Regresso dos campos de morte de La Lys

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Regresso dos campos de morte de La Lys

ROMANCE

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ROMANCE

FICHA TÉCNICA

título: Regresso dos campos de morte de La Lys

autor: José Maria Araújo Balhau

edição: Edições Vírgula® (Chancela do Sítio do Livro)

revisão: Maria Gabriela Ferreira (Letra a Letra – Revisão de Texto)

arranjo da capa: Carolina Araújo Gonçalves

paginação: Carolina Araújo Gonçalves

1ª Edição

Lisboa, julho 2025

isbn: 978-989-9284-02-9

d.l.: 549973/25

© José Maria Araújo Balhau

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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públicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

ÍNDICE

PRIMEIRA PARTE - Antes da partida para França…........…………...…..11

SEGUNDA PARTE - Partida e chegada ao destino(Artois – Flandres).... 69

TERCEIRA PARTE - A infedilidade…..........................................................

QUARTA PARTE - Nas trincheiras…...........................................................103

QUINTA PARTE - O fruto da infedilidade.....................................……..…….113

SEXTA PARTE - A batalha de La Lys

SÉTIMA PARTE - O regresso e o impacto à chegada...............……...……...137

EPÍLOGO............................……..…….......................................……..……...177

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Para os meus netos Maria, Carolina e Tiago, com muito amor.

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“Cada guerra é uma destruição do espírito humano.”

Miller

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PRIMEIRA PARTE

Antes da partida para França

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Decorria a primeira semana de março com o tempo incerto, ora chuva ora sol, e Dom José de Figueiredo, com vestimenta adequada para o que desse e viesse, tomou a atitude costumeira de sair do Solar logo pela manhã, montado no seu bonito e vistoso cavalo claro de raça árabe. Saídas que tinham por objetivo os saudáveis e higiénicos passeios a encher-lhe a alma e a fortalecer-lhe os ossos, servindo-lhe ainda, por vezes, para acompanhar e inteirar-se do decorrer das tarefas agrícolas nas vastas propriedades de regadio e de sequeiro que possuía à volta da aldeia.

A forma como tinham decorrido, em novembro, o amanho das terras e sementeiras de centeio e trigo, com as informações que lhe iam chegando, conjugadas com a sua própria observação, tinha-o deixado satisfeito. Tratava-se, agora, nos começos da primavera, de observar e se inteirar junto do feitor, João Tolosa, do desenvolvimento das sementeiras do milho e feijão-frade, nas terras secas, e dos produtos hortícolas, nas terras húmidas, que iam, entretanto, germinando e despontando.

De estatura acima da média, pose esbelta e de bom parecer, Dom José de Figueiredo, Visconde da Aldeia Formosa, mostrava-se afável aos outros, a expressar a sua bondade genuína e natural. Por via disso, e de cativantes ações, como mais à frente se verá, era muito considerado e respeitado pelas pessoas da aldeia, as quais, costumeiramente, num gesto de reverência, lhe inclinavam o tronco e descobriam a cabeça sempre que por ele passavam.

Nesse dia, sentado no selim do cavalo, ora a passo ora a trote, caminhou, com bom humor, jovialidade e contentamento, em

direção à Quinta de Vale Cabreiro, onde residia o feitor. Sentia-se embrenhado na envolvência agradável e cheirosa dos campos que começavam a ficar atapetados de vermelho, amarelo, roxo e branco, sustentados pelas papoilas, colzas, malvas e margaças. A completar o quadro ambiental de cores, com assomos paradisíacos, ia ouvindo, deixando-o superlativamente maravilhado, a sonoridade dos melros, poupas, rolas e de outras aves.

Ao chegar ao terreiro em frente à habitação, encontrou a mulher do feitor, Emília, com um pente na mão, apostada em desenlear o cabelo negro, longo e liso da filha, Rosália, que, de quando em quando, ia barafustando com a mãe! A rapariga, sempre que a progenitora, descuidada, a repelava, manifestava-se, dorida:

– Ah, mãe, que bruta! Tá ma magoar!

Emília, esquecendo os martírios e tormentos por que, também ela, já tinha passado nas mãos da mãe, Aurora, respondeu bruscamente à filha:

– Não sejas piegas, cachopa, tá quieta! Assim não consigo alisar o cabelo!

Os modos de Emília, no lidar com as pessoas à sua volta, nesta e em outras circunstâncias, não diferiam muito dos modos que herdara da própria mãe. Herdara-lhe, além de atributos de mulher forte, sensata e séria, a determinação, sem recuos, em tudo onde metesse mãos. Com mão férrea, cuidava do governo da casa e da quinta, impondo aos criados, Angélica e António, dedicação, zelo e empenhamento nas tarefas do dia a dia e insurgia-se, com impetuosidade, quando tal não acontecia.

Ao sentir o aproximar de Dom José de Figueiredo, Emília interrompe o pentear da filha e, depois da respeitosa reverência habitual, inclinação do tronco e baixar da cabeça, pergunta, também com reverência nos modos de falar, pelo estado de saúde da mulher, Dona Preciosa, e dos filhos, Joãozinho e Teresinha. Ouvindo que tudo

Regresso dos campos de morte de La Lys estava bem no Solar e intuindo o que trazia ali o visconde, informa que o marido se tinha deslocado ao Vale de Perdizes para, numa conversa com o ganhão, Joaquim Madruga, serem estabelecidos os contactos na aldeia para formar o grupo das terças com as mulheres do costume.

As sementes de milho e feijão-frade, lançadas uma semana antes na terra pelo ganhão, com a ajuda do filho, Serafim, começavam a germinar e era necessário, quando chegasse a altura, inícios de junho, que o grupo se encarregasse das mondas e também, na sequência, quando chegasse a altura, que procedesse à colheita das maçarocas e das vagens para na eira, depois, serem extraídos os grãos de milho e feijão-frade. Dos proventos das colheitas, como acontecia todos os anos, caberia um terço ao visconde, outro ao feitor e o outro às mulheres das terças, distribuído em partes iguais por cada uma.

Dom José de Figueiredo despediu-se de Emília e da filha e foi ao encontro de João Tolosa, a Vale de Perdizes. Ao chegar, deparou com o feitor agitado junto do ganhão, como fera enjaulada, por motivo a não justificar tamanho alarido. Recomendado na véspera para o fazer, Joaquim Madruga esquecera-se de passar por casa da Ti’ Fernanda para, como vinha acontecendo todos os anos, se encarregar de estabelecer os contactos necessários com mulheres da aldeia para formar o grupo das terças.

João Tolosa, temperamental, mandão e incapaz de sair do seu jeito, estava descarregando fortemente no pobre do ganhão, com linguagem baixa e sem pudor, mesmo à frente do patrão, a pensar que lhe agradaria mostrar-se com pulso e determinação: – Raios o partam, logo se esqueceu, carago! Onde anda você com a cabeça? Quem trabalha comigo tem de ser responsável, caso contrário sofre as consequências!

Joaquim Madruga, iletrado e sem horizontes para se expandir e se libertar da sua condição de ganhão, mas com sabedoria do que

a vida lhe ia ensinando, ponderado e com domínio de si próprio, teve vontade de dar réplica ao feitor, lembrando-lhe o tempo em que andava nas bermas como um zé-ninguém e, agora, todo inchado, petulante e mandão! O receio de perder o emprego levou-o a ficar-se pelo calado.

Assistindo ao exagero do feitor e conhecendo-lhe já o caráter e temperamento, Dom José de Figueiredo meteu água na fervura.

Apaziguou a contenda, dizendo que ainda não era tarde para se iniciar o processo de constituição do grupo das terças. Joaquim Madruga podia muito bem falar com a Ti’ Fernanda ainda esse dia, à noite, ou no dia seguinte. Trocou depois impressões com ambos sobre o estado em que se encontrava, naquele momento, a campanha do cultivo dos cereais, das uvas, das frutas e dos produtos hortícolas. Depois, já com o registo do estado das coisas, despediu-se, com o pé no estribo subiu ao cavalo, sentou-se no selim, e regressou ao Solar. Respaldado com o apaziguamento oportuno e imposto por Dom José de Figueiredo, Joaquim Madruga prosseguiu, aliviado e confiante, a tarefa que tinha entre mãos e João Tolosa, um tanto agastado e com ressentimentos pela postura menos vigorosa a seu favor do patrão, regressou à Quinta Vale de Cabreiro, ao encontro da mulher Emília e da filha Rosália.

Dom José de Figueiredo, ao chegar ao Solar, depois do encontro que teve com feitor e ganhão, encontrou no jardim Dona Preciosa com a filha, Teresinha, cada uma com sua tesoura de podar, cuidando de arranjos florais - rosas, jacintos, verbenas, perpétuas e fetos -, para enfeitar, para a missa de domingo na igreja matriz da aldeia, o altar de nossa Senhora da Ajuda, santa de devoção da família. Sobejamente conhecedor dos estados de espírito da mulher, notou logo, no seu semblante costumeiramente calmo e alegre, que algo a incomodava. Preocupado, assimilou e guardou para depois, a sós, a interrogar sobre os motivos de tal preocupação. Beijou mulher e filha e dirigiu-se, de imediato, a um dos anexos do Solar, espaço para a criadagem e animais.

Tinha encarregado o criado Jacinto, na véspera, de lhe tratar do necessário – limpeza das armas, carregamento dos cartuchos e cuidados a dar aos galgos e perdigueiros – para a abertura da caça que se aproximava. Depois de ter interrogado o criado sobre o desempenho da tarefa e ter constatado que lhe estava a dar conta do recado, dirigiu-se para o interior do Solar, ao encontro de Dona Preciosa que, entretanto, após os arranjos florais, recolhera ao quarto, mastigando, doridamente, a sua aflição, provocada por algo que, tratando-se de suspeitas suas de algum tempo, tivera a prova, evidente, com os seus próprios olhos.

A relação conjugal entre Dom José de Figueiredo e Dona Preciosa era perfeita, em amor e cumplicidade, nos bons e maus momentos. Orientados por princípios de ética, incorporados em ambos do catolicismo, pugnaram que tais princípios fossem assimilados, à sua

volta, e levados à prática quer pelos filhos quer pelos criados. E Dona Preciosa, com o coração de mãe ferido e amargurado, perante ao que acabava de ver e saber sobre o filho, Joãozinho, sentia a necessidade, naquele momento, de partilhar com o marido a devastadora amargura em que estava e lhe corroía a alma.

Mediana em altura, corpo esbelto, cabelo alourado, pele branca, faces rosadas e lábios carnudos com cores também rosadas a condizer, Dona Preciosa, além de beleza olímpica, era dotada de uma beleza majestosa. No que ao físico diz respeito, possuía, assim, as condições necessárias para satisfazer os desejos e condições de qualquer homem mais exigente. Possuía, a par disso, a qualidade de meiga e sensível no trato com os outros. Essas qualidades viu-as Dom José de Figueiredo, desde logo, cativando-o, num sarau realizado, numa aldeia vizinha, no Solar de um dos seus maiores amigos, Dom Nuno de Ataíde. A partir daí, entrosaram-se em namoro e despertaram, passado algum tempo, para o compromisso do casamento, dele tendo resultado, passado um ano, o nascimento do filho Joãozinho e, dois anos mais tarde, a filha Teresinha.

Para acompanhar os filhos no crescimento e os instruir para a vida, ensinando-lhes os conteúdos escolares da instrução primária a antecipar voos mais altos condizentes à sua condição de poder e de posses, Dom José de Figueiredo e Dona Preciosa contrataram uma preceptora, de nome Arlete. Comungando, como convinha, dos mesmos princípios éticos e religiosos levados à prática por ambos, Arlete possuía formação e conhecimentos adequados para o exercício da docência da instrução primária. Possuía ainda conhecimentos de literatura e de história, designadamente história clássica, potenciando a Joãozinho e Teresinha, assim, preparação prévia para os ciclos de estudos mais avançados, assim eles tivessem dispor para tal.

Ao entrar no quarto, Dom José de Figueiredo abeirou-se da mulher, abraçou-a e, num gesto de companheirismo, cumplicidade Preview

Regresso dos campos de morte de La Lys e ternura, disse-lhe:

- Não estás bem, querida, que se passa?

Ansiosa por desabafar com o marido, contou-lhe o que vinha suspeitando, por conversas animadas e trocistas, entre as criadas, sobre o relacionamento de Joãozinho com uma rapariga da aldeia, de nome Joana. De condição humilde, sem condições para cuidar de si e da sua dignidade, vinha-se encontrando com o filho num espaço arborizado, discreto, no extremo do jardim, a troco - veio depois a saber! -, de comida e algum dinheiro. Ela própria, num dos passeios que costumava fazer diariamente, quando o tempo lho permitia, surpreendeu os dois nos preparos. Perante a leviandade e irresponsabilidade do filho, disse ao marido que havia necessidade de ambos fazerem alguma coisa, para evitar males maiores. Era a honra da família e os sagrados princípios cristãos que estavam a ser postos em causa! Dom José de Figueiredo sentindo o mesmo incómodo da mulher, abraçou-a e beijou-a na testa e prometeu ter uma conversa com o filho.

Dom José de Figueiredo já tinha sido alertado pela cozinheira Juliana e sua ajudante, Ambrósia, dos dizeres inconvenientes e perseguições que Joãozinho vinha fazendo às criadas. O que Dona Preciosa lhe acabava de contar não o surpreendia. O comportamento do filho em relação ao que acabava de ouvir correspondia e ajustava-se ao que dele se falava. E depois, ele próprio, o que também muito lhe desagradava, observava nele petulância, exibicionismo e tendência para a futilidade. Dado ao desleixo e regabofe, mais do que à ação útil, vinha valorizando a vida fácil, com bons cigarros, bons licores, e, pelo que se acaba de constatar, mulheres, com desrespeito por elas. Desgostava-o, ainda, o facto de, nas conversas com seus pares nos saraus que aconteciam com frequência no Solar, se referir aos camponeses sem um mínimo de respeito. Quando sobre eles falava, apodava-os de bestas, brutos e irracionais. Isso amargurava-o, Preview

levando-o, sempre que tal acontecia, a censurá-lo e a repreendê-lo.

Ia valendo a Dom José Figueiredo e a Dona Preciosa, para atenuar os desmandos do filho, as atitudes da filha, Teresinha, se situarem nos antípodas do comportamento do irmão. Teresinha, fisicamente esbelta, bonita de feições, pele branca, cabelos louros e lábios cor da romã, herança da mãe, tinha, de facto, um comportamento completamente oposto ao do irmão. Muito chegada à mãe, acompanhava-a nos rituais da igreja, na devoção pela santa da sua predileção, Nossa Senhora da Ajuda, no ensino às crianças da aldeia da doutrina da Igreja, nas ações de caridade com os mais pobres, levando-lhes sustento. A atitude da menina Teresinha, como era tratada, sendo o orgulho dos pais, granjeara junto dos aldeões amizade, respeito e admiração. Ela terá papel importante, como à frente se verá, na reparação de males e desmandos provocados pelo irmão.

Na Quinta de Vale Cabreiro, logo pela manhã, com o amanhecer pardacento e com rotinas de tarefas já definidas e assimiladas, cada um iniciou o seu dia. João Tolosa, aporreado com a atitude de Dom José de Figueiredo, menos boa a seu favor perante ao desaguisado que tivera com o ganhão, teve uma noite de insónias. Passada a noite, com o seu ego ferido, quis vincar bem, a seus olhos e aos olhos do patrão, o descuido de Joaquim Madruga. Como costume, depois de se ter erguido da cama, espreitou pela janela do quarto o alvorecer. Dirigiu-se, depois, com uma toalha na mão, a uma bacia em pedra granítica por baixo do telheiro contíguo à casa. Passou as mãos, em forma de concha, pela água e levou ao rosto, olhos e orelhas. Limpou-se com a toalha e dirigiu-se, depois, à cavalariça.

Preparou a égua, montou-a e orientou-a no sentido da aldeia, com o intuito de chegar à Ti’ Fernanda. Quis antecipar a conversa com ela sobre a formação do grupo das terças à de Joaquim Madruga, para justificar, depois, a Dom José de Figueiredo, a razão da reação incontida que teve para com o ganhão.

Não lhe valeu de muito! Na véspera o ganhão já tinha dito o que tinha a dizer a Ti’ Fernanda. Turbulento, palavroso em impropérios quando as coisas não lhe correm bem, saltou para a cela da montada e iniciou o costumeiro périplo pelos terrenos de cultivo do patrão. Havia que estar atento ao desempenho do pessoal a seu cargo, nas tarefas de momento. Na preparação dos alfobres das couves, das alfaces, do cebolo, dos alhos, no lançamento na terra das sementes de abóboras, melancias, melões, cenouras e de outros produtos hortícolas. No fertilizar das plantas, com substrato, e no atacar os

afídeos, lagartas, ácaros, entre outras pragas.

Enquanto o marido fazia naquele dia o seu périplo, Emília, já despachada da sua higiene matinal e pequeno-almoço parco e apressado, iniciou, com os criados Angélica e António, as tarefas programadas para esse dia. Os três, além do habitual, encher os bebedouros e comedouros da vaca leiteira e dos equídeos no estábulo - burro, cavalo e égua - e das aves na capoeira - galinhas, patos e perus -, tinham pela frente a continuação das tarefas dos dias anteriores, na ordenha da vaca, na ajuda ao pastor Manuel na ordenha das ovelhas e no fabrico dos queijos, na queijaria.

Rosália, mais dada às tarefas domésticas, tinha pela frente, como sempre acontecia, a limpeza da casa, tratamento das roupas e preparação das refeições. A dada altura, passou a entrosar-se com a mãe, Angélica e António em tarefas fora das suas atribuições, especialmente na queijaria. Fazia-o não por gosto, tais ocupações não eram a seu jeito. Com o protesto de ajudar, fazia-o por interesse e calculismo. Queria aproximar-se de António! Embora rapariga sonhadora, a pretender um melhor partido, um patamar que lhe proporcionasse fáceis mordomias, desafogo e luxo, havia uma razão para o seu desejo de aproximação a António! Já com vinte anos, sentia receio de ficar solteira. Ficar para tia, como por lá se dizia! E António, não sendo de todo, a seus olhos, de rejeitar fisicamente e vendo nele cativantes qualidades comportamentais e humanas, apresentava-se-lhe como possibilidade para superar os seus receios. António, amolgado desde criança pelos encontrões do meio em que fora criado, e com feridas ainda bem abertas da infância por sarar, era um rapaz simples, analfabeto, como todos da sua condição na aldeia, e superava essa perda com inteligência, associada a bondade e afabilidade no convívio com os outros. E isso constituiu fator determinante para dele se agradar Rosália. Filho de Manuel Lamúrias e Ambrósia, pais paupérrimos e desestruturados por conta

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de antagónicos feitios e dos parcos recursos que os sustentavam, não escapou, durante a infância, aos modos abrutalhados do pai que, sempre que lhe dava nas ganas, nele tosava por tudo e por nada. Ia-se valendo da mãe que, em constante desalinho com o marido e sensível às aflições do filho, se interpunha, sempre que lhe era possível, entre pai e filho, com o seu amor e zelo de fêmea em defesa de sua cria. No meio daquela miséria, Ambrósia funcionava como pilar de dignidade e também sustento da família. Sustento que lhe vinha da sua condição de ajudante da cozinheira Juliana no Solar de Dom José de Figueiredo. O soldo era parco, mas complementado com produtos alimentares de sobras que Dona Preciosa, por ela tendo consideração, lhe ia facultando.

A ida de António para a Quinta de Vale Cabreiro, a trabalhar por conta de João Tolosa e Emília, aconteceu por interferência de Dom José de Figueiredo, a pedido de Ambrósia que, também ele, Preview

António foi crescendo, tomando corpo, até que, já bem incorporado, e com o apoio da mãe, entesou-se e pôs cobro aos abusos do pai, num dia em que Manuel Lamúrias estava no preparo pronto para malhar de novo no pobre do rapaz. Tudo pelo simples facto de lhe estar a desobedecer de ir ao centro da aldeia, à taverna do Faustino, buscar vinho, a fiado, com o taberneiro de esperança perdida de o cobrar por dívidas sobre dívidas sempre a aumentar, para alimentar a carraspana diária e que não o largava. Dessa vez, perante a insistência do pai, António aproximou-se dele, agarrou-lhe pelo braço e disse-lhe:

- Não me volte a tocar, se o fizer, vai-se arrepender!

Manuel Lamúrias, ao ver o filho altivo e determinado a expressar a sua revolta e já com corpo a superá-lo em peso e altura, olhou-o com olhos faiscantes de cólera e limitou-se a lançar ao ar os palavrões do costume, iniciando, depois, repetidamente, um rosnatório ressentido e a bufar.

como Dona Preciosa, tinha por ela muita consideração. Para Emília, que com muito agrado o recebeu, era um bem, por o conhecer como bom rapaz e pelo jeito que lhe ia dar nas tarefas da quinta! Já João Tolosa, que associava o filho à imagem do pai de lambão e incorrigível bebedolas, a consumir compulsivamente da tasca do Faustino litros de vinho sem conta, colocou algumas reticências, mas, tratando-se da vontade do patrão, não tinha como não aceitar.

Com créditos de trabalhador aplicado e de boa pessoa, António entrosou-se facilmente com todos na quinta, incluindo com o próprio João Tolosa que, superando as reticências iniciais, acabou por se lhe afeiçoar, e, com a sua entrega e desempenho responsável, passou a considerá-lo um ativo importante nos trabalhos da quinta.

Já perto de completar vinte anos, a atividade de António na quinta foi interrompida, entretanto, durante quinze semanas, para prestar serviço militar obrigatório, com mais dois mancebos da aldeia, o Alberto Chona e o Chico Vintém, por força da lei em vigor sobre o serviço militar. Cumpridas as quinze semanas, regressaram os três à Aldeia Formosa, na condição de reservistas, sujeitos a serem chamados de novo ao ativo, caso o Exército deles precisasse.

Acabado de regressar aos trabalhos da quinta, depois da passagem pelo Exército, Rosália, com a ideia fixa associada aos medos que tinha de ficar solteira, como dito atrás, começou, com os seus sonhos desmedidos e de grandeza a ficarem de lado, a querer de novo aproximar-se de António, para dar rumo à sua vida. Determinada, com subtileza e calculismo, ia aproveitando os momentos oportunos para, a sós, se insinuar. Provocadora e ousada, no porte e nas vestimentas, as tentativas iam-se sucedendo, com António a perceber, mas a fingir não perceber, com receios de problemas futuros a pensar nas reações desfavoráveis que poderiam surgir da parte de Emília e João Tolosa.

No Solar, vinham acontecendo saraus, de vez em quando, com Dom José de Figueiredo e Dona Preciosa a convidar ilustres amigos da região, entre eles Dom Nuno de Ataíde e Dom Henrique Trigoso, acompanhados pelas respetivas mulheres, Dona Mercês, Dona Mafalda, e filhos de cada um dos casais. Além dos ilustres amigos, convidavam também para os eventos pessoas da aldeia que, pelo seu estatuto, estavam próximos dos seus pergaminhos de classe e do seu nível de entendimento do mundo e das coisas: padre Miguel e médico Aristides Ferreira, ambos cuidadores dos males da família, da criadagem e dos aldeões, um dos espirituais e o outro dos físicos. Depois do desgosto neles provocado pelas tropelias do filho Joãozinho, havia que reagir e dar continuidade ao salutar costume dos saraus, os quais possibilitavam sempre, além do fortalecimento e consolidação das amizades, falar com os amigos sobre diversos assuntos, designadamente da cultura e da atividade política no país e no mundo. E nessa altura, dezembro de 1915, havia muito a conversar! No horizonte começavam a aparecer nuvens negras e preocupantes no mundo e no país, com o eclodir do conflito no centro da Europa, espoletado pelo assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, em Sarajevo, na Bósnia, no dia 28 junho de 1914, com reflexos em todo mundo e, naturalmente, também em Portugal.

Aproximava-se o segundo sábado do mês, marcado para a realização do evento. Todos no Solar, donos e criadagem, se mobilizaram para a receção aos convidados. Os anfitriões, como de costume, depois de terem formalizado os convites e rececionado as respetivas respostas, tudo fizeram para que nada faltasse. Contrataram um pianista,

especialista em música clássica, para os convidados não trôpegos e mais dados à dança se comprazerem ao som das valsas e polcas dos prestigiados compositores da família Strauss de Viena e de músicas de outros compositores. Para o banquete, pediram ao feitor, João Tolosa, que lhes levasse, já devidamente preparado para ser cozinhado, um dos melhores cabritos da Quinta de Vale Cabreiro, bem como os ingredientes hortícolas para acompanhar e fruta para comer e confecionar as sobremesas. Diligente, o feitor, cioso por agradar, tratou logo de encarregar António de levar ao Solar na véspera do evento tudo o que Dom José de Figueiredo lhe havia pedido. No dia do sarau, com o aproximar da hora do jantar começaram a chegar ao Solar, a pouco e pouco, os convidados vindos de fora da aldeia, em charretes puxadas por cavalos com o couro lustroso, uns de cor branca, outros castanha e preta. Primeiro chegou o casal Trigoso, com o filho Francisco, e depois os Ataíde, com os filhos Matilde e Santiago. Coadjuvado pela preceptora Arlete, Dom José de Figueiredo esperava-os no átrio de entrada e, à medida que iam chegando, dava-lhes as boas-vindas e encarregava a preceptora de os conduzir, depois de troca de salamaleques e palavras de ocasião, ao salão das refeições, onde já se encontravam o padre Miguel e o médico Aristides Ferreira com a mulher, Josefina, conversando, em amena conversa, com Dona Preciosa, Teresinha e Joãozinho.

Reunidos todos os convidados, Dona Preciosa dirigiu-se à cozinha para perceber se tudo estava a acontecer conforme as orientações antes dadas à cozinheira Juliana, designadamente nos condimentos a utilizar e, também, se tudo estava pronto para se dar início ao banquete. Depois de provar cada uma das travessas com as iguarias, de as ter aprovado e de ter recebido da cozinheira que estavam reunidas todas as condições para se iniciar, voltou ao salão e convidou todos a ocuparem os seus lugares.

Cada um se acomodou, com os anfitriões ao centro, os casais Preview

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Trigoso e Ataíde a ladeá-los, o padre Miguel e médico Aristides Ferreira e a mulher à frente no outro lado da mesa. Dom José de Figueiredo proferiu algumas palavras de agradecimento pela presença de todos, acrescentando que ele e Dona Preciosa, pelo facto, se sentiam muito honrados. Logo de seguida, a antecipar o começo da refeição, levantou-se o padre Miguel e pediu a todos para o acompanharem na oração de agradecimento a Deus:

“Dignai-vos, Senhor, abençoar o alimento que vamos tomar, para melhor vos servirmos e amar.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.”

Enquanto iam degustando as iguarias, os comensais iam falando das suas atividades do dia a dia e dos sucessos e insucessos inerentes às mesmas! O padre Miguel manifestava-se contente com a entrega por alguns paroquianos, os de mais posses, de donativos para as necessidades da paróquia e também do apego, de quase todos na aldeia, à doutrina da Igreja. Carregava consigo, no entanto, alguma preocupação pelo facto de alguns jovens se estarem a afastar progressivamente do catolicismo. Defensor da Monarquia, atribuía o facto à República, instaurada em 5 de outubro de 1910, especialmente aos governos chefiados por Afonso Costa, que classificava de radicais, comprometedores da ordem e dos bons costumes. O médico, contrariamente, mais ligado aos males físicos dos aldeões, às mazelas e misérias daí decorrentes e de outras associadas, consciente da necessidade de mudanças arrojadas e eficazes na sociedade para debelar os grandes males e injustiças sociais, ia-se manifestando defensor dos ideais da República.

Dom José de Figueiredo, Dona Preciosa e os membros das famílias Ataíde e Trigoso, todos eles conservadores, tradicionalistas, com algumas nuances entre eles, eram defensores da monarquia e iam lamentando o rumo para onde Afonso Costa estava a levar o país. O médico, isolado, mas mais entranhado nos problemas sociais,

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