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PEPE NUÑES
com os seus alunos a questão do rir para quê? Lida com este assunto no sentido da pedagogia do palhaço?
PEPE - Tem outro lado também, o ético daqueles que não aparecem: os técnicos de luz, de palco, programadores. Por exemplo, na minha escola os alunos limpavam banheiro, faziam a luz, manutenção do espaço. Eu passo minhas experiências de vida, de respeitar os técnicos, de ser igual, de valorizar as pessoas que facilitam o teu trabalho por uma questão de inteligência, de coração, de generosidade, porque o palhaço tem que ser generoso, sim! Não só na cena tem que estar aberto a se entregar, escutar, dar espaço. Reconhecer e valorizar o trabalho dos técnicos, programadores, anjos e administrativos é importante. Sozinhos não somos nada, não conseguimos trabalhar. O artista que esnoba um técnico hoje, poderá não voltar ao espaço amanhã. Vou contar uma situação que vivi por volta de 2005. Eram os primeiros anos do espetáculo “De Malas Prontas” e apresentamos quatro vezes no Sesc São Paulo (SP). Foi o único espetáculo que fez a viagem inteira através do Sesc. Tínhamos chegado às 8h da manhã ao teatro, naquela época éramos em dois técnicos: o Luiz Otávio, que fez a cenografia, e eu. A apresentação era às 20h. Pela manhã mexemos com a cenografia e a luz, era muito trabalho para ficar perfeito. Saímos para almoçar, falamos besteira. Quando eu estava programando a mesa, meu filho Lucas, com 2 aninhos, estava em um colchão dormindo no chão. Fiz uma piada e o Luiz Otávio me repreendeu, “Pepe Nuñez, Pepe Nuñez...”. Foi então que o técnico-chefe do teatro olhou para mim e disse, “tu és Pepe Nuñez?”, respondi que sim e ele me pediu um abraço. Foi um abraço muito sentido. Tanto que perguntei o porquê daquilo. De imediato ele falou, “porque tu és gente como a gente”. Ele não podia entender que aquele artista que estava lá subindo escada, contando piadas, fosse o autor e diretor de um espetáculo tão renomado como aquele. O técnico estava acostumado com gente de outro trato e me ver deste modo me encheu de orgulho e por quê? Pelo fato de quando a gente retorna ao Sesc, sabe o que acontece? A luz do espetáculo está pronta. Guardaram os mapas do “Bom Apetite” e do “De Malas Prontas”. Então, aquilo que ia levar quatro ou cinco horas já está montado.
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Somos recebidos com carinho. Ele quer estar com a gente batendo papo. Aquele profissional contou vários casos de diretores que não respeitaram o espaço, até me mostrou um formulário que com as informações de cada companhia, que é repassado à diretoria. Se o grupo não trata bem o equipamento e os profissionais do Sesc, nunca mais retorna. Lembro de uma vez, creio que no interior do Ceará, na turnê para o Palco Giratório, chegamos em um lugar com o “De Malas Prontas” e tínhamos quatro refletores de jardim, enquanto o nosso mapa exigia 52. E o que a gente fez? Adaptamos tudo e foi maravilhoso. É uma atitude que precisa ser tomada. Quando se vê um problema, é necessário pensar na solução. Depois pode vir uma crítica na organização dizendo, “olha, essas coisas não devem ser assim”. Eu ensinava os alunos a limpar um refletor, a montar uma luz, afinar o som, a
limpar palco e por quê? Para aprender a respeitar a camareira, os técnicos, valorizar o trabalho do bilheteiro, ou seja, de todo mundo. E se tiver um problema é capaz que resolva. Essa ética com as pessoas faz com que as coisas aconteçam. E tem a ética com o público, devemos respeitá-lo. O fato de termos as ferramentas para ficarmos vulneráveis não quer dizer que todo mundo tenha essa possibilidade. É uma questão de inteligência! Cada vez erro menos com os voluntários. No “Bom Apetite” todo número tem um ou dois voluntários. Quando pego na mão e a sinto nervosa, com aquela resistência gostosa de “pelo sim ou pelo não”, eu trago essa pessoa. Mas, tem gente que você pega e fica duro, tu sentes, deixas e respeita. Quando estás no palco quem é ridículo és tu. Quando o indivíduo entra no jogo vai até onde quiser. Tu vais abrindo a porta, ele decide se quer se expor além do normal. Eu já fiz piada com uma parte ridícula de alguém da plateia ou de num momento ridículo que estava vivendo. Mas, não é o papel do bufão fazer com que o público vá para casa com uma lembrança ruim. Essas são questões éticas. Se ousamos pegar um voluntário que entrará no palco, será parte da cena e pagou [risos], temos que respeitá-lo. A gente sempre se arrisca, porque a queremos tirar o máximo possível da cena e podemos errar. Eu trouxe isso da Espanha. Um dia peguei uma voluntária que estava com seu filho e amiga. Achei que ela estava confortável para brincar. Roubei-lhe um beijo, aí ela falou, “assanhado” e foi embora. Pensei que estava tudo bem, porém, fui para outro número, levantei a cabeça e ela não estava mais, nem o filho e nem a amiga. Não pensei que tinha se ofendido. Quando eu estava me trocando, chega o marido querendo me matar porque ela era evangélica e eu tinha lhe roubado um beijo, sendo que ela nunca havia beijado outro homem. O filho nunca tinha visto os seus pais se beijando. Olha o nível de “doença”... O filho, que tinha 7 ou 8 anos de idade, nunca viu os pais darem um beijo. Essa mulher é uma coitada, uma alienada, mas ela tem esse direito. Algo mexeu tanto nela que acabou falando com o marido que se enfureceu. Eu pedi desculpas, disse que há muitos anos fazia isso, que não quis ofender ninguém. É uma pena que uma criança não veja um ato de carinho entre os pais. Ao mesmo tempo, a gente se arrisca. Estamos aí para isso. Está tudo bem, é esse o papel fundamental do palhaço. Por mais erros, carências, ridículos que tu tenhas, tu mereces ser amado. O palhaço representa o fracasso, mas, vocês o amam ele também se ama. É o que o ser humano quer. Ele não tem dinheiro nem para comprar um sapato ou uma roupa, por isso usa peças grandes e pequenas, pois é tudo o que tem. Então, esse é o papel do palhaço, fazer a pessoa entender que por mais perdas, por mais que tenha apanhado, ainda vale a pena viver. E o fundamental para viver é querer a si mesmo e depois querer o outro, porque aí é que vamos ganhar. Isso é o fundamental.
Quando falamos em palhaçaria, não estamos falando em bufonaria, não estamos falando em comédia. Isso é uma profissão e tem umas normas muito abertas. Existem milhares de palhaços e cada um enfoca de maneira diferente esse ofício, e gostamos
de todos. Mas, se vou fazer piada e vou falar da gorda, da sogra, do desgraçado, e o riso virá disso, então, não é palhaçaria, por mais que se use o nariz. Devemos respeitar a profissão. Não estou dizendo que não podemos usar essas temáticas. Há todo um princípio em que os objetivos são outros: a poesia, a rebeldia, a ousadia, a liberdade. Eu falo de duas palavras que para mim são fundamentais, aprendi nos mais de 40 anos de trajetória, que são: confiança e liberdade. Quando somos confiantes, somos livres e somos livres quando somos confiantes. Temos que ganhar essa confiança do público e de nós mesmos e a partir daí a coisa vai longe. Um amigo meu, Gimenez estudou anos fora e, quando voltou, começou a dirigir e criou uma imagem de que o palhaço necessita de sua liberdade, na qual se sinta bem. Isso é como uma bolha de sabão. Ao entrar no picadeiro, no palco, ele deve encher a bolha de sabão até que todo o público esteja dentro. Quando consegue isso vai longe. Pode brincar com sexo, com autoridade, com tudo o que quiser, não precisa muito. Mas, primeiro tu tens que botar esse público dentro. E isso ocorre quando? No instante que tu provocas esse encantamento e confiança. Senão ele fica de fora e diz, “não vou com esse cara”. Não é uma questão de ser bonzinho, por exemplo, ao assistir Chacovachi, com seu pavio curto, o público fica com o cú bem apertado, mas, entra na bolha. Pode até pensar que ele ateará fogo no teatro, entretanto, não sai correndo porque está encantado.
Esse trabalho é nosso e não do público, que foi lá querendo entrar na sua bolha, querendo se encantar. Nós temos que abrir esse espaço para o público e não o contrário. Caso isso ocorra não é o público que é ruim.
ANDERSON - Com essa transformação que o mundo está passando, qual o lugar do palhaço na sociedade e na arte? Como você acha que o palhaço caminhou durante o período da sua carreira? Não o seu palhaço, propriamente dito, mas, o ofício do palhaço em si.
PEPE - A minha primeira oficina com Gabriel Chamé foi em 1986, já fazia um trabalho com nariz e me inspirava em Charlie Rivel. E, quando comecei com o Chamé, fui iniciado no teatro-educação. Encerrado o ano letivo na Espanha, juntávamos cerca de 100 professores e promovíamos vários cursos: gestalk, pilates, palhaçaria e expressão dramática. Levávamos o teatro à escola para que as crianças se manifestassem. O Chamé, recém-fugido da Argentina, foi convidado a dar uma oficina de clown. De fato, nunca teríamos começado a fazer uma oficina de palhaço, porque a gente era de teatro, era profissional. Então, mudou muito. Atualmente somos milhões e muitos jovens, em todo o mundo. Cada um com suas dificuldades e possibilidades começou a estudar palhaçaria. Foi um o tempo que eu via muito circo. Morava bem perto de onde montavam as tendas, saía uma, chegava outra. Vi grandes palhaços ao vivo. Quando chega a televisão, ocorre de degradação da palhaçaria. Muitos começaram a trabalhar na TV para as crianças. E, tradicionalmente, no circo, a criança começa na corda bamba, depois vai para acrobacia de chão, para as aéreas, etc. Enfim, tem toda uma vida como acrobata, desafiando a vida, trabalhando em cima de uma técnica e ao chegar
nos 35, 40 anos de idade, fase em que o corpo não aguentava mais, ela começava a ser palhaço. Ou seja, tinha sido palhaço até 8 ou 9 anos de idade, e depois já não queria mais ser palhaço. Aí passa a ser “artista”. Quando retoma, já tem toda uma vida, dominou um pouco o seu ego, demonstrou que poderia dar aquele salto mortal com os números de piruetas a mais, aquela filosofia circense. Também toca instrumentos, sabe muitos truques físicos e vai repassar os números que participava com seu avô quando era criança. Tínhamos no circo grandes palhaços, assim que chega a televisão vira uma merda, surge o arquétipo que mais conhecemos, por isso, no teatro, ninguém quer ser palhaço. Na Europa, o Gaulier e o Pierre Byland começam com o teatro físico e recuperam a palhaçaria genuína, que é denominada pelos ingleses como clown. Ao chegar na Espanha, o clown é promovido através de oficinas. Foi neste momento que descobri do que gostava e que o buraco era muito mais fundo. Passamos por crises medonhas, a mais profunda crise que vivi como ator. Isso me convenceu e pensei: esse é meu caminho e vou segui-lo. Levei anos até começar a entender, mas tive a humildade do aprendiz. Admiti, paguei os micos necessários e me esforcei até entender o jogo e dominá-lo. A partir daí, cada vez mais o palhaço tem prestígio e espaço. Foi um movimento mundial que começou com muita força na Europa. Em paralelo, na Argentina, estava o grupo El Clú the Claun, que lotava escolas, encabeçado por Gabriel Chamé. Esse movimento começa a crescer e vai para o teatro. A palhaçaria está presente nas artes cênicas. Tu vais em espetáculos de circo, teatro, comédia e os atores aplicam a palhaçaria. Hoje ela está em um hospital, em uma prisão, em um bar. Nas últimas três décadas, a figura do palhaço se valorizou muito. Hoje há palhaços com todas as idades e gêneros. Artistas com 18 anos já se definem como palhaços e vão percorrer o caminho das pedras. Outro ponto interessante é que a mulher ganha seu espaço e deixa de ser marginalizada. Atualmente, a palhaçaria também é vista como militância e por isso cresceu tanto. Nós, que enfrentamos todas as dificuldades, levamos a isso. Neste contexto de fomento do ofício, no ano de 1992, eu trouxe a fita do aniversário de Charlie Rivel. Material que ganhei de um grande palhaço que falou, “Pepe, não é para ninguém que eu dou essa fita”.
ANDERSON - Você que a trouxe para o Brasil?
PEPE - Sim! Fui eu que a entreguei para o Anônimo (RJ). Na época, disse para o João e toda a companhia, “isso aqui é um puta presente e eu dou só com uma condição: repassem e peçam para espalhar”. Depois disso, deram para o Lume e passaram a minha mensagem. Certa vez, fui no Lume e me deparei com a fita em um aparelho que haviam acabado de comprar. Fizeram uma cópia e aquilo foi uma grande escola, porque, no Brasil, tinha a tradição das famílias circenses, mas elas não tinham o costume de guardar o seu material. Fui à Alemanha e gastei 3 mil dólares, não gastei mais porque não tinha. Lá, fui
em uma fábrica para trazer material digno para o Brasil. Espalhei por muitas escolas, amigos e também vendi a preço de custo. Alguns ainda não me pagaram [risos]. E na escola de circo que estudava, por ser “gringo”, os professores faziam questão de mostrar seus registros de trabalho de quando tinham ido à Europa ou Estados Unidos. No entanto, não faziam uma cópia para deixar na escola, não tinham a cultura de espalhar, de compartilhar, de entender que quando você é generoso com a vida, ela é generosa contigo. Nesse período, eu estava no Rio de Janeiro e recebi uma ligação do Lume me convidando para participar de uma oficina em Campinas (SP). Lembro-me que disseram, “a Sue Morrison está vindo para cá, dará uma oficina para nós, bem longa e pensamos que esse conhecimento dela não pode ficar só para nós. Então, pedimos a ela se não daria uma oficina, ainda, que mais curta”. Se não me engano ela ficou dois meses. Você sabe o que paguei? Cem dólares! O que para um gringo não era nada.
Por que que fui convidado? Eles não me conheciam, mas, essa militância de compartilhar conhecimento, de fazer um encontro é um espírito que, na palhaçaria, se estabeleceu a nível geral. Eu não vendo minhas oficinas, sempre recebo um convite para ministrá-las, salvo grandes instituições. Volto a dizer que isso tem muito a ver com o Anjos do Picadeiros – do grupo Teatro de Anônimo – que é a grande escola palhacesca do Brasil. E eu tenho o maior orgulho de dizer que o primeiro deles foi eu que dei [risos].
ANDERSON - Você é padrinho do filho do João (integrante do Teatro de Anônimo)?
PEPE - Sou compadre do João e da Flávia, somos muito mais que isso. Meu primeiro amigo, brasileiro, foi ele. No final de 1989, comecei a fazer um curso, época que o conheci. Nos encontramos na Casa do Estudante, no Botafogo, depois do carnaval e fomos para um boteco. Começamos a beber e o povo foi indo embora e ficou só eu e ele. Em certo momento eu disse, “Tu me levas para o hotel? Eu estou na rua do Catete e não vou como saber chegar lá.”. Fomos até o hotel e ele falou, “amanhã venho aqui e depois vou te apresentar ao meu grupo”. Se não me engano, conheci a Cia em uma exposição. A partir daí, a gente se aproximou.
ANDERSON - Você usa seu próprio nome como palhaço. De que forma tomou essa decisão?
PEPE - Comecei a fazer palhaçaria por um acidente. Dentro do meu grupo tinha um argentino, Daniel Ordaz, que ficou doente. Foi o primeiro caso de AIDS em Granado. Fazíamos um número de piratas que se passava em um parque aquático. Eu fazia o trabalho de animação e ele o palhaço. Ele ficou doente e eu o substituí. O palhaço do espetáculo se chamava Mi Caso, que em uma tradução seria “nem liga”. Passei a atuar com o seu figurino e nome. Um tempo depois o Dani, tristemente, foi embora e por causa disso aterrissei no Rio de Janeiro. Ainda trabalhava como Mi Caso até que alguém perguntou, “qual o seu nome de verdade? Porque Pepe Nuñez é um nome artístico”. Achei ótimo e aderi!
No Brasil, Pepe Nuñez é um bom nome artístico e passei a usá-lo artisticamente. O Léo Bassi é o mesmo, ao contrário de Tortell que ninguém conhece como Djalma. Enfim, cada um tem o seu caminho. No meu, não foi nada pensado.
ANDERSON - Meu camarada, fico satisfeito com a nossa conversa. Foi um prazer muito grande. Muitas coisas emocionantes e espero que todo mundo que acompanhou essa conversa, saia com esse sentimento de estar maravilhado com a sua trajetória. Deixo você livre para uma mensagem final.
PEPE - A nível pessoal, a palhaçaria me deu muito. Melhorei como pessoa, conheci muita gente que amo, vivi os momentos mais prazerosos da minha vida. Me deu com o que viver, trouxe satisfação à minha barriga, ao meu corpo e a minha mente. Nas minhas teorias, digo que a palhaçaria nasce na genitália, que cria a vida, depois vai para a barriga, que mantém a vida, em seguida, passa pelo coração que dá sentido à vida e, por fim, na mente. Na cabeça, um pouquinho só porque muita mente atrapalha. Ela permitiu que eu conhecesse a mãe dos meus filhos e possibilitou o sustento da minha família. Só tenho a agradecer e dizer que se você quer mergulhar na palhaçaria, tenha paciência e espírito de aprendiz. É uma corrida, uma maratona de longo prazo. Pode ter sorte de entender e dominar, mas isso leva tempo. Seja um bom aprendiz, generoso com a vida, compartilhe e tenha sinceridade com o público e os companheiros de profissão. Se entregue, vale muito a pena no material e no espiritual. Tenho calos do tempo em que trabalhei como sapateiro, que foram reforçados pelo trapézio. Com 12 anos de idade eu ganhava a vida dentro de uma fábrica de sapatos, durante 12 horas diárias. O melhor dinheiro que ganhei foi com a palhaçaria. E sou muito grato a ela
Se tu queres ser palhaço, vai e fique disposto a pagar isso!
Ricardo Puccetti
ANDERSON - Ricardo, sua história com o palhaço vem do Burnier? Como foi seu caminho inicial?
PUCCETTI - O Burnier foi um grande marco, digamos, do início, mas comecei o trabalho com palhaços antes de encontrá-lo. Sou de uma cidade pequena, Pinhal, daqui do Estado de São Paulo. Vim a Campinas (SP) para fazer teatro, com 17 anos, e fui para o Conservatório de Teatro Carlos Gomes, que é bem tradicional na cidade. Já tinha uma paixão muito grande pelo palhaço, que veio da minha infância. O circo era um dos poucos encantamentos que a gente tinha na cidade, além do cinema.
Meu real começo foi na rua, com 18 anos. Todo sábado saía da minha casa até o centro de Campinas, vestido como palhaço. Tinha o pé no clássico, na tradição circense, mas, sem ter a mínima noção da minha ideia. Não existia curso naquela época, era início dos anos 1980 e não sou de família de circo. Então, era muito a minha intuição. Trabalhei três anos fazendo isso, o que marcou profundamente a minha maneira de ver a palhaçaria, a improvisação, o espaço, o público e os colegas de trabalho.
Depois, quando vou estudar na Unicamp, encontro o Luiz Otávio, que foi, digamos, o meu primeiro mestre, que me iniciou em um retiro. Então, entro no Lume para trabalhar com ele e o Simioni, que estava iniciando. Passado um tempo, percebi que o Luiz Otávio gostava de trabalhar com o que cada ator trazia de bagagem. Ele teve uma formação na França, algo impressionante, passou por muitos mestres.
Ele não queria ensinar só por ensinar, também queria a pesquisa e o treinamento. Porém, ficava esperando a vontade de cada um. Eu ficava no pé dele: “quero trabalhar, quero trabalhar palhaço...”. Até que um dia ele respondeu, “o Rick quer fazer palhaço. Então, vamos fazer. Mas, todo mundo vai ter que fazer palhaço”. Na época, todo mundo que compunha o Lume era eu, ele e o Simioni.
Foi aí que ele inventou o retiro, depois podemos falar mais sobre isso. Foi com ele que, realmente, eu peguei toda minha experiência de rua, muito intuitiva, me mostrou outros caminhos e outras possibilidades.
ANDERSON - Isso foi em que ano?
PUCCETTI - Por volta de 1984. Com o Luiz, começo a trabalhar no início de 1988, após a experiência de rua. Por isso que eu tento não ter preconceito, os espaços existem e os palhaços precisam ocupá-los, os artistas, a arte, a cultura em geral.
Eu sobrevivi fazendo festas de aniversário. Mas, não fazia animação. Preparava os números na minha e ia fazer. Esse foi outro trabalho, além da rua, que tive no início da carreira. Na ocasião, tentava levar algo pronto para o público que estava esperando, a maioria crianças, mas, os pais também.
O Luiz Otávio foi quem realmente me abriu muito o olhar para o ofício do palhaço,
o que significa, e foi aí que eu comecei a ter uma condução. O primeiro retiro foi em 1989. ANDERSON - Nos últimos anos, aparecem algumas escolas: Slipa no Rio (RJ), o Pepe Nuñez (SC)... Contudo, acredito que, talvez, vocês estejam no pioneirismo dessa questão de receber pessoas e dar a formação do palhaço. Isso começou com os retiros, como que se deu?
PUCCETTI - Começou com os retiros. Para você ter uma ideia, o Luiz era uma pessoa muito radical na maneira de ver o trabalho do ator, do palhaço. Ele gostava de puxar os limites. Quando estudou na Europa teve a oportunidade de trabalhar com o Jacques Lecoq e, nessa escola, o professor de bufão era o Philippe Gaulier, que depois abriu a própria escola.
Ele foi aluno e assistente do Gaulier por um tempo. Ele tem um exercício que traz essa referência, a base de todo um palhaço que é estar na frente de um grupo de pessoas fazendo o seu trabalho. Vários exercícios do Gaulier são assim.
O Luiz pegou esse exercício e radicalizou o transformando em um retiro de iniciação de clown e deu o nome Picadeiro. A ideia do retiro consistia em 18 pessoas reunidas, por 11 dias, isoladas em um sítio próximo a Campinas. Ninguém entrava e ninguém saía. Numa situação em que você estava sendo observado o tempo todo, 24 horas por dia. Não havia intervalo mesmo que estivesse comendo ou descansando. Ele era esse Missié Arène - o dono do circo.
Por exemplo, se ele via você escovando os dentes já dizia, “e aí fulano” e, em seguida, você entrava no estado de palhaço. Era esse o sentido da radicalização. Foi o primeiro impulso da metodologia que o Lume desenvolveu. Muita gente saiu desses retiros.
O Luiz Otávio coordenou e dirigiu três retiros. Na verdade, os dois primeiros foram feitos em conjunto com a Maria Pereira Lopes, que era professora da Unicamp de máscaras - maravilhosa, excelente mestra de máscaras. Faziam juntos os papéis do Missié e da Madame Loaial. Eu e o Simioni fomos iniciados pelos dois, nas duas primeiras edições do retiro. No terceiro ou quarto fui assistente do Luiz Otávio, ajudei com a iniciação dos alunos.
Ao final do retiro, os palhaços iniciados ainda não estavam prontos. Eles tinham passado por uma experiência muito forte de revelar características da sua personalidade, que estavam ali cobertas pelos véus sociais que são impostos a nós. Já tinha um corpo de palhaço, diferenciado, que havia começado a ganhar a teatralidade. Começava a entender a sua lógica, mas ainda não era um palhaço.
O Luiz começou a fazer assessorias de continuidade para dar seguimento à formação desses palhaços. Ele fez isso por um tempo e depois jogou na minha mão. Um belo dia falou, “Rick, agora, você vai coordenar as assessorias”, e eu respondi, “mas como assim?”.
Havia acabado de ser iniciado. As primeiras que coordenei foi no início da década de 1990. Após o seu falecimento, fui viver essa metodologia adquirida no retiro, ou seja, me perguntando, “quem é esse palhaço? Como se constrói? Como ele constrói o seu corpo? Qual a sua lógica de criação? O seu tipo de humor? Como se desenvolve o material para chegar na cena?”.
Até hoje desenvolvo isso. Eu e o Simioni ainda fizemos mais quatro retiros nesse molde. Ultimamente, tenho feito retiros voltados para a construção de números com alunos do Rio de Janeiro, do Ceará e outros lugares. Também tenho promovido um curso, não como retiro, são aulas online de criação de números. Resumindo, foi esse o trajeto.
ANDERSON - Temos conhecimento de muitos palhaços potentes no Brasil que passaram por esses retiros. A impressão é que o saldo foi muito bom. Como você avalia?
PUCCETTI - O retiro é uma experiência muito poderosa. Você sai daquele mundo em que conhece as regras e entra em um lugar que tudo muda, aonde os princípios do palhaço regem. Há uma figura que te provoca o tempo todo, que te puxa o tapete, que te coloca em situação de desconforto e ao mesmo tempo te apoia para você descobrir o seu próprio trabalho.
Saiu muita gente boa dali, que continu, que são grandes palhaços e que estão ensinando. Eu não vou começar a citar nome para não correr o risco de esquecer alguém. Para mim isso é uma satisfação muito grande, porque ao longo desses anos fui desenvolvendo essa maneira de trabalhar.
Os alunos acabam sendo meus mestres, assim como o Luiz. Durante as aulas eu tento deixar a hierarquia de lado e me coloco em uma posição em que posso aprender muito com a experiência deles.
Esse jeito de olhar é muito à maneira do Lume, muito à maneira do Luiz Otávio. Com a nossa experiência de muitos anos não queremos passar fórmulas prontas. O objetivo é ajudar a pessoa a descobrir seu próprio trabalho.
Luiz usava uma imagem muito linda para o ofício cênico em que tínhamos o papel de parteira, no sentido de ajudar no nascimento do trabalho do aluno, com suas próprias possibilidades, que são singulares para cada um.
Eu voltei a minha atenção ao palhaço, mas, os outros atores focaram no trabalho do ator em suas diversas nuances. Essas características perpassam por todos os trabalhos do Lume. Um olhar de que não existe um certo, não existe um errado. Dentro do universo da palhaçaria existem mil possibilidades e todas podem vir a ser boas, como podem ser uma bosta. Depende muito da maneira que você faz.
Não existe nada assim: certo. Você desenvolve no aprendiz o olhar do palhaço, onde nada é óbvio, por exemplo, a cadeira não serve só como assento é possível descobrir brincadeiras com ela. Há um universo para ser explorado.
O corpo do palhaço tem princípios. Gosto de dizer que é um corpo que brinca, que é afetado pelas coisas. Ele tem que andar, mudar de direção, sentar, etc, sempre como na música, na escala dó menor, sol maior, na escala palhaço. Você naquela chave.
ANDERSON - Bergson no livro “O riso”, desenvolve um pensamento sobre como o riso se processa dentro da gente. Ele afirma que damos risada somente do que é genuinamente humano. Diante dessa lógica, como você entende essa materialização do riso? Fazer rir para quê?
PUCCETTI - São perguntas complexas. Eu acredito que o riso brota da humanidade e de tudo o que ela tem, de tudo que é lindo ou feio, que é bruto ou sútil. Não há limites para o riso.
Com base em entrevistas de outros palhaços do cinema como o Gordo e o Magro, de Chaplin, percebemos a semelhança com o pensamento do Bergson, de que a base do riso é a vida porque ela é imperfeita.
O riso lida com o desequilíbrio no sentido literal, por exemplo, quando você vê uma pessoa tropeçar e cair, por mais que ela se machuque, a risada pode surgir e por quê? Porque tem a surpresa, o fracasso não era o esperado. É com isso que a trabalhamos o tempo todo. O que é frágil e o que pode ser. O palhaço é humano e profundo, tem essa ancestralidade do cômico, que aparece em diversos estilos e linguagens. Há o bufão, o bobo da corte, o ator cômico da rua, o comediante de stand-up, ou seja, tem no cinema, no circo e no teatro. Todos lidam com o mesmo material.
Tive uma linda experiência com os Krahôs, durante as filmagens do documentário “Hotxuá”, dirigido pela Letícia Sabatella. Para a etnia, hotxuá é uma figura que tem a função social de ser o xamã do riso, bem diferente da nossa sociedade que encara como um ofício. Há o cacique, o xamã curandeiro – que cura através dos rituais das ervas – e essa outra importante liderança.
Em minha primeira visita aos Krahôs, tive a possibilidade de trabalhar com eles e presenciar situações que se pareciam com Chaplin e de palhaço de circo. Às vezes, exatamente igual. Lembro da encenação do nascimento de um menininho, que saía por debaixo da perna da mãe palhaça Hotxuá. Algo parecido com que o palhaço de circo faz, que nos remetem ao Grande Otelo, na clássica cena do nascimento de Macunaíma, no filme de Joaquim Pedro de Andrade. Existem coisas que meu palhaço fazia, em termos de humor, que não tinha uma conexão com a realidade deles, não eram engraçadas. No entanto, outras todos achavam engraçadas.
O riso acaba atravessando as diferenças geográficas e culturais de um Krahô para um italiano, por exemplo. No fundo, o riso trabalha com a humanidade, com a imperfeição da vida e se torna um elemento fundamental de comunhão, porque ele cria situações reais de encontro entre o palhaço e o outro, assim constroem um trabalho em conjunto.