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TOMATE
ANDERSON - O Tomate é um mestre, para quem não o conhece e não é do ramo da palhaçaria, é uma das referências mundiais, um artista premiado internacionalmente, com circulação por mais de vinte países. Um trabalho muito grandioso, diferente no meio da palhaçaria. Um palhaço que trabalha no bufão a ternura, que consegue brincar com uma doçura muito grande e que emociona muita gente. Eu conheci o Tomate em Minas (MG), em um festival. Depois disso, você veio para Campo Grande (MS) na Pantalhaços, tivemos a oportunidade de ficarmos mais tempo juntos, você veio para a Pantalhaços duas vezes. Dito isso eu queria fazer a primeira pergunta. Com esse trabalho que você tem do Tomate esse arquétipo que você construiu, o entendimento que você tem sobre o trabalho do palhaço latino-americano. Com todas as possibilidades que nós temos ao longo da história dos palhaços, como que chegou o Tomate na sua vida? E o que é essencial no Tomate hoje? TOMATE - É complicada a pergunta. O Tomate chegou porque eu, desde muito novo, sempre fui muito independente. Fui embora da casa dos meus pais aos 15 anos, porque eu queria a minha vida. Então me tornei soldado da Infantaria da Marinha, naqueles anos em que a Argentina estava em guerra pelas Ilhas Malvinas, com os ingleses, e eu era soldado. Não fui para a guerra porque eu era muito novo, porque eu tinha entre 16, 17 anos ali no ano de 1981. E, depois estive pela patagônia com os ciganos vendendo cigarros, porcaria. Depois, trabalhei em uma oficina mecânica, vendia cursos. Fiz muitas coisas. Fabricava perfumes, fundia alumínio, alguns delitos menores também. Fiz muitas coisas.
Mas não encontrei nada que eu gostasse verdadeiramente. Sempre pensava “eu não quero morrer fazendo isso”, e quando encontrei a palhaçaria, que foi algo casual, foi quando eu pensei: posso terminar a minha vida fazendo isso! Eu me apaixonei. Já tinha 27 anos, aprendi com um amigo que me ensinou os primeiros truques, os primeiros balões, as primeiras coisas para fazer. Comecei a trabalhar com ele e pouco tempo depois já fui trabalhar sozinho.
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Depois de trabalhar um ou dois anos na rua sozinho, eu pensei: cara, eu sou um ignorante. Vou começar a estudar e aí peguei livros, vídeos, comecei a fazer cursos. Fiz um curso no Centro Cultural Ricardo Rosas, na cidade de Buenos Aires, que é ligada a Universidade de Buenos Aires de La Uba, que é muito prestigiada. Depois fui integrante de circo por um ano. Após isso, fiz muitos seminários de mágica, acrobacia, de malabarismo, de composição de esquetes, números cômicos, mas, sobretudo de balões. O palhaço que eu trabalho e que muitos colegas definem com o seu fazer, é aquele palhaço que tem habilidade, que pode ser um palhaço malabarista, um músico excêntrico, mas, que sabe fazer alguma coisa. Meu amigo falava que a diferença entre um ator e um palhaço é que o palhaço tem que saber fazer algo. Acho que era Dario Fo que falava isso.
Então comecei a pensar que eu tinha que fazer alguma coisa. E como tinha uma explosão de arte na rua em Buenos Aires, tinha muito malabarista que andava de monociclo, perna de pau, muitas outras coisas, procurei alguma coisa para me diferenciar de toda aquela turma, que foram os balões. Ninguém queria balões, por que acham
que balões são uma coisa de criancinha. Era como um palhaço, clown, de sombreiros. Um cara que vendia cachorrinhos e espadinhas na rua. E aquelas coisas eram somente balões.
Foi quando pensei que havia de ter algum jeito diferente para fazer balões e então comecei a me especializar e, também, para despertar aquela imagem de Tomate, o Rei dos Balões, Tomate o expert em balões, o especialista de balões. Então, em pouco tempo, todo mundo que precisava de alguma coisa com balões ligava para mim e assim eu fui construindo aquela técnica. Fui dando um pouco de coerência, porque aí se tenho um evento com fogo para fazer, não vou armar aquele espetáculo de balões, porque não é coerente com o que eu proponho, porque eu proponho comédia e balões.
Pouco a pouco fui tirando os outros espetáculos e me concentrando só nos balões.
ANDERSON - E, hoje, o Tomate em sua vida?
TOMATE - Na minha vida é essencial e seria essencial voltar a trabalhar com o ritmo que eu tinha. Trabalhar 5, 6, 10 vezes por mês. Trabalhar todo fim de semana, todo domingo, ir para outros países, outros lugares. Mas penso que pessoas queridas morreram com essa pandemia. Então, eu não vou me queixar, não posso fazer um caso disso. Mas para mim, seria essencial voltar ao meu trabalho porque estou com saudades.
Hoje de manhã eu fiz um espetáculo. Aqui, o Ministério da Cultura da Argentina está programando espetáculos para crianças em diferentes espaços de recreação. Com professores, monitores, professores de educação física. O público e todos os monitores estão todos com máscara, eu sou o único que tiro a máscara e estou a uma distância providencial, sempre com um distanciamento social do público. Assim faço o espetáculo. Não é a mesma coisa de tocar eles, ter contato com eles. Não pode ter contato físico. Mas é um primeiro passo para voltar a uma certa “normalidade”.
ANDERSON - Estamos passando por tempos difíceis. Mas ainda, em sua construção, como que você montou, como que chegou nessa imagem do Tomate? Como se deu esse processo de estudo da palhaçaria e como surgiu a figura? E o porquê do bufão? TOMATE - A imagem é o seguinte: eu trabalhava na companhia de circo que havia selecionado um pouco a estética de clown, daquele filme The Clowns, de Frederico Fellini. Tinha muito vermelho, preto e branco, as três cores que a gente mais usava. Manejava, em todos os materiais que tínhamos naquele espetáculo, naquela Cia. E eu particularmente peguei um artigo de uma revista em quadrinhos espanhola para adultos, chamada “El víbora”, onde falava de Tim Burton, porque eu tinha visto um pouco da estética de Tim Burton, sobretudo o Edward Mãos de Tesoura e também Beetlejuice [Os Fantasmas se Divertem]. Tinha poesias, poemas e desenhos. Aquele livro chamava-se “A Melancólica Morte do Menino Ostra”, e tinha umas coisas interessantes.
O artigo falava de onde que Tim Burton tinha pegado aquela estética e era de um americano, que seu livro mais famoso tinha uns desenhos e uns poemas como uma espécie de dicionário, cada letra corresponde ao nome de uma criança. C para charme, D para Dani e assim continua... E em cada poema, cada desenho, como cada criança acabava assassinada. Era difícil ter aquele livro e era muito caro. Eu não conseguia, era
uma pequena fortuna, muito dinheiro. Mas em Barcelona, havia uma biblioteca e a senhora da biblioteca me permitiu fotocopiar alguns desenhos que me interessavam, não todos. Fotocopiei vários desenhos e depois fiz um desenho que se chama cootap em que cortei cabeças, corpos e pernas e misturei na mesa. Depois eu coloquei uma cabeça de um, um corpo de outro, perna de outro, e assim por diante. Fui brincando com essas peças até que encontrei esse: esse que eu gosto, que eu quero.
Eu liguei para uma amiga minha, Loli - vestuarista, punk e mecânica de carros, que participa de exposições de tatuagens porque tem muitas no corpo. Falei para ela: “Loli, você tem que fazer esse figurino, porque você é ótima para deixá-lo como quero. Vou desenhar para você”. Ela me fez dois figurinos. Lembro que gastei muito dinheiro para comprar um tecido caro e ela me disse: “você gasta agora, mas, depois vai ser barato porque vai durar muitos anos”. Aquele casaco que o Tomate usa, tenho dois e um tem mais de 15 anos. O outro ainda está novo, pendurado, esperando que eu comece a usá-lo.
ANDERSON - Realmente, pegou a pessoa certa!
TOMATE - E o trabalho de pesquisa que eu sempre digo, sobre como penetrar no coração do bufão, do lúdico, é o que tem que ser feito. O lúdico penetra tudo, porque para que entre em você precisa estar molhado, empapado, rodeado daquele material que tem a ver com o que você está fazendo. Tem que estar com a cabeça e o espírito plenos, constantemente em pesquisa, pensando, buscando, modificando, estudando. Eu não paro de encontrar coisas novas a cada dia - na internet, em livros, em filmes, na televisão, no cinema, nos quadrinhos, nas artes plásticas, em esculturas, em museus. Todos esses lugares são fontes de inspiração, ou seja, você tem que estar como Picasso dizia “eu não procuro, eu encontro”. Isto é bom para mim e serve para fazer “au” isso... Deve achar, encontrar e pegar para você. Todo o tempo.
ANDERSON - Você citou o Dario Fo: “tem que ter alguma coisa”. De imediato, lembrei do Leandro Ribeira, que tem um trabalho muito peculiar, que vai explorar tudo. Neste sentido, como é que você vê os palhaços latino-americanos? Acha que esse palhaço latino-americano tem alguma coisa que o identifica? TOMATE - Penso, em primeiro lugar, que a atualidade o identifica, ele é mais atual que os europeus. Porque este palhaço nasceu aqui na América Latina. Está acontecendo neste momento.
Ele é atual, contemporâneo. O palhaço europeu tem a ver com uma cultura de mais de 500 anos. Aqui, temos algo antigo, que tem que ver com os palhaços sagrados, com as culturas pré-colombianas, que tem o arquétipo de ganhador. E tem aquilo que, na Argentina, chamamos de vivência crioula, picardia.
O latino-americano acredita que sabe mais que todos. Ele sabe de tudo, consegue ganhar a todos. Isso veio dos imigrantes que chegaram na América, neste continente novo, sem nada nas mãos e tiveram que fazer a mesa, a cadeira, a porta, a casa. Tiveram que fazer tudo. Por outro lado, havia os povos originários que se viram modificados - um povo prático. Pegamos isso deles, também somos práticos, porque resolvemos bastante problemas e somos pícaros. Um pouco picaretas. O palhaço latino-americano
tem a picaretagem do povo, que sempre está procurando conseguir alguma vantagem pelo que faz e isso o coloca em problemas, constantemente. Porém, o torna amável.
ANDERSON - Quando você escolhe alguém para dar oficina de direção ou de imersão: quais são os caminhos que tenta indicar a essa pessoa para que ela encontre a própria essência? E o que é essa essência?
TOMATE - Eu tento, geralmente, encarar o problema de uma formação profissional como quem desenha um ofício, não uma arte. Salvador Dalí, por exemplo, era um surrealista que divulgava aqueles relógios derretidos, coisas muito loucas. Mas, era um bom desenhista, um bom publicitário e por quê? Porque tinha ofício e sabia manejar o pincel. Penso que devemos aprender o ofício, saber como se arruma uma mala, saber que quando você vai fazer um corre na rua tem que enfrentar o sol, no seu rosto e nas suas costas, para que não atrapalhe os seus números.
Quando adquirirmos esse conhecimento seremos capazes de colocá-lo dentro do nosso ser, espírito e coração. É essa mística que vai dar uma mensagem para acessar o mundo secreto dentro de nosso peito. Mas, sem o ofício a pessoa vai fazer de uma forma burra, pouco clara ao público. Então, perderá muita energia e sua mensagem, por mais que pareça libertadora para a humanidade, será perdida porque não foi transmitida. Você tem que entendê-la para a repassar de forma compreensível à plateia. Para entender o ofício é preciso estudar, se preparar, se foder bastante. Faz uma coisa e não funciona, faz de outro jeito até pegar a manha para que funcione e consiga fixar a técnica. Um jeito de montar a piada, construir uma brincadeira para que no final se tenha a gargalhada. Tudo tem uma técnica e você tem que aprender qual é. Há textos que explicam como fazer, mas isso não é alcançado somente com leitura, tem que praticar. O palco é um mistério que você deve transitar como dizia Sel Sabri, o antropólogo e teatreiro argentino radicado na Bolívia.
Onde fazer? Pode ser em qualquer lugar: na rua, na praça, em festas infantis. Alguns vão dizer “festa de criança eu não faço”. Porém, é uma das melhores escolas que você pode ter, porque a criança é sincera. Se ela gosta, ama você, se não gosta grita “chato, entediante” e vai embora brincar. É um público muito bom para se formar, pois são implacáveis. Já o público adulto bate palma por vergonha e pensa, “vamos bater palma e ver se vai embora de uma vez por todas. Estragou minha tarde”.
Os festivais são uma possibilidade de se formar porque vão ensinar a te colocar em cena, como possibilidade de conhecer outros profissionais. Os festivais de clowns possibilitam a escuta, onde se conhece os métodos de cada um, as anedotas.
ANDERSON - Que bonito! Você está fazendo uma reflexão por dentro do ofício, interessante esse modo de pensar. Diante disso, como você vê a ética - o rir para quê? Como você lida com isso?
TOMATE - Para mim a risada é 98% boa. Eu não tenho muita preocupação com a risada sarcástica ou, o que é chamado em alguns estudos de “humor punitivo” aquele que castiga. O riso, penso eu, é intrinsecamente bom.
Deve-se tomar cuidado, porque o nariz vermelho, uma casaca grande e um sapato
enorme não necessariamente significam que você seja um palhaço. Têm muitos que não usam nariz, sapatos ou casaca grande e são excelentes.
Acredito que o riso é uma coisa boa para a humanidade. Mas ele pode ter um resultado ruim porque a comédia está muito perto da tragédia. Algo que é engraçado para uns pode não ser para outros.
Hoje em dia com a questão do “politicamente correto”, há um momento em que nós palhaços, comediantes e humoristas precisamos debater. Temos que intelectualizar, entender e analisar o que vamos fazer, se iremos renunciar a certos tipos de piadas ou se continuaremos a romper esquemas como sempre fizemos. A piada foi a ferramenta que a sociedade encontrou para instalar essa discussão.
O palhaço tem que ser politicamente incorreto porque essa é a maneira de subir no teto e empurrar o teto da discussão. E vou fazer todo o possível para que cada um possa dar a sua opinião, porém eu não vou praticar a autocensura. Se tenho uma piada que é politicamente incorreta, vou fazer.
Tem uma pergunta interessante [Tomate lê um questionamento durante a live]: Tenho estudado gaita de boca porque meu palhaço pede e me pergunto se a música me ensina? [Tomate responde] Acredito que sim, porque você está brincando com a gaita de boca. É importante adentrar ao estado lúdico, no estado de brincar como quando você era criança. Contudo, você não pode passar a vida toda brincando, pois até uma criança se cansa.
Você precisa sair, ir para a rua, usar sua gaita para fazer uma bolha de sabão, para se pentear, ou como um apetrecho de orelha. O que tem que fazer é brincar. A música não ensinará nada para você. Agora, se você brinca com ela, com o instrumento, tenho certeza que encontrará algo, mas se não encontra nada tem que trocar de ofício, tem que fazer outra coisa.
ANDERSON - A pandemia te deixou dentro de casa?
TOMATE - Não, porque recebi uma ligação de um amigo. Ele me falou, “adoraria que você trabalhasse comigo”. Estou trabalhando desde abril - cinco dias da semana. Comecei logo após o início da pandemia... É uma empresa alimentícia e ainda faço palhaçaria.
ANDERSON - E para o Tomate, manteve alguma rotina de treinamento?
TOMATE - Quando estou sozinho procuro o meu espaço, meu tempo. Uma hora, uma hora e meia, não mais. No início da pandemia, trabalhava em uma companhia de circo - somos quatro e todo ano fazemos uma temporada na costa da Argentina. Este ano decidi não ir à beira-mar, porque não encontrei as condições sanitárias adequadas. Tenho meu pai idoso e preciso zelar pela sua saúde. Mas o que fiz? Escrevi uma dúzia de espetáculos para os meus parceiros, porque eles não teriam tempo e nem possibilidade de se juntar para ensaiar. Números sobre homens da caverna, eventos históricos, musicais aos estilos de bolero, tango, bossa nova, etc. Doze espetáculos diferentes.
Ter um espaço para brincar é importante. Ter algo à mão para escrever, colocar as ideias no papel, desenhar, para não esquecer. A memória já não é tão boa, tem as listas
de materiais, os textos das peças, as piadas, as músicas...E, se em toda essa bobagem que você anota tem alguma coisa interessante, guarda! Aí você terá mais material.
ANDERSON - Você foi para a rua fazer aquele processo de Jack o Estripador - em que o Tomate nasceu desmembrado. Antes de chegar a Tim Burton, a sua atual referência estética, teve alguns momentos que você pensou “olha, vou para outro lugar”? Ou ele sempre foi te levando para cima? Houve momentos de dificuldade com o público? TOMATE - Sempre tem os momentos. Ao melhor caçador sempre se escapa coelhos. Têm dias que a coisa não rola, você está mal, o público está confuso, não gosta de você, não gosta de balões. Têm dias que você deve jogar fora tudo o que sabe porque não funciona. Por sorte, não é sempre que acontece isso. E quando acontece, não há o que fazer, pois o nosso trabalho é importante, é sério, mas não é triste. Se eu erro não morre ninguém, não sou um cirurgião. Também não sou um governante ou um estadista que com uma decisão errônea condena milhares de pessoas à exclusão, miséria, pobreza e loucura. Sou um palhaço, se erro passo vergonha e o público fica chateado. Esse é um bom conselho para os iniciantes: peguem as coisas com rapidez. Daqueles que escuto que estão nervosos, por causa do início de um espetáculo, digo: “o tão importante que você acredita que é não é tão importante”. Isso se chama ligeireza, em italiano, leggerezza. E, o escritor Ítalo Calvino escreveu conselhos para a ligeireza. Um deles é não tomar as coisas com ligeireza, porque permite solucionar o que coisifica essas coisas.
Quando você vê algo como muito rígido e com muita importância: “ah, não se pode fazer nada! Não se pode mudar porque é muito importante”. Leggerezza é ok, podemos trocar isso, mudar para fluir melhor. Você se torna mais versátil, não está amarrado a algo muito físico e sim a algo que traz leveza, graça. Não leve a sério, é só clown, palhaçaria.
Tem que levar a sério sua preparação, sua casa, sua formação, seu ensaio, seus materiais. Mas quando está no palco deixe fluir, ser mais leve. Se você faz algo com severidade um erro será horrível. Agora, se tiver leveza, será uma fonte de risada. Às vezes é melhor errar do que acertar. Certa vez, me lembro de ter comprado uma borbulha muito barata e ruim e ao soprá-la, no palco, só saiu uma borbulha. Li o frasco: “made in China”. O joguei contra o fundo da plateia e todos riram por ser uma realidade. Muitas das vezes que você compra uma porcaria é “made in China”. Agora o que faço: coloco apenas uma gota de sabão na água para que não funcione, saia só uma borbulha e o público ri. Muitas das vezes o erro acaba sendo um acerto e por quê? Porque tomamos com leveza.
ANDERSON - De fato somos perdedores.
TOMATE - Sim.
ANDERSON - Lembrei de uma situação com o Xuxu em que ele avia acabado de fazer uma apresentação e o público estava encantado. No entanto, me confessou que, enquanto artista, queria chegar a um lugar que ainda não estava. Mas e o Tomate como se vê? Tem algum lugar que ainda queira ir?
TOMATE - Em outro momento você me perguntou sobre os momentos de angústias na minha carreira. Já tenho 28 anos que faço isso. Atualmente, minha angústia é não posso visitar vocês em Campo Grande ou a todos no meu querido Brasil. Tenho vários amigos de lugares maravilhosos e um público fantástico. Não posso, não podemos agora. Esse é um momento de angústia, não tem solução. Desejo ver vocês, viajar à China, à Europa, ao México, por dentro do meu País. Tudo o que eu quero e não posso fazer agora é por culpa da pandemia.
Quanto aos anseios, depende daquilo que você quer, das expectativas que você tem e como você vê. Talvez, alguém queira se ver com 20 anos de Rede Globo, uma versão roqueira, cult de Patati Patatá. Esse pode ser seu sonho, já é uma perspectiva, mas uma pretensão bastante difícil.
Se você tem uma perspectiva menor, mais realista e humilde é mais fácil de conseguir. Minha angústia é não poder visitar vocês, viajar pelo meu país. Antes da pandemia, eu tinha um mês de contrato fechado no México, depois dela foi suspenso. Essa é a minha angústia e como eu me vejo? Fazendo tudo isso, superando esta angústia.
ANDERSON - E você está pensando em alguma coisa pós-pandemia? Algo que preparou?
Tomate: Tenho um espetáculo completo para começar os ensaios e outro que está em seu processo de criação. No momento tenho outro trabalho e chego bastante cansado em minha casa. Então, estou um pouco em stand by com o desenvolvimento de tudo. Quando eu regressar a meu ofício, me vejo trabalhando com meu material, tendo mais tempo para mim.
ANDERSON - Um ano muito atípico. No Brasil, ainda temos uma situação um pouco pior, pois lidamos com uma crise política bem grande. Um presidente que está no cargo e nos deixa em uma situação pior do que, talvez, qualquer outra no mundo. Só agora que o Brasil conseguiu aprovar uma lei de cultura - a Lei Aldir Blanc. Com essa lei os artistas conseguiram promover seu trabalho. Na Argentina existe alguma política de financiamento? Como funciona? TOMATE - Tem muito pouco aqui na Argentina. Eu tive acesso por causa dos meus 28 anos de carreira em que ganhei diversos prêmios internacionais. Mas, em geral, e mesmo no meu caso, tenho que ter outro trabalho para sobreviver sem essa ajuda estatal, que é muito pouca. O que tenho a dizer é o seguinte: tivemos um Bolsonaro, não tão louco, não tão ruim. Tivemos o Macri durante quatro anos, período que não trabalhei uma única vez. E, agora, com esse governo mais popular, mais de esquerda, pouca coisa, mas, estou trabalhando. A diferença é fantástica.
Ver Bolsonaro como presidente do Brasil me causa dor. Mas, o que tenho a dizer aos brasileiros e brasileiras é não votar mais na direita, porque a única coisa que ela quer é mais poder e dinheiro. Jamais vai ajudar o pobre, a classe média, que erradamente acha que vai conseguir chegar ao céu dos poderosos. A classe média e o pobre são somente instrumentos para a direita. Ambas as classes necessitam de um governo formação popular, um pouco de esquerda. A direita só governa para os ricos e para os Estados Unidos da América.
Em meu país a ideia do apoio à cultura como no Brasil ainda não está instalada. Só vocês e a Europa têm isso, embora o México e o Chile tenham um pouco. Argentina tem muito dinheiro para cultura, mas os canais ainda não são claros. O Brasil tem que defender isso, as liberdades. E, escolham governantes que tenham a capacidade de governar, pois Bolsonaro, sem dúvida, não tem.
ANDERSON - Esse projeto, inclusive, recebeu recursos da Lei Aldir Blanc, com objetivo de escrever e publicar o livro sobre a pedagogia do riso. O governo Federal fez o que pôde para atrapalhar a distribuição desse recurso, para defender a morte, fazer piadas de muito mau gosto com as perdas causadas pela pandemia. Um momento muito triste. Me veio uma coisa: um dia ele chegou no cercadinho, local onde ele recebe o gado (gado é como são chamados os seguidores dele) acompanhado por um comediante brasileiro, que fez humor para o opressor. Ele se colocou no lugar de defender esse presidente, fazer esse serviço para o Bolsonaro, e fica a pergunta: em que lugar a gente se propõe colocar o nosso riso?
Tomate: Na minha opinião esse comediante tem o direito de fazer isso, porque ele deve concordar com as ideias do governo. Ele tem direito, você não pode proibí-lo. Mas pode fazer um trabalho constante de convencimento, somente mostrando fatos, deixar a bola no campo dele e dizer: “Você se lembra quando foi que o Brasil teve aquele crescimento econômico, um fenômeno para toda a América Latina? Quando foi?” Primeiro governo do Lula, após os governos Collor de Mello e FHC. É só falar isso e deixar a pessoa pensar. Se ele contestar algo, não importa. Fale também o que se passou com Marielle e pergunte: “Acredita mesmo nesse governo?”.
Essa é uma forma de convencer porque se você discutir vai estar o tempo todo falando branco, preto, vermelho, azul ou amarelo. Vira uma conversa de louco.
ANDERSON - Depois que passar tudo isso, com a vacinação em massa, como você vê o lugar do palhaço no mundo?
TOMATE - Eu não sei. Espero voltar como antes, na verdade, com mais força ainda. O público está querendo ver mais coisas e nós queremos fazer. As condições são ótimas para um bom início. Mas, às vezes, tem uma voz que é bastante pessimista e fala que estamos quase em extinção, não? Esses são os primeiros sinais de que a humanidade está dizendo tchau! Não sei quanta normalidade voltaremos a ter. Tomara que volte a ser como antes e ainda melhor. Eu ficarei feliz!
Pepe Nuñes
ANDERSON - Quero dizer que é sempre um prazer te ouvir. Você é uma pessoa que eu tenho um carinho. Todos os nossos encontros foram muito especiais.
PEPE - Você sabe que Campo Grande é especial! Têm cidades que são como talismãs que os shows sempre rolam bem. Foi um sucesso medonho da primeira vez que fomos com o “De Malas Prontas” e o “Bom Apetite”. Depois voltei para fazer aquela oficina maravilhosa de 15 dias. Tanta gente! Eu lembro que naquele dia acordei mal, saí para procurar uma água de coco, fui me hidratar. Tomei a água de coco, depois cheguei naquela tenda, não tinha nem cadeira, a produção estava atrasada. Comecei a olhar o som, mas, meu corpo não estava bem. Eu falei, “meu Deus!”. Daí veio a abertura.
ANDERSON - Você abriu o festival?
PEPE - Abri! E, quando eu saí e vi aquele público... Normalmente, fico três minutos com meu guarda-chuva. Sei que a música começou e eu, lá, sentado com o povo. Quando cheguei no picadeiro já não estava doente, estava com a energia da plateia. Foi uma apresentação maravilhosa!
ANDERSON - A Pantalhaços foi um festival que pegou. As pessoas têm um carinho muito grande! Quero começar com a minha primeira pergunta: lembro que te conheci no espetáculo “De Malas Prontas”, num festival no Maranhão. Talvez, você não lembre. Vi um trabalho consistente que me agradou muito, onde vemos a palhaçaria com requinte. Então, quero perguntar a você o que é o palhaço? O que o define?
PEPE - O palhaço é uma coisa muito plural. Têm muitas formas de abordar a palhaçaria. Não só esteticamente, mas, filosoficamente. Pode ser tradicional, moderno, poético, transgressor. O que define o palhaço para mim? É fundamental que seja algo que nasça de ti para ter força, ser verdadeiro. Tem que ser aberto no sentido de acreditar que aquilo não é só tu que fazes. É tu e o público. Então, tens que entrar pensando: vamos brincar, se divertir. Para isso, precisas de presença, escutar e ver. Presença para ter força, escutar para ouvir e olhar para ver. E, a partir daí o relacionamento com o público será verdadeiro. Essa é a parte fundamental que proponho no jogo, mas, não venho com tudo pronto. Ele é resolvido na interação. Quando tu estás brincando as piadas aparecem. A princípio vai tudo marcado e tu tens que olhar o público de verdade para não ter a jogada pronta. Essa frescura no jogar é fundamental. É neste ponto que chega o ator. Todo palhaço é ator, é um profissional que deve entender o jogo da cena, do picadeiro, do palco, da rua. É necessário ter as ferramentas de domínio. Mas, se tu não tens essa presença a palhaçaria perde força. É um processo muito longo, mais para uns do que para outros. No meu caso, em particular, levou muito tempo. Da primeira vez que vi o Avner, no “Anjos do Picadeiro”, ele deu uma palestra e disse: o importante é respirar. Depois li a revista
do Anônimo que também dizia: o importante é respirar. Eu pensava na respiração do diafragma. Cinco, seis anos depois estava apresentando na Cia dos Palhaços, em Curitiba (PR). Naquele número que eu faço em que escondo o cigarro na camiseta. Era uma apresentação em um festival muito bom, sala lotada. Quando coloquei o cigarro na camiseta e começou a sair fumaça, tinha luzes azuis por vários pontos. A fumaça saiu da minha camiseta, mas brinquei que estava assustado com a camiseta do voluntário. Comecei a seguir a fumaça pelo refletor e aquilo levou muito tempo até que ela saiu pelo telhado do galpão. Isso foi uma eternidade, fisicamente deve ter durado um minuto e meio. Uma cena de um minuto e meio onde é só olhar a fumaça subindo, o público rindo e olhando com aquela cara de preocupação. Enquanto isso o voluntário entrou no jogo. Neste momento, lembrei do Avner e pensei: porra, é respirar na cena. Isso é arte! Mas, o que é arte? É complicado definir. É quando a gente se coloca no lugar, no tempo certo da vida, no sentimento, no que importa, no universo. A gente vive na urgência, com mil estímulos sonoros e visuais. Quando a gente vê um filme que nos toca, escuta uma música, vê um palhaço, um quadro, uma pintura, vivenciamos o lado sentimental da vida. O tempo para e passa a ser outro. Acho que a arte nos coloca nesse encontro com o tempo de verdade. Levei mais de uma década para entender isso e transpor a piada pronta. Eu percebi isso desde as primeiras oficinas com meus mestres, Jang Eduard, Morrison... Apresentava um número e eles diziam: chega, para aí, palhaço de rua. Eu quero mais... Não de fazer mais, quero mais presença e verdade. Eu lia livros e não entendia esse respirar. Com o tempo você vai entendendo isso. Tem que estar tranquilo, o público te dá tudo, confia que é teu parceiro. Nem sempre a gente consegue. Com o tempo você deixa de se preocupar com as gags, piadas, porque a interação com o público foi te dando material. Chega um momento que elas estão aí. A magia do momento te traz a piada mais certa e caso venha a errar não há problema. É básico entender que o erro é uma oportunidade. Outra coisa que é fundamental é o riso do palhaço. Tu podes provocar todo tipo de riso, o que tu não podes fazer na palhaçaria é aquele riso que diminui alguém, que sacrifica, que bota alguém no ridículo. Se um indivíduo tem que ser diminuído, ser ridicularizado, és tu. Esse é um ponto que precisa estar muito claro. E o que acontece? O público ri, fala besteira, cai no ridículo porque esse brado de liberdade é a essência do palhaço que contagia e comunica. Quando iniciamos na palhaçaria usamos muito o ridículo dos voluntários, do público. Se brinca muito com isso também. Tudo certo, é um início, um material que, com delicadeza dá bons resultados. Contudo, quem tem que se arriscar e se expor no palco é o palhaço.
ANDERSON - Isso de diminuir o público, me fez pensar até naquele festival em que você estava. Participei com uma cena no Cabaret, na qual coloquei uma pessoa de braços abertos, como se estivesse na cruz. Essa pessoa continuou assistindo aos espetáculos e durante o evento acabou virando “Jesus”. Ficou conhecido por todos. Trago este exemplo para fazer um gancho com o que você falou. Essas situações me fazem pensar na ética. Pode-se dizer isso? Você discute dentro da sua escola,