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Reviravolta em três partes - Vítor Manuel Alves Fernandes (Menção honrosa

N Ú M E R O E S P E C I A L

R E V I R AV O LTA E M T R Ê S PA R T E S

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Desilusão, perseverança, felicidade

Considero-me perseverante. Há quem diga que sou inteligente, mas não gosto do encómio. Prefiro dizer que tenho dias em que o sou, mas noutros, talvez jumenta. E sofri por isso. Pergunto-me às vezes, como não fui capaz de ver o que se passava defronte do meu nariz. Perguntarme-ão, com propriedade, o que é que a perseverança, a inteligência ou a falta desta, têm uma a ver com a outra. Etimologicamente nada. No conceito não se lhe encontra verosimilhança e se uma fosse o fruto da outra, não seria assim tão óbvio. É por isso que gosto de contar esta parte da minha história criando esta expectativa. Hoje consigo fazê-lo, já não como catarse, tão pouco para expiar “coisas” mal resolvidas, mas porque no fim das contas, acabou por sair melhor do que a encomenda, se é que se pode também aplicar a expressão popular, quando nada aqui foi propositado ou de encomenda. Antes pelo contrário. A verdade é que hoje vivo muito melhor. Foi bom ter aprendido! Vamos então por partes. Desde a minha tenra adolescência que me agarrei com unhas e dentes a um namoro que não resultou. Isto parece banal, comum a muitas mulheres e homens, mas nunca uma expressão teve um sentido tão literal. De tal modo foi literal que eu virei-me para a outra e disse-lhe que se ela não deixasse de andar a dar em cima do meu namorado, que lhe daria na cara. E não é que chegámos mesmo a vias de facto? Dessa vez venci eu, ele veio jurar-me a pés juntos que era de mim que gostava, que eu não ligasse, que ele não tinha tido nenhum caso com a outra, não passava de gabarolice da idade. Gabarolice dela, diga-se em abono da “verdade dele”, que a ele eu, de facto, fingi nunca ter ouvido vangloriar-se. E assim fui namorando com aquele rapaz, homem de um metro e noventa e oito, que para os meus quase cento e setenta e seis centímetros acima do chão, não destoava muito. O meu rapaz era, no entanto, um pouco menos aplicado do que eu na escola. E por isso, mas também para o poder controlar, quero dizer, para poder estar mais perto das companhias dele, resolvi perder um ano. E claro que, nessas alturas, há sempre a desculpa do tal professor que embirrava com a gente, quer estudássemos ou não, não passaríamos de ano e, nós a tentarmo-nos convencer desta “verdade”, como se o fosse. Bom, nós é uma maneira de dizer. Eu! E lá fiquei um ano a marcar passo, para poder andar na mesma turma do “meu” Anselmo, esse tratante, como mais à frente irão constatar. O meu Anselmo, entretanto, desistiu de estudar no nono ano. Ele não passava daquilo e eu, nem mesmo por amor, decidi continuar a marcar passo. Fui continuando os estudos, andei no décimo, andei no décimo primeiro e fiz o décimo segundo. Quase, quase! Deixei sempre a matemática por fazer. Não como aquele bicho de sete cabeças, porque eu não a considerava assim, M E N Ç Ã O H O N RO S A

–H I S T Ó R I A D E V I D A

I n F o r m a r

mas porque perdi o fio à meada. E tornou-se difícil numa disciplina onde, havendo uma certa sequência, se se perde o comboio da matéria, nunca mais se chega ao fim da viagem. O meu rapaz dizia que para ele chegava, ainda se matriculou no terceiro ciclo, mas isso foi mais para inglês ver, isto é para poder ir ver as miúdas à escola do que para estudar. Se aqui utilizei a expressão “inglês ver”, bem poderia ter dito francês. Seria mais literal. É que o pai desse desqualificado vivia e trabalhava em França, mas quando soube que o filho não dava uma para a caixa na escola, não se importou muito. Se ele era pedreiro, porque é que o filho não podia ser também? E foi assim que o chamou para ir trabalhar com ele. O Anselmo lá foi e por lá andou alguns meses. Juntou dinheiro, veio com o intuito de tirar a carta de condução aqui e ficar mais perto de mim. Mas já vão ver.

A avó deste mariola era uma querida. E eu, como só tinha já as matemáticas para fazer, sobrava-me muito tempo e passava muitas horas na casa da avó. Aproveitava também para tomar conta de uma criancinha, fazia companhia à senhora e acabava por ganhar um dinheirinho. Entretanto o meu menino, como eu lhe chamava, como jogava jogos de computador até às tantas ficava a dormir até ao meio dia, quando não mais. Isso pensava eu. Surgiu, quase como por acaso o primeiro passo na reviravolta. O meu tio de Lisboa, senhor com bons conhecimentos de matemática, disciplina de que foi professor, convidou-me a ir passar uns tempos em casa dele. Isto porque a escola que eu frequentava em Coimbra tinha um regime de exceção para casos similares ao meu e com o acordo das entidades superiores da Educação, de podermos fazer os três anos num só, com os exames do 10.º e do 11.º a serem feitos na escola, no final de cada período e se em cada um houver aproveitamento, também podermos fazer o exame nacional do 12.º ano, no final do ano letivo. Umas vezes lá em Lisboa, outras aqui na terra, com a ajuda do Skype, para não estar muito longe do meliante, e com o esforço do meu tio, que o próprio faz sempre questão em dizer que foi meu e com a inteligência que “eles” dizem que tenho, fiz os três exames e com notas invejáveis. E pronto, cá estava eu com o décimo segundo completo e com uma vontade férrea de entrar no mercado de trabalho. Agora sim, depois de tantos anos de namoro estava pronta a fazer um pé de meia que a mim e ao meu namorado nos permitisse encarar o primeiro impacto de uma vida conjugal. Até porque o pai dele tinha voltado a chamar aquele calmeirão preguiçoso lá para França e eu, usufruindo de umas férias que, como prémio de aproveitamento, um primo meu, que vive na Suíça, me ofereceu por aquele sucesso na matemática, por lá ficaria. Estaria bem pertinho de França, com a vantagem de que agora éramos os dois a ganhar e as minhas despesas seriam minoradas por poder viver temporariamente com o meu primo, nomeadamente ter uma renda de casa partilhada. E eu, com o décimo segundo completo e com um curso de francês, que já me tinha proposto fazer, conseguiria um trabalho melhor remunerado. E não me importava nada que o meu homem fosse trolha. Dá-se então a segunda situação, esta muito confrangedora, em pleno contraste com a muito bem sucedida primeira etapa. Um murro no estômago do qual tive muita dificuldade em me recompor. Mas não sou mulher para me deixar abater. Perseverante, não foi o que disse? Chorei lágrimas de sangue. O canalha, por quem lutei quase uma vida - é exagero, mas relativizando à idade que tinha e ao tempo que namoramos, quase que mitiga o exagero da expressão - trocara-me por outra. E não fora por uma qualquer. Foi pela minha vizinha de prédio e de andar, na casa de quem se ia enfiar, quando eu viajava, diariamente, até à casa da avó. E eu a pensar que ele, cansado, coitadinho, de tanto jogo online, teria de estar a dormir até ao meio-dia! As minhas férias na Suíça foram uma deceção, nem as águas dos SPAs conseguiam lavar as minhas lágrimas e, claro está, não fiquei lá para trabalhar. Teria de refazer todos os meus planos de vida. Mas um dia, telefonei ao meu tio de Lisboa, que esteve sempre do meu lado, na verdade e para ser justa, não só o meu tio, mas também a minha tia que, desde que nasci, tem sido o meu suporte e muitas vezes o meu farol, para lhes dar uma notícia. E esta

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constitui a terceira etapa, não da minha história de vida, porque ainda sou nova, muita coisa já se passou depois disso, mas que por aqui fechará este capítulo. E assim se poderá chamar a terceira parte deste cair e levantar de novo, deste aprender, aprender sempre, deste viver bem com os ensinamentos da vida, mas também com os ensinamentos da escolha, com a aquisição do conhecimento científico e com a sua aplicação no dia a dia, na ajuda da resolução dos nossos projetos.

“Estou tio? Sim, sou eu, a Luísa. E só para vos dizer que me matriculei no curso superior de Contabilidade. Sim, tio sim, na Coimbra Business School. Ai tio, estou tão feliz!” Hoje, passados alguns anos, sou já uma contabilista certificada. Vivo bem com o passado, mas relembrálo, só por escrito, para poder contar a minha história. O meu atual companheiro, com quem vivo há mais de dois anos, não pertence ao planeta do vagabundo. Que seja feliz!

Pseud. Luísa Damião Autor: Vítor Manuel Alves Fernandes*

*Vítor Manuel Alves Fernandes nasceu em Lisboa em 1955, mas é almadense por opção. Formou-se em Engenharia Eletrotécnica no Instituto Superior Técnico e em Máquinas Marítimas da Marinha Mercante na Escola Náutica Infante D. Henrique. Exerceu a sua atividade profissional maioritariamente na área de Informática. Foi também Professor de Matemática no ensino secundário particular e ensino superior particular. Apaixonado por fotografia, dá formação nesta área em regime de voluntariado na USALMA, Unisseixal e Centro Social Paroquial Padre Ricardo Gameiro. Como blogger, pode ser seguido em: http://constantinogvacas.blogspot.pt Publicou o seu primeiro romance, "Sete Facadas e Carapaus de Escabeche", em 2012, ed. Pastelaria Studios. Tem-se afirmado como autor de contos, romance e poesia em nome individual ou participando em várias coletâneas. As suas últimas publicações foram o livro de contos Pero que las hay, las hay e outros sabores, ed. Emporium, 2018 e a participação na coletânea de poesia Letras em marcha, Julho 2021 ed. Calçada das Letras.

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