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ANO V - Nº 201
FEIRA DE SANTANA-BAHIA, OUTUBRO DE 2019
Livro de Juraci Dórea sobre arquitetura eclética é um documento monumental de preservação da memória feirense Foto: Divulgação
Ísis Moraes Quem conhece a Feira de Santana dos dias de hoje não pode imaginar o quão majestosa e aprazível ela já foi. Imponentes casarões de estilo Eclético formavam o seu traçado antigo, adornando as ruas, seduzindo os olhares dos passantes e despertando uma familiar sensação de acolhimento, nos seus habitantes. É do signo humano a constante necessidade de enraizamento. E esse processo de construção identitária passa, também, pela maneira como cada grupo de seres humanos transforma o espaço onde vive. Reflexos de determinados modos de vida, crenças e práticas culturais, esses lugares únicos no mundo, primordialmente, surgem como ofertas de pertencimento, assimilação, comodidade. Por isso cidades não devem ser pensadas como organismos estéreis, servindo, apenas, ao ritmo, agora frenético, da vida prática. Cidades devem dar prazer aos sentidos e garantir não somente o conforto, mas também o reavivamento da crença subjetiva numa origem comum, elo que une indivíduos distintos. Sem pertencer, não é possível se identificar. Sem identidade, laços afetivos se rompem. Sem afeto, não é possível zelar. O processo que culminou nessa ruptura afetiva entre o homem e o espaço habitado por ele tem raízes fincadas no século XVIII, nas convulsivas mudanças sociais provocadas pela Revolução Industrial, pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. Esses três acontecimentos históricos não apenas marcaram a quebra da estrutura feudal, mas também desencadearam uma série de transformações que, no século XIX e, especialmente, no século XX, acirraram ainda mais antigos conflitos e crises. Idealizadas como maquinários da modernidade, as cidades perderam o vínculo com seus habitantes, agora vistos como peças da engrenagem capitalista, que passou a reger, vorazmente, o mundo, sobretudo, a partir da segunda metade do Século XX. As novas leis do mercado determinaram o total esgarçamento das relações humanas. E essa fratura social culminou em um violento processo de desumanização, também refletido nos corpos das cidades, mutiladas para dar lugar ao “novo”, ao
O livro será lançado no próximo dia 25, às 19 horas, no Museu de Arte Contemporânea
“moderno”, à frieza das novas práticas de consumo subservientes ao capital. No Brasil, se, por um lado, a modernidade trouxe melhorias essenciais, por outro, trouxe consequências desastrosas. Em Feira de Santana, a maior delas, sem dúvida, foi o desfiguramento de seu perfil arquitetônico. “Sob o impacto dos novos tempos, o patrimônio eclético feirense começou a vir abaixo de repente, cedendo lugar a novos empreendimentos voltados para o comércio e para a prestação de serviços. Sobraram uns poucos prédios públicos e edificações de função privada”, diz o arquiteto e artista plástico Juraci Dórea, no livro Feira de Santana: memória e remanescentes da arquitetura eclética, a ser lançado, no dia 25 de outubro, a partir das 19 horas, no Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira (MAC). Percebendo que o Ecletismo, mesmo tendo se arraigado em vários pontos do país, ainda não tinha recebido a devida atenção dos estudiosos, em função dos preconceitos oriundos da ideologia modernista, que não via valor em nada que a precedia, em termos de arte e arquitetura, Juraci Dória passou, a partir da década de 1970, a documentar, através de registros
fotográficos, os diversos casarões feirenses que sobreviveram ao tempo e ao progresso predatório. Segundo o autor, “salvo raras exceções, a arquitetura eclética não contou com mecanismos de proteção que, mesmo de forma precária, salvaram inúmeros exemplares de outras fases da arquitetura brasileira”. Por isso mesmo o livro “é um mapeamento visual do Ecletismo que se desenvolveu em Feira de Santana e detém-se, mais especificamente, na memória fotográfica de algumas edificações e na catalogação dos prédios remanescentes”. Além disso, também apresenta um rápido histórico da cidade e a contextualização do acervo arquitetônico eclético local, tanto em relação à época quanto aos valores que o produziram. Escrita em 2003, Juraci Dórea conta que a obra precisou ser atualizada, a fim de registrar as transformações ocorridas, na cidade, nos últimos anos, já que vários prédios documentados, à época, foram, posteriormente, demolidos. O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, Encenações da modernidade no Brasil, o autor aborda os significados da presença do Ecletismo, no país, e seu conflituoso diálogo com o ideário
modernista, além de conceituar esse período de transição arquitetônica, que floresceu a partir de meados do século XIX e que se caracteriza pela mistura de estilos, exibindo combinações de elementos que poderiam vir da arquitetura clássica, medieval, renascentista, barroca e neoclássica, mas ressignificada em uma nova linguagem. No segundo capítulo, O Ecletismo em Feira de Santana, ele trata da transição da Bahia para a modernidade, evidenciando as mudanças ocorridas em Salvador, cidade predominantemente marcada por um passado barroco e colonial, sobretudo a partir do final do século XIX. Analisa, ainda, a presença do Ecletismo na cidade e as reformas urbanas implementadas por José Joaquim Seabra, entre 1912 e 1916, primeiro período em que o político e jurista ocupou o governo da Bahia. Juraci Dórea também situa Feira de Santana no cenário estadual, partindo de suas origens sertanejas e rurais. E investiga questões relativas ao desenvolvimento da cidade e à sua afirmação como grande entreposto comercial. Ainda nessa seção, o autor também registra as transformações ocorridas, em Feira, no início do século XX, período em que o Ecletismo passou a dominar
a paisagem local. Intitulada Registros visuais da arquitetura eclética em Feira de Santana, a última parte dedica-se ao desenvolvimento de três tópicos: Paisagem em preto & branco, onde o autor fala sobre o início do processo de apagamento do patrimônio eclético feirense, analisando o diálogo entre memória e registro fotográfico; A velha cidade (in memoriam), onde situa a perda do patrimônio arquitetônico feirense no âmbito do ciclo desenvolvimentista da segunda metade do século XX, reunindo vasta documentação visual de prédios já desaparecidos do cenário urbano local; e Edificações remanescentes, onde mapeia os prédios de estilo eclético que restaram. A discussão engendrada, por Juraci Dórea, nesse livro fundamental sobre a destruição do patrimônio arquitetônico feirense, aponta em que medida o pensamento modernista impactou as políticas de preservação patrimonial, no estado e na cidade. Vistos como obstáculos ao desenvolvimento, os prédios históricos foram demolidos velozmente. Em poucas décadas, quase tudo veio abaixo, em nome de uma noção equivocada de modernidade e da insaciável voracidade imobiliária. O descaso dos poderes públicos e
a falta de mecanismos legais para a proteção do nosso patrimônio cultural foram fatores preponderantes, nesse processo. A demolição desses monumentos tem sido profundamente dolorosa para os feirenses que se preocupam com a história da cidade e reconhecem o sentido e o valor de se preservar a memória. Daí a importância da pesquisa realizada por Juraci Dórea, que resultou na elaboração desse livro magistral, que ainda traz uma planta com a indicação da posição dos imóveis citados por ele. Tal fato permite que o leitor tenha uma ideia mais precisa do desenho eclético predominante na arquitetura da cidade antiga. A partir do livro, também nos damos conta de que perdemos verdadeiras joias da arquitetura eclética, a exemplo da casa do ex-prefeito João Marinho Falcão; da casa do ex-prefeito Francisco Pinto; da Casa da Torre, de Oscar Tabaréu (como o empresário e político Oscar Marques ficou conhecido); da casa do escritor Fernando Ramos; e do Solar Santana, todas demolidas para dar lugar a estacionamentos ou a galpões pré-moldados, que nada têm a contar sobre o passado ou a legar ao futuro. Outros poucos imóveis ainda estão de pé, mas totalmente descaracterizados, como é o caso do Palácio do Menor, atualmente tutelado pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), sob promessa de restauração; do coreto da Praça Bernardino Bahia; e do casarão da Praça João Pedreira, onde já funcionou a sede do governo local. Diante de um quadro tão desanimador, o trabalho de Juraci Dórea surge como um verdadeiro alento, já que as futuras gerações terão a oportunidade de, pelo menos, vislumbrar a cidade de seus antepassados, por meio das fotografias do artista. O lançamento do livro é aberto ao público e acontece junto com vernissage da exposição coletiva Muncab & MAC: Arte em Movimento, realizada em parceria com o Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira (Muncab/ Salvador), da qual o artista também faz parte, juntamente com César Romero, Guache Marques, Antonio Brasileiro, Chico Liberato, Juarez Paraiso, J. Cunha, Washington Falcão, Caetano Dias e Yedamaria (in memoriam).