TRIBUNA CULTURAL JUNHO DE 2019

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Tribuna Cultural

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ANO V - Nº 199

FEIRA DE SANTANA-BAHIA, 30 DE JUNHO A 31 JULHO DE 2019

Graça Ramos: “Nunca me conformei com a obra de arte estagnada, inútil” Ísis Moraes

Dona de uma significativa, vigorosa e extensa obra figurativa, a artista plástica feirense Graça Ramos também transita, com total desenvoltura, pelo abstracionismo. Para ela, na arte, tudo é matéria e tem dimensão própria, ainda que as formas se apresentem insondáveis. A artista entende os quadros que produz como organismos vivos. São como extensões do seu ser, materializadas com o propósito de provocar, em quem as vislumbra, as mais profundas sensações. Doutora em Belas Artes pela Universidade de Sevilha, onde, em 1997, defendeu a tese Descontextualização do suporte pictórico: a tela, aprovada, com louvor, por unanimidade, Graça Ramos, hoje aposentada, foi Professora Titular e diretora da Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Pesquisadora contumaz, além de uma vasta produção no campo da Arte-Educação, a artista desenvolveu uma série de estudos sobre Arte Contemporânea, dentre eles a Teoria do Objeto Perdido, que transforma a matéria, o expurgo das sociedades de consumo e o olhar em protagonistas da obra de arte atual. Nessa entrevista, a artista, dentre outros assuntos, fala sobre seu processo de criação e sobre as investigações acadêmicas que culminaram na criação de suportes tridimensionais e na utilização da luz elétrica na obra pictórica, trabalho que subverte a antiga concepção de arte plana, estática, intocável. O pintor e escultor argentino-italiano Lucio Fontana, o artista plástico espanhol Manuel Millares e o pintor catalão Antoni Tàpies serviram de inspiração e reflexão artística, sendo decisivos no direcionamento da pesquisa da artista, que, a partir do contato impactante com suas obras, revolucionárias para as primeiras décadas do turbulento século XX, passa a elaborar um relevante estudo sobre o cubo convertido em obra de arte lumínica. Incessantes experimentações levaram Graça Ramos a construir suas belas e instigantes Caixas de Luz, dando volume, corpo e vida interior ao que, antes, era bidimensional e inerte. Híbridos de carga matérica e de uma luminosidade ora vazada em cortes, ora filtrada por tecidos transparentes e tramas, como frestas, janelas a estabelecer conexões entre o exterior e o interior e a revelar o mistério por trás das coisas aparentes, seus quadros seduzem os espectadores e os conduzem a experiências únicas, das quais também são participantes ativos, porque, além de poder manipular as obras, são impelidos a atuar como seus cocriadores. Em meio século de produção artística constante, Graça Ramos, que, atualmente, está com uma exposição em cartaz em Salvador, participou de diversas mostras nacionais e internacionais, numa trajetória que inclui Bienais, Feiras, Exposições Individuais e Coletivas, com premiações em importantes Salões de Arte. A todos os cantos do mundo, ela garante levar Feira de Santana consigo. De fato, os elementos que constituem a identidade cultural da região na qual a cidade está inserida são presenças marcantes nas telas da artista, sempre rendilhadas de crochês e calhamaços, bordados de luz de sua terra sertaneja.

Fotos: Ísis Moraes

presente de fim de ano das lojas do comércio de Feira. Ainda conservo dois desses primeiros trabalhos, emoldurados na vidraçaria Torres, por meu amigo Agnaldo.

Em que momento da vida soube que a pintura era a sua vocação? Desde que dei o primeiro grito! (risos) Desde sempre, preciso da arte como o corpo precisa da água para sobreviver. Eu me descobri artista nos primeiros anos da infância, quando brincava com o barro amarelo que forrava o chão da Kalilândia, em Feira de Santana, minha terra natal. Desenhava nos cadernos de sala de aula. Era um (ou mais) por semana. Minha mãe se queixava dos gastos, as professoras diziam que eu não queria nada... (risos) No terceiro ano primário, fui reprovada, em matemática, mas meu caderno estava todo de-

senhado! Que maravilha! Viva minha mãe, professora Maura Ramos, que não deu importância ao que a colega dela fez, ao me reprovar, por um ponto! E contestou a convocatória em bom tom: “minha filha é uma artista!” Ainda menina, meu irmão Arnóbio (já no descanso) preparava, lixando muito bem, pequenos pedaços de compensado, que me serviam de suporte para pintar com tinta a óleo (esmalte sintético), de várias cores, que minha mãe comprava. E a copa lá de casa, depois do almoço, convertia-se em meu primeiro ateliê. Aos 13 anos, comecei a estudar pintura em tecido, com a professora Estelita e, depois, pintura em tela. Copiava as paisagens das folhinhas de calendário,

Para você, o que é a pintura ou arte, se quiser ser mais abrangente? A arte é uma expressão da alma, inerente ao ser humano, que dá, ao artista, a liberdade para comunicar-se de forma inusitada, utilizando signos, símbolos do consciente ou do subconsciente, do mundo fantasmagórico. É um alimento para a nossa alma. Um meio de comunicação, um rastro que vem contando a História da humanidade. Absolutamente, não é fácil conviver com tantas percepções. A arte é necessária para não se morrer de tédio! Não importa a matéria de expressão, tudo capturado pela mirada é passível de ser transformado em elementos de composições insólitas, mesmo para o artista, veículo manipulador de criações absurdas! A obra de arte é um organismo vivo, extensão do nosso ser. Nasce do desejo da alma. Circula, em ebulição, na nossa corrente sanguínea, por isso visceral e anímica. A arte

é intrínseca ao DNA do homem. Não é para ser compreendida, mas tangida pelos sentidos. Não importa se fotográfica, real ou representativa: vive do que é inerente à vida humana. Mas cria sua própria realidade, deixando-se penetrar por outrem. Por ser linguagem, a arte é meio de comunicação. Por ser poesia, não pode ser mentira. Para mim, pintar, ou melhor, fazer arte é sina, obrigação, dever, necessidade vital ! Não pinto para enriquecer galeristas nem decorar casas de novos ricos e burgueses ávidos de mais poder. Sou compelida, quase diariamente, por uma força interior, a expressar formas e cores que carrego no DNA. É destino, desígnio, dom de Deus. Não posso evitar ou controlar. Todo artista plástico percorre um longo caminho até encontrar sua identidade pictórica, aquilo que marca a sua obra e que faz com que as pessoas a reconheçam, pelos traços, à primeira vista. Como chegou a isso? A identidade da obra nasce de um processo


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