As onze luas

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As onze luas Valéria Scornaienchi Textos e ilustrações


Agradecimentos: Aos gigantes habitantes das cavernas das profundezas da terra. Às lendas da terra oca.


As Onze luas

Valéria Scornaienchi Textos e ilustrações



Interessada em pensar novos mundos e pensar novas formas de vida no planeta me desloco para lendas e lugares habitados por outros povos. Tentativa de me reencontrar em outros. Diz a lenda que a terra é oca, e que há várias cavernas espalhadas nos continentes que levam ao centro da terra. O povo Macuxi, indígenas que vivem no interior do Amazonas, nas Guianas e na Venezuela, são os guardiões da entrada para uma dessas cavernas, habitadas por gigantes. Em 1907, eles caminharam de 13 a 15 dias através de um portal até alcançarem a caverna onde encontraram gigantes, e lá receberam a missão de cuidar dos portais de entrada desse sítio sagrado. Visitar essas lendas me levou a pensar na existência dessas cavernas e de como seria a experiência de estar lá. As onze luas traz textos e imagens a partir de 7 pontos de vista, gentileza, impermanência, firmamento, desconhecimento familiar, permissão e lucidez. Lugares de contemplação do invisível na busca de sentido para a vida.



Gentileza Uma longa escadaria de degraus também longos, leva a um lugar mágico. Habitado por cogumelos de raízes gigantes que nutrem toda a floresta. Não se pode ver nada além de uma luz azul cintilante que deixa a vegetação que ali vive, de um azul quase brilhante. Poeiras transparentes e reluzentes cruzam de um lado ao outro das paredes em danças sublimes. Ar puro, e gentileza. Um ar de gentileza que descansa sobre cada ser que ali adentra. Aos poucos, o corpo que parecia cansado vai entrando em equilíbrio e flutua sobre o chão de folhas úmidas e bem verdinhas. Seres luminosos habitam a caverna. Assim fazem do caminho um lugar seguro. Será que caminhar para o centro da terra é um pouco como caminhar em direção ao cosmo? Ao desconhecido? Ou mesmo para dentro de nós mesmos? Folhas, plantas, flores, cogumelos, e outros tipos de viventes das cavernas são completamente diferentes do que conhecemos. Conforme caminhamos conectamo-nos à sabedoria interna da natureza, assim sabemos o que eles são, mas não os reconhecemos a partir dos olhos.



Impermanência. A paisagem muda o tempo todo. Muda de cor, muda de tipo, muda de forma, muda de comportamento. Surgem montanhas, lagos, e o rio que corre abaixo de todos os rios. O rio das águas sábias. Águas que conhecem a verdade. Basta olhar profundamente em suas águas límpidas, que surgem palavras e frases na mente. Flutuam como o rio e vão para os lugares onde precisam ir e não para onde escolhemos. A organização da caverna é perfeita, não permite controle, nem interferências. Não se pode retirar nada de lá. Apenas conectar-se com a sua energia plena que clareia a mente e tira o véu escuro que impede aos humanos de perceberem o que é real.



Enfim, o firmamento.

A cada final de dia, depois das longas horas caminhando, deitamos no chão macio da caverna. Ao deitar o que era úmido vira pluma e assim o corpo se acomoda. Esse é o momento mágico. Ao fechar os olhos com a respiração quase interrompida abre-se o firmamento e surge o mais estrelado céu, ilimitado ser vivente da galáxia. Estrelas deslizantes iluminam a escuridão numa completa fusão entre cor e escuro. Nesse lugar o tempo é suspenso. Nenhuma sensação, nenhum pensamento relacionado ao tempo. A pausa revela um lugar oco dentro de nós. Lugar inexistente ao acordar, mas que pode ser visitado sempre que se aquieta o corpo e respira profundamente.



Desconhecimento familiar.

Depois de alguns dias de caminhada, as flores eternas surgem ao redor. Florescer que nunca sede. Suas pétalas descansam em relevos sobre as pedras que cobrem a caverna criando mapas sensíveis que nos levam aos aromas da memória. Quanto mais lento é o caminhar, mais revelam-se os aromas. E em poucos instantes nos transportamos para lá, para o lugar onde as memórias permanecem vivas. São delicadas existências do mundo do inexistente. E se lá adentrarmos, ouviremos também os sons, as palavras, e a sensação do abraço e do afeto que só o tempo delongado da memória pode trazer. De tão distante, próximo. De tão vazio, repleto.



Permissão.

Cavernas que nunca terminam, 15 dias revelam-se uma eternidade. Faz a visão atravessar as primeiras camadas das superfícies e adentrar ao profundo sistema de fluxos complexos, habitantes de todas as coisas. Coisas de alma secreta, e cores transparentes. Escorregadios fluxos transportadores de percepções sensíveis. O corpo agora vibra no fluxo de todas as coisas e cada vez que algo se move, uma parte de nós se move também. As formas irreconhecíveis e íntimas abrem um caminho sem volta de gestos. Gestos sensíveis e imperceptíveis, aos quais somos conectados e nos movemos sem resistência.



Lucidez

As cavernas nunca pararam de nos trazer lucidez. Nós é que nos afastamos delas. Mesmo depois que retornamos das cavernas dos gigantes, nos mantemos enraizados aos seus pés, às raízes que nutrem toda a terra através desse lugar desconhecido e tão familiar. Somos capazes de nutrir todos os seres ao nosso redor, assim como a nós mesmos. Basta fechar os olhos e ela estará ali. Pronta para nos receber e apresentar tudo aquilo que nos pertence, e que por algum motivo tínhamos esquecido. Onde foi que perdemos a lucidez?



Há muito tempo deixei as cavernas. Continuo sentindo sua força. Cada vez que vejo uma pedra, que piso na grama, que contemplo o céu, que acordo a respiração estou com ela. As cores vibrantes misturam-se com as cores ao redor. Interrogo as cavernas e espero que me coloquem de volta no fluxo Invisível do caminho. Raízes, plantas, seres desconhecidos e uma verdade inabitada esperando o despertar. Desperto em mim a força, a lucidez, a familiaridade, a impermanência, o firmamento e a gentileza para que um dia seja eu a portadora dos segredos das grandes cavernas da terra oca.



O sagrado estรก no encontro. A natureza ilimitada do ser capaz de se conectar com absolutamente tudo.



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