Tribuna Cultural
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ANO V - Nº 195
FEIRA DE SANTANA-BAHIA, QUINTA-FEIRA, 28 DE FEVEREIRO DE 2019
Bicho da Feira: outra versão sobre o mal Ísis Moraes
Ísis Moraes Mulas-sem-cabeça, lobisomens, mouras-tortas, quibundos, curupiras, sacis, santelmos, hipupiaras, caiporas, boiúnas, monstros informes, gigantes, anões, mágicos, homens esplêndidos, cobras encantadas, lumes errantes, reis das florestas e uma infinita legião de seres espantosos acompanham o homem desde os primórdios de sua peregrinação sobre a Terra, alimentando “todas as águas vivas, ardentes e eternas do medo, do pavor sem contorno e da imaginação”, como bem define o folclorista brasileiro Luís da Câmara Cascudo. Infixas e terríveis, protetoras e más, invisíveis e presentes, inúteis em suas ações destruidoras, essas entidades míticas têm em comum a “ferocidade ininterrupta”, a “antropofagia bruta” e o “arremesso bárbaro” e, segundo Câmara Cascudo, remontam sempre à recordação do “inimigo”, do “estrangeiro”, à memória do ataque inesperado e depredatório de gente de fora. Evocadas do mistério, não se explicam senão pela crença cega e absoluta, afinal, como lembra o folclorista, “a fé não é básica apenas em assuntos religiosos”. Ainda conforme Cascudo, não é possível fixar a fórmula inicial de qualquer formação mítica. Também não é possível saber como se reúnem. O certo, diz ele, é que perambulam por todos os tempos e por todas as culturas, amalgamando-se e reformulando-se, ao longo dos séculos, e que continuam entre nós, deixando rastros nas almas assombradas das crianças e plantando incertezas nos espíritos
Ninguém nunca soube, ao certo, a forma do bicho que assombrava Feira. Cada um dava ao monstro os contornos de seus próprios medos. Lênio Braga imortalizou a sua versão no painel da Rodoviária. Mas tanto ele quanto alguns escritores da cidade não retrataram o mal pela mão do medo que assombra a gente comum, e sim pela mordaz via da crítica
maduros, espíritos estes que, por via das dúvidas, jamais deixam de se apegar a superstições e amuletos, como que a esperar que eles previnam e afastem toda e qualquer manifestação do Mal. O folclorista explica que esses milhões de gestos, reservas e atos instintivos, subordinados à mecânica do hábito como gestos reflexos, resultam do vestígio de cultos desaparecidos ou da deturpação ou acomodação psicológica de elementos religiosos contemporâneos, condicionados à mentalidade popular. Inevitáveis, participam da própria essência intelectual humana, não havendo momento, na história do mundo, sem as suas presenças. No célebre Dicionário do Folclore Brasileiro, Cascudo lembra que “a elevação dos padrões de vida, o domínio da máquina, a cidade industrial ou tumultuosa em sua grandeza assombrosa são outros tantos viveiros
de superstições, antigas, renovadas e readaptadas às necessidades modernas e técnicas”. Do mesmo modo, o uso dos amuletos é uma constante etnográfica em todos os povos e épocas. Câmara Cascudo enfatiza que muitos são os talismãs usados para combater os malefícios, afastar as calamidades e trazer boa sorte: pata de coelho, olho de boto, cavalo marinho, trevo de quatro folhas, fitas, santinhos, medalhas, figas de guiné, inscrições e uma série de orações, caracteres mágicos, figuras e outros objetos trazidos ao pescoço, costurados na roupa ou conservados, com todo cuidado, em pequenas bolsas. No entanto, um amuleto, em especial, nos interessa, aqui: o Signo de Salomão. Constituído de dois triângulos equiláteros sobrepostos, em sentido contrário, e entrelaçados em forma de estrela hexalfa, o também chamado Selo de Salomão pertence
Reprodução
Em O Lobisomem de Feira de Santana, que se passa na década de 1940, Fernando Ramos transforma o povo de Feira de Santana em protagonista. Ele próprio é um dos personagens, assim como a irmã, Hortênsia. Com o romance Os Enforcados, o autor foi laureado com o Prêmio Jorge Amado, concedido pelo Governo da Bahia, em 1968
ao acervo de signos mágicos de diferentes povos, em diversas épocas, e chegou até nós por meio da tradição judaica. Ele representa a estrela brilhante do macrocosmo e, segundo a crença popular, tem
o poder de livrar dos infortúnios e de afastar as entidades maléficas. Bem antigo, portanto, é o uso assinalar as casas com símbolos religiosos e outros sinais, com a finalidade de proteger, afastar a
infelicidade e resguardar seus moradores de desventuras. Segundo Câmara Cascudo, no Nordeste brasileiro, celeiro de tantos mitos oriundos da integração das três raças formadoras do país, quando se acreditava que bruxas e carochas vinham sugar o sangue das crianças, no silêncio da noite, procurava-se evitar tamanha atuação diabólica traçando Signos de Salomão nas portas dos quartos. FEIRA E O SIGNO DE SALOMÃO Em épocas críticas da história de Feira de Santana, a exemplo das décadas de 40 e 60, a população local também se valeu desse recurso, acreditando ser possível manter-se a salvo do bicho horroroso e feroz que, segundo relatos, andou aparecendo nas redondezas, atacando animais e espalhando o pânico entre os moradores. A entidade maléfica conhecida como Bicho da Feira também foi apelidada de Bicho do Tomba, porque o bairro, à época rural e distante do Centro, era um de seus principais pontos de ataque. De acordo com o professor e pesquisador Cledson Ponce, da Universidade Estadual de Feira de Feira de Santana, diante do terror suscitado pela aparição da criatura, o povo recorreu ao velho recurso bíblico, passando a desenhar, nas portas das casas, o símbolo sagrado. Agora, porém, “acrescido das letras J, M, J, e encimado por uma cruz”. A inscrição significa Jesus-Maria-José e era uma forma de pedir a proteção da Sagrada Família. “Mais uma vez se confirma a tradição de origem judaica, que remonta há séculos, e que foi acrescida de elemen-