O Caçador de Brumas | Parte 1-2

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o caçador de brumas Já se passaram tantos meses desde a manhã em que desembarquei no Lobito. Parece que foi ontem à tarde que deixei a minha aldeia. Sem saber porquê, como filme na minha mente, desenrolam-se as cenas ocorridas. Talvez seja a saudade dos bons momentos da vida em família, da amizade de toda aquela gente. Quando o moço de ganhão tocou o carro das vacas onde seguiam os baús de madeira e as malas de lata – aquilo a que a minha mãe chamava o bragal do filho – não pude conter as lágrimas. As criaditas da minha mãe faziam um berreiro, como se de enterro se tratasse. Todas vieram acompanhar-me até ao cimo do povo, acenando com lenços brancos ao menino que ia para as Áfricas. Até o meu pai tinha os olhos húmidos enquanto, sentado ao meu lado nas traseiras e com as pernas caídas do carro de bois, dizia: – Os amigos são para as ocasiões. O amigo Deodoro cuidará de ti como um pai. A minha mãe mostrara inteireza no lauto jantar de despedida. Compareceram os amigos da família: o senhor Ferreira, o senhor Barradas, amigos de sempre, o padre Fatela, nosso prior. Ela fora sempre a trave-mestra da família. Levantava-se ainda noite, preparava tudo, e dava as ordens à minha irmã Gracinda. Depois ia para a escola ensinar, desde as primeiras letras ao segundo grau. Vinha dar-nos o almoço e regressava pronto para fazer a parte da tarde. Estava na escola até às quatro, no Inverno, e até às cinco, no Verão. Só nas férias tínhamos mãe em casa. Naquele fim de tarde beijou-me repetidas vezes nas faces molhadas. Apertou-me contra o peito largo. Sussurrando com voz terna mas serena, deu-me a bênção e disse: – Vai filho querido É preciso… é preciso e necessário. És valente e vais ter sorte. Aqui nunca poderias ser empregado de ninguém. Lá é muito diferente. A África é longe. Depois, do bolso do avental de seda preta que colocava por cima da saia, tirou o relógio que guardava e fora do seu pai, sargento na Guarda Real. Meteu-mo na mão e disse: – Guarda-o bem… era do teu avô. Serás, como ele foi, um homem de carácter.

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