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ANO V - Nº 182
FEIRA DE SANTANA, QUINTA-FEIRA 30 DE NOVEMBRO DE 2017
Cultura em tempos de crise Foto: Alessandra Lori
Ísis Moraes
Não é de hoje que intelectuais, artistas, educadores apontam a desvalorização da cultura como fator preponderante da falência do signo humano e da fratura social. Acossados pelas forças reificadoras do mercado, que nulifica e bane tudo o que não pode ser transformado em bem de consumo ou aliciado para gerar lucro, “escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos”. A acidez dos célebres versos do poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo expõe a ossatura da sociedade de consumo e nos posiciona diante da imagem distorcida que o capital forjou para nos enquadrar: “uns joões batistas a pregar/ para as dobras de suas túnicas/ seu deserto particular”. Ainda que “para esse público de ermos”, repetimos: tudo vai mal se não há cultura. Esse não encolhimento frente à avidez dos poderes que organizam o mundo, imensa arena de desigualdades e discursos gastos e dispersos, nos impele a lutar para que tudo aquilo que nos humaniza e define enquanto grupo, comunidade, nação não seja a primeira “coisa” a padecer em tempos de crise. Tratada como suplementar no conjunto das políticas públicas e reduzida quase sempre à noção de lazer e diversão, a cultura não é entendida como gênero de primeira necessidade. E essa “tragédia de base” costuma se agravar ainda mais quando a falta nos setores erroneamente considerados produtivos ruge. O arrocho financeiro não hesita em matar de inanição o setor criativo. Frequentemente vista como enfeite, penduricalho, acessório – supérflua, portanto –, a cultura é sempre a vítima preferencial do mal crônico que atende pelo nome de crise monetária. Em Feira de Santana não é diferente. Cada dia mais fria, despersonalizada, maquinal, a cidade perdeu para a “ordem” e para o “progresso” os seus mais valiosos símbolos identitários, sem se dar conta de que algumas perdas culturais são irreparáveis. É o caso do patrimônio arquitetônico. As leis do mercado, em nome do
desenvolvimento, da emergência modernista e dos direitos patrimoniais particulares, botaram abaixo paredes repletas de história. As que ainda resistem estão deformadas, a maioria delas com os dias contados, e já não sabem entoar aboios, nem contar como os tropeiros, conduzindo as boiadas, fundaram a cidade. Mal se lembram da feira de gado e da feira livre que enchia as ruas de cores, perfumes, sabores e versos, dando sentido ao termo que nos enraíza a essa cidade que abre as portas do sertão para o resto do mundo. As novas gerações quase não reconhecem os signos que nos faz feirenses. E vêm perdendo para a recessão econômica e para o desinteresse político as últimas representações da nossa identidade. Em 2015, período em que a crise financeira se agrava no país, a Feira de Santana viu sucumbir dois importantes eventos do seu já pouco robusto calendário cultural: a Caminhada do Folclore e o Festival de Sanfoneiros. Realizada anualmente, como parte das atividades comemorativas da semana do Folclore, a Caminhada foi concebida e saiu às ruas pela primeira vez em agosto do ano 2000. O principal objetivo do evento, de acordo com o Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca), entidade gestora, era “valorizar e preservar as di-
versas manifestações da cultura popular nordestina, sertaneja e feirense, aproximando-as da sociedade contemporânea, no intuito de garantir sua continuidade e significado junto à comunidade”. Organizada em forma de desfile, transformava a principal avenida da cidade em palco para grupos de repentistas, aboiadores, capoeiristas, vaqueiros encourados, burrinhas, maculelê, samba de roda, bumba meu boi, nêgo fugido, cavaleiros, reisados e bandinhas típicas. O formato do evento podia não encher os olhos de todos, mas, pelo menos, mantinha as manifestações folclóricas da cidade e da região sob os holofotes. O apagar das luzes da cultura feirense rareou ainda mais o pouco espaço concedido aos músicos populares. O Festival de Sanfoneiros, criado em 2008, tinha por objetivo “manter viva a tradição do sanfoneiro na cultura nordestina”, além de dar oportunidade e visibilidade aos mestres da sanfona e aos novos talentos que despontavam. Realizado regularmente no mês de maio, com entrada franca para o público, o evento se agigantou nas últimas edições, lotando o Auditório Central da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), entidade promotora, que tem capacidade para cerca de 1.000 pessoas. O sucesso de público, que chegou a 1.500 pessoas na 7ª e última edição,
Bernardo Bezerra
exigiu da instituição a fixação de aparatos de projeção do lado de fora, para atender às pessoas que não encontravam lugar dentro da sala de apresentação. Um dos mais bem sucedidos eventos abertos organizados pelo Cuca, o Festival de Sanfoneiros ganhou projeção e interesse nacionais, com a participação de músicos de diferentes estados, que disputavam em duas categorias: sanfonas de até oito baixos e de mais de oito baixos. Nas últimas edições, o valor das premiações foi ampliado, para estimular a inscrição de mais artistas. A essa altura, o Festival já contava com a participação de músicos renomados, como Targino Godim, Celo Costa e Carlos Capinan, no corpo de jurados, e Xangai, que fez o show de encerramento da edição de 2014. Transmitido ao vivo pela
TV Educativa da Bahia (TVE), em 2013 e em 2014, ação resultante da parceria firmada com a TV Olhos D’Água, da Uefs, o evento dava mostras da grande força agregadora que criou em torno da música popular e sinais de que tinha fôlego suficiente para crescer ainda mais. No entanto, em 2015, não foi realizado. Uma nota pública, emitida pela Uefs, comunicava que o motivo era “a situação orçamentária da Instituição”, que enfrentava “dificuldades financeiras” para o exercício daquele ano. No documento, a diretora do Cuca, professora Rosa Eugênia Vilas Boas, informava que “a realização do Festival de Sanfoneiros e da Caminhada do Folclore demandaria um custo estimado de R$ 171 mil”, valor que, segundo ela, “a Administração Central da Uefs não teria como disponibilizar”
naquele momento, “já que teve seu orçamento reduzido”, pelo Governo do Estado. E arrematou sua fala com o compromisso de rever as despesas para a realização dos eventos nos próximos anos. O que se seguiu a isso, no entanto, foi um enorme silêncio. Por telefone, o assessor cultural do Centro Universitário de Cultura e Arte, Dênio José de Cerqueira, informou à nossa reportagem que “a direção do Cuca não fala sobre o assunto” e que “qualquer dado sobre a suspensão dos eventos deve ser buscado na nota emitida em 2015”. Tentamos também, por telefone e por e-mail, agendar uma entrevista com a Administração Central da Uefs, mas não obtivemos resposta. Como formadores de opinião, porta-vozes da comunidade feirense e veículos de salvaguarda e defesa da memória, da identidade e dos valores culturais da cidade e de sua região, o caderno Tribuna Cultural e o Jornal Tribuna Feirense entendem que o silêncio não pode ser aceito como resposta por tanto tempo. Os artistas e o público se ressentem da falta desses eventos, sobretudo porque o espaço destinado à arte e à cultura é escasso na cidade. E os gestores públicos não hesitam em repetir o que a mão do capital determina. São muitas as perguntas sem respostas. E é de conhecimento público que tanto a Caminhada do Folclore quanto o Festival de Sanfoneiros contavam com o apoio da iniciativa privada e da Prefeitura Municipal de Feira de Santana, investimentos que ajudavam a cobrir boa parte dos custos. Levando isso em consideração, artistas, escritores, jornalistas, músicos questionam: até que ponto o corte de eventos culturais dessa envergadura e importância é um problema de orçamento? Não seria fruto da apatia, do desinteresse, do descaso? Ou quem, por princípio, deveria fomentar a cultura também a vê como algo dispensável? E apontam as falhas e os caminhos para a viabilização dos eventos, considerados, por eles e por nós, como imprescindíveis para a manutenção e valorização da memória e da identidade feirenses: