TRIBUNA CULTURAL

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FEIRA DE SANTANA, SEGUNDA-FEIRA 18 DE SETEMBRO DE 2017

ANO V - Nº 180

Juraci Dórea: vida, obra, sertão

Os Brasileiros 10. Juraci Dórea.Carvão e PÇA, 2002.Acervo pessoal César Oliveira/Foto: Ísis Moraes

Aproveitando as comemorações pela passagem dos 184 anos de emancipação política de Feira de Santana, a Tribuna Cultural não se permite repetir a ingratidão da cidade para com os artistas que mais lhe querem. Por isso, o caderno de hoje dedica todas as páginas a um feirense que podia estar tocando a sua carreira de qualquer ponto do planeta, dada a dimensão e importância de sua obra, mas que optou por não se afastar materialmente do imaginário que povoa a sua memória afetiva. Verdade que pouco resta da cidade antiga que enfeita as lembranças de sua infância. Quase nada de suas raízes rurais subsiste. E muito embora o portal que aqui começa a desvelar o místico universo sertanejo esteja repleto de signos, símbolos e ícones esquecidos por sua gente, Juraci Dórea escolheu resistir. Artista plástico e visual, poeta,

cineasta, fotógrafo, arquiteto, ele transportou para todos os suportes, materiais e imateriais, que usou ao longo de mais de 50 anos de carreira os elementos constitutivos da alma do povo sertanejo. É um exercício quase impossível dissociar seu nome desse imaginário que também nos engloba. Nas suas telas, esculturas, objetos, fotografias, projetos, filmes, poemas, está impressa a nossa memória ancestral, devidamente universalizada, como solicita a arte contemporânea. As cancelas, os gibões, as selas, os estandartes, as indumentárias dos vaqueiros, os gravetos estalados em lanças, o couro cru, os currais, o esterco, as bandeirolas, os candeeiros de lata, as serpentes – lépidas ou repousadas nos fundos das garrafas de cachaça –, os vestidos coloridos das moças, a valentia dos cabras, as dores da tragédia de Canudos, a dureza da terra e da vida sem chuva, as frutas,

as festas, os perfumes e cores da feira livre assassinada pela ignorância progressista, os aboios e sons guturais do sertão mais profundo – que ele ainda persegue e deseja descobrir – povoam as suas narrativas plásticas, poéticas, sensoriais. Às vezes, aparecem com um toque do seu azul favorito, como nas peças que integram a mostra Crônica Sertaneja, atualmente em cartaz no Museu de Arte da Bahia (MAB), em Salvador, evidenciando a sua vivacidade e sintonia com o mundo. Mais palavras são desnecessárias. Deixamos você na companhia do artista, que, na entrevista que concedeu à nossa reportagem, falou sobre a sua trajetória, produção artística, impressões, conquistas e tristeza pela perda dos referenciais da nossa cultura, que um dia, talvez, só estejam vivos nas suas obras, já que o risco de desaparecerem completamente do nosso cotidiano é iminente.

Nós e o artista desejamos que não. Que as suas e as nossas palavras ganhem corpo, força e ecoem naqueles que vão nos ler, para que o fim seja outro! São mais de 50 anos dedicados à arte. Como sua carreira começou? Minha primeira exposição foi em 1962, embora eu tenha começado a pintar um pouco antes. E Isso coincidiu com a inauguração da Biblioteca Municipal de Feira de Santana. Os feirenses sonhavam em ter uma biblioteca em um prédio bonito, modernista. E foi dentro da programação do evento que expus meus trabalhos. A curadoria da mostra foi de Dival Pitombo, grande incentivador do início da minha carreira. Na época, minha produção ainda era primária, mas eu já tinha uma noção de estilo. E meus trabalhos tinham uma influência do Cubismo, do Fauvismo. Naquela época, Feira era mais

rica culturalmente? Tinha uma cena cultural de mais fácil inserção para os artistas? Não era mais fácil. O que ocorria é que Dival, por ter uma formação abrangente e por viajar muito aos grandes centros, tornou-se um grande admirador das artes, especialmente da música e da pintura, então acabava ficando à frente dos eventos culturais. Quando o conheci, ainda era estudante secundarista. Ele foi fazer uma palestra no Colégio Estadual e a diretora nos apresentou. Depois, ele quis ver meus trabalhos. Eu já fazia uns desenhos, mas era coisa de adolescente ainda. Como a arte era muito rara aqui, uma pessoa que pintava e desenhava sistematicamente podia, na visão dele, ter um caminho. A gente ouvia falar em Raimundo de Oliveira, que era o artista feirense consagrado, mas não morava em Feira.

Quando comecei, existia a revista Sertão, onde, às vezes, víamos ilustrações de artistas de fora e isso chamava a nossa atenção, mas não tinha artista na cidade. Tinha Dival, que criou a Associação Feirense de Arte (AFA), em 1960, promovendo eventos e mobilizando as pessoas. Em função disso, saiu a minha exposição. Quando o sertão começa a aparecer na sua obra? Fui estudar Arquitetura em Salvador. Continuava pintando e, em 1965, fiz uma exposição. Nesse período, já tinha um estilo mais voltado para o sertão.


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