Restauro Arquitetônico nos séculos XIX e XX

CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO ARQUITETURA E URBANISMO

LETICIA BERNARDES CARDOSO SOPHIA CHAVES LIN

RESTAURO ARQUITETÔNICO NOS SÉCULOS XIX E XX

SÃO PAULO 2022

LETICIA BERNARDES CARDOSO RM:20100995 SOPHIA CHAVES LIN RM: 20100737 AM6AU

RESTAURO ARQUITETÔNICO NOS SÉCULOS XIX E XX Trabalho de pesquisa e análise apresentado ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo no curso de Arquitetura e Urbanismo na disciplina de Preservação do Patrimônio Histórico da Arquitetura, do Urbanismo e do Paisagismo a respeito dos principais autores e suas respectivas teses sobre o restauro arquitetônico nos séculos XIX e XX.

PROFESSOR DAVID VITAL BRASIL VENTURA

SÃO PAULO 2022 2

SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................04 JOHN RUSKIN...........................................................................................................05 WILLIAM MORRIS.....................................................................................................07 VIOLLET-LE-DUC......................................................................................................09 CAMILLO BOITO........................................................................................................12 GUSTAVO GIOVANNONI..........................................................................................17 CESARE BRANDI......................................................................................................22 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................30 REFERÊNCIAS..........................................................................................................31

3

INTRODUÇÃO A restauração é essencialmente uma disciplina fenomenológica que visa orientar a forma como as pessoas percebem e agem sobre seus objetos de interesse - monumentos. Definições controversas e contraditórias, amplamente difundidas hoje por meio da divulgação de casos e conceitos considerados "clássicos", e cuja história disciplinar inclui significados desenvolvidos ao longo do tempo em relação às ferramentas fornecidas por diversos campos do conhecimento (KUHL, 2007).

Entre os séculos XIX e XX ocorreu a separação do Feudalismo e do Absolutismo e a consolidação do Capitalismo. Entre os principais acontecimentos, pode-se citar a Revolução Industrial, que gerou um êxodo rural, fazendo com que os trabalhadores se tornassem empregados assalariados. Com isso, devido ao crescimento urbano, surgiram adversidades tanto nos aspectos políticos, econômicos e sociais, quanto na cultura em si.

Com o enriquecimento da burguesia, se iniciou a busca pela preservação de obras de arte e, posteriormente, em razão das diversas manifestações que estavam assolando a Europa, a preservação e restauração de monumentos arquitetônicos.

Dessa forma, surgem diversos idealistas que visam promover tal ideia.

O presente estudo traz uma análise das principais teses de pioneiros nessa área de estudo, como John Ruskin, William Morris, Viollet-le-Duc, Camillo Boito, Gustavo Giovannoni e Cesare Brandi.

4

JOHN RUSKIN John Ruskin foi escritor, crítico de arte, sociólogo, além de ser amante do desenho e da música. Nasceu em 1819, na Grã-Bretanha, em uma família religiosa.

Sua paixão por arte e sua devoção por religião foram os pilares para seu ponto de vista em relação à arquitetura. Em 1830, fez sua primeira publicação em revistas inglesas, já em 1836, publicou críticas de artes. Após se formar na Universidade de Oxford, ganhou o prêmio Newdigate de poesia. Entre 1843 e 1860 publicou os volumes de sua primeira obra “Modern Painters”. Após a extensa pesquisa realizada para tal obra, surgiu o interesse pela vanguarda de “redescoberta crítica da pintura da Idade Média gótica” (DURANTE, 2015) e a rejeição dos pressupostos neoclássicos de escolas de arte contemporânea, que veio a ser publicado, em 1851, em um panfleto a favor do revivalismo gótico nas artes em geral.

Figura 1 - John Ruskin.

Fonte: wikipedia.org

Em relação a arquitetura, a arte medieval gótica, que vigorou entre os séculos X e XV, voltava como tendência, o novo estilo foi chamado de Neogótico. Em 1844, envolveu-se em um projeto de estilo gótico. Em 1849, publicou o livro “The Seven Lamps os Architecture” (“A Lâmpada da Memória”) e, entre 1851 e 1853, publicou os volumes de “The Stones of Venice” (“As pedras de Veneza”). Já em 1870, se tornou professor na Universidade de Oxford. Ruskin faleceu em 1900, na Grã-Bretanha.

5

Em “The Seven Lamps of Arquitecture”, Ruskin pontua sete demandas que a arquitetura deve cumprir, sendo elas: Sacrifício, Verdade, Poder, Beleza, Vida, Memória e Obediência. O autor diferencia a arquitetura de construção ao fazer uma crítica à sociedade capitalista e, consequentemente, à arquitetura contemporânea, depreciando edifícios sem originalidade, titulando-os como inorgânicos, monótonos, incoerentes, decadentes e desintegrados. Em contrapartida, para ele, a arquitetura adquiri um sentido religioso, sendo uma obra manual com liberdade de expressão de quem a construiu, um símbolo forte e duradouro que carrega em si valor histórico e cultural, com a exposição dos materiais, estrutura e ornamentos, respeitando a cultura de quem a desenvolveu.

Seu posicionamento quanto ao restauro é claro, fazendo apologia ao “ruinísmo”, Ruskin defendia que as obras pertenciam àquele que a construiu e o dever de preservá-las em sua concepção original passava para a população local. Segundo ele, as edificações facilitam na localização, sendo pontos de referências nas cidades, além de serem um “conjunto formal e técnico-construtivo [...] responsável por transferir ao espaço construído, os sentimentos de pertencimento e apropriação de seus valores memoriais.” (OLIVERIA, 2008).

O restauro em si, segundo Ruskin, é uma destruição, causando o sentimento de falsa descrição ao alterar elementos arquitetônicos de tempos distintos, sustentando: Nem pelo público, nem por aqueles encarregados dos monumentos públicos, o verdadeiro significado da palavra restauração é compreendido. Ela significa a mais total destruição que um edifício pode sofrer: uma destruição acompanhada pela falsa descrição da coisa destruída. Não nos deixemos enganar nessa importante questão; é impossível, tão impossível quanto ressuscitar os mortos restaurar qualquer coisa que já tenha sido grandiosa ou bela em arquitetura. (RUSKIN, apud PINHEIRO, 2008:79)

Em sua opinião, a preservação era mais importante do que a restauração, sendo a “morte” da obra em questão um processo natural. A manutenção periódica dos edifícios seria melhor, uma vez que evitariam os danos causados por grandes intervenções, preservando, assim, sua “morte” e importância histórica.

6

WILLIAM MORRIS William Morris foi arquiteto, artista, designer, poeta, pensador e militante político socialista. Pioneiro do design moderno, foi um precursor do Movimento Arts & Crafts e célebre crítico do revivalismo gótico. Ele nasceu em 1834, em Walthamstow, Inglaterra e estudou na Universidade de Oxford, onde se formou em 1856. Em 1877, fundou a “Society for the Protection of ancient building”, que contestava as restaurações prejudiciais que causaram danos irreparáveis à edifícios antigos. Entre 1868 e 1870, escreveu os poemas “The Earthly Paradise” e, em 1876, “Sigurd the Volsung and the Fall of the Nibelungs”. Entre os anos de 1886 a 1892, publicou romances, entre eles “A Dream os John Ball”, “The revival of Architecture” e “The Well at the World’s end”. Já em 1891, fundou a editora “Hammersmith a Kelmscott Press”, que publicava textos medievais e clássicos da literatura inglesa. Em 1883, se associou à Federação Democrática e se tornou líder da Liga Socialista. Devido ao seu envolvimento político, entre 1880 e 1890, Morris foi muito ativo em protestos políticos.

Ele faleceu em 1896, em Londres, Inglaterra.

Figura 2 - William Morris.

Fonte: Wikipedia.org

7

Segundo Marina Pires (2014, p. 65-66) Não há dúvida de que Morris participou activamente no revivalismo gótico de que foi contemporâneo, homenageando Chaucer e os poetas do medievo na sua obra poética, recuperando as lendas arturianas, leccionando sobre a arquitectura Gótica, debatendo-se em nome da sua preservação e, finalmente, celebrando a beleza da arte medieval em todos os ofícios em que tomou parte [...]o futuro das artes nunca foi, como sugerem alguns autores, o retorno ao feudalismo da Idade Média. Bem pelo contrário, a sua integridade artística era tão forçosamente desafiada pelas condições de produção contemporâneas que só a mais profunda revolução social se lhe afigurava possível como meio de restaurar o mínimo de dignidade às artes e ao seu criador, o ser humano, com as necessárias (e desejadas) implicações sobre o meio natural.

Em “The Revival of Architcture”, há a visão do autor com base em seu ponto de vista fundamentado pela arte medieval e o socialismo. A princípio, Morris era um grande seguidor dos ideais de Ruskin, de seu cuidado por causas sociais e apreço pela arte medieval. Porém, por conta de sua visão política, não havia como ter cooperação entre as classes. Morris acreditava que “a Antiguidade não admitia a imperfeição no ornamento e, em consequência, restringia-o àquilo que pudesse ser perfeitamente executado.” (MORRIS, apud SOUZA, p.370). Em contrapartida, Ruskin “aceitava a imperfeição, tendo o artesão, dessa maneira, obtido um inédito grau de autonomia criativa. (MORRIS, apud SOUZA, p.370).

Para ele, o capitalismo e a Revolução Industrial eram responsáveis pela degeneração e degradação da arquitetura, do ambiente e da sociedade: Enquanto a produção em massa de objetos domésticos os tornavam acessíveis, cada vez mais ficava evidente que os processos de produção e fabricação alienavam os trabalhadores e os privavam de qualquer satisfação com seu trabalho. (MARTINO, 2021)

Em contrapartida, o autor era a favor da revalorização do sistema artesanal e da restauração, de acordo com o que deve ser restituído ou eliminado, deixando o estilo arquitetônico em segundo plano e focando na manutenção e preservação de qualquer edifício, independente de sua época. Para Morris, a arte deve ser “feita pelo povo e para o povo, como uma benção para quem a faz e para quem a desfruta” (MORRIS, William. Hopes and fears for art: Five lectures delivered in Birmingham, London, and Nottingham, 1878-1881, ed. 1882.)

8

VIOLLET-LE-DUC Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc foi arquiteto, restaurador e escritor. Nascido em 1814, na França, foi instruído como pupilo pelo arquiteto Achille Leclere, a fim de adquirir conhecimento. Durante a restauração da Igreja Saint-Germain-l'Auxerrois, em 1838, foi aprendiz do arqueólogo medieval Jean-Baptiste-Antoine Lassus. Seus projetos de restauração iniciais como a Basilique Sainte-Marie-Madeleine, em Vezelay (1839), e Sainte-Chapelle, em Paris (1840), foram focadas em partes estruturais com materiais que respeitassem os originais, banindo o uso de materiais modernos.

Todavia em seus projetos tardios, como a Cathédrale Notre-Dame, em 1845, e as fortificações da cidade de Carcassone, em 1858, optou-se por realçar a obra, dando ênfase em sua estética medieval, priorizando seu valor técnico e criatividade, por muitas vezes, desconsiderando a proposta inicial. Entre 1854 e 1868, publicou uma de suas maiores obras, o Dictionnaire de I'architecture française du XI. an XVI. Siècle e o Entretiens sur l'architecture, escrito entre 1863 e 1872.

Figura 3 - Viollet-le-Duc.

Fonte: wikipedia.org

Em sua obra de 1856, Dictionnaire de I'architecture française du XI. an XVI. siècle, Viollet-le-Duc explica que “O ato de restaurar não é um ato de preservar, nem reparar ou reconstruir; é necessário restituir ao edifício a condição de completude que 9

jamais poderia existir em seu dado momento.”(Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc, “Restoration,” from the Dictionnaire raisonné de l’architecture française du XIe au XVIe siècle (1854-1868). English edition On Restoration. London, 1875.). Portanto, o artista procurava restaurar a obra de acordo com o seu estilo, mesmo que isso significasse adicionar elementos que não estivessem no projeto original, por meio de um estudo dos aspectos artísticos, construtivos, materiais, decorativos e estruturais.

Segundo ele: “Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado que pode não ter existido nunca em um dado momento” (VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. 2000, p.18.)

Os ideais de Viollet-le-Duc fomentaram a intervenção e sua prática, fazendo com que fosse desenvolvido um método de análise e classificação das edificações quanto sua idade e construção. Para ele: “a reprodução em cópia fiel de todos os elementos da edificação se traduzia em um equívoco conceitual, pois por melhor que fosse o profissional de ofício de que o arquiteto dispusesse se correria o risco de produzir erros de interpretação. Da mesma forma, alertava para o perigo da substituição dos elementos primitivos por peças de formato posterior, o que causaria a elegibilidade do processo como um todo.” (OLIVEIRA, 2009) Figura 4 - Intervenção na La Sainte Chapelle

10

Fonte: Slide Aula 2: Preservação do Patrimônio Histórico da Arquitetura, do Urbanismo e do Paisagismo, por David Vital Brasil Ventura, 2022.

Ele defendia que os elementos e materiais de um monumento decadente poderiam ser substituídos por melhores e mais atualizados, desviando do originário.

Além disso, apoiava a ideia de “reutilização funcional das edificações, [...] com o objetivo de torna-las úteis à sociedade.” (OLIVEIRA, 2009)

11

CAMILLO BOITO Figura 5 - Camillo Boito.

Fonte: Biografiasyvidas, 2022.

Camillo Boito foi uma figura muito importante na conceituação da teoria da recuperação. Ele propôs uma teoria influenciada por muitos aspectos, chamada de reparo "científico" ou "linguístico", que levou a um meio-termo entre as teorias conflitantes sobre restauração mais discutidas na época: a teoria do francês Violletle-Duc e a dos ingleses John Ruskin (BOITO, 2002).

Camilo Boito, por sua vez, nasceu em Roma em 1834 e ingressou na Academia de Belas Artes de Veneza em 1849. Por influência de Pietro Salvatico, Boito começou a estudar arquitetura medieval italiana. O Selvatico está inserido no contexto da arquitetura gótica como expressão do povo italiano. Ao mesmo tempo que Boito, John Ruskin frequentava a cidade de Veneza e mantinha uma relação profissional com Selvatico (BOITO, 2002).

Após a sua formação inicial, colaborou como professor na Academia, mas logo embarcou em uma série de viagens pela Itália nas quais tentou aprender mais sobre a arte medieval. Em 1858, foi designado para restaurar a Basílica de Santa Maria e Donato na cidade de Murano, Veneza. Através de extensa pesquisa, pessoal e muitas medições e investigações documentadas, Boito executou o projeto de uma maneira 12

relativamente consistente com os princípios de restauração que mais tarde pregou (BOITO, 2002).

Figura 6 - Basílica de Santa Maria e Donato na cidade de Murano, Veneza.

Fonte: Sitios históricos, 2017.

Nesse caso, sua abordagem demonstrou a influência de le-Duc na documentação e extensa pesquisa antes de qualquer ação, bem como na remoção de elementos adicionados que diferiam do estilo arquitetônico original. No entanto, a influência de Ruskin está presente, por exemplo, na proteção da pátina, evidenciada pela degradação natural dos edifícios. Em seu extenso trabalho de restauração de prédios antigos e monumentos bem preservados, ele procurou conciliar as visões contraditórias de restauração e sustentação arquitetônica de seus contemporâneos, principalmente Eugene Violet-le-Duc e John Russ gold. Esta reconciliação de ideias foi apresentada na Terceira Conferência de Arquitetos e Engenheiros Civis em Roma em 1883. Nessa reunião, ele articulou sete princípios básicos (BOITO, 2002).

Camillo Boito desempenhou um papel de destaque no Congresso de Engenheiros e Arquitetos Italianos em Roma em 1883. Lá, foram propostos critérios de intervenção em monumentos históricos, que foram posteriormente adotados pelo Ministério da Educação. O documento que emana desta conferência define sete princípios, considerados por muitos como "Prima Carta del Restauro", e isso é importante (BOITO, 2002).

13

Alguns pontos defendidos aproximam-se das teorias de John Ruskin enquanto outros são influenciados por le-Duc, principalmente no que tange ao método científico de documentar toda a intervenção. Além disso, é interessante notar que determinados princípios são hoje regras em qualquer grande obra de restauração, como a inscrição em lápide e o registro das obras. Muitos destes pontos seriam retomados por Camillo Boito em outros textos inclusive no ano seguinte, na conferência proferida na Exposição de Turim, que deu origem ao livro do qual trata este trabalho (BOITO, 2002). Camillo Boito inicia a Conferência com a citação abaixo, esclarecendo a importante diferenciação entre conservação e restauração e sua posição: “Mas aqui não se discorre sobre conservação, que aliás é obrigação [...]. Mas, uma coisa e conservar, outra e restaurar [...]; e o meu discurso é dirigido não aos conservadores, homens necessários e beneméritos, mas, sim, aos restauradores, homens quase sempre supérfluos e perigosos” (p. 37).

A seguir, Boito divide a conferência em três partes – escultura, pintura e arquitetura – e encerra cada uma delas com uma espécie de síntese do que preconizava para a restauração/conservação daquela determinada arte. A dificuldade da restauração quando se trata de esculturas é exemplificada com o caso da estátua de Hércules Farnésio, obra do século III encontrada em 1546 (BOITO, 2002). Na época, Michelangelo foi chamado para acrescentar a perna faltante da escultura e Boito descreve o acontecimento da seguinte forma: “O artista põe-se a trabalhar, realiza-as de gesso e ajusta-as ao colosso; examina, reexamina, gira em volta, regira, depois, sacudindo a cabeça, pega um martelo e começa a bater até que as pernas se despedaçassem; e dizem que gritava: nem mesmo um dedo eu saberia fazer para essa estátua” (p. 39).

Esse episódio mostra como é delicado acrescentar algo em uma escultura feita por outro artista, em uma época distinta. Cada mínimo detalhe tem seu devido significado, como explicado (longamente, diga-se de passagem) por Boito sobre o “nariz” de uma escultura, que apenas essa parte do rosto mudaria completamente a escultura, e poderia levar a grandes modificações não fidedignas, verdadeiras criações sobre uma obra de arte (BOITO, 2002). O restaurador poderia por fim colocar suas próprias impressões, o que Boito não considera correto. Finaliza assim com a Teoria geral para a escultura: “restaurações, de modo algum; e jogar fora

14

imediatamente, sem remissão, todas aquelas que foram feitas até agora, recentes ou antigas”.

Na pintura é importante compreender que a restauração é um ato minucioso, que pode gerar confusões. Boito também defende que conservação das pinturas não deve ser confundida com restauro. Naquela, são usados vernizes ou algum tipo de produto para ajudar com as condições de conservação material, tendo que manter o cuidado para não se usar nada que prejudique a obra. Na conferência Boito conta algumas histórias (muito interessantes e explicativas) sobre o cuidado com as pinturas e as dificuldades em relação aos cuidados, até restauração, desse tipo de obra.

Os casos mais comuns, as transposições das telas, madeiras, ou bases em que a pintura permanece, muitas vezes afetada rapidamente pela ação do tempo, podendo estar envergada, ou passado por ataque de cupins, sendo necessário a troca para não causar danos a pintura, que não poderia ser recuperada, Boito considera que são operações delicadas, que precisam de muita técnica e cuidado e conclui que: “Nas restaurações da pintura eis aqui o ponto chave: parar a tempo; e aqui está a sabedoria: contentar-se com o menos possível”.

Em relação a Arquitetura, Boito inicia expondo a dificuldade do arquiteto em relação às inúmeras possibilidades e discussões, na parte teórica, e a dificuldade da ação em si, dizendo: “mas em nenhum campo é tão difícil operar e tão fácil refletir quanto naquilo que se refere a restauração dos monumentos arquitetônicos”.

A teoria da restauração é baseada nos pensamentos opostos de Viollet le Duc e Ruskin, as quais Boito critica e analisa para entender e encontrar sua própria tese, que acaba sendo moderada e muito importante para o estudo da restauração. Sua síntese para a restauração de arquitetura acaba sendo uma síntese de sua teoria como um todo: “1º é necessário fazer o impossível, é necessário fazer milagres para conservar no monumento o seu velho aspecto artístico e pitoresco; 2º é necessário que os complementos, se indispensáveis, e as adições, se não podem ser evitadas, demonstrem não ser obras antigas, mas obras de hoje” (p. 60-61).

15

Camillo Boito fez parte de uma época de significativas mudanças socioculturais.

As revoluções recentes, as novas tecnologias, a unificação de seu país e as diferentes formas de encarar o patrimônio e a cultura do passado colocaram-no no centro de um turbilhão rico de ideias conflitantes e possibilidades. Boito foi capaz de analisar diferentes teóricos e atuar em diversos lugares para chegar em sua própria tese. Seu pensamento pode ser considerado uma verdadeira síntese daquilo que havia em seu tempo – contudo, uma síntese crítica, que guardava o que fosse considerado correto e descartava o incorreto.

O arquiteto italiano realizou poucas obras em vida, algumas consideradas incompatíveis com seus ensinamentos teóricos, mas conseguiu criar textos e documentos que se consolidaram ao longo dos anos e o colocaram entre os mais restaurados e da história. pessoasTeoricamente e modestamente, seu impacto na recuperação como a entendemos e estudamos hoje é inegável.

No conflito entre Viollet-le-Duc e John Ruskin, Boito foi muitas vezes visto como o "intermediário". Ele defende uma extensa pesquisa e documentação, como o le-Duc, e a restauração apenas em casos muito específicos comparando-a com a cirurgia ou o uso de próteses. Aproxima-se dos franceses a este respeito, mas afirma-se que foi restaurado de forma facilmente distinguível do original. Por outro lado, defendia que o papel do tempo não deveria ser abandonado e que seu lado pitoresco deveria ser valorizado e, além de defender que a proteção era necessária para evitar a recuperação, inclinou-se para uma teoria mais ruskiniana.

16

GUSTAVO GIOVANNONI Gustavo Giovannoni nasceu em Roma em 1º de janeiro de 1873 e formou-se em engenharia civil em 1895. Acompanhe o curso de Arte e História da Arquitetura de Adolfo Venturi após o curso. Em 1913 foi nomeado para a Cátedra do Departamento Geral de Arquitetura junto à Academia de Engenharia de Roma, e, em 1921, copresidiu a revista "Architettura e Arti Decorative" com Marcello Piacentini".

Figura 7 - Gustavo Giovannoni.

Fonte: Realitas, 2014.

Foi um dos mais ardentes promotores da Escola Romana de Arquitetura, onde ensinou restauração de monumentos. De 1921 a 1926 assumiu a divisão romana do CAI (Clube do Alpino Italiano), com um aumento no número de guias e membros sob Giovannini. De 1927 a 1935 dirigiu a Escola Superior de Arquitetura de Roma, ano em que fundou o Centro de História da Arquitetura. Anchorage Magazine Palladium, 1937.

Um profundo conhecedor da história da arquitetura, ele é o autor de estudiosos fundamentais como The History of Architecture (1913), The Sages of Renaissance Architecture (1931) e Restoration of Monuments (1945). Em 1931 ele escreveu Cartas de Atenas, o primeiro grande documento teorizando os princípios da restauração científica.

De suas realizações como arquiteto são lembradas: a Mansão Torlonia, o estabelecimento birra Peroni, e a Igreja dos Anjos da Guarda para Roma e a vila Torlonia para Formia. O conhecimento da história da arquitetura, juntamente com uma vasta bagagem de conhecimento técnico, dá a Giovannoni interesse nos campos da restauração do patrimônio cultural e do urbanismo.

17

Como estudioso e urbanista, ele está atento à relação entre o velho e o novo no tecido urbano das grandes cidades, onde duas de suas intervenções fundamentais são intituladas "Cidade Velha e nova construção" e "A construtora de compensação dos antigos centros"). Ele também foi um dos extensores das primeiras leis de proteção paisagística.

Chama de "restauro de inovação" - caso os acrescento sejam absolutamente necessários, estes deverão ser identificados e datados, através da utilização de novos materiais que se adaptem harmoniosamente aos originais. No entanto os complementos que se sobrepuseram no edifício devem ser respeitados e identificados, podendo ser removidas as partes sem valor que com a sua remoção não afetem o edifício.

Especial preocupação com as estruturas, com os materiais utilizados na construção e com as técnicas construtivas, devido talvez à sua formação na área da engenharia. Defende por isso o recurso a técnicas modernas, inclusive a utilização de betão armado, em intervenções de consolidação, reparação e reforço do edifício, de modo a aumentar a resistência da construção.

Em seu tratado, Giovannini dividiu o monumento em mortos e vivos para desenvolver um método de tratamento. Como monumentos mortos, chamou os de natureza arqueológica, como as ruínas e fortificações medievais, aconselhando a sua conservação cuidadosa, onde os seus acrescento deveriam ser secundários aos existentes. Como monumento vivo, nomeia o que pode ser usado, tem uma determinada função e propõe a menor intervenção possível e o respeito ao valor artístico de todos os tempos.

Sobre as adições, as admite, se forem estritamente necessárias e bem documentadas, devendo as mesmas serem bem identificadas, com materiais distintos dos originais, harmônicos e com uma marca. Estas adições devem se limitar a completar os volumes da edificação.

Além de classificar os monumentos, os subdivide em maiores e menores, estabelecendo cinco tipos de intervenções: consolidação: é o primeiro tipo de intervenção, eminentemente técnica, com o objetivo de garantir a estabilidade do monumento. Os trabalhos de reforço deverão ser limitados ao estritamente necessário, para não interferir na estética do conjunto;

18

recomposição: é um trabalho de quebra-cabeça, o qual devem colocar em seu lugar, os fragmentos espalhados de uma construção (anastilose). São admitidos a incorporação de outros elementos para suprir os faltantes, desde que sejam distintos dos originais; liberação: é a eliminação de elementos agregados sem valor artístico, trabalho realizado com muito cuidado, para não danificar os elementos característicos; complementação: é a intervenção orientada a recuperar a unidade formal, sem modificar o aspecto e a volumetria original do monumento; inovação: representa a inserção ao monumento de partes essenciais de nova concepção. É reservada somente aos casos inevitáveis, sendo necessário que o arquiteto restaurador tenha capacidade de buscar solução funcional, criativa, e esteticamente integrada ao monumento.

Giovannoni foi também promotor da Carta do Restauro Italiana e teve uma contribuição fundamental na Conferência de Atenas de 1931, da onde sai o documento Carta de Atenas e onde se inicia a teoria contemporânea da restauração científica, que estabelece um dos princípios fundamentais, que diz que um monumento destruído não deve ser reconstruído. Tratou também de forma pioneira o ambiente dos monumentos.

Devido à destruição monumental causada pelo monumento e pela reconstrução e modernização da cidade, as performances e debates sobre o patrimônio histórico mudaram com a Segunda Guerra Mundial e o período que se seguiu. Na Itália, a chamada restauração científica foi posta em causa, com excessiva atenção aos aspectos históricos e valor documental dos monumentos devido ao tempo, materiais e recursos para realizar os milhares de monumentos que foram destruídos na guerra.

O procedimento adotado foi: em caso do dano ter sido de pequeno porte, fazse reconstruções e reconstituições; em danos maiores, a reconstrução deve ser executada com formas simplificadas ou com elementos e documentos confiáveis a reconstituição como era; em caso de grande destruição, a anastilose e em destruição total nenhum tipo de intervenção.

A postura passou a dar maior importância aos aspectos artísticos e estéticos das obras. Do dualismo entre os aspectos históricos e estéticos de uma mesma obra, surge então o chamado restauro crítico, na década de 40, onde seus principais teóricos foram Roberto Pane, Cesare Brandi, Pietro Gazzola e Renato Bonelli.

19

Com relação ao restauro científico (ou filológico), Bonelli se manifesta com restrição em texto de 1958, a nova e moderna teoria parte de um procedimento lógico que aplica ao tema a estética espiritualista: se arquitetura é arte, e por consequência a obra arquitetônica é obra de arte, o primeiro dever do restaurador deverá ser o de individualizar o valor do monumento, ou seja, reconhecer neste a presença maior ou menor da qualidade artística (FREITAS, 2020).

Mas esse reconhecimento é ato crítico, juízo fundado sobre o critério que identifica no valor artístico e, por isso, nos aspectos figurativos, o grau de importância e o valor mesmo da obra; sobre isso é baseado o segundo dever, que é o de recuperar, restituindo e liberando, a obra de arte, vale dizer o complexo inteiro de elementos figurativos que constituem a imagem e através dos quais está realiza e exprime a própria individualidade e espiritualidade (BOITO, 2002).

Qualquer operação deverá estar subordinada ao objetivo de reintegrar e conservar o valor expressivo da obra, uma vez que o objetivo a alcançar é a liberação da sua forma verdadeira. Ao contrário, quando as destruições forem tão graves a ponto de ter grandemente mutilado ou destruído a imagem, não é absolutamente possível reaver o monumento; este não pode ser reproduzido, dado que o ato criador do artista não é repetível (FREITAS, 2020).

Especificamente quanto ao restauro, considera as teses de Camillo Boito, bem como as suas, um novo marco referencial alternativo ao debate polarizado entre Viollet-le-Duc e John Ruskin, defendendo: uma maior importância às obras de manutenção e consolidação visando a integridade do edifício, que as reconstituições (ripristino) sejam limitadas a situações em que seja comprovada a sua legitimidade visando a salvaguardar o monumento e as contribuições significativas dos vários períodos, que os novos elementos agregados sejam identificados para se evitar o engano da imitação (ou a “falsificação”), que nas novas construções se adote uma linguagem moderna e neutra sem buscar o contraste nem a harmonia. (GIOVANNONI, 1936).

Quanto aos métodos possíveis de restauro preconiza que: Outra classificação pode ser feita com relação ao argumento a prevalecer nos restauros: restauros de consolidação, nos quais todos os recursos técnicos, em especial aqueles moderníssimos das estruturas de ferro ou em cimento armado, são chamados a contribuir

20

Pela solidez e robustez de edifícios cansados, dilapidados, mutilados; quando os elementos (geralmente pedra esculpida) são devolvidos ao seu local de origem, apenas são acrescentadas pequenas partes que não estão presentes; restauração libertadora, quando são removidas obstruções internas e externas aos monumentos Restitui a sua face artística, simples ou múltipla, quando é uma parte amorfa; complementando e reabilitando restauros, em que as adições têm em conta os princípios acima, tendendo a reintegrar a obra ou a utilizá-la com novos elementos (GIOVANNONI, 1936).

Com essas considerações Giovannoni estabelece claramente sua posição a respeito das relações entre o antigo e o contemporâneo, seja com relação aos edifícios seja com o tecido urbano e lança as bases do “restauro científico”. Esses princípios já eram difundidos na Itália entre seus discípulos e, com a participação de Giovannoni no Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos em Monumentos Históricos, são incorporados à “Carta de Atenas”, de 1931, primeiro documento internacional (europeu) a estabelecer parâmetros de restauro de monumentos (GIOVANNONI, 1936).

No ano de 1932, o Ministério da Educação Nacional italiano, por meio do Conselho Superior de Antiguidades e Belas Artes do qual Giovannoni era membro, publicou a "Carta do Renascimento Italiano", com texto próprio, estabelecendo as normas para a restauração de monumentos italianos, compartilhado 1931 " Princípios contidos na Carta de Atenas (JOKILEHTO, 2005).

21

CESARE BRANDI Outro teórico muito importante na sequência histórica do restauro é Cesare Brandi nascido em 1906-, foi um intelectual de grande importância no campo da arte que dedicou sua carreira à crítica e história da arte, estética e restauração. Ele foi o fundador do Restaurante Central (ICR) em Roma, em 1939, e dirigiu desde então até 1961. Brandi construiu uma ampla estrutura por meio de pesquisas nas áreas de estética e crítica e de experimentação no próprio instituto. O livro Teoria da Restauração, publicado pela primeira vez em 1963, fornece uma exposição filosófica sistemática do problema da restauração. Ele teve uma grande influência no desenvolvimento da Carta de Restauração italiana em 1972 (BRANDI, 2004).

Figura 8 - Cesari Brandi.

Fonte: Realitas, 2014.

Brandi inicia com o entendimento do vocábulo restauração, definindo-o como qualquer intervenção voltada a dar novamente eficiência a um produto da atividade humana, tendo-se, portanto, uma restauração dos manufaturados industriais e outra relativa às obras de arte. A primeira seria um sinônimo de reparação ou de restituição de um estado anterior e o restabelecimento da funcionalidade (BRANDI, 2004).

A segunda, por sua vez, se diferencia pela diversidade de operações a serem efetuadas, e mesmo que algumas obras de arte possuam um objetivo funcional, como as obras de arquitetura, o restabelecimento da funcionalidade não será o fundamental.

22

Brandi salienta a importância do reconhecimento da obra de arte como tal. Como a mesma está estreitamente ligada ao juízo de artisticidade, também é necessário que a intervenção de restauração deva ser qualificada, pois será executada sobre uma obra de arte. A obra de arte condiciona a restauração e não o contrário (BRANDI, 2004).

A obra de arte estrutura-se em uma dúplice instância: a)

a estética, tendo como base a artisticidade;

b)

a instância histórica, tendo como base o produto humano realizado em

um certo tempo e lugar, e que em certo tempo e lugar se encontra.

Com o reconhecimento da obra de arte, como tal se define: "a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro" (BRANDI, 2004, p. 30).

A restauração deverá derivar os princípios necessários para a sua atuação prática, sendo que a consistência física da obra deve ter precedência. A conservação é imposta de forma categórica, sendo necessário que a consistência material dure o maior tempo possível e sejam empregados todos os esforços e pesquisas. A intervenção será a única legítima e imposta em qualquer caso, com o maior número de subsídios científicos, donde se esclarece que restaura- se somente a matéria da obra de arte (BRANDI, 2004).

Se as condições materiais da obra de arte estiverem comprometidas, a intervenção deverá ser segundo o que exige a instância estética. Também os traços do percurso desta obra, no tempo, deverão ser conservados, donde se enuncia o segundo princípio da restauração: "a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo (BRANDI, 2004, p. 33).

Sobre a matéria da obra de arte como único objeto da intervenção de restauração, o autor exige um aprofundamento do conceito de matéria em relação à obra de arte, sendo que só quando se chegar à intervenção prática de restauro, é que se fará necessário o conhecimento científico da matéria, na sua constituição física (BRANDI, 2004).

A matéria representa, contemporaneamente, o tempo e lugar da intervenção de restauro, sendo aquilo que serve à aparição da imagem, definido como estrutura e 23

aspecto. A matéria sendo historicizada pela obra atual do homem, pertencerá a esta época e não àquela mais longínqua, e por mais que seja quimicamente a mesma, será diversa e acabará, do mesmo modo, por constituir um falso histórico e estético (BRANDI, 2004).

Outra concepção errônea da matéria na obra de arte é que esta última limita à consistência material de que resulta a própria obra, sendo que a matéria permite a manifestação da imagem e esta não limita a sua espacialidade ao invólucro da matéria transformada em imagem, mas participam outros elementos intermediários entre a obra e o observador, como por exemplo, a qualidade da atmosfera e da luz. Devido a estes condicionamentos não se recomenda a remoção de uma obra de arte de seu lugar de origem, somente para sua estrita conservação.

Para definir os limites da restauração é necessário abordar sobre a unidade potencial da obra de arte. O autor salienta que as frações físicas que compõem a obra de arte, se dela forem retiradas, tornam-se inertes e não conservam nenhum traço da unidade que foram conduzidos pelo artista, deduzindo-se que a obra de arte deve ser concebida como um inteiro. Na base da experiência são reconhecidas as ligações que conectam entre si as coisas existentes, e eliminadas as coisas inúteis (BRANDI, 2004).

Na imagem que a obra de arte formula a imagem é verdadeiramente e somente aquilo que aparece (BRANDI, 2004), como exemplo: a imagem de um homem de quem se vê apenas um braço em uma pintura, não pode se considerar mutilada por isso, pois a recepção intuitiva e espontânea da obra de arte se dá exatamente limitando a substância cognitiva da imagem, o seu valor semântico, àquilo que dá a imagem e não além disso (BRANDI, 2004).

A partir disso duas proposições são definidas para regulamentar a prática da restauração: a) a obra de arte goza de uma singular unidade pela qual não pode ser considerada como composta de partes. Essa unidade não pode ser equiparada à unidade orgânico-funcional da realidade existencial, donde se retira duas deduções: a obra de arte não constando de partes (ainda que fisicamente fracionada), deverá continuar a subsistir potencialmente como um todo, em cada um dos seus fragmentos, sendo exigível essa potencialidade (de forma direta aos traços formais remanescentes de cada fragmento);

24

b) a forma de toda a obra de arte singular é indivisível, sendo necessário quando em sua matéria estiver dividida, buscar desenvolver a unidade potencial originária que cada um dos fragmentos contém, proporcionalmente à permanência formal ainda remanescente neles. Sendo assim, é impossível intervir na obra de arte através de analogias.

No ato de restauração deverá se levar em conta as instâncias históricas e estéticas que nortearão o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, derivando alguns princípios práticos: a) a integração deverá ser sempre reconhecível: invisível à distância, mas reconhecível de imediato em visão mais aproximada; b) a matéria de que resulta a imagem é insubstituível quando colaborar diretamente para a figuratividade da imagem como aspecto, tendo maior liberdade no que se refere ao suporte; c) qualquer intervenção de restauro deve facilitar as eventuais intervenções futuras.

Apesar destas recomendações ainda permanece em aberto o problema das lacunas, que proíbe as integrações fantasiosas, sendo o mais grave não aquilo que falta, mas o que se insere de modo indevido. No caso da pintura, as primeiras tentativas de estabelecer uma metodologia de restauração que rejeitasse as integrações fantasiosas, a solução foi a da tinta neutra para abrandar a lacuna em primeiro plano.

A solução dada foi o tratamento da lacuna como mancha no vidro, que fará perceber a continuação da pintura sob a lacuna. Após ter reconhecido a peculiar estrutura da obra de arte como unidade e saber até que ponto é possível a reconstituição da unidade potencial, imposição da instância estética em relação ao restauro, deve-se examinar o tempo em relação à obra de arte e a restauração em relação à instância histórica.

O tempo está na obra de arte em três momentos:

a) como duração, quando exterioriza a obra de arte enquanto é formulada pelo artista; b) como intervalo entre o fim do processo criativo e a atualização da obra de arte na nossa consciência;

25

c)

momento de súbita manifestação da obra de arte na consciência.

Para uma teoria de restauração, é necessário para estabelecer os momentos que caracterizam a inserção da obra de arte no tempo histórico para definir em qual desses momentos podem ser produzidas as condições necessárias e é lícita esta peculiar intervenção chamada restauro. Vários foram os teóricos que quiseram inserir o restauro em fases não apropriadas do tempo, porém o único momento legítimo que se oferece para o ato da restauração é o do próprio presente da consciência observadora em que a obra de arte está. A restauração para ser uma operação legítima, não deverá supor nem o tempo como reversível, nem a abolição da história.

A restauração deverá ser pontuada como evento histórico, sendo respeitada a pátina, sedimentar do tempo sobre a obra, e, na conservação das amostras do estado precedente à restauração, e, ainda, das partes não contemporâneas que mostram a passagem da obra no tempo.

Brandi ressalta que todo caso de restauração será um caso à parte e não um elemento de uma série, pelo próprio conceito de obra de arte como unicum e pela singularidade

não

repetível

da

vicissitude

histórica,

sendo

necessário

a

regulamentação dos princípios até agora definidos (BRANDI, 2004).

A obra de arte, como objeto suscetível de restauração, devido à instância histórica, deve-se iniciar a consideração do limite extremo, que é aquele em que está prestes a desaparecer ou reduzido a um resíduo da matéria de que foi composto.

Deveria se examinar a conservação da ruína. Mas da ruína não se pode extrair as leis da sua conservação, e sim uma qualificação do seu passado, o seu único valor, para ser assegurada para o futuro. Disso resulta que a obra de arte, em estado de ruína, depende para sua conservação do juízo histórico que a envolve, e a restauração de ruína só pode ser admitida como consolidação e conservação ou a ruína não era uma ruína. Não é necessário saber como a obra era antes, mesmo com vastíssima e minuciosa documentação, a reconstrução não será admitida (BRANDI, 2004).

Do ponto de vista histórico deve-se examinar os problemas das adições e dos refazimentos. Como a obra de arte se apresenta com a bipolaridade da historicidade e da esteticidade, a remoção e a conservação não poderão ser feitas nem a despeito de uma nem no desconhecimento da outra. É apenas, incondicionalmente legítima, a 26

conservação da adição, enquanto a remoção deve ser sempre justificada, sempre feita de modo a deixar traços de si mesma e na própria obra.

Uma das adições, a pátina, está ligada de forma intrínseca ao respeito a unidade potencial da obra de arte, sendo do ponto de vista histórico uma falsificação privar os testemunhos históricos da antiguidade, ou forçar a matéria a readquirir um frescor, uma evidência tal que contradiz a antiguidade que testemunha (BRANDI, 2004).

A obra vale pela atividade humana que a modelou e não pelo valor intrínseco da matéria. Com relação aos refazimentos estes pretendem remodelar a obra, intervir no processo criativo. A adição será ainda pior quanto mais se aproximar do refazimento, e esse será ainda mais consentido quanto mais se afastar da adição e visar a constituir uma nova unidade sobre a antiga (BRANDI, 2004).

O conceito técnico de ruína foi explicitado no que concerne à historicidade, sendo a ruína o ponto mais distante a que poderíamos recuar para a ação do restauro.

Como remanescente ligado à atividade humana também pode ser considerado uma obra de arte, devendo ser examinada segundo a instância estética. Segundo a lógica, enquanto o produto tiver vestígios de artisticidade, por mais que esteja mutilado, não deve se falar em ruína. Se estes vestígios estão perdidos não se trata de artisticidade e sim de historicidade, havendo uma contradição intrínseca (BRANDI, 2004).

O conceito de ruína, do ponto de vista artístico, permite que a ela se integre a um determinado complexo monumental ou paisagístico. Quando se tratar de uma obra de arte em que a ruína foi reabsorvida, é então a segunda obra de arte que tem o direito de prevalecer. Quando o ambiente onde pode acontecer uma determinada recomposição, já atingiu historicamente e esteticamente uma acomodação, este não deve ser destruído, nem para a história nem para a arte. A ruína, para a instância estética, deve conduzir também à ação de conservar e não integrar.

A instância histórica colocava, em primeiro lugar, a conservação dos acréscimos. Já para a instância estética que nasce da artisticidade da obra de arte, o acréscimo reclama a demolição. Neste conflito, então, deve ser a instância de maior peso a sugerir a ação. É sempre um juízo de valor que determina a prevalência de uma ou de outra instância na conservação ou na remoção das adições (BRANDI, 2004).

27

Com relação à conservação da pátina, do ponto de vista histórico, ela documenta a passagem da obra de arte no tempo e deve ser conservada. Observando do ponto de vista estético, a pátina é aquela imperceptível surdina colocada na matéria e que é constrangida a manter uma posição mais modesta no cerne da imagem, sendo necessário a sua conservação (BRANDI, 2004).

Basta agora ver a questão do refazimento com relação a instância estética, sendo necessário o juízo que se tem do refazimento: no caso de ser uma nova unidade artística deverá ser conservado e se for causar a destruição parcial de alguns aspectos do monumento, que teriam permitido ou a sua conservação como ruína, ou a integração como unidade potencial, também deverá ser conservado. O adágio nostálgico como era, onde estava é a negação do próprio princípio da restauração, é uma ofensa à história e um ultraje à estética, colocando o tempo como reversível e a obra de arte como reproduzível à vontade.

Até agora foram explicitados os princípios para a restauração de obras de arte como pinturas, objetos artísticos e históricos. Para a restauração dos monumentos arquitetônicos valem os mesmos princípios, já que a Arquitetura é também considerada como obra de arte, portanto o restauro arquitetônico recai sobre a instância histórica e estética, dando distinção entre aspecto e estrutura, à conservação da pátina e das fases históricas pelas quais passou o monumento (BRANDI, 2004).

Mas, na aplicação das normas de restauração de obras de arte, deve-se ter em conta a estrutura formal da Arquitetura que se difere daquela das obras de arte. A Arquitetura está ligada à espacialidade e a um determinado espaço ambiente em que o monumento foi construído, exigindo também a sua conservação. No caso de manter a ambientação é possível a reconstrução (apenas de partes) através da anastilose.

O monumento, como pertencente ao sítio histórico a que foi realizado, é reconhecido como inalienável e disto derivam algumas afirmações:

a) é absolutamente ilegítimo a recomposição de um monumento em lugar diferente ao qual foi concebido, pois as alterações espaciais o comprometem como obra de arte; b) é legítimo a sua recomposição se a mesma for apenas para salvaguardar o monumento quando não for possível a sua salvação de outra forma, mas sempre em relação ao sítio histórico ao qual foi inserido.

28

Com relação à conservação do sítio histórico relativo ao monumento, e deste mesmo, como elemento pertencente ao próprio sítio, temos duas questões: a) a recondução dos dados espaciais do sítio ao seu estado mais próximo do original; b) a reconstituição dos dados espaciais dos elementos desaparecidos, caso não sejam obras de arte, poderá até ser admitida para a recomposição da espacialidade.

Segundo seus ensinamentos, o restaurador deveria fazer uma avaliação crítica dos aspectos históricos/estéticos do bem a ser restaurado para, a partir daí, fazer suas escolhas e definir sua atuação.

Embora houvesse tido divergências entre os teóricos do restauro crítico, as intervenções realizadas dentro desta tendência foram conscienciosas, sendo a atuação baseada em sólida formação arquitetônica e histórico/crítica, analisando caso a caso para se obter soluções satisfatórias para as várias questões. Estes profissionais também contribuíram sobremaneira com os princípios de preservação em ambientes urbanos inteiros e a paisagem.

29

CONSIDERAÇÕES FINAIS Fica evidente a relevância do estudo do restauro para a arquitetura. Os ideais propostos por tais estudiosos citados variam de acordo com sua localidade e período.

Pode-se observar que John Ruskin e William Morris, os primeiros a abordar o tema, tinham uma visão reacionária, em que deveria se manter o projeto original. Já Violletle-Duc e Camillo Boito defendiam que as edificações deveriam apresentar elementos característicos a seu movimento artístico. Gustavo Giovannoni e Cesare Brandi compartilhavam de ambos princípios, visando a funcionalidade e esteticidade do todo, mas também a parte documental, o qual é utilizado até os dias atuais.

A importância em conservar monumentos históricos é notória, entretanto, as práticas a serem utilizadas em sua preservação e restauração se divergem tanto em localização, quanto de arquiteto para arquiteto e cabe a eles estabelecer o que for melhor para a finalidade do edifício.

30

REFERÊNCIAS As sete lâmpadas da arquitetura. Hisour. Disponível em: <https://www.hisour.com/pt/the-seven-lamps-of-architecture28277/#:~:text=The%20Seven%20Lamps%20of%20Architecture,volumes%20The% 20Stones%20of%20Venice.>. Acesso em: 29 set. 2022.

BOITO, Camillo. Os restauradores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

CAMARA, Camillo et a. Camillo Boito, o teórico moderado do restauro. 2020.

Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/19.218/7636.

Acesso em: 02 out. 2022.

DURANTE, Silvio. John Ruskin. Enciclopédia Biográfica de Arquitetos Digital, documento nº: R17. 2015. Disponível em: <https://www.ebad.info/ruskin-john>.

Acesso em: 29 set. 2022.

Encyclopaedia Britannica. Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc. 2022. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Eugene-Emmanuel-Viollet-le-Duc>. Acesso em: 02 out. 2022.

FREITAS, Pedro MG. O canteiro como laboratório da história: Piero Sanpaolesi, o seu tempo e o ideal do arquiteto restaurador. 2018. Tese de Doutorado. Tese de doutorado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.

FREITAS, Pedro Murilo Gonçalves. A importância da documentação arquitetônica para a Restauração: a experiência de Camillo Boito. Revista Jatobá, v. 2, 2020.

GIOVANNONNI, Gustavo. Tipologias, técnicas, historicidade do restauro. Texto, 1912 JOKILEHTO, Jukka. A history of architectural conservation. Routledge, 2017.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Cesare Brandi e a teoria da restauração. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 21, p.

197-211, 2007.

MARTINO, Giovana. Arquitetura, design e artes: o que podemos aprender com a obra de William Morris?. 2021. ArchDaily. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/962873/arquitetura-design-e-artes-o-que-podemosaprender-com-a-obra-de-william-morris>. Acesso em: 30 set. 2022.

MORRIS, William, apud SOUZA, Gustavo Lopes de, GONÇALVES, Raissa Lopes. O Revivalismo da Arquitetura. Nº 43. 2019. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/169356/179105>. Acesso em: 30 set.

2022.

31

OLIVEIRA, Rogério Pinto Dias de. O idealismo de Viollet-le-Duc. Vitruvius. 2009.

Disponível em: <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.087/3045>.

Acesso em: 02 out. 2022.

OLIVEIRA, Rogério Pinto Dias de. O pensamento de John Ruskin. Vitruvius, 074.03.

2018. Disponível em: <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/07.074/3087>. Acesso em: 29 set. 2022.

PIRES, Marina Isabel Oliveira. Arte e Política em News from Nowhere: A teologia utópica de William Morris. Orientadora: Dra. Maria Adelaide Meira Serras. 2014. 195 p. Dissertação em Estudos Ingleses e Americanos, Estudos de Cultura, Universidade de Lisboa, Portugal. 2014. Disponível em: <https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/18393/1/ulfl175421_tm.pdf>. Acesso em 30 set. 2022.

REALITAS. .Restauro Científico. 2014.Disponível em: https://realitas.joaosecocarmona.com/2014/09/restauro-cientifico.html. Acesso em: 02 out. 2022.

RENAULD, Marie-Madaleine. Eugène Viollet-Le-Duc: The Architect Who Reshaped Notre-Dame de Paris. 2021. Disponível em: <https://www.thecollector.com/eugeneviolett-le-duc-notre-dame-de-paris-architect/>. Acesso em: 02 out. 2022.

VENTURA, David Vital Brasil. CAPÍTULO 2 Evolução dos conceitos e critérios de restauração. P 89-110. Tese de Doutorado.

32