TRIBUNA CULTURAL FEVEREIRO 2020

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Tribuna

Cultural

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ANO V - Nº 204

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, FEVEREIRO DE 2020

“Uma terra sem memória é como um corpo sem cabeça”; diz o escritor Antonio do Lajedinho Ísis Moraes

“O que a memória ama/ fica eterno...” (Adélia Prado) O passado de um povo também é feito de silêncios. No tecer e entretecer das narrativas históricas, muitos fatos se perdem, muitos personagens acabam esquecidos, muitas verdades são apagadas. Sem embrenhar-me muito na espinhosa senda entre oficialidade e verdade, é preciso dizer que a História, muitas vezes, impôs um atroz silenciamento a tudo aquilo que divergia dos saberes e poderes dominantes. Esquecer, no fazer histórico, portanto, é, quase sempre, um movimento voluntário, seja por ideologia, seja porque recortes são necessários, afinal não é possível a um historiador abarcar absolutamente tudo o que constitui o tempo sobre o qual se debruça. Nesse exercício, sobram os que são “inadequados” ou “desimportantes” demais para constar. E, vale lembrar: quando não pode silenciar e apagar, através da História, a mão do domínio demoniza. Muitos são os personagens entregues à sanha do julgamento humano sem isenta reflexão. Por tudo isso, a História está repleta de personagens e lugares olvidados. Feira de Santana é, nesse sentido, uma cidade fantasma. Aqui, o passado sucumbiu ao descaso dos poderes públicos, à voracidade comercial e à cegueira dos habitantes. Fato que deveria entristecer e en-

vergonhar a todos. Mas a maioria sequer se dá conta da falta que faz não ter um passado preservado. Movendo-se ao ritmo de uma cidade, agora, meramente maquinal, os feirenses perderam suas raízes. E o reflexo disso está no que vivenciamos diariamente: tradições e valores culturais agonizando em meio à boiada de latas que estoura nas ruas convulsas; a feiura dos galpões pré-moldados dominando a paisagem; pessoas enxotadas das calçadas, pelo comércio informal; omissão na zeladoria do espaço urbano e na destruição do patrimônio arquitetônico. Caminhamos, apáticos, entre espectros ancestrais, os quais somente a memória é capaz de resgatar. Mas poucos são os que se lembram da Feira de Santana antiga, tão aprazível ao olhar, com seus jardins, praças e casario de estilo eclético enfeitando ruas e avenidas. Menos ainda são os que se recordam dos personagens que marcaram a rotina da cidade, nos remotos tempos em que todos se conheciam pelas alcunhas, mais até do que pelos próprios nomes. Quase ninguém sabe localizar os becos nomeados de acordo com as funções práticas, mas nem sempre nobres, do cotidiano. Passado é mesmo coisa de quem ama com a memória.

MEMORIALISTA

Feirense de nasci-

mento, Antonio Moreira Ferreira é uma dessas raras pessoas que sabem bem que lembrar é tornar imperecível aquilo que somos, não apenas individualmente, mas também coletivamente. Aos 94 anos, o escritor tem 11 livros publicados, entre poesia e prosa, muitos deles de crônicas sobre a Feira de Santana que ele vivenciou na juventude. Testemunha ocular de muitos acontecimentos históricos que marcaram a cidade e o país, a partir da década de 30, Antonio do Lajedinho, como também ficou conhecido, por causa do nome de uma antiga fazenda de sua propriedade, diz que nunca teve a pretensão de fazer História. “Não sou estudioso ou pesquisador dos assuntos, apenas conto aquilo que vi. Minhas lembranças de mocidade. Sou um memorialista”, explica.

Ao longo dos anos, a prodigiosa memória do escritor e sua imensa habilidade como cronista deram tantos frutos bons, que seus textos são (ainda que não seja essa a sua ambição) fontes de pesquisa histórica (muito prazerosas, por sinal) para todo aquele que quiser saber mais sobre a cidade antiga, tamanha é a riqueza de detalhes, na descrição dos fatos, costumes, modos de vida, localizações, personalidades, tradições e festejos populares e religiosos. No livro A Feira na década de 30, por exemplo, o autor conduz o leitor a uma deleitosa viagem pelo tempo dos coronéis, chefes políticos com “patente” e poder de mandar e desmandar na cidadezinha de pouquíssimas ruas centrais, dentre elas a fa-

Foto: Reprodução

Autor de inúmeras crônicas sobre a Feira de Santana antiga, Antonio Moreira Ferreira, também conhecido como Antonio do Lajedinho, afirma que a cidade “vem se notabilizando pela maneira cruel e perversa com que destrói a memória da sua história” mosa Rua do Meio (atual Marechal Deodoro) e o seu prolongamento (hoje, Sales Barbosa), antigamente dividido em Rua de Cima (zona de baixo meretrício, onde estava situado o Beco do Bom e Barato, local de entretenimento masculino a preços módicos) e Rua de Baixo (área habitada por famílias feirenses). A Feira de Santana do início do século passado ressurge tão vívida e familiar, nas páginas escritas pelo memorialista, que mesmo quem não viveu essa época áurea sente que pertence a ela. “É como encontrar um velho ancestral, que refaz o elo da nossa memória. Todo leitor que tenha afeição por Feira há de encontrar, nesse livro, não só as delimitações

geográficas urbanas, mas também os costumes e comportamentos que forjam e constituem o diário do nosso povo. Há de viver um tempo que não alcançou, mas que é recuperado pelas palavras do autor. É um canto de saudação e saudade aos becos, ao povo feirense, às ruas ainda encobertas de poeira e apinhadas de tropeiros e vaqueiros, que compõem, desde sempre, nossa identidade. É uma forma de nos perpetuar, através de uma longa viagem sentimental pela história e pelas recordações de nossa cidade”, observa o médico e jornalista César Oliveira. Muitos são os personagens ilustres que revivem através das narrativas de Antonio do Lajedinho, mas

os tipos populares pinçados do esquecimento protagonizam as histórias mais divertidas, roubando a atenção do leitor. É o caso do bêbado Arthur Bostoque, a malhar, impiedosamente, os integralistas, apelidados de “Galinhas Verdes”, pelos adversários políticos, quando presos, por ordem do presidente Getúlio Vargas, a quem, inicialmente, apoiavam. Outra figura hilária relembrada pelo cronista é Benzinho Cadê a Ema, apelido do pintor de parede Zeferino, amigo de infância do Coronel Agostinho Fróes da Motta. Nascido em 1871, viveu sua juventude em Feira, sempre pregando peças nos amigos. Ficou conhecido assim depois de rifar uma ema, prêmio


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