das peles que me habitam, 2021

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das peles que me habitam

valéria scornaienchi


experimento 1 das peles que me habitam Desenhar sobre as folhas coletadas no caminho, é como fazê-las reviver. Caídas das árvores, folhas descansam no chão e são levadas pelo vento ao meu encontro. Carrego-as comigo para o ateliê e então as observo, sinto sua textura, cheiro, ouço o craquelar enquanto as quebro em pedaços menores e observo o tempo estampado em sua superfície. Filhas de árvores, nossas irmãs, nossas filhas. Desenho o tempo em sua superfície e me descubro em seus percursos. Deslizo os dedos por suas linhas e as carrego. Delicados fragmentos de vida. De efemeridade, dos vestígios de tempo.


pele humana pele vegetal pele mineral pele animal pele



Desenhos que se completam, que se conectam e que surgem da sensação de estar presente e observar as linhas, os gestos que as peles me trazem.



remover as camadas que me separam das peles, que me desconectam



Fotografar o processo e observar outras nuances que surgem com a fotografia, com a junção das imagens, com o tempo que elas me sugerem que muitas vezes é outro tempo.



tudo cabe nesse lugar chamado vida. Tudo está relacionado. coexistência.


as peles que me habitam são peles vivas.



Os desenhos na folha vem dos gestos que surgem do sentimentos ser pele. De ser camada entre o que está dentro e o que está fora.





experimento 2 Das peles que me habitam sinto o odor, a textura, observo as entranhas. As linhas cartográficas que correm na minha e na outra pele. Peles que são uma. Pele da planta pele da folha, pele das superfícies vivas de todos os seres que se criam a metamorfose em mim. Um corpo de vestígios de outros corpos rico em diversidade e por isso gentil com todas as espécies. Um corpo que sabe que pertencer ao mundo é ser um pouco cada ser vivente que aqui habita, os visíveis e os invisíveis. Essa serie de desenhos me faz ser outro por poucos momentos, e de tanto de ser outro seremos enfim um só formado por muitos outros seres. Eu coletivo.

da conexão com o sagrado ANCESTRAIS



Desenho no corpo como uma forma de proteção, de gesto da alma que me conecta com todas as outras peles, pele das plantas, peles dos animais, pele da pedra e todas as outras peles que me fazem ser quem eu sou. Prefiro dizer que sou a metamorfose de todas essas vidas que me antecedem, a pensar limitadamente que sou apenas humana. Quando conheci Emanuele Coccia, passei a ver as plantas de outra forma e depois de ter lido Metamorfoses também sonhei como ele ter asas e voar, ter a força das lagartas, passar de uma existência a outra sem ter que morrer e renascer. Penso na consciência que somos, que pra mim está acima da vida e da morte, somos apenas testemunhas da vida e da morte, mas podemos sim ser mais vivos, intensos na capacidade de descolonizar a existência em um lugar de plenitude e coexistência com todos os seres do cosmo. Na possibilidade de criar fabulações e assim novas histórias para serem contadas e vividas.




Desenhos que são a representação da vida, dos percursos, do tempo, da chuvas e que me protegem do ser que sou e de outros que vez ou outra me habitam.




pele planta pele


Entre o mundo e eu, há pele, por onde passa o ar, toca a água, sinto calor, frio, arrepio, por onde surge o prazer, e todas as sensações mais sutis de conexão com algo que eu não sei o que é, mas que me entrego completamente.

A pele tem tempo, tem vida, tem gesto. A pele tem cor. A minha por exemplo é cor de rosa. E quando tomo muito sol fica mulata. Pele que me conecta com meus parentes italianos e com meus parentes indígenas. Pele que me conecta com todos os outros no toque, no gesto, no sentimento de afeto ou de repulsa. Pele ancestral. Germinada por seres de todos os reinos . Pele.




pele planta pedra



experimento 3 das partes do corpo




As mãos, os pés, a folha, o papel.




experimento 4 dos gestos, dos traços, da cor METAMORFOSES



tempo linha horizonte entre os tempos Continuum Intervalos gestuais





experimento 5 das conexões, do profundo e das reflexões



Eu sempre soube ter uma ascendência indígena. Quando era pequena, com o cabelo azul de tão preto, e liso, vivia andando pelada pela casa e meu pai me chamava de Havita. Esse ano quando entrei na residência AIRE (arte com indígenas em residências eletrônicas) , foi uma primeira experiência de aproximação. Soube que minha tia, irmã do meu pai, costumava visitar aldeias indígenas com uma amiga antropóloga. O primo do meu pai vivia também em aldeias indígenas... mas por algum motivo isso ainda parecia bem longe de mim. Diante da quarentena, passei a ouvir mais podcasts, acompanhar vídeos no youtube, e comecei a me dar conta que a forma como eu sinto e penso muitas coisas está mais conectada com a forma de pensar dos povos originários do que com os brancos. Isso me chamou a atenção. Ver palavras sendo ditas de um outro lugar completamente conectadas comigo. Quando iniciei a residência e me dei conta do quanto em comum eu tinha com essas pessoas. Uma vontade de gesto, de movimento, de conexão com os elementos da natureza e enfim com o sagrado.





caderno de gestos e reflexões das pinturas



experimento 6 da diversidade, dos desenhos e do tempo estelares







experimento 7 das representações e outros tipos de pele permeáveis, plenas e silenciosas







experimento 8 dos troncos e tempos que me habitam estrelas, vidas e chuvas



Os troncos trazem consigo o tempo, um tempo de existência longa. Histórias guardadas. Esse pedaço de tronco é de uma árvore que caiu na fazenda. Derrubado pela chuva e pelo vento, a árvore desnuda suas raízes, que ficam expostas na superfície agora coberta de terra. A paisagem mudou mais uma vez. Um vão se abriu no céu onde só se viam pequenas frestas. Esses desenhos foram inspirados pelas estrelas, ventos e chuvas, como se o tempo pudesse mostrar novas paisagens e criar novas histórias para além das que a própria árvore carrega. Historias das peles: da minha, da árvore e da folha que se complementam em uma união possível de territórios, que no fundo são um só.





Pesquisas e afetos indígenas

Há poucas semanas eu fui de novo atrás das minhas origens indígenas, e acabei descobrindo por intermédio de uma prima da minha mãe que minha bisavó veio da tribo bororo da região entre Mato Grosso e Goiás. Passei então a buscar algumas informações desse povo. Como vivem, como pensam, rituais, pinturas corporais, plumagem, caça, pesca... E fui descobrindo que várias coisas que eu havia descoberto antes e que estavam escritas no meu caderno diziam respeito também a eles. Por exemplo que eles usam timbó, que é um cipó que contém uma substância que faz os peixes dormirem, para pescar. Também soube sobre a origem das estrelas, das formas de viver, do calendário circular, da diferente organização política dentro da tribo, da forma circular como as casas se organizam, de como são habitadas e de como se adaptaram a agricultura. Surgiu em mim um afeto genuíno, sem julgamento, um afeto pela resistência desse povo tantas vezes massacrado, um afeto pela existência que me permite me adentrar e me conectar com esses seres.


referências


O povo Xucuru usa o grafismo da Jibóia no corpo. Existem algumas variações, mas é sempre a Jibóia que traz proteção e força da cobra.

Colaboração Kadu Xucuru “ Eu vivo recapitulando a minha história e hoje na minha família tratamos os desenhos corporais com uma forma de proteção! Para cada desenho eu sempre ligo as tramas (os desenhos) dos tupés (tapete feito com arumã). Hoje perdemos os costumes e saberes e vamos tentando revitalizar e se adequar aquilo que nos rodeia!” Colaboração Carina Desana


Os Kaingáng, usam os grafismos que dividem o povo em duas grandes famílias ou metades, estas marcas são chamadas de Rá, e existem apenas dois tipos, que são o Rá Téj que pertence à noite e à lua; e o Rá Ror que pertence ao sol ou dia; o grafismo define a metade tribal à que o indígena, animais, plantas e objetos pertencem.

https://youtu.be/e1LT-j39XJU https://astrolabio.org.br/literatura-dos-povos-indigenas/ http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/produc oes_pde/md_rosangela_perini_godoy.pdf


Sobre o povo bororo

"Índio Bororo", por Hercules Florence, durante a Expedição Langsdorff à Amazônia (1825 - 1829)

https://issuu.com/graficaprint7/docs/087732_livro_bororo_issu_ PINTURAS CORPORAIS – livro completo de pinturas


Foto: Waldir de Pina, 1985

Ciclo anual das atividades Duas espécies de fenômenos naturais definem o ciclo anual de atividades Bororo. A ausência ou freqüência das chuvas dividem o ciclo anual em duas estações: Joru Butu (seca) e Butao Butu (chuvas). A ausência da constelação das Plêiades, Akiri-doge, que ocorre durante cerca de um mês, marca a passagem de Akiri-doge Èwure Kowudu (cerimônias da seca) e Kuiada Paru (cerimônias das chuvas).

Foto: Sylvia Caiuby Novaes, 1971

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Bororo



Sobre o funeral bororo “Na noite de sábado a celebração foi longa ao redor do corpo e diante das duas grandes rodas. O chefe de cabacinha e condutor da cerimônia era também o puxador de cânticos que contavam a história de heróis Bororo e de seres mitológicos, e exaltavam a vida do falecido. Em dado momento, os homens se revezavam com as rodas alçadas à altura da cabeça, e com elas dançavam e saltavam freneticamente, ao ritmo da música. Em algumas etapas, não é permitida a presença de mulheres e crianças, sob a crença de que teriam a morte próxima. Elas ficam dentro das malocas, um tanto nervosas diante da suposta presença dos espíritos em rituais que apenas os homens participam. Eu fiquei em uma das casas, com Jacira, mulher de 33 anos, a filha dela Ana Paula, de 20, e os netos pequenos. Mas foi na tarde de domingo que se deu o ponto alto dos ritos funerários. Homens, mulheres, jovens e crianças se pintaram com o negro do jenipapo e o vermelho do urucum. A simetria e o perfeccionismo dos desenhos impressionam por realçar a beleza exótica do rosto de jovens e crianças. As mulheres pintam filhos e netos e todos vão para o centro da aldeia. No local, homens maduros e jovens índios, vestidos com parikos (cocares) majestosos de penas de arara azul e mantos com pele de jaguatirica entoaram novos cantos de evocação dos espíritos ancestrais e dançaram, por cerca de quase três horas, ao redor do corpo do ancião José Carlos.” https://www.sonoticiaboa.com.br/2014/11/02/amerindiosdo-brasil-visita-aldeia-bororo-mt/


Esse caderno é um registro das experiencias feitas a partir da ideia de pensar o corpo como suporte, o corpo como ente sagrado e a conexão do corpo com as peles da natureza entrecruzado com a ação de pintar o corpo utilizada pelos indígenas, parentes, que agora sei que são próximos. Inspirada pela residência AIRE (arte com indígenas em Residências Eletrônicas) e pelo descobrimento de minha bisavó bororo, me aventurei a esses campos de experiencia. Imagens, textos e edição da artista. valeriascornaienchi.com


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