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Um dia aconteceu – Válter Deusdado (Prémio

I n F o r m a r

P R É M I O C O N T O

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U M D I A A C O N T E C E U

Partilha, Disponibilidade, Cultura, Criatividade

Ele caminhava lentamente com passos incertos e um pouco curvado. Os oitenta anos tinham já um peso considerável. Hoje era um dia muito especial. Almoçara mais cedo para ir, como era seu hábito, visitar o seu amigo Rafael, porque este, sendo da mesma idade, tinha muita dificuldade na marcha. Estava por assim dizer preso em casa, as pernas definitivamente tinham deixado de corresponder às solicitações, estavam ali, mas a força muscular desaparecera e, quando tentava dar uns passos, as articulações recusavam-se a desempenhar o seu papel. Após perder a companheira e amiga, uma inspiração de toda a vida, até as pernas ficaram mais hirtas e preguiçosas.

Lembrava-se bem dos tempos de menino e moço, quando ele e o Rafael frequentavam a mesma escola primária e corriam atrás de uma bola, quais galgos na perseguição de uma peça de caça. Rafael fora sempre muito inteligente, até as contas de multiplicar decorava com facilidade e tinha uma enorme motivação em aprender. Seguiu-se o liceu sempre com boas notas. A necessidade de trabalhar retirou-o naquele momento da escola, mas o interesse pelo conhecimento acompanhou-o sempre. Américo mal pôs os pés na rua, um sol límpido e acariciador de abril abriu-lhe um sorriso largo como quem vai salvar o Mundo suavizando-lhe a dureza dos derradeiros dias. Os cheiros fortes da primavera que lhe haviam faltado nos últimos tempos estavam de volta e enchiam-lhe os pulmões daqueles aromas tão desejados. Vai tateando a calçada com a bengala em direção à morada do amigo. Ele, que era a inveja de todos os velhos da sua rua, hoje sentia que as forças e a destreza da bengala não eram as mesmas. Estaria a ficar doente? Parou um pouco para sentir o coração e pareceu-lhe que estava bem, mantinha aquele ritmo a que se habituara. A seguir, porque algum cansaço se apoderara dele, respirou fundo duas vezes, e as coisas ficaram mais ou menos bem, aqueles pulmões precisavam de mais tempo para a sua função. Sentia que as forças estavam a fraquejar, mas agora que podia retomar a rotina tinha que superar as mazelas que ameaçavam roubar-lhe a alegria. Teriam sido os últimos dois meses que passara em casa, como a maioria dos cidadãos, por causa do tal vírus, que o deixaram mais vulnerável? Bom!... Oitenta anos era já uma idade a que poucos resistiam. Os seus vizinhos, muitos deles embora mais novos já tinham falecido. O que o atrapalhava mais era aquela perna esquerda, de que o médico lhe recomendara para não abusar. De facto, estivera mais de dois meses parado em casa, e parecia-lhe que isso em nada o ajudara. Até a cabeça, como que abandonada à erosão

N Ú M E R O E S P E C I A L

do esquecimento se baralhava nos dias da semana. Um dia teimava com a sua Mariana que era quarta feira. Não é, hoje é terça feira - Respondia ela com disfarçada impaciência. Américo atravessava agora o pequeno jardim, também ele estivera esquecido este tempo todo, porque a relva estava desgrenhada e os passeios num abandono, apenas as flores primaveris não tinham aderido àquela paragem do tempo. Seguia-se o quarteirão que tinha que contornar para chegar a casa do amigo. Nos últimos anos juntavam-se com regularidade. Embora tivessem mantido sempre essa proximidade, claro que depois de ambos se reformarem as visitas passaram a ser mais frequentes e representavam para Américo uma aprendizagem extraordinária principalmente nas áreas de conhecimento que ele não tivera ocasião de aprender, porque depois do liceu, as funções que durante toda a vida ativa desempenhou no banco, nunca lhe deixaram muito tempo livre, limitando-se a escrever uma espécie de diário, coisa que gostava de fazer, como se fosse uma terapia. Rafael, pelo contrário, sendo professor, envolvido numa atmosfera de aprendizagem aproveitou todo o tempo com a precisão de um relógio e já adulto frequentou a universidade no curso de história. Quando lhe perguntavam porque com aquela idade ia frequentar uma faculdade, ele respondia com a frase que ouvira muitas vezes ao seu pai que dizia, aprender é viver melhor. Depois era um regalo ouvi-lo falar das civilizações antigas, da história de arte principalmente da pintura, e quanto ele gostava de se referir à corrente impressionista pela sensibilidade dos sentidos. Também os assuntos contemporâneos faziam parte daquelas tertúlias que representavam para ambos beber a grossos tragos o fio da vida. Chegou à casa do amigo tocou à campainha, mas ninguém veio abrir. O que lhe teria acontecido? E logo hoje que queria fazer-lhe uma surpresa, levava-lhe o manuscrito de um livro que ele escrevera durante a pandemia. Perguntou ao vizinho do andar esquerdo se sabia alguma coisa do Sr. Rafael. Este respondeu que na noite anterior ouvira uns barulhos estranhos vindos da casa dele.

Para Américo, o amigo teria ido para o hospital e quem sabe se não teria já morrido. No regresso a casa, de cara fechada tal como um preso de volta à sua cela, com indignação crescente a subir-lhe com a cadência irregular dos seus passos, Américo deixou o pensamento arrastar-se para o passado, de onde irrompia uma censura por nada ter feito pelo amigo de tantas décadas. Quis ir visitá-lo ao hospital, mas não era possível, um vírus impiedoso continuava a impedir os cidadãos de circular.

Veio à janela, a alma encheu-se-lhe de um silêncio apaziguador com o verde da primavera a acariciar-lhe o olhar e disse para ele. Acabei de descobrir o título do meu livro, que será:

- “A Morte Roubada”.

Pseud. Eurico Pederne Autor: Valter Deusdado*

* Valter Deusdado, nasceu em 1952 em Miranda do Douro, distrito de Bragança. Fez a sua formação no Instituto Superior Técnico e na Marinha, onde durante mais de quarenta anos fez a sua carreira atingindo o posto de capitão-de-mar-e-guerra. Sempre atento às pessoas e ao seu comportamento cria a atmosfera que vai servir de inspiração à sua escrita. É uma escrita de poucas palavras que é necessário mastigar para as sentir. Em 2011 publicou o seu primeiro livro “L Ancuontro” em língua mirandesa. Em 2016 publicou o 2.º livro “Noites Escuras” em duas línguas; português e mirandés. Em 2018 publicou o 3.º livro “A Escolha” em duas línguas; português e mirandés. Em 2019 publicou o 4.º livro “O Regresso” em duas línguas; português e mirandés

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