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RICARDO PUCCETTI

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PEPE NUÑES

PEPE NUÑES

Então, o palhaço deve ter uma entrada, um desenrolar e uma saída. Isso vale para um número de cinco minutos ou para um espetáculo de duas horas. São princípios, não dá para o palhaço fazer qualquer entrada, seja na rua, no circo, no teatro ou no cabaré da meia-noite. É nesse primeiro momento que ele se revela ao público, que cria um impacto, uma primeira conexão, traz o público para seu mundo.

Esse palhaço que entrou com determinado impulso se transforma e, junto com ele, o público se transforma. Consequentemente, isso gera outro impulso que é a saída, o final. Se o palhaço perde esse impulso ele não sai. Ele terá que ser carregado dali ou terá que construir outra coisa.

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Vejo essas situações como parte do esqueleto do riso. O stand-up lida de um jeito, o teatro cômico de outro e o palhaço tem as suas próprias estratégias de entrada e de saída. Já vimos aquela entrada genial do Tortel Poltrona, palhaço de Barcelona e fundador dos “Payasos Sim Fronteras” - que já veio ao Brasil muitas vezes. Não tem entrada melhor que essa. Ele chega e vai amarrando cada um do público com uma fita. Neste momento, literalmente, ele traz o público para o mundo dele. Quando o palhaço não tem esse momento o público fica distante. O esqueleto é construído a partir das partituras das entradas e saídas, que nós não inventamos, a gente bebe da tradição. Até podemos encontrar nossa maneira de fazer, mas não inventamos a roda.

ANDERSON - Você me fez pensar que essa é a estrutura do campo do riso. E na palhaçaria se fala muito de nosso estado [de criação]. Como você lida com esse assunto e faz com que este entendimento chegue para os alunos?

PUCCETTI - Vou falar da maneira como nós, o Lume, entendíamos o trabalho do ator. Ele sempre tem dois componentes: o concreto - ação física, o corpo teatralizado, que vai agir segundo outros princípios; e há o lado subjetivo, que é energia, algo que a gente não vê, mas que está lá.

Se não tiver isso, realmente não chega nada para a plateia. No princípio é semelhante à ação de uma criança. Ela quando sente o corpo, se expressar, não existe um filtro. Se distrai com a bola, tropeça, bate o pé e chora. O corpo todo chora. O palhaço é isso.

O primeiro passo é esse: entrar em contato com essa possibilidade física. A partir disso, vemos que o nosso corpo tem várias maneiras de expressar energias. São facetas que cada um tem a seu modo. Esse é o ponto de partida para eu construir aquilo que você nomeia como estado, que nada mais é do que entrar em um nível de percepção além do cotidiano. Em resumo, é saber desenhar no espaço, é a forma que tem conteúdo, como a empada e a azeitona, ou seja, uma coisa não existe sem a outra.

Acho que o retiro tinha um foco muito preciso, que era concentrar na descoberta desses estados. Eles aparecem quando você se vê em uma situação de extremo desconforto ou cansaço físico, situação em que você pensa, simplesmente aparece.

Depois, vem o corpo que brinca. É uma outra etapa que ainda não considero como palhaço. Palhaço é o que ele faz com isso e precisa ter consciência de que não existe sozinho, mesmo os que trabalham solitariamente como eu, como tantos de nós. É o corpo que brinca, que é capaz de entrar em diálogo com o publicou ou parceiro, mesmo com esses estados e com ideias diferentes. Um exemplo clássico é Branco e o Augusto, arquétipos que são explícitos em o Gordo e o Magro. O Gordo é o Branco, pois acha que o tonto que faz tudo errado é sempre o outro, o Augusto, que sempre aceita essa condição e é feliz desse jeito.

Quando eu digo que os palhaços não são sozinhos, existe sempre a situação do Branco e do Augusto. Posso citar o Chaplin, que vivia formando duplas seja com objetos (portas giratórias, patins, as máquinas dos “Tempos Modernos”) ou outras personagens. Ele nunca estava sozinho.

O que estou querendo dizer é que os estados não são suficientes. Eles devem virar corpo, têm que existir de uma maneira teatralizada, precisam entrar em jogo, se transformar.

O estado é algo que você codifica. São territórios, lugares que o palhaço tem. Há uma lógica com seu estado e com outros pode ser diferente, por causa das interferências do público, dos diálogos. Ele tem que fazer e tem que ouvir o tempo todo. Ouvir o espaço, o que está rolando, a reação do público. Se não houver transformação depois disso você não vai para lugar nenhum. Não há conflito, a história não anda. ANDERSON - Lembrei-me do cineasta e comediante Buster Keaton, que transformava seus grandes cenários em algo a mais para jogar com ele.

PUCCETTI - Cada um tem uma maneira muito própria de encontrar os seus aliados. A palhaçaria é uma arte que gosto muito, tanto do ponto de vista da dupla quanto do ponto de vista de como você vê o público.

Ainda sobre a entrada, o palhaço deixa que o público conheça o mundo dele. Cada um de nós tem o seu universo. Gosto de usar a pesca como exemplo. É como se o palhaço pescasse com um anzol. Ele entra e “tchac”, fisgou um. Aconteceu algo aqui, fisgou outro e assim sucessivamente. A rede é construída rapidamente, pois o impacto criado no início é transformado rapidamente em uma rede.

O Nani Colombaioni que também foi meu mestre, dizia isso da minha entrada. Ele ainda afirmava que o artista devia ter estratégia. Antes de começar o espetáculo, ele entrava e caminhava pelo palco. Um, dois, três minutos, não fazendo nada. Só olhando, batendo o olho em um, em outro, lá e cá, vendo as reações. Claro que ele não estava neutro, reagia muito pouco e assim mapeava o público.

Neste momento, só pelo olhar, ele percebia a pessoa que ria rápido, a que encarava e, principalmente, aquela que tinha a risada mais engraçada e que levava a plateia ao riso. Toda plateia tem indivíduos com essas características. Ele mapeava e os usavam

como aliados. Em qualquer situação inusitada ele olhava para a pessoa que ria engraçado e, instantaneamente, ela soltava o riso engraçado, o que contagiava a todos. É essa inteligência estratégica que devemos ter em cena.

ANDERSON - Você falou do corpo da criança. Meu filho mais novo, Benjamin, está com quatro anos, fase em que é fácil se emburrar. Ontem, estava terrível. “Vai escovar os dentes, Benjamin”, disse a ele que me respondeu, “não vou”. Resistiu, mas, obedeceu. De repente, o menino entra com tudo, com a escova de dentes na mão. Percebemos que ele não escovou e achamos graça, porém, ninguém riu para não dar palco. Neste momento, ele se aproximou, bateu o pé no chão e bufou. Aquilo levou a gente para ele. Foi uma grande entrada, porque criou uma expectativa e derrubou todo mundo.

Em algum momento, o palhaço tem a noção de que criou uma entrada, mas isso não é o bastante. Ainda é necessário pensar no desenvolvimento e na saída. Quando você acredita que a pessoa chegou no entendimento de que concebeu o seu palhaço?

PUCCETTI - Para mim é muito concreto. Não adianta você ficar trabalhando estados diferentes se você não sabe jogar com isso. O Benjamin soube jogar muito bem intuitivamente, talvez nem compreendesse. Ele já estava pleno em estado, bravo, porque estava sendo forçado a fazer algo.

Você via que ele já estava alterado. Os estados são essas transformações que te tiram do eixo. Se ele fica só com isso não acontece nada. Mas, quando ele volta, usando o estado para dialogar com você, isso é muito palhaço.

Quando ele vê que ninguém reage, faz uma nova ação que surpreende a todos. Isso é diálogo. Por isso, que a criança tem essa inteligência, ela segue os impulsos. Na vida adulta, ao trabalhar o palhaço, temos que retomar a capacidade de seguir os impulsos. O riso é consequência disso.

Esse exemplo é muito legal porque ilustra o que falo. O Benjamin fez tudo o que o palhaço precisava: voltou e usou o estado para conversar com vocês, o público dele. Imagino que foi intuitivo.

Ao trabalhar com iniciação ou continuidade, acredito que devemos sempre estar ao lado do aluno puxando o seu tapete para que reaja. Do contrário, a coisa não anda. Por isso que eu digo que o palhaço surge a partir dos impulsos.

ANDERSON - Você falou da sua experiência com os sagrados, com os xamãs, de maneira profunda. Na palhaçaria, o que isso trouxe de novo para você?

PUCCETTI - Tudo o que conversamos eu vi neles. Percebi que é importante essa capacidade de brincar o tempo todo, mesmo nas situações sérias ou trágicas. No fundo, esse olhar vê o outro lado, ou seja, é uma coisa aberta e não fechada. Eles têm isso ao extremo, de uma maneira linda.

Eles têm corpos cheios de forças e impulsos. O que me tira do eixo é essa noção de que eles têm do riso na sociedade Krahô. O riso tem um papel dentro da hierarquia de

poder, por exemplo, os Hotxuá dentro da tribo decidem quando vão pescar, plantar ou se não vão fazer nada. Também são uma espécie de juiz.

Cada um é do seu jeito, você não tem um julgamento em relação aos erros que são a base do palhaço. O cotidiano é o material deles, porque o palhaço xamã brinca com isso diariamente, não tem espetáculo. Eles têm os momentos de atuação nos rituais, mas, durante o dia, são Hotxuás o tempo todo.

Mas o olhar dele e a atuação estão presentes em qualquer momento. Quando está carpindo uma roça e percebe que o trabalho está muito duro, faz graça de um jeito de palhaço, pode contar uma história ou cantar.

São conhecidos como o povo que brinca. Tem uma pessoa que nasce com uma função social, que é batizado por um Hotxuá. Desde o início esse bebê é preparado para ser um Hotxuá, algo que não existe em nossa sociedade. Em nosso meio social, o riso acontece em momentos específicos: quando vai ao circo ver o palhaço. Eles já me chamavam de “Hotxuá da Cidade” e teve uma situação impressionante que vivi junto a eles. Certo dia, fui tomar banho no rio e, geralmente, eu ia junto com o pessoal da filmagem ou sozinho. Porém, naquele dia fui em um horário que estava toda a tribo tomando banho – idosos, crianças, mulheres e homens. Estavam pelados se refrescando. Tirei minha camisa e quando fui tirar o calção, bateu uma vergonha porque sou tonto. Fui entrando de calção e um velhinho me disse, “faz que nem a gente, fica pelado” - eles falam português, apesar de ter a língua deles. Meio envergonhado, tirei e mergulhei na água.

Saber o que fazer na água, as crianças me perguntaram, “e aí Hotxuá você vai fazer o quê?”. Então, achei uma garrafa plástica que estava na beira do rio. Peguei e joguei para um moleque. Ele devolveu para mim meio surpreso e joguei para outro. Logo todos estávamos jogando.

Sempre faço essa piada boba de que “nossa, chegando do Tocantins, vou entrar no metrô de São Paulo e jogar uma garrafinha para ver o que acontece”. No mínimo, seria linchado, porque não somos um povo que ri como os Krahôs, que tem o palhaço em sua estrutura social. Isso me lembra algo que você falou há pouco: como é o nosso riso?

Creio que o palhaço pode rir de tudo, de qualquer situação, mesmo as mais difíceis. A dica é tomar cuidado o momento em que se cria esse diálogo. Gosto da expressão, “nós rimos com o público”. Às vezes, o público ri de nós, às vezes, nós rimos do público. Mas, no geral, acho que é essa atmosfera de que somos iguais. O Gordo e o Magro falam sobre isso. Tem uma entrevista em que um deles diz, “o público ri da gente porque se sente superior, mas, na verdade, ri de si mesmo”. Essa situação não é aquela em que o riso humilha, e sim a que coloca você em um certo poder, a exemplo dos Krahôs. Em cena, como palhaços, também temos esse poder.

Podemos fazer coisas que cruzam limites. Mas, quando estamos nos colocando em uma situação de risco, temos a liberdade de puxar o limite do público, que vem junto por ver uma honestidade ali. Algo parecido que vi entre os Krahôs. Essa qualidade de riso era bonita de se ver.

ANDERSON - O que você tem pensado para o futuro? O que será de nós depois dessa pandemia?

PUCCETTI - Estamos em um momento de situação extrema em que perdemos o contato com o outro. Esse outro é o nosso público e como já mencionei, o trabalho do palhaço não existe sozinho.

É um momento de crise, que abre diversas possibilidades para os palhaços explorarem o tipo de relação que pode surgir. Precisamos nos apegar à possibilidade de crescimento, porque eu acredito que as artes são ancestrais. Elas já passaram por milhares de crises e, talvez, até mais sérias do que a atual. Por exemplo, o palhaço e o circo sobreviveram à instabilidade do início do século XX, quando começaram a ter dificuldades e são obrigados a ir para as telas de cinema e para o teatro É pensar em alternativas para reconstruir construir essas relações, que agora acontecem por causa da tecnologia. Como a humanidade se comunica com o outro que está do outro lado de uma tela? Eu não tenho essa resposta, até porque sou ruim em tecnologia. Mas, creio que algo novo acontecerá e que voltaremos ao presencial.

Durante os cursos online, brinco que desejo ver o que vai acontecer quando essa jaula for aberta e a palhaçada sair na rua. Será uma reviravolta, muita coisa vai acontecer porque está tudo acumulado. Não estamos mortos, nem hibernando, estamos trabalhando.

Estou com muita saudade da rua, da plateia, de sentir o que só existe ali. Tenho certeza que este é um sentimento geral.

ANDERSON - Certamente...

PUCCETTI - Vemos as pessoas trabalhando, construindo, criando. Tem um componente que sempre fez parte do cômico, principalmente da Comédia Dell’Art em diante, que é a sobrevivência, como a trupe que chegava no castelo para se apresentar em troca de comida ou o circo que tem isso muito forte até hoje. Estamos nos recriando, acumulando experiência, formando redes e se reinventando.

Nós artistas somos uma tribo singular, percebi isso com os Krahôs. Temos coisas específicas do nosso grupo que nos diferencia. E precisamos ser generosos com os colegas, ajudar um ao outro.

Os Colombaionis, por exemplo, têm essa singularidade. Para eles há um cuidado com o figurino, entre os colegas, assim como com os valores éticos também. Tem que ter mais.

ANDERSON - O Pepe Nuñez observou que a ética tem que ser aplicada de uma forma ampla, inclusive, com os técnicos de teatro. Ele acha que a ética deve estar aplicada em todo o nosso campo de trabalho. Muito do que você está falando agora tem a ver com isso.

PUCCETTI - Você sabe como foi no início do Lume? Como o Luiz Otávio fez a gente aprender isso? Por exemplo, nós tínhamos uma carga horária de treinamento que era de no mínimo 10 horas diárias. Começávamos às 5h da manhã e íamos até as 15h e ele falava, “ok, terminou o treinamento. Agora, vão almoçar e descansar para fazer as outras obrigações”.

Eram as nossas obrigações administrativas. Além de tudo isso, tínhamos que ser técnico um do outro, do espetáculo do outro, saber programar a luz. Passamos por tudo, desde escrever uma carta, até ligar para alguém. Isso é importante porque compreendemos cada aspecto desse fazer, o Pepe está certo.

Lembro-me do meu avô, que não era palhaço, mas sempre me levava no circo e no cinema. Sem saber, foi ele o responsável por eu escolher aprender tudo, afinal, a gente tem que deixar as coisas melhores do que estão. Ele era uma pessoa da roça, bem simples, e me passou essa ética que está diretamente ligada à valorização humana.

O Lume fez parte desse resgate da palhaçaria. Como já disse teve um momento em que o palhaço sai do circo e vai para o cinema, porque o Chaplin, o Gordo e o Magro, eram de Vaudeville, da rua. Era comum ver os Colombaionis, Grock, Fratelini, Charlie Rivel se apresentando nos grandes teatros de Paris, de Milão. Eles eram grandes astros, como Mickael Jackson da época. Todo mundo ia ver.

Quando chega o cinema falado, na década de 1950, isso se perde. Lecoq e Sartori retomam essa grandeza, através de um trabalho de máscaras e do próprio palhaço. Foi toda uma geração de franceses e italianos que resgatam isso. No Brasil, essa onda chega na década de 1980 e outros fizeram parte dela, além de nós. O Lume criando o retiro, o Xuxu na Paraíba, Zil Clown trabalhando com palhaços em Porto Alegre (RS), a Cristiane Paoli Quito em São Paulo (SP), a Maria Helena Lopes e o grupo Tear trabalhando com máscaras. Foi uma geração.

ANDERSON - Palhaço tem muito poder, né?

PUCCETTI - Sim, é uma figura poderosa porque é ancestral. Isso é algo profundo. Por isso, nós que trabalhamos nesse contexto cultural, devemos ter essa consciência. O que podemos tirar de ensinamento dos Krahôs é que este ofício é muito mais do que só brincar. Daí a necessidade de entender as técnicas do ofício, porque ele tem responsabilidade de ser uma figura que transforma o público. Se o palhaço consegue ter isso no seu trabalho, no mínimo, consegue dialogar com a plateia.

Caso o trabalho seja baseado em códigos culturais ou algum tipo de humor com referências de um lugar, certos públicos não se conectarão. Eu tive algumas experiências assim.

Nos Hotxuás, as vezes em que eu reagia e soltava um “olé”, eles não entendiam o que eu dizia e o riso não acontecia. Já das vezes em que eu caía todo mundo achava engraçado, porque cair é humano, enquanto “olé” é uma expressão espanhola. Se você não tem essa referência não rola.

Quando apresentamos “O Cravo, o Lírio e a Rosa” no Egito, foi estranho, porque os árabes não têm a figura do palhaço no humor deles. Eles ficaram intrigadíssimos e nós desesperados. Até que em determinado momento começaram a perceber que era uma baderna, então entraram no jogo.

Isso também é referência geográfica e cultural. No Nordeste, se você for se apresentar na rua é rápido, as pessoas participam. Agora, se for na França onde tem uma imensa tradição de palhaços a reação outra. Você verá que estão observando a técnica, é um outro jeito de apreciar. E se você não sabe lidar com isso começa a se perder. É muito rico esse nosso universo, onde a gente existe. Não é fácil, mas, é muito bonito!

ANDERSON - sso é maravilhoso! Uma vez fui a um festival em Lima (Peru), que me marcou porque fomos recebidos por um artista de rua, ele foi o nosso anjo. Ele nos apresentou a cidade e as pessoas o paravam na rua para tirar fotos. Lá, as pessoas dão valor ao artista de rua, algo muito diferente daqui. A relação é outra.

PUCCETTI - Essa relação poderia ser estudada do ponto de vista histórico, isso da rua na América Latina, o ato de passar o chapéu. No Nordeste, tem o artista de feira, o charlatão, o camelô que vai vender algo e faz comicidade, etc.

Na região Sul, isso é um comportamento recente. Agora, se você vai na Argentina ou na Colômbia é diferente. E, como você falou, as pessoas já reconhecem, elas contribuem, assistem, o público já está formado.

ANDERSON - Agradeço imensamente por essa conversa e deixo um tempo para você fazer sua reflexão final. PUCCETTI - É gostoso conversar. Acho que todos estamos com vontade de se encontrar, principalmente para falar sobre algo que tanto amamos. Gostaria de agradecer o convite, fiquei muito feliz. Um abraço em nome do Lume. Eu gosto muito de frisar a diversidade que os palhaços têm. Eles que existem na adversidade e ao mesmo tempo trazem o riso, a ética. Lembram a humanidade que a sua força está na pluralidade e isso é político pra caramba. O fato de um palhaço existir já é um ato político na base. Já nos traz uma grande força.

Maku

ANDERSON - Como foi o encontro com a sua palhaça, sua iniciação na palhaçaria?

MAKU - Eu comecei como artista de rua, malabarista, especificamente, entre 16 e 18 anos. Fui direto para a rua. Aprendi a fazer malabares com meu irmão, que um dia apareceu com três bolinhas e me encantei. Vi alguns artistas de rua na Argentina, entre eles estava Chacovachi e Fernando Cavarozzi - palhaço impulsionador e potencializador da arte de rua na América do Sul. Foi aí que me apaixonei. Os primeiros 4 anos do meu solo, aconteceram de modo “inconsciente”, isso me ajudou muito. Mas tinha consciência do lugar onde estava, muita coragem, sabia o que estava fazendo, disso, sim, tinha certeza.

Como malabarista, artista de rua, tinha que ter humor. Se não tiver humor na rua é difícil, não funciona. Comecei fazendo apresentações aos domingos na praça e, durante a semana, ia à escola, pois estava no último ano do ensino médio. Desejava concluir os estudos para me dedicar inteiramente à arte de rua. Nos dois anos seguintes, já estava fazendo temporadas de verão pela Argentina: duas apresentações do meu solo em lugares turísticos, todas as noites entre janeiro e fevereiro.

Assim que conheci Fer (Chacovachi) e nos apaixonamos. Eu tinha 20 anos e ele 20 também... De profissão (risos). O dobro da minha idade. Fui morar com ele em um lugar muito particular: “Finochieto”, uma fábrica de três edifícios que faliu nos anos 1970 e foi sendo vendida por partes. Só poderiam gostar daquele lugar as construtoras ou os artistas. O primeiro a chegar e abrir o caminho foi Chaco. Lá viviam dezenas de artistas, era uma grande comunidade, mas cada um tinha seu espaço, sua casa. Respirava-se cultura e boemia o tempo todo, era maravilhoso! Comecei a compartilhar e construir a vida junto com Fer. Entretanto, demorei a dizer que era palhaça, as pessoas diziam que eu era, mas, se me perguntavam o que eu era nessa época, respondia que era uma malabarista excêntrica, uma artista de rua. Logo vieram os anos no Circo Vachi, lendário circo argentino dirigido pelo Chaco. Fiz quatro temporadas de verão com eles. Amo trabalhar em grupo e aprendi muito. Em cada temporada, fazíamos duas apresentações por noite para mil pessoas. Era incrível! Inclusive, nessa época, não se falava tanto em desconstrução, e mesmo assim a companhia era quase igualitária: metade mulheres, metade homens. Acho que os artistas se desconstroem um pouco mais rápido. E a Maku surge durante as primeiras viagens com Chacovachi. Fazíamos temporadas na Espanha, cada um com seu solo de maneira muito furtiva, como piratas vivendo milhares de aventuras. Ainda assim não me considerava palhaça. Um ponto que me marcou foi o Anjos do Picadeiro, encontro de palhaços do Rio de Janeiro (RJ), o mais importante da América do Sul. Foi um momento forte para mim, porque conheci importantes palhaços com grandes trajetórias, pude me sentar e conversar com eles.

Produzia-se muita coisa neste encontro, era uma imensa comunhão fraternal. Estavam todos juntos, os palhaços mais novos com os já consagrados, além dos produtores, escritores e filósofos. Todos compartilhando e investigando o caminho da risada.

Lembro-me da primeira apresentação que fiz no Anjos, creio que foi em 2003. Era a primeira vez que pisava no Brasil e já estava em um encontro de palhaços tão importante. Havia uma pressão, porque me apresentava depois de grandes e queridos palhaços brasileiros e, pouco antes da minha entrada começou a chover sem parar, mas, como artista de rua, não seria a primeira apresentação sob a chuva. Eu sabia que poderia transformá-la em um recurso a meu favor.

As pessoas ficaram até o final. Risos, aplausos e mais risos. Este momento foi muito especial, me senti querida e respeitada. Conheceram e aceitaram-me. Não porque era companheira do Chaco, mas por me conhecerem em cena que, de fato, é onde se identifica o artista. Essa é uma das apresentações que sempre guardarei no coração. A partir daí me senti palhaça. Quando me perguntavam o que eu era, respondia, “Palhaça Maku”.

ANDERSON - Quais foram os caminhos que te levaram para sua estética atual? Qual a afinidade estética da Maku? MAKU - Tenho que nomear os mestres Oscar e Jorge Videla, ambos falecidos. Os dois eram palhaços de famílias tradicionais circenses, diretores da Escola de Circo Criollo e responsáveis por tudo que tem a ver com circo na Argentina. Na Argentina, eles eram o elo perdido entre o circo tradicional e o moderno. Uniram esses dois mundos e os revolucionaram.

Oscar me ensinou a acrobacia de me equilibrar na parada de cabeça. Ele ficou muito feliz com isso e dizia, com muito orgulho, que eu era a única aluna, em anos, que conseguiu fazer esta técnica. A estética também se vê no figurino. Certa vez, conversando com Oscar, ele disse: “uma artista de rua precisa ter um vestuário que seja único, que não se encontre em uma loja e que seja o mais fino possível”. Com o tempo fui encontrando a minha estética. No início, como artista de rua, possuía um vestuário mais improvisado. Com o tempo, quando já havia começado as viagens com o Circo Vachi, pensei em aprimorar essa parte. Na rua é necessário ser interessante. As pessoas têm que gostar de você rapidamente e a primeira coisa que veem é o seu figurino, que é parte da sua identidade. A dramaturgia do espetáculo de rua não começa no início da apresentação, e sim quando se pisa na praça. O figurino deve ser pensado e, com o tempo, fui construindo o meu. Diferente das palhaças coloridas, gosto de poucas cores, porque assim se impõe mais respeito. Na rua é imprescindível que se imponha respeito rapidamente, pois, do contrário, te comem cru.

Os tecidos precisam ser resistentes, de guerra, que suportem quedas no chão, transpiração, sol, chuva e absorvam os acertos e os erros, as apresentações aguerridas e

as consagradas. No vestuário é onde fica impregnada cada experiência vivida. É por isso que, com o tempo, ele fala por si só. Razão pela qual não gosto muito de figurinos novos. ANDERSON - Neste determinado momento você levou seu trabalho para o lado gestual, ou seja, para o corpo. Isso aconteceu por algum motivo ou foi uma inspiração do nada?

MAKU - No início eu falava muito, não parava. Não havia silêncio, tinha medo dele. Quão importante é o silêncio! Quanto à linguagem, hoje em dia, o meu primeiro canal de comunicação é a ação. Existem seis canais de comunicação: ação, movimento, gesto, som, ruído e a palavra. É importante dominar todos, mas, certamente, haverá um canal mais orgânico do que os outros. O meu não era a palavra. Viajava de carro pelas estradas do País Basco, durante a minha primeira temporada pela Espanha com o Fer (Chacovachi), e me veio a intuição do que aconteceria: muitas aventuras, filhos, família, nossa vida e profissão juntos, mas, cada um com seu espetáculo. Neste momento decidi não falar em cena. Foi uma decisão criativa, muito a ver com a necessidade, pois iria viver minha vida com um palhaço que trabalhava com a fala, que já tinha uma trajetória com esse canal. Precisávamos nos diferenciar. Também coincide com o fato de que a ação é o meu canal de comunicação mais orgânico. Quando me aproximei mais da ação, percebi todas as coisas que poderia proporcionar. A palavra é muito evidente e reveladora, bem eficaz para a rua. Também gosto deste canal, mas, fui aprimorando a palhaça que sou hoje através da ação, graças a essa decisão criativa.

E, não se tem criatividade, se constrói. Ela aparece quando se está trabalhando. Seus quatro ingredientes são: a disciplina, a perseverança, o inesperado e a incerteza. Porém, não devemos aguardar esse vislumbre, porque não há como saber quando ele vai acontecer.

Já para os palhaços e palhaças de rua há três pontos importantes para a criatividade: organização, trabalho e estímulo externo. Para organizar-se é preciso ter um plano de trabalho inteligente, de acordo com a sua capacidade e possibilidades. O estímulo externo pode ser o espaço em que você trabalha, uma temporada para realizar, um festival. Algo que motive ao processo criativo. É o que aconteceu comigo no início da pandemia. Tinha que adaptar meus números, eles são muito participativos e não posso mais tocar as pessoas. Comecei a mudá-los e a estudar novas técnicas. Também tentei criar novos números, contudo, passavam os meses e não conseguia finalizá-los. Até que me apareceu um trabalho em dupla com o Chacovachi, presencial. Uma semana antes dessa apresentação já tinha dois números fechados, porque tive o estímulo externo. Vi um documentário uma vez, uma entrevista do Federico Fellini e lhe perguntavam sobre a criatividade, onde começa e de onde a tirava. Ele disse: “Bom, sempre da mesma maneira. Aparece um produtor, me oferece um dinheiro que aceito e não quero devolver, então me ponho a trabalhar”. ANDERSON - Quando você começou nessa profissão, como era ser palhaça? E como é ser

palhaça hoje?

MAKU - No começo da minha carreira, antes de dividir a minha vida com o Fer (Chacovachi), não percebia rejeição quanto ao meu gênero, mas, certamente, existia. Eu não percebia porque não me detinha nisso. Era apenas consciente de onde estava: na selva urbana e, como toda selva, tinha que saber me cuidar. Nada tirava o foco do meu objetivo, que era aprender aquele ofício, ir todos os domingos a uma praça e poder fazer duas ou três apresentações, sobreviver e voltar para casa com uma experiência a mais. Recordo-me que nessa época, houve domingos seguidos em que eu sempre tinha um conflito com um mesmo artista: ele não queria que eu ocupasse o mesmo espaço que o dele. Havia outros artistas (todos homens), mas não lhes dizia nada, o problema era comigo. Sempre revezávamos, fazíamos uma apresentação cada um e ele não gostava disso.

Um domingo, ele já não sabia que pretexto arrumar para me tirar do lugar e disse: “tenho mais direito de estar aqui, porque tenho que sustentar meus filhos, o que nunca ficou provado pra mim”. E eu lhe respondi: “você tem que se dedicar a sua família e eu tenho que me dedicar a meu futuro, preciso de um lugar para me apresentar. Você tem uma necessidade e eu outra. A sua não é mais importante que a minha”. Nem sempre eu ganhava, mas tinha a certeza de que jamais me daria por vencida. Nessa época, não havia muita informação, nem tanto acesso à internet. Os profissionais não tinham redes sociais, muito menos havia outras possibilidades de se apresentar em varietês, festivais, etc. Tão pouco havia muitas artistas e/ou palhaças que trabalhassem com espetáculos solo na rua, pelo menos não no meu mundo. Mas já se passaram 20 anos, agora está mais fácil, há informação e muitas palhaças boas. Isso é maravilhoso! Podem te ver por todos os lados. Talvez, nem todas as palhaças tenham coragem ou interesse de trabalhar na rua. Antes era a única opção. Não havia eventos especificamente para as mulheres como existe agora. Atualmente, têm esses espaços maravilhosos para as palhaças. Essa união e organização das mulheres contribui para que cada vez haja mais palhaças no mundo. ANDERSON - A palhaçaria feminina é um movimento que tem crescido muito no Brasil. Na Argentina, você tem acompanhado esse movimento das palhaças? Há essa organização em outros países?

MAKU - Na Argentina, estão florescendo mais. Este ano me pediram para entrar na Rede de palhaças da Argentina (R.A.P.), recém-criada. A conexão com as redes de palhaças de outros países da América do Sul é interessante. Apoio este movimento e adoro que exista, assim como os eventos para as mulheres contribuem bastante. Aqui não temos festivais de circo, de palhaços e muito menos de palhaças como há no Brasil. A cultura da produção de eventos em solo brasileiro é mais forte. Apesar de viverem um momento político terrível, há mais apoio financeiro comparado à Argentina. Na Espanha também existe um movimento muito forte de palhaças. Tem muitas maneiras de incentivar o universo das palhaças, não só militando nos encontros, mas no trabalho diário. Pequenas ações de luta e resistência fazem a diferença

para todas, como no episódio em que não me intimidei com o artista na praça, mesmo que inconscientemente. Sem dúvida, as redes, os encontros, os festivais exclusivos para palhaças faz com que o crescimento seja mais rápido e potente. Chegamos mais longe em grupo. ANDERSON - Historicamente, a gente tem uma predominância do homem no ofício, mas, temos mulheres poderosas. Você tem referência de alguma palhaça?

MAKU - Historicamente, sempre houve predomínio de homens em todas as profissões. Após muita luta as mulheres estão ganhando cada vez mais espaço. Respeito as palhaças, gosto muito de todas, sobretudo quando tem um estilo diferente do meu. Gosto de todas logo de cara pelo simples fato de existir, porque, como disse anteriormente, o fato de conquistar espaços é uma ação de resistência que beneficiará as palhaças que ainda virão. Tenho afinidade com as palhaças que utilizam a ação. Mas, a verdade é que minhas referências são masculinas. No entanto, quando vi Gardi Hutter (Clown Suiza), fiquei maravilhada com seu espetáculo La Apuntadora, é uma verdadeira obra de arte. Ela é uma referência mundial de palhaça de teatro. Mas, sem dúvida, há palhaças muito poderosas no Brasil. Nos primeiros anos que viajei pelo Brasil, havia poucas palhaças e com pouca experiência. Felizmente, depois de um tempo houve uma explosão. Lembro-me de quando fui ao Encontro de Palhaças de São Paulo (SP) e, em um cabaré, encontrei com palhaças provocadoras, delirantes, bem potentes. Não eram doces, que só pensam em se casar, que limpam a casa. Fiquei encantada em como eram empoderadas. Todas, de uma maneira ou de outra, colocaram seu grão de areia para que isso se tornasse grandioso. ANDERSON - Você falou que viu palhaças e palhaços com profundidade, vocação. Você tem uma força e domínio muito grande da cena, como eles. Quando vai se apresentar, o que te move a fazer rir?

MAKU - No início foi inconsciente. No momento em que escutei a primeira gargalhada do público em cena foi uma experiência xamânica. Saber que é um riso saudável me faz bem, sem contar que ele vem para mim e se duplica de maneira orgânica. É maravilhoso! Gera-se uma atmosfera de emoções positivas e autossustentáveis e, ainda, me pagam por isso. Depois do riso, aproveito para fazer uma denúncia ou mostrar a minha visão pessoal de mundo.

ANDERSON - Você tem um momento marcante em alguma apresentação?

MAKU - São vários! A apresentação sobre a qual relatei antes, do Anjos do Picadeiro, há também a primeira vez que trabalhei em uma lona circense na 6ª Convención Argentina de Circo, Malabares y Espectáculos Callejero. Nessa última, estava com os nervos à flor da pele, porque era a primeira vez que mostrava a técnica da parada de cabeça e a primeira vez sob uma lona de circo.

De forma inédita me mostrava diante de colegas e tive o prazer de fazer o número de mão a mão com Oscar Videla. Naquela noite ele sustentou meu coração, minha energia emocional. Uma lembrança que guardo como um tesouro. Também há inúmeras apresentações que me marcaram no Circo Vachi. E ainda teve outra que eu e Fer (Chacovachi) fizemos na Praça da Picota, em Marrakech, no Marrocos, entre encantadores de serpentes e crianças boxeadoras. Senti que estávamos em um filme do Indiana Jones. ANDERSON - Você comentou que a diferença entre o Brasil e a Argentina é a questão dos investimentos públicos em eventos. Mas, existem muitos festivais organizados de forma independente. Como você enxerga tudo isso?

MAKU - Na minha experiência em organização de convenções na Argentina, quando não há financiamento há mais coração, tudo é mais solidário, mais comunista (risos). Por um lado, se há financiamento pode se chegar mais longe, porque, sem dúvida, com dinheiro se consegue mais coisas, ter produções melhores. Porém, acredito que se perca um pouco o espírito de companheirismo. De qualquer modo, no Anjos do Picadeiro, por exemplo, ainda que eu não fosse parte da organização, percebia esse espírito de irmandade, assim como em todos os festivais e encontros que assisti no Brasil. ANDERSON - O que você teria para falar de fundamental àqueles que querem se lançar nesse ofício?

MAKU - Fundamental, sobretudo para as palhaças de rua, é que façam aula comigo e com Chaco (risos). Hoje em dia, há muitas informações, aproveitem todas elas. E se arrisquem, não há circo sem riscos. Pode estudar numa instituição, se instruir com os melhores palhaços e palhaças, mas a experiência, a rua, os festivais são a melhor a escola. Enfiem-se em problemas. Aceitem todos os desafios e os cumpram com responsabilidade. É um caminho só de ida.

ANDERSON - Nesse sentido mais filosófico, você acha que a função do palhaço é fazer rir? Maku – Sim, é a primeira função. Depois tem que aproveitar para fazer críticas, denúncias, deixar uma mensagem que comova e exponha sua visão de mundo. Quando rimos nos distanciamos da morte.

ANDERSON - Tem algo a acrescentar, Maku?

MAKU - Gostaria de terminar com uma frase que me encanta: “Fazer rir é uma maravilhosa forma de fazer o bem”.

Minha intuição é que durante a pandemia, estão se formando sementes, há muita coisa latente. Quando nós palhaços pudermos voltar à rua será uma explosão. Sem dúvida, voltaremos todos com a nossa melhor versão. Será uma revolução!

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