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Documentação Pedagógica no contexto AMAZÔNIA/SESC Fábrica Pompéia

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Tita Couto

Tita Couto

“A natureza é convidada para um projeto político. Um projeto queer. Ela não nos ensina nada a respeito do que somos ou do que devemos fazer, mas pode alimentar o imaginário e abrir o apetite para a pluralidade de hábitos e dos modos de ser e de existir. Ela está sempre recombinando as categorias e recriando, a partir da multidimensionalidade de cada uma delas, novos modos de identidade. O que quer dizer macho ou fêmea, por exemplo, varia de animal para animal, segundo modos inventivos que se assemelham a uma multiplicidade de formas de habitar o gênero. Encontramos entre alguns pássaros –as vezes até entre membros da mesma espécie – duas situações características: de um lado vemos fêmeas que vivem a vida inteira como casa; constroem juntas todos os anos, um ninho onde chocam os ovos que uma das fêmeas fertilizou acasalando com um macho; manifestam regularmente comportamentos de cortejo uma em relação à outra; e, no entanto, jamais apresentam cópula. Por outro lado, vemos um macho acasalando a vida inteira com a mesma fêmea, com a qual copula regularmente e cria os filhotes, mas que em dada ocasião, acasala com um macho (e nunca mais faz isso de novo). Como categorizar? São relações homossexuais, bissexuais? Esses pássaros são machos e fêmeas de maneira constante? Essas categorias ainda servem para das conta do que eles fazem ou do que eles são?” – DESPRET, Vinciane. O que diriam os animais?”. São Paulo: Ubu, 2021. p. 229

“Spivak é uma das principais personagens do rico "movimento" conhecido como pós-colonialismo que, em linhas gerais, pretende interrogar os fundamentos da ciência e da filosofia européias à luz das experiências e dos saberes provenientes dos sujeitos subalternos dos territórios coloniais.” https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/espacoe cultura/article/view/12882/9948 filosofa Vinciane Despret, em seu livro “O que diriam os animais?” cogita a possibilidade de que a convivência entre as espécies faz surgir linguagens únicas, inventadas e úteis para certos grupos que compartilham uma vida. Despret e Haraway irão demonstrar em seus respectivos livros que é uma estrutura moral patriarcal que enrijeceu o modo como a ciência é feita. Assim, por exemplo durante muitos anos os cientistas preferiam deixar os relatos de relações homossexuais entre animais, seja por diversão ou pelo propósito de cuidar da perpetuação da espécie, apenas em seus diários e fora dos artigos acadêmicos.

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Portanto a mesma estrutura hierárquica e patriarcal branca contamina o modo como o educador parece ser visto por muitos como um repetidor ou ainda como um sujeito que tendo estudado o conteúdo da exposição estará qualificado apenas para atender o público leigo e não aqueles que estudam nas academias ou trabalham no circuito de arte, produzindo, comercializando, criticando, e organizando exposições. Educadores são para atender as escolas, os interessados e mal-informados, formando um repertório para os visitantes e potenciais consumidores. Uma visão perversa, que não quer ser surpreendida pelo diferente e por isso faz questão de reafirmar hierarquias.

A um educador na exposição Amazônia foi perguntado, “mas vocês estudam?”. São tantas as implicações desta pergunta. Sim ele estudou a exposição, estuda em uma universidade, trabalha em uma grande instituição cultural, pesquisa continuamente os silenciamentos que a curadoria não deu conta, ou quis neutralizar, e para tanto, ele tem o cargo de educador. Quem faz a pergunta quer garantias de que a pessoa sabe o que está falando e quer confirmar suas expectativas. Nessa conversa ela é surpreendida por uma pessoa 20 ou 30 anos mais jovem que parece ter informações e opiniões relevantes, mas antes de ceder e concordar ela precisa de garantias. Fico por aqui na especulação, outras sobre gênero, classe e racialidade poderiam ser feitas. A estrutura hierárquica dominante entende o educador como um subalterno. Cabe nos apropriarmos da questão desenvolvida pela filósofa indiana Gayatri Chakravorty Spivak ao debater o pós colonialilsmoa “Pode a subalterna falar?”.

Sujeitos estabelecem uma conversa de acordo com o que são ou estão. Como sujeito consciente de sua experiência em que ponto se encontram, como jogadores propositores no encontro com o público, estabelecem comunidades temporárias ligadas pela situação exposição. E cada um dos membros dessa comunidade tem seus interesses.

Para formar educadores-pesquisadores como mencionamos antes criamos situações que proporcionem escuta, se ouvir, ouvir os próprios interesses e os de outros, desde a formação até a finalização da exposição. A prática pedagógica exercida pela Alebre se desenha de forma coletiva. Identificamos as necessidades

https://www.cobogo.com.br/sandr a-benites

“ Muitos brasileiros – muitos juruá, na verdade – questionam nossas manifestações na rua e se referem a nós dizendo coisas como “essa raça ruim”, “esses grupos que são afastados”, que “não se desenvolvem”, que “não são civilizados”. Todo esse preconceito acontece porque não somos compreendidos, porque nos colocam em um lugar de inferioridade, não entendem como nós pensamos e vivemos. Com isso, digo que atrasado é aquele que não sabe abraçar o mundo –abraçar, inclusive, o mundo do outro –, que não sabe nem procura sequer saber sobre pensa diferente. Acredito que esse seja um desafio nosso, não só enquanto guarani, mas enquanto seres humanos. Porque uma educação de qualidade para nós, guarani, se trata de aprender a ser acolhido e a acolher, o mundo humano e o mundo não-humano. o outro e se acha melhor porque pensa diferente. Acredito que esse seja um desafio nosso, não só enquanto guarani, mas enquanto seres humanos. Porque uma educação de qualidade para nós, guarani, se trata de aprender a ser acolhido e a acolher, o mundo humano e o mundo não-humano. Nessa lógica de incompreensão da nossa forma de pensar e de viver, desse jeito que não abraça, é que o Presidente Jair Bolsonaro disse que somos incapazes, atrasados e que precisamos aprender a interagir como civilizados. Com essa justificativa, querem tirar a nossa terra. Este pensamento que o faz se sentir superior àqueles que pensam diferente dele é um desrespeito a si mesmo. “ BENITES, Sandra. Educação Guarani e interculturalidade: a(s) História(s) Nhandeva e o Teko Caracol, São Paulo, N. 20, jul./dez. 2020 Dossiê 199. pp. 198-199 das instituições, as particularidades da exposição e as vozes dos educadores (estagiários e formados). Não pretendemos estabelecer metodologias rígidas, mas fluidas, entendemos que estamos participando de um jogo, criando uma comunidade temporária que está inventando uma linguagem enquanto se forma. Privilegiamos encontros, acolhimentos, apoiamos e alimentamos essa comunidade aprendendo junto. Somos todos educadores/pesquisadores. Educador/pesquisador se ensaia na prática, a pesquisa se dá na leitura, no encontro com os visitantes e com a equipe. O/a educador/a pesquisador/a tem dúvidas, olha para tudo, questiona, se pergunta sobre a luz e sobre o que está sentido com aquela luz e o ruido infinito. Se pergunta sobre seu incômodo com as imagens, ou sobre o porquê apesar de tudo uma bela paisagem chama sua atenção. Percebe que se sente emponderado por estar autorizado a não tirar fotos para os visitantes, e que pode na hora do fechamento, pedir aos visitantes que se retirem porque vão fechar os portões. Se entende como a autoridade responsável neste espaço expositivo, e porque as são, mesmo que o visitante seja um macho branco e rico.

Mundos possíveis ainda que efêmeros se criam. E para que possamos pensar sobre eles, seus processos e desdobramentos desta vivência educativa e destes corpos educativos heterogêneos, acreditamos que se faz necessária a documentação, parte essencial da pesquisa e da memória da trajetória do programa educativo..

Documentação Pedagógica

V+

Documentação Pedagógica no contexto AMAZÔNIA/SESC Fábrica Pompéia

“PESQUISA – compreende a reunião de informações e resultados de exames. Vem do Latim perquirere, “buscar com afinco”, de per, intensificativo, mais quaerere, “indagar”, de quaestio, “busca, procura, problema”. ” - https://origemdapalavra.com.br/palavras/pesquisa/

A intenção de criar um documento construído a vinte mãos, parte do desejo de compartilhar o quanto a trajetória de um serviço educativo é longa, potente e muitas vezes ocultadas. Toda essa potência pede mais que o registro da frase “Educador _ exposição Amazônia, Sesc Pompéia” no currículo. Ao retomar a pergunta realizada ao educador: “mas vocês estudam?”, o educador não só estuda como produz materiais, pesquisas, discursos, proposições. Este documento pedagógico é uma forma de manifestar e compartilhar a imensidão de ideias e realizações produzidas ao longo destes meses.

Ao pensar na documentação pedagógica, partimos de dois eixos: a documentação resultante do processo das inquietações e questionamentos dos educadores via seus componentes de pesquisas; e a documentação como parte de uma memória de um corpo educativo, um lugar de re(conetar) experiências vividas.

Pesquisar é um estado de tensão é receber e procurar estímulos, analisar, e criar sentido a partir deles. A palavra pesquisa tem sua origem na junção do prefixo latino -per, um intensificativo que também performa o sentido de através de, por meio de, em direção à, e quarere, que se traduz por investigar, consultar, investigar.. A/o educador/a-pesquisador/a indaga, examina, tira conclusões. E faz sua pesquisa em diversos momentos, lendo, conversando com colegas, conversando com os visitantes de uma exposição, planejando as visitas, selecionando materiais de suporte para as ações prático-poéticas, escrevendo, desenhando, fotografando, gravando vídeos, captando áudios, editando. E continuaria ainda dizendo que pesquisando no caminho pra casa, no ônibus ou no metro, fazendo a faxina, passeando com o cachorro, preparando a refeição para os seus. Educadores e artistas têm em comum o estado de tensão do pesquisador. Então como tudo o que faz pode ser pesquisa, é necessário tempo de maturação para que as afetações sofridas possam ser analisadas e significadas. Estamos falando de tempo para pensar e sentir, mas também tempo para tomar consciência de seus reais interesses e de seus processos. Para isso é necessário recolher material, ou construir materialidades como documentos.

A documentação pedagógica ajuda o educador a se perceber no mundo, a tomar consciência de sua posição, ela é prova de vida. Mas de quais materialidades falamos ao nos referir a documentação poética em casos específicos de exposições de arte? São muitas as possibilidades.

Cadernos de notas – aquele em que anotamos tudo, de lista de supermercado à citações da Bell Hooks. As páginas que nos acompanham, onde rabiscamos. Algo

Roteiros de visita – elaborações textuais que auxiliam o/a educador/a a determinar um certo percurso ou uma concatenação de assuntos para ser proposto aos visitantes. Uma espécie de mapa. Embora muitas vezes essa ferramenta possa ser entendida como engessante ela nada mais é que o registro de uma ideia do que se pretende, um mapa de viagem. Considerada como mapa ela descreve um percurso em uma paisagem, mas isso não significa que o viajante está preso a esse percurso, se no percurso se encontram surpresas, é provável que o viajante tome outro rumo. Após a viagem é possível olhar para aquele planejamento e perceber melhor o que organizou o nosso planejamento e se a surpresa nos enriqueceu ou destruí. Material de apoio ou fagulhas – são coisas simples , fotos plastificadas, frases impressas, livros, envelopes, pranchetas com papel e lápis, objetos de todo o tipo que impulsionem discussões. Podem ser coisas prontas ou elaboradas como jogos de tabuleiro ou baralhos feitos pelos/as educadores/as. São documentação porque materializam pesquisas. Conversas de whatsapp – e por quê não? Podem ser as conversas entre a equipe, ou aquele whatsapp em que se conversa consigo mesmo. Fotos, vídeos, captação de som – os materiais que podem documentar o processo na hora que ele acontece pode ser uma ferramenta ótima para analisar o próprio comportamento assim como a dinâmica de uma visita. Murais/fichários/blogs – murais ou fichários eletrônicos ou blogs que auxiliam a reunir de forma organizada e que podem ser uteis para outros também. Relatórios – relatório detalhados (ou não) sobre o cotidiano. Ensaios – Para finalizar o processo educativo dentro de um projeto/exposição um ensaio de texto e/ou de imagens ajuda a concluir um percurso e avaliar o que aconteceu conosco ao percorrê-lo.

Estes materiais são documentos de um momento, e contribuem para que os profissionais que passam de forma recorrente de uma exposição para a outra, de uma instituição para outra, possam criar sentidos para suas ações, até mesmo criando portifólios para suas práticas.

O/a educador/a tem interesses pessoais, pesquisas que ultrapassam as exposições em que trabalha, ao mesmo tempo que cada exposição alimenta seu percurso. Nesta posição o sujeito pode criar um sentido para a sua prática, perceber o que é particular da sua forma de agir no mundo para assegurar autonomia (e saúde mental). É a pesquisa constante e seus documentos que tornam visíveis, materiais, para o/a educador/a, e para outros o percurso investigativo.

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