G e perguntaram, por compliance , se ela conhecia alguém na empresa. “Conheço, sim”, ela disse, “o Cebolão”, que era presidente da P&G Venezuela na época. Até hoje damos risada disso), Afonso (que ficou no quarto quase sempre, menos numa noite em que o Santos goleou o Palmeiras e ele não apareceu...), Garoto Fulco (uma das pessoas mais doces que conheci; não podia jogar truco pois quando blefava começava a gargalhar...),

Sartô (que aprendi a entender, literalmente, e a admirar, e que me fez distribuir muitas vezes o jornal Voz da Unidade , do Partidão, nos apartamentos), Loures (amigo que se revoltava com os milicos, apesar de sua alma militar... até hoje) e depois alguns que entravam e saíam por não aguentarem tanta bagunça. Esses e outros amigos foram presença constante em barzinhos, trucos, viagens, baladas, ou seja, muita festa, cerveja, rabos-de-galo e algumas mulheres (à exceção do Afonso, que teve muitas...) A segunda fase do ITA foi muito mais interessante, pois tínhamos uma turma muito pequena de alunos, só oito (Mayoral, Edmur, Vinagre, Takahashi, Ney, Gurgel e Christophe) e, portanto, as aulas eram quase que particulares e sempre com muita interação com os professores. Além de tudo, criei uma admiração e ótima relação com o professor Cláudio Jorge (até hoje no ITA), que me orientava em todos os aspectos. Entre o 4º e o 5º ano sempre foi tradicional a viagem de “aprendizados” para a Europa, organizada pela famosa CV (Comissão de Viagem). Fizemos um grupo, nos candidatamos e construímos uma viagem marcante na nossa vida. Fomos em cerca de 45 alunos para a Europa no avião Hércules da FAB, que voltava mensalmente com peças e equipamentos. Passamos 13 horas entre Recife e Lisboa em banco de lona, jogando truco e dando risada. A partir de Lisboa, nos separamos (de vez em quando nos reuníamos em alguma cidade), e durante 70 dias, em um grupo menor e constante (Marcelo Bortman, Afonso e eu), visitamos 13 países... O famoso mochilão de trem, inesquecível!

Estávamos nos aproximando do final do curso... – eu me considero um survivor

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por terminar sem ter trancado ou sem ser jubilado – e tinha que decidir os próximos passos na vida. Tomei a decisão, fácil, de não seguir uma carreira técnica e migrar para administração de empresas. Assim, apesar de ter recebido 13 convites de emprego, decidi aceitar o programa de trainee do Citibank... decisão que, mais uma vez, mudou minha vida!

O ITA foi e continua sendo extraordinário, e sempre afirmo que, apesar de ter recebido inúmeros prêmios empresariais, meu maior orgulho foi quando recebi o convite para ser paraninfo de uma turma do ITA. Chorei, me emocionei muito e convidei toda a Turma 82 para estar presente comigo na cerimônia.

CAPÍTULO 3 – PÓS-ITA

Formado, voltei a morar com meus pais em São Paulo e minha vida era trabalho durante o dia, FGV (curso CEAG) à noite e muita festa nos finais de semana. Frequentemente estávamos no Bexiga em um grupo de amigos e, eventualmente, em um bar de “Beatles”, o Calabar, na Rua Pamplona. Foi numa dessas que fui abordado por uma garota, Monica, que se tornou minha esposa e companheira nos últimos quase 37 anos. Foi com ela que

constituí minha família, com três filhos maravilhosos, e cultivei muitos amigos... – voltarei a falar sobre isso depois.

Durante dois anos e pouco fiquei no Citibank e quando me formei na GV recebi convite para estar em uma holding de participações com objetivo inicial de ser um analista de investimentos para o acionista, Roberto Klabin, de quem me tornei amigo e continuo sendo. Mais uma vez, isso mudou minha vida!

Casei-me com a Monica nesse mesmo período (junho de 1985), tendo muitos amigos do ITA como padrinhos e outros mais presentes à festa, e fomos morar em uma casa alugada na Granja Viana. Em quatro meses a Monica engravidou e em julho de 1986 nasceu a Déia (Andrea), nossa primogênita, de um coração enorme, competente e superfocada nas suas responsabilidades. Como em todo início profissional, estávamos bem apertados: tínhamos apenas um carro e pouca grana para muita coisa. A segurança da casa começou a nos assustar quando o vizinho foi assaltado, pelos mesmos bandidos, pela segunda vez. Então resolvemos comprar uma casa em um condomínio fechado na Granja,

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O ITA foi e continua sendo extraordinário, e sempre afirmo que, apesar de ter recebido inúmeros prêmios empresariais, meu maior orgulho foi quando recebi o convite para ser paraninfo de uma turma do ITA.

com uma característica interessante: sem muros entre as casas e com uma piscina conjunta a cada 10 casas. Uma curiosidade aqui: para comprá-la tivemos 1/3 do valor emprestado pelo meu chefe, 1/3 pelos meus pais e 1/3 pelo crédito imobiliário e nós, galhardamente, pagamos o estacionamento para a assinatura da escritura. Demoramos anos para pagar todos esses empréstimos... Assim que mudamos para a nova casa, nasceu a nossa segunda filha, Bia (Beatriz), que tem um impressionante carisma e enorme visão de futuro. E, finalmente, em 1992, nasceu nosso último filhote, Gutti (Gustavo), que tem um espírito de festa constante e muita solidez de posicionamento. Daqui a pouco voltarei à vida pessoal...

Durante os primeiros anos com o Roberto aprendi muito (lembram do Gonzaguinha?) e, muito jovem, fui conselheiro suplente da Metal Leve (uma das investidas à época, cuja participação, aliás, vendemos para o Bradesco às vésperas da abertura de mercado pelo Collor e abrupta queda de margens), fui diretor financeiro da holding e participante de um planejamento estratégico que determinou a Lalekla (empresa de toalhas de papel), à época com vendas de US 12 MM anuais e EBITDA de US 1 MM, como um dos instrumentos de investimentos e crescimento da holding . Em 1989 adquirimos a Dixie no Brasil e mudamos o nome da empresa para Dixie Lalekla. Naquele momento, eu ainda com 28 anos de idade, o Roberto apostou mais uma vez em mim e me convidou para ser o diretor financeiro da empresa, e adicionalmente me ofereceu um curso de três meses no IMD em Lausanne, na Suíça.

A performance da empresa nos anos seguintes (1990/1991) não era boa e, apesar de considerar que tínhamos que fazer uma virada, ela não acontecia, pois o presidente achava que era apenas efeito externo e que tudo melhoraria naturalmente. No início de 1992 o Roberto me chamou e disse que iria substituir o presidente e que eu, então com 31 anos de idade, seria o novo presidente. Um baita frio na barriga, mas uma enorme determinação para agir e transformar! A empresa estava quase inadimplente, com baixas margens, vendas decrescentes e o nosso grupo de gestores (o mesmo grupo de diretores) começou a tomar as medidas de ajustes de custos, inclusive fechando fábrica, cortando despesas, aumento de receitas com expansão geográfica, reestruturação da dívida... o clássico turnaround . Foi certamente o mais difícil período da minha vida profissional, pois tudo o que fazíamos parecia não produzir resultados, e a cada mês a situação se deteriorava. Fiquei abalado emocionalmente, mas continuava, com total apoio do Conselho, a tomar decisões que julgávamos que mudariam a curva. Em meados de 1993 isso finalmente aconteceu, e a onda positiva veio forte. Em 1994 iniciamos uma série enorme de aquisições e fusões que criaram um valor enorme para os acionistas. No final de 1993 estávamos negociando a fusão da Dixie com a parte da Itap, divisão de embalagens rígidas termoformadas, quando em uma visita ao BNDES eles nos disseram que preferiam que nós fizéssemos uma aquisição. Foi punk ! Em poucas semanas estávamos abrindo o capital da Dixie Lalekla com apoio de vários bancos e tivemos muito sucesso no IPO e na

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aquisição... A empresa começou a deslanchar. A próxima mudança relevante foi em julho de 1995, quando concluímos a fusão com a Toga, criando a Dixie Toga, com o objetivo de ser uma one stop shop para embalagens para os setores de alimentos e higiene e limpeza. Como curiosidade, um pouco depois, vendemos a Lalekla para a Kimberly Clark, pois já não estava no nosso interesse estratégico.

Após a fusão, fui convidado para dirigir a Toga e no ano seguinte voltei à presidência geral da empresa. Aí vieram as aquisições da American Plast na Argentina (convidei o Luiz Butti para liderar a empresa, com muito sucesso), da Impressora Paranaense em Curitiba, fábricas novas em Londrina, aquisição da Itap flexíveis, associação com Huhtamaki para tubos laminados, associação com Bemis Corp. para flexíveis, fábricas em Rondonópolis, Natal... ou seja, não passava um ano sem algo novo. Ao final de 2004 éramos uma empresa sem dívida, com vendas de R$ 1 bi e EBITDA de R$ 200 MM. Fiquei, e continuo, muito próximo dos acionistas controladores (Roberto Klabin e Roberto e Sérgio Haberfeld) e eles sempre me apoiaram. Naquele momento, por razões pessoais, decidiram colocar a empresa à venda e pediram que eu liderasse as negociações. Ao final, concluímos a venda para a nossa sócia Bemis, que me convidou para permanecer como presidente no Brasil. É importante mencionar que os acionistas da Dixie foram muito generosos comigo e me deram um grande bônus, que foi o pilar fundamental da construção do meu patrimônio. Após alguns meses na Bemis, recebi convite para ser o presidente da Votorantim

Cimentos. Foi um período espetacular de aprendizado. Aumentamos a nossa grade de negócios com maior expansão para concreto, argamassas, cal, agregados... Construímos muitas fábricas no Brasil e fizemos a expansão internacional, iniciando com presença em dois países além do Brasil e, ao terminar o meu ciclo, em 14 países e EBITDA evoluindo de 1,2 para 4,6 bi de reais. No final, estava achando que faltavam desafios e aprendizados, força-motriz da minha energia. Recebi convite para entrar em um private equity fund , mas no final a Suzano me convidou para ser o presidente da empresa e aceitei. Iniciamos em 2013, pois mantive toda a diretoria, uma nova jornada de transformação com muito sucesso e fizemos um merge com a Fibria em 2019, criando uma potência global de celulose, com extrema competitividade. Agora o sonho é tirar da árvore mais que apenas celulose e energia, mas tentar substituir derivados de petróleo como tecidos, bio-óleo e, claro, aumentar o sequestro de carbono, onde já somos carbon negative , criando e distribuindo valor para a sociedade.

Vamos voltar, agora, para o âmbito familiar... Sempre tivemos uma vida muito gostosa, com viagens, amigos, muitas festas, e construímos uma casa na praia – muitos dos colegas estiveram lá –, em Toque Toque, onde curtimos sol, praia, mar, cerveja, vôlei na praia, caipirinhas... e onde quase todos os anos promovemos uma festa de réveillon no campinho ao lado (Baleião, por razões óbvias), com cerca de 400 pessoas. Adoramos festas e celebrações de toda natureza. Depois da Granja, como as crianças precisavam de escolas melhores (acho que repeti o modelo

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do meu pai), viemos morar no Jardim Guedala, primeiro em um apartamento (não deu certo pois gostamos de casa e a Monica de cachorros), depois em uma casa e, finalmente, na em que moramos hoje.

A Déia, depois das faculdades e de um período trabalhando, foi fazer MBA em Berkeley, casou-se com um francês, moram em Nova York, e hoje tenho dois netos: Arthur, de 4 anos, e Ines, de 1 ano. A Bia fez um percurso semelhante: também fez MBA em Berkeley e recentemente se mudou para Atlanta com o marido, com quem se casou no início de 2022. E o Gutti se formou, trabalha no Itaú, e até antes

da pandemia fazia muita festa. Durante a pandemia mudou-se para a praia, de onde exerce o beach office , trabalha de dia e curte a noite e os finais de semana.

A Monica continua muito ativa, viajando pelo mundo atrás dos filhos e curtindo muito o mar, e sempre foi quem promoveu as nossas relações sociais e a aproximação com os amigos.

Somos uma família muito unida e próxima, apesar das distâncias físicas.

E eu... cuidando de muitos assuntos e aprendendo sempre. Afinal, quero continuar vivenciando a beleza de ser um eterno aprendiz.

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Wataru

WATARU UEDA

“RESPIRAR” A MISSÃO DE “AJUDAR A PRESERVAR VIDAS”

Após 40 anos da formatura no ITA como Engenheiro Eletrônico, tenho a Magnamed, empresa líder no Brasil na área de ventiladores pulmonares. Em 2020, ano da pandemia da covid-19, conseguimos cumprir com muita honra e orgulho a missão de ajudar a preservar vidas disponibilizando mais de 6 mil ventiladores pulmonares para o Ministério da Saúde.

E tudo isso começou lá atrás, quando decidi realizar o meu sonho de seguir o exemplo do meu pai e ter um negócio próprio. O dele era uma microempresa de serviço de assistência técnica de máquinas de contabilidade; o meu eu ainda não sabia na época, mas o que sabia era que deveria me preparar muito e escolhi trilhar o caminho da engenharia. Grande parte da minha formação foi em escola pública e eu precisava de muito reforço e esforço para aprender o que era necessário para entrar em boas faculdades. Fiz o Anglo, foi um ano de dedicação intensa e, ao final de tudo isso, consegui entrar no ITA e na Poli-USP.

Não bastasse um ano inteiro de muito estudo, ganhei mais cinco, não, mais quarenta e cinco, pois até hoje me dedico a estudar e aprender sobre diversos assuntos, desde linguagens de software ,

fisiologia do corpo humano – em particular a pulmonar –, fundos de investimentos até administração de empresas.

Logo após me formar como engenheiro eletrônico entrei na Itautec, e lá encontrei vários iteanos da Turma 73 à Turma 90, todos entusiasmados por poderem participar da implementação de várias tecnologias da informação. Era a época da reserva de mercado, então tínhamos que projetar tudo, do circuito eletrônico ao software embarcado de terminais caixas, terminais de autoatendimento, caixas eletrônicos, leitoras de cartão, impressoras, microcomputadores, floppy disk drivers , hard disk drivers e muitos outros produtos. Foi uma época de muito aprendizado, a empresa era muito nova, com muitos jovens engenheiros cheios de vontade e energia para “criar” tecnologia e inovar processos – por exemplo, para desenvolver software de terminal caixa era preciso digitar as linhas de código num IBM de grande porte e para gravar a memória que ia no equipamento em desenvolvimento tínhamos que descer dois andares, ligar para a central de processamento de dados e pedir para baixar o código para o gravador de EPROM, rezar para que os dados chegassem

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certos e depois de gravados os colocávamos no equipamento e… não funcionava! Pedíamos a impressão do programa para analisar e procurar onde estava o problema. E esse processo se repetia incontáveis vezes e após 2 metros ou mais de listagens e muitos meses, finalmente o produto funcionava. O processo tinha que ser melhorado e esse foi um dos desafios que aceitei e desenvolvi um sistema que usava um microcomputador que “carregava” o software numa memória que já ficava instalada no equipamento em desenvolvimento. Resultado: o que levava meses reduziu-se para poucas semanas.

Agora para os eletrônicos – pasmem – eu usei as equações de Maxwell, o que gerou uma patente para um colimador de feixe de laser para um leitor de código de barras para terminal ponto de venda da Itautec.

Num dado momento, quando fui responsável pelo desenvolvimento de um gate array para o floppy disk drive , encontrei o Reinaldo Bergamaschi na Itaucom – dizem que esse chip foi o de maior volume fabricado lá: mais de 100 mil unidades. E da nossa turma passaram por lá também o Wander Miyata, o Cesar Fricks e o Carlos Yamagata.

Após quase 15 anos, convidado por um iteano mecânico da Turma 75, Tatsuo Suzuki, resolvi aceitar um novo desafio numa empresa da área de equipamentos médicos, mais especificamente aparelhos de anestesia. Era o fim da reserva de mercado e essa empresa líder precisava se atualizar tecnologicamente e incorporar mais eletrônica para automatizar seus produtos, mostrar mais dados para os usuários e facilitar o uso para minimizar o avanço dos produtos importados. Eu não sabia nada sobre aparelhos de anestesia, mas com o incentivo do Tatsuo e a vontade de transmitir conhecimento do Dr. Kentaro Takaoka, consegui em pouco tempo aprender quase tudo sobre o assunto. O Dr. Kentaro é um dos inventores de respiradores artificiais mais renomados do mundo, tem prêmios diversos e patentes incontáveis. Foi um anestesiologista formado pelo HC-FMUSP e o seu sonho era ser engenheiro; fez diversos cursos técnicos e, por fim, fundou a empresa com o próprio nome e a levou à liderança do mercado brasileiro.

Essa empresa também tinha muitas oportunidades de aprendizado, pois era

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Agora para os eletrônicos – pasmem – eu usei as equações de Maxwell, o que gerou uma patente para um colimador de feixe de laser para um leitor de código de barras para terminal ponto de venda da Itautec.

totalmente verticalizada, coisa impensável nos dias de hoje, e muito forte em mecânica e pneumática. Só para se ter ideia: todas as peças dos produtos eram fabricadas internamente, desde a usinagem, estamparia de metais, tratamentos superficiais, injeção de plástico, montagem de placas eletrônicas, policarbonatos com teclado de membrana e muitos outros processos inimagináveis. Como eu gostava muito de mecânica, por influência do meu pai, aprendi de tudo um pouco e, por fim, tive que gerenciar tudo isso. Em alguns anos os produtos dessa empresa evoluíram muito com a introdução da eletrônica, e os usuários cada vez mais sinalizavam a necessidade de mais informações disponibilizadas pelos equipamentos. Ao mesmo tempo, a parte regulatória de produtos para a saúde evoluiu muito no Brasil, para evitar que se importasse qualquer tecnologia. A Anvisa iniciou um processo de qualificação das fábricas em boas práticas de fabricação, registro de produtos, ensaios segundo normas internacionais. E fazer “tudo” internamente, cada vez mais, deixava de ser o core do negócio e era necessário saber construir parcerias com outras empresas fornecedoras de partes e peças para aperfeiçoar o produto. Nessa fase fiz muitas viagens internacionais visitando vários fornecedores e participei por diversas vezes das principais feiras de equipamentos médicos do mundo; aprendi novas tecnologias e conheci muitas empresas e pessoas do setor. A empresa estava numa ascensão tecnológica bastante acentuada, mas precisava de um avanço mecânico e de suprimentos importantes para suportar as novas tecnologias que estavam sendo embarcadas.

Depois de quase 10 anos, havia chegado a hora, tão sonhada, de fundar uma empresa própria. Uma difícil decisão. Mas família é tudo! Minha esposa, Cristina, que estudou no CSTC–ITA, e meus filhos maravilhosos Akira e Miho apoiaram minha decisão e foram meu grande suporte nos primeiros anos.

Era início de 2005, e eu já havia passado por muitas áreas dentro das empresas. MBA concluído. Achava que já estava preparado. Conversava muito com o Tatsuo sobre esse sonho, e ele sempre me dizia que, se fosse eu, sim, poderia dar muito certo. Em maio daquele ano resolvemos, ambos, iniciar a Magnamed. O início foi na casa da minha mãe, a famosa “garagem” que muitos empreendedores citam.

Inicialmente, em vez de partirmos diretamente para o desenvolvimento do produto, queríamos colocar um propósito para a empresa, que fosse muito importante, que movesse as pessoas para a ação, que as motivasse, que lhes desse um sonho, que elas se comprometessem, que seus olhos brilhassem. E também que pudéssemos devolver um pouco para a sociedade, uma vez que ambos tínhamos estudado quase sempre em escolas públicas. E foi assim que estabelecemos a nossa missão de “Ajudar a Preservar Vidas”. Isso guia as nossas ações cotidianas – levar a melhor tecnologia brasileira feita por brasileiros para o Brasil e para o mundo.

Alguns meses depois, convidamos o Toru Kinjo para fazer parte da sociedade e iniciamos o trabalho de desenvolvimento de um ventilador pulmonar de resgate e emergência, que não havia no mundo – e essa escolha estava alicerçada no menor segmento da ventilação pulmonar,

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fora da UTI, que é um mercado mais concorrido. Havia esse espaço no mercado de transporte intra-hospitalar e no atendimento pré-hospitalar. Foram três anos de desenvolvimento com a empresa incubada no Cietec-USP, aportes de recursos da Fapesp, Finep e CNPq, e o resultado foi impressionante: o menor ventilador de transporte, o mais leve, o de maior autonomia em uso, que atende todo tipo de paciente, o mais robusto e mais fácil de usar com tela touch-screen Havia outros desafios pela frente. Tínhamos que ter uma fábrica certificada na Anvisa, registrar o produto para poder comercializar equipamentos médicos – e precisávamos de recursos financeiros para essa fase. Mais uma vez tive que aprender o que era um fundo de Venture Capital, entender o mecanismo, que era algo muito incipiente no Brasil, mas foi através do Criatec, iniciativa do BNDES e BNB, que obtivemos recursos para iniciar o processo de certificação da fábrica e o registro dos produtos.

Enquanto o processo tramitava na Anvisa, resolvemos certificar o produto na comunidade europeia e obter a marcação CE, em grande parte porque acreditávamos que o que desenvolvemos poderia muito bem ser aceito pelo mundo. Na mesma época em que conseguimos a certificação da fábrica pela Anvisa, conseguimos a marcação CE e, graças à nossa presença nas principais feiras internacionais do setor, vencemos uma grande licitação na África do Sul e começamos exportando produtos antes mesmo de vendê-los no Brasil.

Estávamos crescendo ano a ano e havia chegado a hora de entrar no mercado

de ventiladores pulmonares para UTI, o que aconteceu em 2014. As tecnologias e inovações estavam, cada vez mais, sendo reconhecidas pelo mercado até que, em 2016, vencemos uma importante licitação para equipar todas as ambulâncias que estariam à disposição das Olimpíadas Rio-2016. Foi um marco importante de reconhecimento da tecnologia. Ampliamos, também, as nossas exportações para mais de 40 países ao redor do mundo.

2020. O mundo foi desafiado por um vírus terrível, que quase sempre comprometia as funções pulmonares dos pacientes: muitos eram hospitalizados e necessitavam de ventiladores pulmonares para sobreviver. Nesse cenário, a Magnamed foi convocada pela sociedade e pelo governo federal a suprir rapidamente a demanda de ventiladores para o combate da terrível doença, e o mundo todo estava, também, à procura de ventiladores pulmonares. Nossas exportações foram bloqueadas, a nossa produção foi requisitada pelo Ministério da Saúde. Tínhamos que atender a demanda, mas não tínhamos todos os recursos necessários nem a capacidade fabril para produzir tantos produtos em tão pouco tempo. Mas tínhamos algo muito importante: pessoas. Pessoas comprometidas com a missão da empresa e com muita vontade de vencer o desafio. E sabíamos que tínhamos uma das melhores tecnologias e de fácil aprendizado e uso para aquela situação. Uma postagem do desafio no grupo de WhatsApp da Turma 82 e imediatamente houve um grande retorno e muito apoio. Mas foi fundamental a atuação do Walter Schalka, que no minuto seguinte me ligou oferecendo todo o suporte pessoal e da Suzano para

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fabricarmos os ventiladores. E numa das primeiras conversas ele me falou da experiência dele de gestão de crises, no que três pontos são chaves: 1. Estabeleça as prioridades; 2. Estabeleça uma boa base jurídica; 3. Estabeleça a mensagem. Fizemos isso e outras empresas se juntaram ao esforço: Embraer, através do Luisão e do Otto, Klabin, Flex, Positivo, GM, FCA. Entregamos tudo dentro do prazo estipulado. Não faltou ventilador pulmonar para o combate à covid-19. A Magnamed continuará a “ajudar a preservar vidas”, inovando e desenvolvendo tecnologias de produtos médicos para a saúde.

Na minha experiência, para empreender e construir uma empresa como a Magnamed

é preciso, acima de tudo, acreditar no próprio sonho e estar comprometido com esse sonho; depois, estabelecer uma missão que seja “amada e abraçada” pelas pessoas que dela fazem parte e, por fim, trabalhar incansavelmente para alcançar objetivos e metas.

Atualmente o meu tempo vago é ocupado por uma linda netinha e pela prática do tiro com arco, na qual conquistei várias medalhas em torneios paulistas e brasileiros na categoria Master.

Obrigado a todos desta gloriosa Turma 82, da qual faço parte com muito orgulho, por me permitirem compartilhar a minha pequena experiência de vida.

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Nogueira

WILLIANS GONÇALVES NOGUEIRA

Nasci no dia 29 de maio de 1959 na cidade do Rio de Janeiro, onde residi até os 10 anos de idade. Tive o privilégio de nascer numa família de classe média, a qual me deu as melhores oportunidades de estudar em ótimos colégios. Fiz todo o primário no colégio Pernalonga, no Rio de Janeiro, que ficava entre Copacabana (posto 6) e a praia do Arpoador.

Sempre gostei do mar e vivi minha primeira infância frequentando a praia e indo ao Maracanã para assistir ao Flamengo.

No final do primário, ainda no Rio de Janeiro, fiz um ano do curso Goiás, como preparatório para entrar nas escolas militares e outras excelentes, com o objetivo de ali cursar o ginásio e colegial.

Tive êxito em entrar nessas escolas, mas em 1970 minha família se mudou para São Paulo, onde fiz o ginásio e o colegial no Colégio Bandeirantes, que era – e ainda é – uma das referências em educação.

Desenvolvi disciplina, organização e espírito de competição, ferramentas importantes em direção a conquistar os meus objetivos que eram o ITA e a Poli. Com tudo isso, colhi bons frutos, entrando em ambas as escolas em 1978, e

optando pelo ITA, onde cursei Engenharia Mecânica Aeronáutica (Turma 82).

O ITA era um ambiente deslumbrante: ensino de alto nível, pessoas inteligentes, lugar seguro e belo, muito trabalho, alimentação, alojamento, esporte, tudo à nossa disposição.

Essa fase foi um grande momento da minha vida, em que pude fazer novas amizades, e obtive muito aprendizado, amadurecimento e cultura.

Quando esse maravilhoso ciclo se encerrou, dali para frente era só trabalho, entrando para a vida profissional, e também assumindo novas responsabilidades: família, filhos etc.

No dia 3 de janeiro de 1984 entrei na Embraer, meu primeiro emprego. Havia um processo de seleção interna para trabalhar por um ano no exterior, ao qual me candidatei.

Nesse mesmo ano, 1984, fui para os Estados Unidos trabalhar na empresa Hamilton Standard, em Connecticut, onde acompanhava todo o processo de fabricação de hélices do avião Brasília –experiência fantástica na qual ampliei minha cultura, vivenciei costumes diferentes, clima diferente, organização, seriedade.

Uma coisa que me chamou a atenção lá foi a manutenção de emprego de pessoas de mais idade, que têm mais experiência, mais

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conhecimento, e por isso são amplamente aproveitadas pelas empresas, e não substituídas por outras com salário mais baixo.

Aproveitei o momento em que estava lá e fiz vários cursos de computação durante a noite, assunto com o qual sempre tive afinidade.

No mesmo ano de 1984, antes de viajar, me casei, e minha esposa foi comigo para os Estados Unidos. Continuamos casados até hoje. Em 1987 nasceu nosso único filho, que é formado em Engenharia Eletrônica pela Poli e já está casado.

Em 1985, retornei ao Brasil e trabalhei na área de processos de fabricação, desenvolvendo um sistema de informática de troca de dados entre Embraer, Aeritalia e AerMacchi (ambas na Itália) e em seguida assumi o cargo de Supervisor de Planejamento e Controle da Produção.

Permaneci na Embraer até 1989 e depois fui trabalhar na Rhodia, em São José dos Campos.

De 1989 a 1993 trabalhei como engenheiro Chefe dos Setores de Instrumentação e Elétrica.

Nesse período fiz o curso do CEAG na FGV, especializando-me na área financeira.

Prestei concurso público e em 1994 entrei na Receita Federal como Auditor Fiscal, onde permaneço até os dias de hoje, ano de 2022. Nesse órgão, Receita Federal, trabalhei em vários setores.

A minha base como engenheiro e a experiência que tive nas empresas anteriores me permitiram ampliar sem dificuldades os novos conhecimentos que se apresentavam.

Comecei pela área aduaneira, em Foz do Iguaçu, trabalhando nos setores de Importação e Exportação. Permaneci em Foz do Iguaçu de 1994 a setembro de 1995, quando fui transferido para o Porto de Santos, onde continuei trabalhando na área aduaneira, nos setores de Importação e Exportação.

O trabalho nesses setores implicava conhecimento do Siscomex, valoração aduaneira de mercadorias, análise de processos, desembaraço de mercadorias tanto na importação quanto na exportação, declarações de importação e exportação, retificação de declarações de importação e exportação após desembaraço de mercadorias, classificação de mercadorias (NCM) e legislação de Regulamento Aduaneiro e IPI.

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A minha base como engenheiro e a experiência que tive nas empresas anteriores me permitiram ampliar sem dificuldades os novos conhecimentos que se apresentavam.

Até abril de 2002 permaneci em Santos, de onde fui transferido para o setor de Preços de Transferência, em São Paulo.

Esse setor me deu a oportunidade de fazer a conexão entre a área Aduaneira e a área de Tributos Internos (Imposto de Renda Pessoa Jurídica, PIS/Cofins e IPI).

Com a bagagem adquirida através do tempo nas empresas em que havia trabalhado e com os cursos extras de computação e finanças, desenvolvi uma rotina automática de fiscalização de preços de transferência, onde fiscalizações que levavam um ano para serem realizadas passaram a levar alguns minutos e com precisões técnica e computacional bem amplas.

Até abril de 2007 permaneci nessa área, e fui convidado para o Setor de Fiscalização de Tributos Internos (Imposto de Renda Pessoa Jurídica, CSSL, PIS/Cofins, IPI).

A partir de 2010 assumi a Supervisão do Setor de Fiscalização.

Necessário se fez grande aprendizado na área contábil e legislação específica de

cada tributo, assim como conhecimento de vários sistemas internos de informática.

No período em que estive nesse setor de Tributos Internos, fui convidado para desenvolver o Sped (Sistema Público de Escrituração Fiscal), onde fui designado como Chefe de Desenvolvimento, participando do Sped Nota Fiscal Eletrônica, Sped Contábil, Sped Fiscal e DW Sped (que selecionava contribuintes para fiscalização com base nas informações recebidas dos vários módulos do Sped).

Acumulava as duas funções: Supervisor do Setor de Fiscalização em São Paulo e Chefe de Desenvolvimento do DW Sped no nível Brasil.

Tendo cumprido o tempo de serviço que a lei exige, pretendo me aposentar.

A vida me deu várias oportunidades, as quais foram bem aproveitadas e vividas, com experiência adquirida, trabalho realizado e família bem constituída.

O ITA, sem dúvida, foi a melhor de todas.

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E agora, José?

A pergunta, de certa forma feita em tom meio sem esperança no imortal poema de Drummond, pode ser feita a nós todos da Turma 82 de modo totalmente diferente: com um otimismo pelo que nos pode acontecer nas próximas décadas, justificado pela própria maturidade que estes últimos 40 anos nos deram.

A alma desta maravilhosa Turma, como todos lembram, nasceu a partir de uma lista publicada nos jornais e murais de cursinho chamando um grupo de garotos para embarcar em uma jornada desconhecida de alguns anos no ITA ou mesmo em outras faculdades, cujas dificuldades e características únicas fizeram sair do forno uma união que estas quatro décadas só fizeram solidificar.

Lembramos que uma das fortalezas que temos está também na diversidade embutida no conceito básico e importantíssimo de que pertence à Turma 82 quem por ela passou por alguns minutos ao menos, o que nos dá o prazer de ter tanto colegas herdados de outras turmas como também os que, por razões as mais diversas, não se formaram exatamente naquele 9 de dezembro de 1982 ou nem mesmo se formaram no ITA ou em engenharia. “Réxi tégui” somos todos 82, e este livro traz relatos que comprovam isso –até mais facilmente do que todos conseguimos mostrar no primeiro lab de

Física que “g” dava certinho 9,81m/s²!

Aqueles jovens que éramos no início dos anos 1980 tiveram 40 anos de histórias de vida maravilhosas, cada uma única como tem de ser, e 68 delas aqui estão registradas, com nossa esperança de que outros colegas se animem e relatem as suas para ficarem imortalizadas ao menos nos meios eletrônicos.

É certo, e foi nossa intenção desde o início, que serviremos todos, com nossos acertos e erros, alegrias e sofrimentos pessoais e profissionais, de guia e fonte de reflexão para novas gerações.

Voltando à questão “drummondiana”, o que nos espera nas próximas décadas? Estamos seguramente mais maduros e (quase) todos mais sábios e serenos. Se antes buscávamos o que poderíamos descobrir do mundo e o que nos aconteceria no âmbito pessoal e profissional, agora sabemos o quanto temos o dever de ensinar. É claro que ainda temos sonhos a realizar, mas hoje já sabemos como fazer as coisas acontecerem e o que podemos ou não esperar do que vem à frente.

Com raras exceções, não vamos mais ter filhos (ou sobrinhos, para os que não optaram por filhos), e os heróis que ainda se dispuserem a isso já não passarão tanto nervoso quanto da ocasião dos primeiros.

Teremos netos (vários já os têm), ou sobrinhos-netos, agora sabotando a educação

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A

e a nutrição desses pequenos de um modo que não ousaríamos fazer antes.

A maioria de nós infelizmente já perdeu seus pais nestas quatro décadas. Se ao sair da escola ainda recorríamos a eles para obter alguns conselhos, nestes tempos de pandemia tivemos nossos filhos nos perguntando o que fazer diante de um mercado de trabalho que ficou estranho. Não sabíamos de fato o que iria acontecer, nem o que fazer, mas os cabelos brancos de agora também nos orientaram instintivamente nessa navegação.

Citando outro poeta, Vinicius de Moraes, que viveu de modo intenso, e morreu quando ainda estávamos no ITA e vários de nós recitaram ou cantaram para suas namoradas décadas atrás – “quando mais tarde me procure / quem sabe a morte / angústia de quem vive / quem sabe a solidão / fim de quem ama” –, não dá para ignorar que nem todos estaremos na festa dos 80 anos da Turma aqui na Terra. Aliás, possivelmente, nem neste planeta será. Não é descartado, entretanto, que algum tipo de transporte espacial não poluente feito pela Embraer (que Luisão vai dizer ser muito seguro, mas determinará no projeto que algumas canetas Bic estejam a bordo, sabe-se lá por quê) nos leve todos (há que ser grande o veículo, pela quantidade de netos, bisnetos e por aí vai que estarão a bordo) para um resort em Marte ou Saturno, em uma espécie de Cocoon às avessas. E mesmo com todas as recomendações de familiares e médicos, a rebeldia e o espírito jovem vai imperar no grupo, em temas, como:

- Alimentação à base de papinhas que nos farão lembrar, saudosos, dos caneloni estragados do H15. Obviamente vamos

contrabandear carnes e carvão e fazer um churrascão.

- Álcool só para desinfetar o andador. Os médicos recomendarão no máximo refrigerantes com zero açúcar. Também praticaremos a subversão contra os “algozes de branco” (Fráguas e Nishi que nos perdoem) e os barris de chope lá estarão. Como vai ser possível ministrar Engov pelo mesmo aplicativo que cuida da glicemia, tudo sob controle quanto a ressacas. É claro que não faltarão bons vinhos, uísques e saquês para os brindes solenes que faremos imaginando onde será a festa dos 120 anos.

- Truco rolando solto, inclusive pelo fato de os bois frequentemente não terem fim, pelo esquecimento da contagem. E se aos 20 anos tinha gente que já perdia com casal maior, imaginem aos 102! Inventaremos o apelido de patos fósseis para alguns.

- Haverá muito mais histórias para contar, por tudo o que vai acontecer nos próximos 40 anos e também por esquecermos frequentemente de que já as contamos. Então a repetição será deliciosa! Se aos 20 éramos gagás escrotos (uns mais, outros menos, é verdade), seremos apenas gagás, com muita honra.

- Também vai ter uma discussão muito séria com o ITA sobre a nossa placa no Metaverso. Bebeto vai resolver a questão propondo usar múltiplas dimensões em modo próximo à velocidade da luz, o que tornará a discussão muito mais lenta.

- Paulinho Diniz vai informar solenemente que adicionou mais capítulos à sua espetacular história dos veículos espaciais brasileiros (que se seguiu à preciosa história da aviação com que nos brinda por meio eletrônico nos 40 anos).

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- Guigui continuará com sua invejável barriga de tanquinho, Otto metido em algum projeto revolucionário da Embraer, Swiba ainda intrigando a todos com seus cabelos que não ficam brancos de jeito nenhum e mais um ou outro disposto a comentar sobre um novo e revolucionário marcapasso movido a energia atômica.

Os que eventualmente já estiverem em outro plano também comemorarão – de outro jeito, com certeza. Alguns membros da Comissão vão conseguir permissão com São Pedro (um admirador secreto da Turma 82) para uma celebração com “excessos não usuais para o ambiente celeste”. (Sim, iremos todos para o Céu, não se preocupem! As provas de Matemática e de Física do vestibular já nos garantiram o bilhete para lá desde antes de chegarmos a São José. Zeramos os pecados todos por antecipação.)

Assim, alguns barris de chope aparecerão miraculosamente, baralhos de truco normalmente proibidos serão liberados por uma noite e Deus se mandará para algum lugar de onde não possa ver o que se passará, secretamente torcendo para a Turma 82 se divertir demais em seus domínios, cansado de anjos excessivamente comportados.

Antes, muito antes disso, porém, cá estamos comemorando nossos 40 anos.

Alguns de nós infelizmente já foram para o

andar de cima, e faremos de tudo para que sua memória não se perca – a Turma 82 nunca deixa ninguém para trás! Os que ficaram ainda terão umas boas décadas para curtir filhos, netos, esposas, amantes, vinhos, hobbies , filmes, plantas, cachorros, o que for. Temos, no entanto, algumas obrigações fortes nestes bons anos que nos esperam.

A primeira é aproveitar tudo intensamente – teremos energia para isso por uns bons anos. A segunda é não deixar de nos divertir muito com o que a Turma 82 nos traz a cada encontro: novas e velhas histórias se misturando, tomando uma cervejinha, atacando um churrasco ou uma feijoada, e aproveitando demais o privilégio de fazer parte deste grupo.

Este livro é um marco, mas é vivo! Como todos ainda teremos muitas histórias a viver (e a relatar), continuaremos coletando tudo para registro posterior, em meio eletrônico. E aos colegas que não enviaram seus relatos a tempo de estarem aqui, no papel, fica a sugestão: que tal se animarem e contarem um pouco da sua importante e única história ao menos em meio eletrônico?

A Turma 82 – nos perdoem a definição sincera – é o maior tesão!

A Comissão

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A GALERIA DA TURMA 82 426 ADALTO GUIGUI CARMO CÍCERO HAYASHI TORNAVOI SEGRE EDMUR FUAD GUSELA KIENBAUM ENDERSON PV AFONSO RIBEIRÃO MASSAKI MAINHA SANTACREU BÓI REIS DE SOUZA ARTHUR OLIVEIRA KUSNIEC CASCELLI ARY CHRISTOPHE
427 40 ANOS DE HISTÓRIAS E MEMÓRIAS • TURMA 82 • ITA SARTÔ ZÉ ANDRADE VERDI JETHER MARCÃO MARCEL VINAGRE BORTMAN FANTINATO FORMIGÃO FULCO SWIBA MOREAU MOREIRA ZÉ RONALDO LUIZ CLÁUDIO JONAS GULIUS AKUTSU MATIAS ABE BUTTI CLEDI LUIS CARLOS AFFONSO FALCO
A GALERIA DA TURMA 82 428 STEINKIRCH SAKUMOTO ARDEO MUSSIO VOLPI HORIOKA SCHALKA SHINZATO DINIZ FRÁGUAS WATARU OTTO PAULO OUTI BEBETO WILIANS TIM BERGA RUY

álbum de fotos

INSTITUTO TECNOLÓGICO DE AERONÁUTICA

1) Encontro de 5 anos em Atibaia 2) Loucuras mineiras - Diniz e Solon 3) Aula do professor Stempniak no auditório da Química 4) Eletrônica
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5) Corredor do H8: uma luz no fim do túnel?
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1) H15 2) MOF - Bói, Mainha e Guerra 3) Turma 82 na Unicamp
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4) Festa no H8 em 1978 5) 102 e agregados (Outi, Pasquini e Almeidinha) agitando numa festa 6) Velva no Vinagre 7) H8 - Apê do fundo 8) “Surulopardeo” + Zappinha 9) Inauguração da placa (provisória)
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10) O famoso garbo do aluno Lucas e de seus colegas
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1) As quatro turmas no Auditório da Química com o professor Weiss 2) Encontro dos “de 1959” (e convidados) 3) Equipe de Judô - Penta da O.I.
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4) A famosa placa (definitiva), no E-2
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1) Ainda sem uniforme, nos primórdios do CPOR

2) Pelada atrás do H8

3) O.I. na Dutrinha

4) O famoso encontro no Palácio de Buckingham - C.V.

5) Viagem a Itaipu

6) Mecânica

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1) H8: Turma 82 + Turma 85

2) Salto em altura - O.I.

3) Aeronáutica

4) Martina conduzindo a tropa

5) Schalka paraninfo da Turma 17

6) Viagem a Cubatão - AER

7) Mecânicos na formatura

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1) Casamento do Rodrigo Affonso (Turma 14) com a Clarissa, filha do Cabral.

2) Turma 82 na C.V. - Mainha, Bortman e Moreau

3) Churrasco no C.T.A. - Encontro da Foto 2005

4) Infra 1982

5) Ten. Bosco orientando o aluno Tornavoi

6) Encontro de 25 anos - Maresias

7) Sintonia na formação

8) Mais H15

9) Pré pelada atrás do H8

10) Infra em 2007

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1) Juramento na formatura - Adalto

2) Missa de formatura

3) Ensaio para a formatura

4) Formatura da Turma 82 - 09/12/1982

5) Encontro virtual em 12/12/2020

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©2022 Vento Leste Editora. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização dos autores.

Editora

MÔNICA SCHALKA

Coordenação editorial e produção gráfica

HELOISA VASCONCELLOS

Projeto gráfico

CIRO GIRARD

Ilustrações

AFONSO DE CAMPOS PINTO CIRO GIRARD

Preparação e revisão VERA MASELLI

Diagramação SPRESS

Impressão LEOGRAF

Dados Internacionais de Catalogação de Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Comissão representante dos colegas da Turma 82 do ITA. C733t T82: 40 anos de histórias e memórias/Comissão Representante dos Colegas da Turma 82 do ITA. – São Paulo, SP: Vento Leste, 2022 454 p. : foto. color. : 21 x 28 cm

ISBN 978-85-68690-10-9

1.Turma 82 do ITA – História. 2. Instituto Tecnológico de Aeronáutica. I. Título.

CDD 359.8

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

Os relatos que compõem esta obra, memória afetiva de mentes engenheiras que passaram suas vidas em revista depois de 45 anos do ingresso no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, que mantêm laços de amizade forjados em um ambiente de muita cooperação e superação, que celebram neste momento suas trajetórias, conquistas, amores e inúmeros recomeços, foram desenhados por Ciro Girard, com o auxílio luxuoso do Afonso de Campos Pinto nas caricaturas, utilizando as fontes Chronicle Text G1, Chronicle Display, Garamond Premier Pro, Gotham, Battersweet. Foram impressos 250 exemplares na Leograf, em novembro de 2022, para a Vento Leste Editora.

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