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NAOMI SILMAN
ANDERSON – Você durante sua trajetória foi beber em várias fontes, com mestres muito consagrados. Passou pelo Tadashi Endo, Sue Morrison, entre outras nomes importantes da linguagem cênica. Como você assimilou essas referências dentro do seu processo para chegar no que é hoje seu entendimento, sua ação enquanto palhaça?
NAOMI – Foi muito curioso porque eu cheguei na palhaçaria meio por acaso. Quando terminei a faculdade fui atrás de mestres do teatro físico, porque eu queria trabalhar com o corpo e linguagens mais híbridas, não um teatro que se baseia mais na fala e no texto. Sou inglesa, e fui fazer a escola do mestre francês Philippe Gaulier em Londres, a escola era perto de onde morava. Ele era muito conhecido pelo trabalho do palhaço, mas dava outros cursos: máscara, bufão, jogos teatrais, Shakespeare, textos clássicos.
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A escola dele era dividida em módulos e o último era palhaçaria. Eu pensei: “jamais vou fazer o curso de palhaço, não tem nada a ver comigo, eu quero fazer teatro, ser atriz séria”. Tinha esse preconceito e a ideia de que era algo bobo, que não era sério. Se queria ser artista não iria ser palhaço.
E logo que cheguei na escola dele, esse preconceito foi rompido. Comecei a perceber que tudo que era ensinado, não importava qual era o foco, ou o tema de estudo, lá no fundo, os princípios da palhaçaria sempre estavam presentes. Fazíamos todas as aulas e sempre voltávamos no palhaço e nos princípios da palhaçaria - o prazer de estar em cena, o jogo, a relação com o público, não importa se estava fazendo algo muito sério ou trágico.
Comecei a perceber que tinham muitas pessoas que passaram por lá e eram palhaços maravilhosos. Comecei a ter uma admiração, não só porque eram ótimos palhaços e tinham uma capacidade de revelar o seu ridículo, mas que isso fazia com que fossem bons atores também.
Foi a primeira vez que fiz essa junção do palhaço com o trabalho de ator e no fim acabei fazendo o curso de palhaço com ele, Gaulier. Acho que foi o trabalho mais difícil que eu fiz, o primeiro também. O ofício do palhaço parece muito simples: fazer rir. Mas é algo extremamente difícil. Quanto mais engraçado você quer ser, revelar o seu ridículo e rir disso, mais sério se torna o ofício.
Para você conseguir chegar nesse lugar exige uma jornada de autoconhecimento, tem que se colocar ao avesso, literalmente, mostrar tudo o que está errado em nós, tudo que não está como a gente pensa que tem que ser, tudo que talvez esteja ao contrário, feio, ou que nos faz sentir vergonha. Aprendemos desde muito cedo a achar os nossos ‘defeitos’ ruins e nos defendemos tentando esconder essas facetas e não as deixando aparecer. A sociedade nos ensina isso e temos que cumprir aquilo que a sociedade espera da gente. A palhaçaria desconstrói isso.
Como chegamos no ofício da palhaçaria já na vida adulta, temos muitas defesas criadas. Então, precisamos passar por esse processo de autoconhecimento e de ‘desnudamento’, para que aquilo se torne arte e possa ser compartilhado com o outro.
Então o Gaulier foi a primeira puxada de tapete para mim. Eu fazia os exercícios e nada acontecia. Muitas vezes era trágico, não era engraçado, ninguém ria. E isto causava uma frustração, uma sensação muito ruim. Logo depois fui para a escola do Jacques Lecoq em Paris, que era o mestre do Gaulier.
As artes cênicas em geral fazem parte de uma tradição, têm várias linhagens. Comecei minha jornada na Europa, por ter nascido lá, bebi da fonte da tradição europeia, que veio da commedia dell’arte.
No século XX, Lecoq e outros praticantes das artes cênicas franceses e italianos fizeram esse trabalho de resgate da commedia dell’arte, das suas figuras e das máscaras em geral como fonte para criação. Foi um movimento muito forte e importante e o Lecoq trouxe essa ideia de trabalhar as máscaras como parte da formação de ator, para o teatro. Entre as várias máscaras, tinha também a máscara do palhaço – o nariz vermelho – a menor máscara do mundo.
Fui estudar nessa escola, mas também foi um processo sofrido, porque a maneira de ensinar na escola europeia é muito pela via negativa, com ênfase naquilo que não funciona ou que erramos. Muitas vezes é um processo difícil, que acaba gerando muita insegurança. Tem que ter muita força interior, emocional, e como jovens e aprendizes, isto nem sempre é fácil.
Bem neste momento estudava comigo um ator americano de Nova York. Juntos reclamávamos um pouco, apesar de reconhecer que tinham técnicas e estudos ali de grande importância. Achávamos que o ensino tinha um jeito que lembrava o exército, e estranhávamos o jeito do mestre Lecoq, que não costumava olhar nem falar diretamente para os alunos. E, aí este meu amigo falou: “Olha, se você quiser mesmo se aprofundar no mundo da palhaçaria, tem que conhecer uma mulher canadense que se chama Sue Morrison”. Isso foi por volta de 1996 e nunca tinha ouvido falar dela.
Na época, não tínhamos internet, não tinha e-mail, celular, então escrevi uma carta. Consegui o endereço dela com um amigo e mandei pelo correio. Eu escrevi: “Sue Morrison, eu sou fulana, um dia quero trabalhar com você, quero ser palhaça”.
Por incrível que pareça, ela me respondeu e iniciamos um contato. Junto com uma outra amiga que estudava comigo no Lecoq, conseguimos organizar um curso com ela em 1997, no Sul da França. Foi nessa época, em paralelo, que conheci o Lume, através do ator Ricardo Puccetti, que tinha ido estudar também na escola do Gaulier em Londres.
Tudo isso depois me trouxe para o Brasil e me levou a uma jornada bastante feliz. A escola europeia tem uma tradição, uma carga técnica muito grande, mas para mim era duro, faltava abertura, a construção pela via positiva, algo que encontrei no Lume e com a Sue (Morrison).
Então, eu passei por alguns mestres para chegar no lugar onde eu estava, que hoje considero que era minha escola. Mas eu queria estudar com pessoas que eram rigorosas comigo, que não aceitavam qualquer coisa, que não passavam a mão na cabeça, que são exigentes, porém amorosos.
Isto foi algo que descobri aqui no Brasil e com a Sue (Morrison), essa amorosidade. Só porque ela é uma mestra não significa que ela não possa ser carinhosa, não pode te abraçar e te dizer que você vai conseguir, e em outro momento também ser muito dura. Porque eu acredito que uma relação em que há afeto e respeito, cria-se também confiança, crescemos e aprendemos muito mais. Para mim foi um grande processo de autoconhecimento, de ir profundo no mergulho dentro de si. Isso tem que ser feito em um espaço de confiança, um lugar em que você se sente tão à vontade que pode fazer qualquer coisa, para depois fazer na frente do público.
Esses mestres também me fizeram reavaliar o papel da figura do palhaço e palhaça. Eu tinha uma imagem onde o palhaço, para mim, era muito ligado ao entretenimento, algo banal, apenas para passar o tempo, para se distrair dando uma risada. Hoje eu entendo que isso faz parte, mas tem uma outra função. É um riso para a gente fazer do nosso mundo um lugar mais saudável.
ANDERSON – Visto sua trajetória, qual seria o caminho pedagógico da ação que você constrói, pensando como ela vai chegar no público. Rir para que? Paralelo a isso, quando você está no método de aplicação da sua técnica, que você tem de maneira muito consistente, qual o caminho para levar o público ao entendimento deste processo técnico?
NAOMI – É uma pergunta difícil, isso da construção. Eu sinto que tanto o meu espetáculo, ‘O Não-Lugar de Agada Tchainik’ que é um solo que desenvolvi junto à Sue Morrison, quanto as outras cenas e números que desenvolvi em outros momentos, tudo parte de alguma coisa que para mim é muito real, significativo. Algo da minha vida, que por algum motivo, me chama atenção.
Isto é um pouco diferente do processo de construção mais tradicional. Sem querer desviar muito, acho que isto tem a ver também com ser uma palhaça mulher, dentro de um ofício que por muitos anos era um espaço exclusivamente para os homens, e que só recentemente se abriu para as mulheres que vem conquistando esse espaço e trazendo novos temas e focos para a comicidade.
Eu nunca fui atraída pelo universo clássico, de gags, desse repertório muito grande, que é extremamente importante, e que não citamos ainda, que é a tradição circense. Este local não me atraiu tanto, talvez, por não fazer parte da minha história.
O riso é muito pessoal, e mais do que o riso, o ridículo é muito pessoal. O meu é diferente do seu, do outro e do outro. Claro que nós dois podemos pegar uma gag clássica, eu posso fazer e você também, mas seu jeito vai ser muito diferente do meu.
Por exemplo, muito do meu espetáculo veio da minha história de vida, eu contava pra Sue (Morrison) coisas importantes sobre mim. Como eu sempre me mudei de país, de um lugar para o outro, tinha essa coisa de sobreviver, chegar no lugar e aprender a língua, me adaptar, meio camaleão mesmo. Ela gostou dessa ideia de ser uma sobrevivente, que estava viajando, tentando vencer às dificuldades. E isto virou o fio condutor para o espetáculo.
Quando vou criar um número, e também quando vou trabalhar a criação com outras pessoas, sempre busco um material, criar um contexto para o palhaço ou palhaça poder brincar dentro disso. Este contexto é muito importante para mim, para que se consiga criar seu universo, entender quem você é naquela história, mas é claro que depois é a palhaça ou o palhaço que vai fazer essa brincadeira. Às vezes pode ser um contexto atual. Certa vez fiz um cabaré de mulheres palhaças e começamos a conversar o que estava acontecendo ao nosso redor naquele momento. Começamos a debater como achávamos ruim a imagem que reproduzem das mulheres, principalmente nos filmes da Disney, onde o desfecho ideal da história de princesas é sempre o ‘viveram felizes para sempre’, etc. Montamos todo um trabalho baseado nisso que era um tipo reality show onde cada palhaça tinha que provar que era a princesa perfeita, só que eram as palhaças fazendo isso, cada uma com a sua lógica e ridículo.
Esse exemplo para mim é importante porque volta naquilo do papel da palhaçaria, da maneira que eu vejo: temos que falar de coisas que são importantes na nossa sociedade. Através do riso expomos questões problemáticas, como, por exemplo, essa imagem da mulher princesa, final feliz... Isso é algo que não serve para a gente. Então, rindo disso, tornando isso ridículo, nos ajuda a perceber como isso é tonto na nossa sociedade.
Fizemos esse cabaré das “princesas” e tenho duas filhas, que na época estavam naquela idade de filmes de princesa e amavam o filme Frozen. Tive a ideia de fazer algo com a personagem da Elsa, uma das princesas da história, porque na minha casa só se cantava a música dela ‘Let it Go’ (‘Livre Estou’, em português).
Montei uma paródia da música. Tinha um castelo inflável imenso, eu saía de dentro do castelo e tinha os efeitos para criar a neve e a tempestade, seguindo a letra da música. As outras palhaças jogavam floquinhos de isopor como se fosse a neve na minha cara, e eu ficava toda engasgada. Tinha um ventilador que me seguia para fazer vento, mas me atrapalhava fazendo os cabelos longos da peruca que usava cobrirem a minha cara e entrar na minha boca. Quando eu cantava ‘tempestade vem!’, jogavam um balde d’água em mim, me molhando inteira. E eu sempre tentando manter a dignidade, aquela coisa linda “estou cantando” e no final o castelo despenca em cima de mim, me esmaga. Saio no último momento da música pelo buraco da janela, toda desarrumada e destruída para cantar a frase final ‘O frio não vai mesmo me incomodar!’ Para mim, realizar esta cena era catártico. Ao mesmo tempo, assumir essa figura da princesa de Frozen e trazer uma nova leitura para isso, me divertia demais. Quando você encontra algo que tem muita vontade de fazer, o importante é sua ligação afetiva com aquilo, o quanto acredita que aquilo é para você. Essa brincadeira tem que dar tesão de
fazer.
Com o tempo fui entendendo isso, mas no início é mais difícil. Não sabemos exatamente o que queremos e enquanto seres humanos tentamos achar nosso lugar no mundo, nosso lugar na arte, por isso que falo do autoconhecimento e da escuta, de saber o que eu quero fazer num determinado momento.
Recentemente, quando fui ao México tive que desenvolver um número para um cabaré de gala. Tinha iniciado a criação de um número junto com uma outra palhaça parceira, a Priscila Jacomo, que está muito conectada com os movimentos indígenas e as manifestações do riso nos povos indígenas do Brasil.
A ideia do número surgiu há alguns anos atrás, quando fomos juntas a uma aldeia indígena em Alagoas (AL) e levamos uma brincadeira sobre os quatro elementos da natureza. Queríamos fazer algo que juntasse o que vivíamos no nosso cotidiano com esse universo do mundo natural.
Isso tem sido para mim, cada vez mais, uma preocupação como pessoa - o que está acontecendo com nosso planeta, o que estamos fazendo com nosso planeta. Perdemos a conexão. Quando falo nós, digo eu, europeia branca, a sociedade ocidental na qual eu vivo, estamos desconectados.
Então eu quis, como palhaça, trabalhar essa temática de alguma forma. Acabei criando uma bobagem, que sou uma sacerdotisa meio New Wave que quer equilibrar o planeta.
Depois de ter a ideia, de trazer seus dilemas para o trabalho, a segunda questão é como concretizar isso. Como colocar em ação, quais elementos pode se usar para tornar essa ideia concreta.
A terceira fase é como usar a técnica da palhaçaria, que é criar usando a lógica da comicidade, respeitando as regras do riso.
Voltando em como concretizar, tive a ideia de falar do equilíbrio. E o equilíbrio é uma técnica muito utilizada no circo tradicional, mas eu não tenho este treinamento e conhecimento técnico adquirido no meu corpo. Lembrei que numa época no Lume, em que treinávamos para o condicionamento físico o rola-rola – aparelho circense em que você se equilibra em cima de uma tábua apoiada num cilindro.
Mesmo não tendo formação em circo, peguei o rola-rola como um elemento para concretizar a ideia do número dos quatro elementos. Ou seja, quando chegamos nessa terceira fase, de como fazer essa ação acontecer e a construção da dramaturgia, o palhaço ou a palhaça precisa ter coisas que sabem fazer, que dominam tecnicamente para contar sua história. Seja cantando, tocando um instrumento musical, dançando, dublando, fazendo, no caso, rola-rola, acrobacia, malabares, contando uma história ou piada, são milhões de possibilidades. Tem que ter ferramentas - ou habilidades - para que a ideia e maneira de fazer rir possa tomar forma.
Então, o palhaço ou a palhaça precisa aprender a fazer coisas, por isso também é um trabalho grande. Precisa aprender a fazer muitas coisas, não necessariamente muito bem, não serei, por exemplo, uma profissional do circo que é especialista em rola- rola, consigo me equilibrar, mais ou menos, alguns minutos está ótimo para mim.
ANDERSON – Você busca esse lugar de conforto nas pessoas? Encontra esse lugar de encontro no conforto e o que ela tem de técnica, é isso?
NAOMI – Não exatamente de conforto, é um local de acolhimento. Você tem que acolher o que é essa pessoa, sua história, o universo dessa pessoa. Usamos muito a palavra lógica na palhaçaria, que não tem nada a ver com a lógica da matemática, mas como eu tenho uma lógica – uma maneira - de fazer as coisas.
Não só uma lógica, algo como um universo. O tipo de humor, as coisas que gosta, a maneira que ver o mundo. Posso tentar dar outros exemplos: Leo Bassi, um grande palhaço/bufão italiano, que atravessa essa linha que hoje às vezes é nebulosa, entre o palhaço e o bufão.
Me lembro da primeira vez que o vi colocando uma melancia no palco, e depois estourava a melancia com um martelo gigante ao som de rock pesado. Fiquei chocada, mas achei a melhor coisa do mundo. Pensei “o cara é genial de fazer isso”. E ele tem uma energia, trabalha com a agressividade, o que precisamos no mundo, alguém que trabalhe e encare a agressividade e fale “gente, isso é um absurdo!”. Quando nos conectamos com esse mundo, o ridículo da nossa agressividade, é muito interessante.
Foi muito curioso, porque fiz uma oficina com ele e é a pessoa mais gentil, sensível, delicada, amorosa do mundo. Mas ao mesmo tempo se aprofundou no autoconhecimento.
Me lembro dele contando nessa oficina que descobriu ter sentindo a vontade, às vezes, de matar alguém. Eu me reconheci nisso. Ter essa vontade, mas, é claro, ele falou, não vou matar uma pessoa, não posso matar uma pessoa, mesmo querendo.
Provavelmente muitos de nós já tivemos esse impulso, (ainda mais hoje nessa situação catastrófica que estamos vivendo). Mas voltando ao Leo Bassi, ele contou que não sabia o que fazer com esse impulso. Então, teve a ideia de fazer a cena em que para ele a melancia é a cabeça de uma pessoa. Enquanto ele estoura a melancia em cena nunca vai precisar fazer isso na vida. É uma cura, uma catarse, tanto para ele quanto para quem assiste. Então não é oferecer o conforto. É oferecer esse acolhimento para a pessoa sentir que há um lugar legítimo para isso dentro desse lugar do riso. A pessoa tem que se reconhecer e achar o caminho para o impulso se tornar ação.
Ação sempre aliada com essa ideia do prazer de fazer as coisas. Uma sinceridade tão grande, que só resta a gente sorrir. No fundo, a gente não tem como não rir. Para isso precisamos desse espaço, para poder se descobrir.
Quando você pergunta sobre a formação, para mim é criar ferramentas, espaços,
situações, exercícios em que a pessoa se sente à vontade de fazer esse mergulho para dentro de si. Depois juntar a isso o riso, que é um elemento muito importante para entender. Fazer isso em isolamento é muito complicado porque precisa da conversa.
O que você faz quando se revela é sempre para ou junto com o outro, não é para si mesmo que está fazendo. No Lume, por exemplo, havia os Retiros de Clown e desde os primórdios, quando desenvolveram técnicas de ensinar o caminho da palhaçaria, que começou com o Burnier (Luís Otávio Burnier) e depois continuou com o Ricardo Puccetti e Carlos Simioni, esses retiros eram lugares para criação do espaço que chamavam de picadeiro, que é esse lugar de revelação máxima. Mas essa revelação e exposição só acontece na frente dos outros.
Normalmente nós sempre vamos querer preservar nossa autoimagem. Um dos nossos maiores medos é o que o outro vai pensar da gente, então precisamos enfrentar este grande lugar, a arena dos leões. Temos que entrar nessa arena, na frente do outro, o que ele pensa de mim e o outro tem que aceitar o meu jeito.
Quando descobrimos que isso é possível e que as pessoas gostam da gente com as nossas fragilidades é transformador. Porque no fundo o palhaço/palhaça quer ser amado, nós queremos que as pessoas nos amem. Não que amem uma imagem, uma ideia, um conceito, uma imitação de algo que a gente acha que é, queremos que ame nossa essência, tudo que a gente é. O Leo Bassi, por exemplo, é amado no momento em que ele estoura a melancia.
E eu acredito muito nesse lugar. A gente precisa procurar essa catarse, porque precisamos como ser humano, de experiências fortes, transformadoras, porém amorosas, afetivas.
ANDERSON - Você foi conhecendo várias formas de pensar, encontrou nesses mestres que passou, que não é só fazer um riso qualquer. Falou um pouco da questão da responsabilidade, da dificuldade de fazer esse riso, que não é algo muito simples. Tudo muito esclarecedor e prazeroso de escutar. Queria que você entrasse agora no lugar do palhaço sagrado, no seu desenvolvimento, como ele chegou? E para quem não sabe ou entende: o que é o palhaço sagrado?
NAOMI – Eu não sei também exatamente... -
Neste momento da entrevista as notificações do celular interrompem a transmissão e Naomi brinca “e se fosse o palhaço sagrado ligando para explicar tudo?” Anderson: “Será que é?”. Eu conheci este termo através da Sue Morrison. Talvez o que eu vou falar não seja um consenso, mas eu sinto que a palhaçaria passou por um momento de decadência quando vimos essa figura poderosa e potente sendo apropriada pelo McDonalds, Patati e Patatá etc. Acho que isso não é palhaçaria sagrada, tem um olhar comercial, vai gerar muito dinheiro. Não é palhaçaria sagrada com certeza!
Creio que tem mais a ver... não é uma estética, não é uma maneira de fazer, o modo
de se vestir ou um jeito de ser, mas o porquê de fazer. A Sue (Morrison) trouxe muito isso.
E entender que essa palhaçaria tem uma função que caminha junto com o sagrado - porque acho que um problema que temos na sociedade ocidental, se pensarmos nas religiões monoteístas, trazem esse pensamento de que o sagrado é o correto, de que é o certo e o resto não.
Tudo que não é permitido é negado, considerado errado e até por isso surge essa ideia do Carnaval para ser um pequeno momento de transgressão em que as pessoas possam fazer o que normalmente é proibido.
Para o resto do tempo, permanece essa concepção de Deus, que é alinhado ao sagrado e ao bem, em contraponto àquilo que é mal (como na divisão entre o paraíso e o inferno). Em outras culturas, indígenas, e de povos originários, como os norte-americanos, ou no Brasil, em que não teve essa divisão, da sociedade ser construída acima do bem e do mal, existe uma outra maneira mais holística de compreender que tudo isso faz parte para que a sociedade funcione.
Então o sagrado é muito importante, mas o sagrado só pode existir se tem um profano. Por exemplo, o sacerdote é muito importante, mas tem que estar junto com aquele que profana o sagrado. Nessas tradições, nesses povos, quem faz isso é o palhaço/ palhaça, que tem um papel tão importante quanto o xamã.
E se olharmos para nossos líderes mundiais, veremos que são ridículos. Mas quem está lá entrando no parlamento, no senado, no congresso, mostrando para eles como são ridículos? Voltando mais uma vez ao Leo Bassi, porque ele se veste de terno e carrega uma maleta 007? O palhaço dele é um homem de negócios ou um político? Esses são os ridículos de hoje em dia.
A Sue Morrison tem essa ligação com a palhaçaria sagrada, porque o Richard Pochinko, que foi o mestre dela, também foi aluno do Lecoq e acabou sendo expulso da escola. Lecoq o jogou para fora da escola dizendo “Vá embora, não tenho nada para te ensinar, vá e faça sua vida”. Ele voltou para o Canadá e teve um encontro com um sábio de um povo indígena que o iniciou nas práticas do palhaço sagrado da tribo dele.
Ele juntou essa sabedoria com o que tinha vivenciado na escola do Lecoq e criou esse conceito do palhaço sagrado, da palhaçaria sagrada, como uma maneira de entender o mundo como um todo, e não como essa nossa sociedade fragmentada. Para isso, Pochinko, e depois Sue Morrison desenvolveram este processo de formação chamado ‘O Clown Através da Máscara’ onde você encontra a sua própria mitologia, os seus próprios arquétipos, que vem da nossa vida e sociedade. É através de nossos arquétipos que começamos a conhecer essa figura do palhaço/ palhaça. Esse foi meu processo com a Sue (Morrison). Depois comecei a ter curiosidade em conhecer essas figuras e como existem em outras culturas. Foi por isso que fiz a ida ao povo indígena Kariri Xoco, em Alagoas (AL). Lá, eles não têm um xamã do riso como em outras culturas indígenas, mas buscam incorporar o
espírito do riso. Eles têm momentos em que através das danças e cantos incorporam esse espírito. São danças sagradas e também profanas, brincadeiras que são tontas. Brincam e riem de si mesmos.
Eles sabem que tem uma hora para um e uma para outra. Acho que isso é um pouco da palhaçaria sagrada. É entender que a gente faz parte da sociedade, temos uma função. Estamos acostumados às pessoas irem ao teatro para nos ver, pagar o ingresso ou temos que ser contratados por uma instituição, ganhar um edital. Mas também tem muitos outros caminhos, espaços, tem a rua, outros campos para conseguirmos exercer esse papel de trazer a energia do riso.
Ainda, quando falo no sagrado, não é só rirmos ou ‘tirar sarro’ – ridicularizar ou parodiar as coisas que estão erradas –, mas também entender que o riso traz leveza de espírito, transforma algo pesado em algo um pouco mais leve e que precisamos disso. Penso nos dias de hoje, em como isso é importante.
Enfim, é um negócio muito sério. Ser palhaço/a é algo muito sério! ANDERSON – Isso me fez lembrar do Vasconcelos com o palhaço Xuxu. Não me lembro ao certo onde o escutei falar algo que me marcou pela beleza interpretativa em se imaginar a cena. Ele disse trabalhar algo que aplicou durante sua caminhada, a qual ele chama de Palhaço Cidadão. Durante muito tempo, no Rio de Janeiro, ele fazia festa infantil (um lugar que muita gente tem preconceito, falam que não é o lugar do palhaço), e se preparava no apartamento. O palhaço descia no elevador, falava com as pessoas do prédio, com o porteiro, pegava o ônibus, ia até a festa e depois voltava para casa. Para ele, dentro de sua lógica, o palhaço tem que exercitar esse lugar do cidadão. É muito lindo criar esse imaginário de ver o Xuxu, aquela figura clássica, forte, neste lugar do dia a dia, neste lugar que carrega o cansaço do trabalho diário.
NAOMI – O palhaço Xuxu usa uma figura clássica, com peruca, sapato grande, maquiagem, roupa colorida. Ele é tão, ‘ele’ na sua autenticidade, no jeito que o palhaço dele age de uma maneira tão pura. É linda essa vaidade dele. Gostamos tanto, porque no fundo é uma maneira de nos identificarmos. Somos muito complexos, eu também tive vontade de matar alguém, também sou vaidosa, mau humorada, gosto de paquerar, sou invejosa, tenho vontade de ser diva, mil coisas.
Todos nós temos esses lados. Então quando o palhaço, ou palhaça, traz isso do seu interior sem pedir desculpas, sem ser pequeno, sem ter vergonha disso e celebra isso, nos sentimos aliviados assistindo.
É lindo isso que você falou do Palhaço Cidadão, uma outra maneira de entender isso. Para mim tem um paralelo com essa ideia do palhaço sagrado, que vive em todos os lugares, não só no palco. No fundo, não precisamos dessa separação.