Enfoque Porto Alegre Bairro Farrapos 3

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BAIRRO FARRAPOSENFOQUE PORTO ALEGRE 3PORTO ALEGRE / RS OUTUBRO DE 2022 Educação, arte e cultura: família de venezuelanos na Vila Farrapos Página 3 A fé que alimenta corpo e espírito Página 4 Olé: driblando fronteiras Página 5 Navegando pela Farrapos Páginas 10 e 11 GIORDANO MARTINI Samanta Nicole, de apenas 12 anos, já domina a língua portuguesa

Várias formas de sair do lugar

Deslocamento, por definição, é movi mento. É transformação. É mudança. Ninguém permanece estático, tudo e todos estão sempre em constante transição. Se deslocar é sair do que já é conhecido e navegar por outras águas - em busca de sonhos e novas realidades. Numa manhã de sábado, esta edição do Jornal Enfoque velejou por cinco histórias presentes na Vila Farrapos, Zona Norte de Porto Alegre.

Os pescadores, Fábio e Mauro, saíram da Ilha da Pintada para realizar serviço comu nitário, na Fundação Fé e Alegria, por pesca ilegal. A reportagem retrata as contradições de uma justiça que ainda está muito distante

QUEM FAZ O JORNAL

O Enfoque Porto Alegre - Bairro Farrapos é um jornallaboratório dirigido ao bairro Farrapos, localizado em Porto Alegre (RS). A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campi de Porto Alegre e São Leopoldo).

da população, que cobra os deveres e não garante os direitos para os menos favoreci dos. Iyá Fátima de Iemanjá e Valdereza de Oliveira fazem mais do que orar, bater tambor e rodar saia, elas alimentam a comunidade. A matéria aborda a postura empática de duas mulheres fortes e solidárias. Atletas do projeto social da Escolinha Dindo Soccer sonham em pisar nos gramados da Copa do Mundo. Nesta abordagem sobre o esporte, as praças são valorizadas como espaços de lazer, cidadania e sonhos. Moradores da re gião desconhecem o projeto de revitalização do Quarto Distrito, a reportagem retrata o desprezo institucional do poder público em

não divulgar as obras que irão impactar a comunidade. Por fim, o texto sobre a família Portillo, de emigrantes venezuelanos, que buscam uma chance de recomeçar através da arte em Porto Alegre. Este último dá o tom desta edição, merecendo a foto de capa e a foto que abre este editorial. Os cidadãos retratados nesta edição comparti lham as mudanças da vida e da vila locali zada ao redor da Arena do Grêmio. n

| REDAÇÃO | REPORTAGENS – Disciplina: Jornalismo Comunitário e Cidadão. Orientação: Sabrina Franzoni (franzoni@unisinos.br). Repórteres: Bruna Schlisting, Eduarda Ferreira, Lisandra Steffen, Luã Fontoura e Paola De Bettio Tôrres. IMAGENS – Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Beatriz Sallet (bsallet@unisinos.br). Repórteres fotográficos: Giordano Martini, João Pedro Mendoza, Luís Henrique Leite, Maria Paula Fernandes, Nicoly Reis, Nicoly Owicki e Tobias Araújo. Monitora: Amanda Bormida. | ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Campus de Porto Alegre (RS): Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600, Boa Vista (CEP 91330 002). Campus de São Leopoldo (RS): Av. Unisinos, 950, Cristo Rei (CEP 93022 750). Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci. Vicereitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretora da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenadores do Curso de Jornalismo: Débora Lapa Gadret (Porto Alegre) e Micael Vier Behs (São Leopoldo).

2. Editorial ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022
enfoqueportoalegre@gmail.com GIORDANO MARTINI
LISANDRA STEFFEN EDUARDA FERREIRA BRUNA SCHLISTING

Mudar de lugar nem sempre é uma escolha

Família de emigrantes venezuelanos encontrou em Porto Alegre a chance de recomeçar

Um pouco tímida, mas sempre sorridente, sen tada entre os avós, em um banco de cimento da Fun dação Fé e Alegria, a menina de olhos expressivos acabou por intermediar a nossa en trevista, fazendo de vez em quando o papel de intérprete. Samanta Nicole, de apenas 12 anos, já domina a língua do novo país que sua família precisou emigrar. “Quando cheguei, não entendia nada de português. Mas entrei na escola, fui aprendendo com facilidade e agora falo tanto o português que estou qua se esquecendo o espanhol”, conta a emigrante venezue lana, que desde 2019 está no Brasil com a família.

Na casa da família Portillo, que atualmente fica localiza da na Vila Farrapos, em Porto Alegre, só se fala espanhol. O esforço para não esquecer do idioma de origem é uma das formas de manter a conexão com o país a que pertencem e de onde não pretendiam ter saído. “Não queríamos sair de lá. Mas pela situação que há na Venezuela agora, fomos força dos a vir para cá.”, explica Jose Vicente Portillo, avô da Saman ta e marido de Mirian Portillo, com quem veio para o Brasil em busca de uma vida melhor. "O problema mais grave era a fal ta de alimentos. Por exemplo, se eu saísse de casa às sete da manhã e fosse para a fila com prar alimentos, às três da tarde ainda estaria lá”. Jose conta que a situação foi se agravando até que chegou o momento que deram um basta e foram embora de seu país. “Era uma vida que não podíamos supor tar”, acrescentou ele.

“O problema mais grave era a falta de alimentos. Por exemplo, se eu saísse de casa às sete da manhã e fosse para a fila comprar alimentos, às três da tarde ainda estaria lá”

países, já que tiveram de aban donar sua casa, profissões e tudo o que construíram duran te a vida. Primeiro, migraram para Boa Vista, em Roraima, onde logo no taram algumas diferenças em relação a seu país de origem, como em rela ção aos direitos dos indígenas. Jose apontou que tanto no Brasil quanto na Venezuela há uma mesma etnia indígena, os Yanomami.

O casal contou que a es colha pelo Brasil foi devido a proximidade entre os dois

“Nos demos conta de que aqui, por cau sa de políticas governamen tais, os indígenas têm mui tos benefícios garantidos constitucionalmente. Na Venezuela, agora que estão começando a viabilizar al guns direitos. Antigamente, não tinham nada, queriam extingui-los. Assim como no

ARTE PARA RECOMEÇAR

Há dez meses que Jose, Mirian e Samanta estão mo rando em Porto Alegre, jun to com alguns familiares que já estavam estabelecidos na cidade. Esse, inclusive, foi outro motivo que ajudou na decisão de virem para o Bra sil e, especificamente, para o Rio Grande do Sul.

Agora, junto à Fundação Fé e Alegria, onde nos encon tramos na Vila Farrapos, eles desejam voltar a trabalhar com o que mais gostam: o ensino de arte. Jose e Mirian são pro fessores de teatro e trabalha ram a vida inteira atuando e ensinando o ofício, principal mente para crianças.

Embora também gostem do teatro de sombras, o casal se empenha mesmo é no ensino do teatro de marionetes, com bonecos fluorescentes. Durante as oficinas, eles ensinam para as crianças a construção e o manejo dos bonecos, que são feitos de materiais recicláveis

e, depois, recebem a tinta fluo rescente. “Para construirmos um dragão ou um dinossauro, por exemplo, fazemos o molde com materiais como espuma e pintamos com cor fluorescen te. Na apresentação, usamos luz negra ou violeta, para que apenas a pintura seja vista. O ator que vai manejar o bone co precisa estar todo vestido de preto”, explica Jose. “En tão, apenas a pintura ressalta refletida na luz negra. É um momento mágico! As crian ças ficam loucas, pois ao ver a imagem, explode a imagina ção”, completa Mirian.

Na Venezuela, agosto, se tembro e outubro são meses de férias para as crianças. “Por isso, fazíamos o projeto de três meses, na construção, manejo e apresentação dos bonecos. O terceiro mês era de prepará-los para a apresentação. Assim, dias antes da apresentação, convidavámos os familiares e vizinhos, para que fossem assistir”, explica Jose.

Por aqui, eles têm dois grandes desafios para voltar a trabalhar com as suas oficinas. Primeiro, precisam reconstruir

os materiais e comprar as tin tas que costumam usar, já que deixaram tudo na Venezuela, inclusive os instrumentos de trabalho. Além de precisarem de um pequeno espaço como ateliê, onde as aulas serão mi nistradas. O segundo desafio é o idioma. Por enquanto, eles ainda encontram dificuldades em entender e falar o portu guês. “Ainda não atuamos por causa do idioma, mas estamos pensando em começar com mú sica. A música é um idioma uni versal.” destaca Mirian.

Felizmente, nada disso é maior do que a vontade dos dois de voltar a ensinar o ofício de que tanto se orgulham. Para eles, o contato com atividades culturais é muito importante, entre outras coisas, para que as pessoas conheçam um pouco mais da própria cultura. “Para as crianças, ajuda a desenvolver a criatividade. E para os adultos, traz conhecimentos e reflexões. Tem muitas mensagens sobre Deus também. É muito boni to”, finaliza Mirian. n

Emigração .3ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022
Chile, onde os povos indíge nas resistem até hoje”. GIORDANO MARTINI Há dez meses morando na Capital, Jose, Samanta e Mírian têm laços com a Fundação Fé e Alegria

O milagre da multiplicação

Religiosas e moradoras da Vila Farrapos contribuem com a doação de roupas e alimentos na comunidade

Santíssima Trindade recebe 150 kg de arroz da Caritas.

Vestida

de abadá, com um turbante branco na cabeça, que não apenas representa o orixá africano Oxalá, mas paz, união e har monia, Fátima Dutra Noguei ra, 62 anos, abriu as portas de suas religiões de nascen ça. Candomblecista da Jeje na Nação, uma das nações do Candomblé, assim como prati cante da Umbanda, Iyá Fátima de Iemanjá, como é conhecida, contou da solidariedade, aco lhimento e assistência presta dos pelas religiões de matriz africana à comunidade da Vila Farrapos, localizada na Zona Norte de Porto Alegre.

“Auxiliamos a comunidade em todos os sentidos. Com alimentação, cestas básicas, roupas e calçados. Somos médicos, psicólogos e con selheiros. Cada pessoa que bate na tua porta, tu atende. Não discriminamos quem quer que seja”, afirma a Iyá. Se gundo Fátima, algumas doa ções de cestas básicas vêm do governo. No entanto, ela ressalta que a grande maio ria dos mantimentos é doada por pessoas que frequentam as sessões da Umbanda e os rituais do Candomblé.

Em um sábado pela manhã, Fátima Nogueira, que está aposentada depois de traba lhar por 32 anos no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) e tendo concluí do os estudos até o ensino médio, contou que tenta fazer tudo o que está ao seu alcance para ajudar as pessoas. De ge ração para geração, ela herdou os dotes religiosos e altruístas do próprio pai. Desde então, Fátima não somente tem suas religiões como terapia e paz espiritual. O retorno também vem espe cialmente da comu nidade, que sempre se demonstra agra decida pelos cuida dos e acolhimentos.

Iyá Fátima de Iemanjá Aposentada

“Há pessoas que acham que a gente só bate tambor e roda saia, mas as Casas de Religião pres tam muita assistência para as famílias carentes. Inclu sive, a religião faz mais pela comunidade do que o poder público. Aqui, para nós, já faz tempo que o poder público não tem atuado”, lamenta.

Como moradora do entor

no da Arena do Grêmio, Iyá Fátima apelidou o estádio de “elefante branco” — um nome que simboliza algo grande, de orçamento e manutenção caros, mas sem nenhuma ou pouca utilidade prá tica. Na realidade, ela relata que a arena também foi construída com o propósito de arru mar o bairro. En quanto isso, porém, destaca o horror da localidade em dias de jogos, porque, conforme a reli giosa, apenas quem tem um espaço comercial consegue faturar algum dinheiro.

Além disso, o alagamento, na região, também foi outra questão de descaso público, recordado pela moradora. Em 2020, uma chuva que supe rou a média histórica invadiu diversas residências da Vila

Frente do terreiro de umbanda da família de Fátima (à esquerda). Valdereza conta sobre o papel da igreja dentro da comunidade e a importância da religião para ajudar os necessitados

no mês de julho. Algo que, de acordo com a Iyá, é comum na comunidade. “Quando chove e alaga, a gente da religião ajuda muitas pessoas daqui. Já o poder público, fica pendente e nos deixa de lado”, manifesta a moradora, que disse habi tar aquele espaço, ao norte da capital gaúcha, desde que se conhece por gente.

DÉCADAS DE COMPROMISSO ÀS QUINTAS-FEIRAS

Há 30 anos, todas as quin tas-feiras, das 14 às 17 horas, Valdereza Lacerda de Oliveira não ousa deixar de participar do projeto de assistência social vinculado à Paróquia Santíssima Trindade, também localizada na Vila Farrapos de Porto Alegre. Atualmente, a iniciativa conta com menos de cinco colabo res fixos, mas ajuda cerca de 50 famílias da região.

Do pátio da sua casa, sentada

em um banco de madeira na va randa, vestida com calças jeans e blusa de lã vermelha, a aposen tada de 82 anos narrou que a sua rotina não se resume em dormir e acordar cedo, fazer comidas e bolos, assistir uma novelinha ou cuidar dos seus filhos, três ne tos e seis bisnetos. Mesmo com problemas no coração e após a perda de um filho, Valdereza nunca abandonou seu compro misso às quintas-feiras.

“Quem bate na assistên cia social, que fica na parte de baixo da Paróquia, sempre sai com um pacote de açúcar, de massa, porque, normalmente, a gente tem coisas para doar”, comenta. Conforme Valdereza, a maior doação recebida pela associação vem do Secretaria do de Ação Social da Arquidio cese de Porto Alegre, que é a organização da Igreja Católica conhecida como Caritas Ar quidiocesana. Mensalmente, a assistência social da Paróquia

“Também, organizamos um brechó com roupas que reci clamos e vendemos. Com o di nheiro arrecadado, compramos massa, feijão, óleo, bolacha e sabão. Tiramos do brechó para complementar o arroz doado”, frisa a católica, que não consi dera a igreja apenas o momento de rezar o terço, de ir à missa aos domingos ou de orar diante das imagens de Santo Antônio ou de Nossa Senhora Aparecida. Para a octogenária, as três décadas de assistência social igualmente confortam seu coração e pro movem o milagre da multipli cação na comunidade.

Na oportunidade, Valdereza reforçou que, como perto dos finais de ano a necessidade de auxílio no projeto torna-se ain da maior, porque há a produção de cestas básicas para serem doadas às famílias, assim como a organização de festas para alegrar a criançada da Vila, toda ajuda é bem-vinda. Por isso, quem quiser colaborar, basta ir até a Paróquia Santíssima Trindade, sob os cuidados do Padre Vicente Zorzo, localizada na rua José Luiz Perez Garcia, número 5, Vila Farrapos, vizi nha da Arena do Grêmio.

Assim, cabe ressaltar que a realidade da Vila Farrapos está em consonância com a situação da população sulista. Pois, de acordo com o 2º In quérito Nacional sobre Inse gurança Alimentar no Contex to da Pandemia da Covid-19 (Vigisan), divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em So berania e Segurança Alimentar (Penssan), neste ano de 2022, 14% das famílias passam fome no Rio Grande do Sul, o esta do da região sul, consideran do, também, Santa Catarina e Paraná, com maior índice de insegurança alimentar.

Enquanto isso, o direito à alimentação está presente no título dois da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Ade mais, o segundo capítulo deste título, em seu artigo sexto, não menciona somente o direito à alimentação. A educação, o tra balho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternida de e à infância e a assistência aos desamparados também são garantias fundamentais, previstas pela norma mais importante do Brasil. n

4. Solidariedade ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022
BRUNA SCHLISTING
“Acham que a gente só bate tambor e roda saia”
MARIA PAULA FERNANDES LUIS HENRIQUE LEITE MARIA PAULA FERNANDES LUIS HENRIQUE LEITE LUIS HENRIQUE LEITE

Futebol na praça: o início do sonho

parque Humaitá, a sede hoje é na minha casa, até que um dia a gen te consiga algo maior, para man ter, para ter uma sede”.

Quando se pensa na infân cia, não importa quanto tempo tenha passado, é possível lembrar de momentos marcantes para a vida adulta. Também se pode recordar de uma brincadeira, de uma canção ou de um jogo. O artigo 4º do Estatuto da Crian ça e do Adolescente assegura o direito à liberdade de brincar, praticar esportes e divertir-se. Ainda que os pequenos não entendam o que significa este direito, brincar faz parte da roti na e ajuda a construir os sonhos daqueles indivíduos. Essa cena não é diferente no bairro Hu maitá, em Porto Alegre.

Aos sábados pela manhã na praça que leva o nome do bairro, crianças e jovens de até 16 anos se reúnem para jo gar futebol, não apenas jogar, mas aprender mui to mais do que isso, aprender a trabalhar em equipe, aprender a ter disciplina, tornarem-se seres humanos melhores. Esse é o objetivo principal da Es colinha Dindo Soccer.

Iniciado o projeto há 3 anos, a Dindo Soccer começou seus trabalhos no ginásio da Santís sima Trindade, no bairro Farra pos em Porto Alegre. Em pouco mais de um mês, já contavam com 30 crianças, o que fez com que o projeto mudasse de local de treinamento, quando migra ram para o campo do SESI. Em um ano e meio, 120 crianças faziam parte da Dindo Soccer, mas com a pandemia da CO VID-19, esse número voltou a diminuir, chegando a 90.

O presidente e idealizador da Dindo Soccer, Moacir Santos, conta que hoje os treinamentos acontecem todos no campo de futebol onze do Parque Humaitá. Contando com dois professores, sendo ele próprio um deles, e uma comissão, toda a infraestrutura do projeto passa por eles, são eles que cuidam de tudo: “Tra balhamos com uma comissão, uma menina cuida da parte bu rocrática, parte dos auxílios. Não temos ninguém que nos ajude, tudo nós que buscamos. Nosso único campo de treino hoje é no

Mas isso não impede que Moacir e Henrique (o outro pro fessor), e sua comissão busquem atingir seus objetivos. Ele comen ta que o objetivo da Escolinha Dindo Soccer é um só, a de tirar as crianças das ruas e torná-las cidadãos: “primeiro lugar torná -los cidadãos, para eles poderem aprender a ter disciplina, respeito ao próximo, tudo isso aqui eles vão levar para a vida deles, esse é o objetivo, tudo isso implan tamos dentro do projeto, foco, muito foco,determinação.A gente explica para eles que tudo tem hora, começo, meio e fim, e no fu tebol tudo tem sua hora”.

Ser jogador de futebol é o grande sonho de muitas crian ças, algumas delas desde cedo já se familiarizam com a bola ao ganhar uma de presente dos pais. É o caso de Lucas Oliveira, de 13 anos, atleta da Dindo Soccer, que desde os 4 anos de idade já gosta de futebol: “Comecei a jogar com o meu pai no campinho na frente de casa. Ali eu comecei a treinar, a pegar o gosto pelo esporte, a querer jogar, a jogar com os meus amigos”. Já com 7 anos, o menino disse que começou a buscar inspirações dentro de campo, passou a assistir jogos na tevê para compreender mais sobre o esporte, e se espelha no craque da seleção brasileira de futebol, Neymar JR: “Ele não é da minha posição, mas eu gosto de ver ele jogando, ele fazendo os passes e os gols. A minha posição é atacante, a gente está sempre no ataque, a gente recebe o passe para fazer o gol, e a sensação de fazer um gol é demais”.

Em 2022, a Copa do Mundo de futebol estará na sua 22° edição, evento com início marcado para 20 de novembro, com a grande final agendada para ser dispu tada dia 18 de dezembro no país asiático do Catar. Questionado sobre o sonho de ser jogador, a Copa do Mundo sempre chama a atenção dos jovens atletas, por se tratar do ponto mais alto do jogador de futebol, e claro, chama a atenção de Lucas, que pensa em um dia representar o seu país em uma edição do torneio: “Claro, eu tenho o sonho de participar de uma Copa, mas não quero ir so

Lucas e a sua vó, Cristine, aproveitam o sábado na praça Humaitá. O atleta (na segunda imagem) treina com seus amigos da Dindo Soccer. Moacir e Henrique passam instruções para os alunos

zinho, quero levar um amigo meu aqui da Dindo Soccer”.

Lucas conta que ele quer ser jogador para atingir seus obje tivos, e assim como ele que se inspirou em Neymar, ele quer no futuro ser inspiração para novos atletas, além de garantir

um futuro melhor para sua fa mília: “Quero ser jogador para que os meninos da minha idade me tenham como inspiração, assim como eu fiz. Além disso, também quero ajudar a minha família em casa, comprar o que eles querem e gostam”.

APOIO DA FAMÍLIA E DO TREINADOR

Do lado de fora das quatro linhas que marcam o campo, estão lá presentes no treino de Lucas, sua mãe, Patrícia Oliveira, e Cristine Konzen, a avó. As duas fãs têm presenças confirmadas nos treinamentos e nos jogos do menino, que dão suporte e apoio familiar para que Lucas possa jogar. Patrícia comenta que apoia o filho no que pode, e diz que Lucas já deixou claro para ela que vai ser jogador pro fissional: “Ele diz que não é só um sonho, fala que vai se tornar jogador, que eu vou ver ele jogan do, que ele vai jogar no exterior, e como mãe, eu o incentivo bas tante, eu preciso estar presente, e já que é o sonho dele, eu tenho que ajudar a realizá-lo”.

A avó vai muito além de tor cer apenas para o seu neto. Ela faz parte do conselho da Dindo Soccer, participando das decisões internas do projeto: “O Moacir (presidente), fez o convite para a formação do conselho, onde realizamos reuniões uma vez por mês quando necessário, para con versarmos sobre tudo”. Quando ela fala do neto, não fala apenas de Lucas, mas sim de todos os meninos: “Aqui na Dindo eu não tenho só o Lucas de neto, eu tenho vários aqui dentro. Eu não viso só o meu, eu viso toda a Dindo Soc cer. O que estiver bem tá ótimo. Fora daqui eu só a avó do Lucas, mas aqui sou de todos”.

E sobre o futuro de Lucas? O treinador Moacir diz que quando ele chegou na escolinha, ainda era um menino que tinha que melhorar nos fundamentos de um jogador, como posicionamento dentro do campo, mas que com o passar dos meses, a evolução foi grande: “Ele veio para cá com pouco conhecimento do que o jo gador precisa, mas como é um guri focado, ele evoluiu rápido, tanto que hoje é o artilheiro da catego ria no campeonato da prefeitura. Hoje ele está bem, e tem um fu turo bom. Tenho certeza que algo está guardado para ele”. n

Esporte .5ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022
LUÃ FONTOURA Lucas Oliveira sonha em se tornar jogador de futebol profissional e jogar uma Copa do Mundo
“Quero jogar uma Copa do Mundo, mas com meus amigos da Dindo Soccer”
TOBIAS ARAÚJO

As “arenas” que

Poças d’água, lixo, gramados irregulares: es ses são somente alguns dos impasses que cercam as praças e parques do bairro Far rapos. Estes problemas dificultam o acesso da popu lação nessas áreas e trazem uma imagem de aban dono por parte das autoridades municipais.

Curiosamente, a pouquíssimos metros dali, foi erguido em 2012 um dos maiores empreendimentos de Porto Alegre. Este acontecimento evidencia ainda mais um contraste entre a Arena privada daqueles que podem pagar, e as “arenas” públicas da região que carecem de in vestimentos. Arena esta que prometeu uma remodelação benéfica para o bairro. Entretanto, quase 10 anos depois, é praticamente invisível a melhora prometida.

A deficiência nos investimentos gerou o afastamento da população dos parques e praças, basta andar pelo Parque Mascarenhas de Moraes, que situa-se na divisa entre os bairros Farrapos e Humaitá. O local tem uma área maior que a do Parque Moinhos de Vento (Parcão), mas em comparação, é pouco frequentado, revelando que a comunidade ainda não enxerga a oportunidade de um ambiente que proporcione lazer completo.

Apesar disso, uma parcela dos habitantes, ainda assim, realiza atividades físicas e de descanso nos locais, o que sugere que a revitalização dos espaços é essencial para o aumento da qualida de de vida da população. Isso também atrai investimentos e possibilita me lhorias significativas para o bairro. n

6. Ensaio fotográfico
TOBIAS ARAUJO JOÃO PEDRO NICOLY REIS TOBIAS ARAÚJO NICOLY REIS NICOLY REIS NICOLY REIS

orbitam a Arena

.7ENFOQUE PORTO ALEGRE | VILA FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022
NICOLY REIS NICOLY REIS JOÃO PEDRO MENDOZA TOBIAS ARAÚJO NICOLY REIS

Falta informação da prefeitura para a população sobre o projeto de revitalização do Quarto Distrito

Quem caminha pela Vila Farrapos percebe o sen timento de pertenci mento dos moradores com o bairro, parece que todos se conhecem de alguma for ma, a maioria sabe quem são seus vizinhos e os principais problemas da Vila. No sábado, dia 3, início de setembro, o Enfoque entrevistou alguns moradores, buscando ouvir o que eles sabiam e achavam do Projeto aprovado pelos verea dores de Porto Alegre que foi denominado como “Revitali zação do Quarto Distrito”. O primeiro a opinar foi o Pre feito de Praça Almir Aguero, depois o padre Vicente Zorzo e, a seguir, a Conselheira do Orçamento Participativo (OP), Lurimar Fiuza, que é, também, uma liderança na região. Para completar, escutamos ainda o jovem Leandro Pericoco, que mora com a família, e uma fonte que preferiu não se iden tificar, mas que é “dona” de um grande espírito de trans formação e que não podia dei xar de ser mencionada na ma téria de alguma forma.

O bairro Farrapos faz par te do que se conhece como “Quarto Distrito”. Além dele, os bairros Humaitá, São Ge raldo, Floresta e Navegantes compõem o conjunto. No ano de 1892 a capital gaúcha foi dividida em cinco distritos. O primeiro é o Centro, o segundo e o quinto são a zona sul e o terceiro e o quarto são a zona norte. Não estão em ordem exata por causa do período de desenvolvimento.

ALMIR: O PREFEITO DE PRAÇA

Almir é um argentino que morou na Espanha, distribui dor de gás e água e residente há 40 anos do bairro. Há cerca de 5 meses é Prefeito de Praça, escolhido pela comunidade através de votação. Sobre a revitalização do Quarto Dis trito (4D), ele diz: "A popu lação não está bem informa da ainda sobre isso".

Enquanto Almir apresenta va o bairro, encontramos com um casal de comerciantes mo radores e com uma mulher que aguarda a verba (indenizató ria) para compra de um imóvel, após o incêndio de 2013, no bairro Mario Quintana. Ne nhum deles sabia que projeto é este, muito menos que já

Projeto aprovado é desconhecido da comunidade

foi votado e aprovado pela Câmara de Vereadores. O co merciante disse: “Empresário sempre se beneficia mais, mas sobrando um pouco para o po bre, também está bom, porque político se beneficia de tudo e muitos não dão nada.”

A título de comparação, o projeto de revitalização mui to se assemelha a questões prometidas pela OAS, em presa que construiu a Arena do Grêmio. Até agora, trouxe um pequeno lucro para os comerciantes locais, aumen

Carlos Almir, residente do bairro há 40 anos, é hoje dono da praça do gás

tou o número de policiamento somente nos dias de jogos, colocou calçamento e asfalto em algumas ruas e ampliou algumas linhas de ônibus. Em contrapartida, quando tem temporal, em função da água represada e sem escoamen to, alaga a Vila inteira. Dessa forma, os empresários ainda ganham benefícios e atrati vos, “mas a população que luta com o pouco de renda que tem, sofre para sobreviver e encon tra poucos auxílios”.

A PRAÇA, O PADRE E A SENHORA "ANTENADA"

Padre Vicente Palotti Zor zo, trabalha na Fundação Fé e Alegria, sendo coordenador

da unidade na Vila Farrapos e pároco na comunidade. Ele conhece bem os moradores da redondeza, e lembrou de uma senhora “politizada e boa de briga”, que costuma estar por dentro dos assuntos da comu nidade. Fomos caminhando juntos até a praça. Para o padre, a proposta da revi talização dá continuidade a um projeto que existe desde a construção da Arena do Grê mio: “Eu acho que eles estão embranquecendo o bairro. Isso aqui era uma região de quilombolas, descendentes dos africanos e dos índios.”

Na praça em frente a igreja, encontramos uma senho ra que escutava rádio num aparelho portátil de pilha,

enquanto fazia a manuten ção do espaço público.

A moradora, que denomi nei de “Dona politizada”, pois ela pediu para não ter seu nome citado na reportagem, é uma figura atuante e que tem vivência na comunidade. “Em 2017, o Marchezan era prefeito, deu uma chuvarada de 15 minutos e a canaliza ção de 60 anos foi insuficien te, tomada de terra. Nessa quadra, só tem uma boca de lobo”. Assim ela apresentou um dos maiores problemas do bairro. Ela diz que se a Vila fosse bem unida, teriam eleito um vereador do próprio bairro para representar as demandas da região.

Desde a construção da arena do Grêmio, que ini ciou em setembro de 2010, há quase 12 anos, que os mora dores aguardam a instalação de uma nova casa de bomba para a drenagem do bairro.

Dona politizada, uma senho ra de cabelos brancos, recor da ainda como era o Quarto Distrito quando chegou de Uruguaiana e se instalou ali. A tia e as primas já moravam e trabalhavam na região. "A

8. Quarto Distrito ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022

gente não precisava ir ao centro da cidade. Era lindo, lindo, lindo.” Caminhando pelo bairro, ela nos levou até Lurimar Almeida Fiuza, conselheira do Orçamento Participativo (OP) e coorde nadora do Movimento Bar celona de moradia popular. No trajeto, encontramos a família Pericoco. O pai, Ru bens, relata indignado sobre o asfalto feito e depois de pronto cortado para fazer tubulação de esgoto.

O JOVEM PERICOCO E A CONSELHEIRA DO OP

Leandro Pericoco, 29 anos, estudante de fisioterapia, fi lho de Rubens, brinca: “A revi talização do Quarto Distrito? Ah, tá. Nessa parte aqui não chegou ainda.” e acrescenta “Desde 2016 estou pedin do pra colocar quebra mola aqui, porque fazem racha.”

Na rua, existem 4 escolas, 2 creches, um centro de saúde e uma passagem que dá na rua do Fé e Alegria. Para ele, a revitalização é importante, mas precisa ser compreen dida entre os moradores da região. “Por exemplo, nunca falaram em revitalizar a Vila Santo André, que tem ali em baixo do viaduto da freeway. Eu era agente de saúde na quela região. Ali são mais de mil pessoas vivendo em ex trema precariedade.”

Para Leandro, além dos alagamentos, o problema da coleta de lixo é imenso. "Aqui, a gente não tem aqueles tam bores de lixo. Tu vai ali no Moinhos de Vento e tem três, quatros numa quadra só. Aqui não tem nem um container na rua toda. Essa revitaliza ção não chegou até aqui. Eles querem fazer a nova ‘Cidade Baixa’, mas é só pra aquele lado, só até ali”, la menta o jovem.

Depois de ouvir sobre o projeto de lei aprovado, Leandro disse: “Isso não exis te. Isso não é um projeto para agora, eles es tão tentando há tempos. Eu tenho 29 anos, moro aqui desde que nas ci. Eu vejo como os outros bairros avançaram e aqui vem se deteriorando com o tempo. Onde não tem lucro, não tem interesse de ter uma infraestrutura boa".

Lurimar: "Esses últimos anos a gente vê que a comunidade não cresceu"

Chegamos na casa de Lu rimar. Entre muitas histórias que tem pra contar, ela diz: “Nesses últimos anos a gen te vê que a comunidade não cresceu, ela piorou as con dições devido a construção dos mega empreendimen tos, que hoje vem vindo e nos abafando.” Para ela, a urbanização e “abertura de caminhos” da região foi fei ta pelos próprios moradores que foram se instalando e nunca por iniciativa do po der público ou empresarial. “Aqui quando chove, e nem precisa ser tanto, enche tudo d'água, porque não mexeram na infraestrutura. Tu imagina esses mega empreendimen tos, torres enormes, que vem lá do Humaitá, essas torres aqui da Arena. E veio a es peculação imobiliária, veio um desenvolvimento assim num lugar que não tinha infraestrutura para ter. Eu acho que quando tu vende um imóvel de tamanha enver gadura, de 20 andares, outro de 10, isso se torna até peri goso.”, alerta Lurimar.

O PROJETO: REVITALIZAÇÃO OU GENTRIFICAÇÃO

DO 4º DISTRITO

A Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou, no dia 17 de agosto, o “projeto de incentivos” para o 4º Distrito.

A proposta busca promover a transformação urbanísti ca, econômica e social nos bairros da região e vai agora para aprovação do Executivo.

“Está faltando uma integração a mais com a comunidade, com a população, para informar o que está acontecendo no bairro”

De acordo com a prefeitura, a finalidade do programa é atrair investi mentos para a região e aumen tar o número de “endereços ati vos”, como re sidências e em presas.

Mas, afinal, cabe a pergun ta: Que revita lização é essa?

Por que não houve consulta da população e explicação do que seria impactado nos bairros que fazem parte do 4º Distrito? Afinal, serão eles que irão ficar na “Rota Cerve jeira e no quadrilátero do en

tretenimento”. Será um “cor redor glamourizado”, uma revitalização que poucos irão usufruir, que após uma noite de cerveja, show e festa, vão precisar limpar a sujeira que fica e sofrer as consequências dos bueiros entupidos e a ilu minação pública inexistente próxima de suas casas. Irão continuar a conviver com as ruas precárias, sem acessi bilidade, sem lixeira, poucas bocas de lobo, esgoto a céu aberto, coleta de lixo insufi ciente e ausência de faixas de pedestres? A iniciativa de transformar o bairro, por si só, é importante e já passou da hora de acontecer, mas precisa ser boa para todos os moradores, nos aspectos mais básicos, estruturais e de desenvolvimento social que estão listados no projeto, mas que não podem servir de desculpa para expulsar os moradores locais, “bran quear o bairro” incentivado pela especulação imobiliá ria e beneficiar somente os empresários que “moram do lado de lá” ou que nunca residiram na região. n

O que é?

Gentrificação: Processo de transformação urbana que “expulsa” moradores de bairros periféricos e transforma essas regiões em áreas nobres. A especulação imobiliária, aumento do turismo e obras governamentais são responsáveis pelo fenômeno.

Projeto de Lei Complementar do Executivo (PLCE 007/2022): Projeto que institui o “Programa +4D de Regeneração Urbana do 4º Distrito de Porto Alegre” e estabelece regramentos urbanísticos específicos, além de “incentivos” (possibilidade de descontos e até a isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), a depender do projeto) e tributários, promotores de desenvolvimento. São 6 eixos temáticos: Infraestrutura Estratégica; Qualificação Ambiental; De senvolvimento Social; Desenvolvimento Econômico; Reabilitação Urbana; Eixo Cultural.

Iniciativas previstas:

l Normas urbanísticas: densificação, altura de edificações conforme largura de ruas, caminhabilidade nos quarteirões, dimensão dos lotes, etc.

l Norma tributária: isenção de ITBI para compra e venda de imóvel antigo, isenção de IPTU para novos imóveis ou tombados e listados com novo uso, isenção de IPTU e ITBI para empresas de tecnologia

l Obras viárias: Farrapos, Voluntários da Pátria, Cairú, Brasil, São Pedro, Dona Teodora, Leopoldo Brentano e A.J. Renner

l Drenagem e saneamento

l Segurança: iluminação e câmeras

l Revitalização de praças

l Social: regularização de casas, reassentamento e formalização de pe quenos negócios etc.

l Turismo: Rota Cervejeira, quadrilátero do entretenimento, escritório +4D

ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022 .9
PAOLA DE BETTIO TÔRRES
JOÃO

A justiça cega que cobra os deveres e esquece os direitos

Fundação Fé e Alegria recebe dois pescadores para cumprir pena de serviço comunitário

Eram, mais ou menos, oito horas e 45 minu tos da manhã quando o grupo de alunos do curso de Jornalismo da Unisinos saiu do bairro Boa Vista, em Porto Alegre. Em cerca de 15 minu tos, o ônibus chegaria ao seu destino: o Bairro Farrapos, no qual os alunos iriam pas sar a manhã para conhecer e contar histórias de seus mo radores. De outro ponto da cidade, naquele mesmo dia, um pouco mais cedo, Fábio Chagas, 36 anos, e Mauro

Sérgio Cunha, 42, saiam de suas casas, na Ilha da Pintada, e faziam um trajeto distinto ao do ônibus, porém, com o mesmo destino final.

Fábio e Mauro não são moradores, muito menos co nhecidos do bairro Farrapos e nem irão tirar o dia de folga para assistir a uma partida de futebol. Os dois são pescado res de uma das ilhas da capital gaúcha, integrante do Parque Estadual do Delta do Jacuí. No entanto, há quatro semanas, eles percorrem os cerca de 15 quilômetros que separam suas casas da Fundação Fé e Alegria. Acostumados com percursos de barco, a dupla de pescadores deixa a convi vência com a água e, todos os

sábados, durante os próximos nove meses, entram em um carro em direção às redonde zas da Arena do Grêmio.

Quando o grupo de alu nos se encontra com a dupla da pesca, ambos estão longe do que costumam fazer em um sábado de sol. Os alunos fazendo sua primeira pauta do Jornal Enfoque. Os pes cadores deixaram as redes de lado e se ocupam de fer ramentas que utilizam para quebrar o contrapiso da en trada da Fundação, à pedido do Padre Vicente, é claro. Os pescadores, junto com outros três homens, estão cumprindo pena de serviço comunitário. Isto é, a realização de traba lhos gratuitos como forma de

penalizar a pessoa por uma infração cometida.

“NINGUÉM AQUI É BANDIDO, A GENTE É PESCADOR”

A rotina de Fábio e Mauro é difícil. Na caída da noite, eles preparam os equipamentos necessários para passarem a noite no barco cuidando das redes. Quando há pouco peixe na região em que costumam buscar seu sustento diaria mente, eles calculam gastos com comida, óleo para o barco e gelo para manter os pes cados e vão mais longe do que o normal, acampando e passando dias - e até sema nas - longe de casa.

Em uma dessas madruga

das, em um janeiro, três anos atrás, Fábio e Mauro pesca vam juntos em um pequeno barco. Eles estavam na água desde o início da noite, preo cupados em manter os pei xes gelados mesmo no calor do verão. Depois de algumas horas dentro do barco, com o sol já nascendo, a dupla foi pega em flagrante e levada à Polícia Ambiental, por pes car no período da piracema, isto é, na migração dos pei xes. “Eles nos trataram igual bandido, mas ninguém aqui é bandido, a gente é pesca dor”, relembra Fábio.

A piracema é uma palavra que vem do tupi e significa algo como a subida, ou saída, dos peixes. Nesse período, os

10. Gente ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022
À esquerda, Fábio realiza serviço comunitário na Fundação Fé e Alegria ao lado de seu colega, Mauro

animais costumam migrar contra a correnteza, ou seja, rio acima, com o objetivo de se reproduzirem. A piracema tende a variar de acordo com a região, mas dura cerca de três meses, e, normalmente, acontece entre os meses de no vembro e fevereiro. De acordo com a Lei nº 7.653, de fevereiro de 1988, pescar durante este período é considerado crime punível com a pena de um a três anos de detenção.

Durante seis horas, os pescadores foram levados de delegacia em delegacia até descobrirem que precisavam pagar mil e cem reais cada um, em até uma hora, para não irem ao presídio. Ao meio dia, Fábio e Mauro foram libera dos, mas o processo estava apenas começando. Além de terem pagado a fiança total de dois mil e duzentos reais, os pescadores perderam os equi pamentos de pesca, os peixes que haviam pescado e o barco de Mauro também foi apreen dido, pois não tinha a docu mentação necessária.

A FALTA DE APOIO AOS PESCADORES

Após o ocorrido, Fábio e Mauro tentaram recorrer do processo, uma vez que só es tavam pescando na piracema porque não haviam recebido as parcelas do Seguro Defeso - serviço que dá ao pescador artesanal o direito ao benefício de Seguro-Desemprego nos períodos em que ficam impe didos de pescar, como é o caso do período da piracema.

Para receber o auxílio, os pescadores contribuem ao INSS durante todo o ano. Além de pagar, anualmente, um valor à Colônia Z-5, na Ilha da Pintada, para serem considerados associados e, supostamente, receberem o suporte necessário à profissão. Ao procurarem a Colônia, na época da apreensão, Fábio e Mauro contam que queriam recorrer ao processo e, em vez de realizar o serviço comu nitário, pagar cestas básicas - para não perderem dias de trabalho. A Z-5 não disponi bilizou um advogado para os pescadores e, sempre que pro curados, mandavam a dupla esperar. Nesse momento do relato, Mauro, que se manteve em silêncio na maior parte da conversa, emite um riso ner voso e diz: “quando precisa, eles não fazem nada”.

Desde aquela madrugada no barco, os pescadores tive ram que arcar com os custos da fiança, do advogado, de novos

materiais de pesca e da regu larização do barco. Ao explicar o motivo de estarem pescan do na piracema - o não rece bimento das parcelas a que tinham direito -, o promotor alegou que isso não era justifi cativa suficiente. “Como não é justificativa se a gente não re cebeu? A gente precisa do di nheiro. A lei vai funcionar pra nós, para eles não funciona”, expõe os pescadores.

AS DIFICULDADES

DO PESCAR

Mauro sempre foi pescador. Já Fábio costumava trabalhar como pedreiro, mas mudou de ramo - indo para a pescaria.

Eles pescam desde criança, pois a atividade faz parte da rotina vivida na Ilha da Pin tada. Ainda que sejam pesca dores profissionais, essa não é a única atividade que sabem.

“Não dá só pra pescar, só tra balhar na obra, tem que fazer de tudo um pouco. Eu aprendi muita coisa, sei fazer de tudo, qualquer coisa, hoje eu faço, graças a Deus”, explica Fábio.

Por isso, em um mês que estão indo até a Fundação, já fizeram de tudo: lixaram grades, pinta ram paredes e, por último, que braram o contrapiso.

Na pausa que fizeram para contar suas histórias, sentados lado a lado no banco colorido da Fundação, Fábio e Mauro relatam que os atrasos para o pagamento do Seguro De

feso já são rotina. Fábio está com seis parcelas em atraso, ou seja, dois anos que passa o período da piracema sem receber o auxílio. Nas vésperas de mais uma piracema, Mauro conta que seu caso ainda é um pouco melhor. “Eu recebi [na época da apreensão] um mês depois que abriu a temporada, o certo era ter me pago no primeiro mês. Eu teria fica do três meses sem nada”, relembra.

A dupla man tém as casas e suas famílias com o dinheiro da ven da dos peixes. No período que ante cede a piracema, eles procu ram pescar uma quantidade maior, para se prepararem até a chegada das primeiras par celas do seguro. Ao verem que não iriam receber, procuraram bicos na Ilha da Pintada para conseguirem algum dinhei ro. Foi quando não acharam nenhum trabalho que se obri garam a pescar na proibição. Ainda assim, ambos se mos traram cientes da importân cia da proteção do período de reprodução dos peixes para o ambiente e para a manuten ção do próprio trabalho.

Outra dificuldade enfren tada é a ocupação das águas ao redor da ilha pelos barcos, lanchas e jet skis que vão até lá por lazer. Agora, os pes

cadores não podem deixar suas redes onde passam os barcos da marina, apenas a 300 metros do canal. Ou seja, nas partes mais baixas, onde ficam os filhotes. “Acaba nos prejudicando, imagina a gente pescar cem peixes de 200 gramas? No ano que vem, não vai ter aquele peixe com 20 quilos para a gente pescar e isso prejudica bastan te”, explica Fábio. Além disso, o ba rulho e a fumaça dos motores pre judica o ambiente e afugenta o pei xe. Isso significa que o peixe, que antes ficava naquele canal e se reproduzia por perto, durante os três meses da pi racema pode não retornar. E a culpa disso, com certeza, não é do Fábio ou do Mauro que tiveram que pescar para sobreviver. Porém, são eles e todos os outros pescadores da Ilha da Pintada que acabam pagando esse preço. “Eles es tão dando prioridade para os ricos e nós, que nos criamos lá, que dependemos da pes ca, estamos perdendo nosso espaço”, critica Fábio.

Fábio e Mauro cumprem o serviço comunitário enquan to mantêm a preocupação com o futuro dos peixes da região onde trabalham. Ain da assim, entendem o erro

que cometeram, porém, não se calam ao pontuar que a fiscalização existe só para o “lado mais fraco”, uma vez que ninguém está supervi sionando a falta de respon sabilidade no pagamento dos auxílios e na defesa dos direitos dos pescadores da Ilha da Pintada.

Padre Vicente, respon sável pela Fundação Fé e Alegria, explica que a expe riência de receber o serviço comunitário é rica, diversa e imprevisível. “Se nós quere mos a mudança da sociedade hoje, o sacrifício tem que ser de todos. Normalmente, as pessoas cumprem pequenos vacilos. Às vezes, são só va cilos, porque a lei é dura só para alguns”, comenta.

Com o fim da manhã che gando, Fábio e Mauro con cluíram o quarto sábado de serviço comunitário. Eles têm mais oito meses com essa rotina de deslocamentos: pescando durante a semana e indo até o bairro Farrapos aos sábados. Enquanto o grupo de alunos se reúne ao redor do ônibus para finali zar a saída, os pescadores se despedem do padre, entram no carro e realizam o trajeto contrário do ônibus, percor rendo o caminho de retorno para Ilha da Pintada. n

ENFOQUE PORTO ALEGRE | BAIRRO FARRAPOS | OUTUBRO DE 2022 .11
LISANDRA STEFFEN
“A lei vai funcionar pra nós, para eles não funciona”
Fábio Chagas Pescador
NICOLY OWICKI

Apesar das ausências, um caminho de superação

Morador

da Vila Farrapos desde que nasceu, Tales Correia da Silva, hoje com 14 anos, é um educando assíduo da Fundação Fé e Alegria. De segunda a sexta-feira, no turno inverso da escola, ele participa do projeto, onde aprende a fazer artesanatos, tem aulas no laboratório de informática, momentos de lazer jogando futebol e também aprendeu a costurar. "A professora Eliane que nos ensinou a costurar, ninguém sabia, mas ela sabe fazer crochê e nos ensinou”, comentou. Para ele, participar do projeto da fundação é uma forma de “ocu par a cabeça” e aprender a socializar.

O menino já enfrentou vários pro blemas nestes poucos anos de vida. Ti nha muita dificuldade em se concentrar na escola e externava suas dificuldades com violência contra quem estava próxi mo. Mas essas já são questões superadas, hoje aumentou sua autoestima e contro la seu temperamento impulsivo.

Desde bem pequeno, Tales vive com o pai, uma irmã e a avó, que o criou no lugar da mãe, com quem ele relata ter pouco contato. Sua maior saudade é o avô, que faleceu quando o menino tinha apenas 6 anos. "Desde quando ele morreu, eu fico pensando que gostaria de ter feito alguma coisa por ele. Ele me ajudava em tudo, cuidou de mim e me ensinou a ter respeito pelo próximo", conta. Foi o avô também quem o ensinou a gostar de futebol e ser gremista. Hoje, Tales joga em um time de futebol 7 do Flamengo e seu maior sonho é se tornar profissional. “Meu maior desejo é jogar no time principal do Grêmio, estar perto do lugar onde eu nasci e das pesso as que conheço", comenta. Dessa forma, o menino pretende ajudar a família. "Quero dar uma casa boa para a minha família e pagar plano de saúde para eles, principal mente para a minha mãe”, finaliza. n

A luta pela reconstrução

Localizado no bairro Humaitá, o Parque Mascarenhas de Moraes, há alguns anos, possuía uma estrutura com banheiro e chuveiros para os esportistas que realizavam atividades nas quadras do entorno. Com o tempo, a degradação e o abandono, o local está tomado por árvores e lixo, restan do apenas a estrutura das paredes em pé. São necessários reparos do chão ao teto, além da reinstalação dos chu veiros, vasos sanitários e pias.

O projeto Dindo Soccer, uma es colinha de futebol do bairro, está tentando levantar fundos para reali zar a reparação do banheiro para que os alunos que participam do projeto possam usufruir do ambiente após os treinos. Um dos entraves que a comu nidade tem é quem irá administrar a área após a obra ser realizada. n

| OUTUBRO DE 2022 | EDIÇÃO 3ENFOQUE PORTO ALEGRE BAIRRO FARRAPOS
EDUARDA FERREIRA GIORDANO MARTINI
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