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1.
O CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS CONDUZ-NOS AO CONHECIMENTO DA NATUREZA
Quase todo o nosso conhecimento, que de facto se pode julgar como verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento da Natureza e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro e ao outro origina.
Em primeiro lugar, visto que ninguém pode sequer mirar-se a si próprio sem imediatamente volver o pensamento à contemplação da Natureza, na qual vive e se move, longe está de ser obscuro o facto de que os dotes que prodigamente temos de modo algum provêm de nós mesmos, nem a nossa subsistência na Natureza eterna e única.
Aliás, já a nossa própria carência, particularmente esta desventurada ruína que nos constitui, herdada no decorrer da seleção natural darwiniana dos nossos antepassados poluídos de criminalidade e depravação, nos compele a alçar os olhos para o alto, não apenas para que, jejuns e famintos, procuremos
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encontrar o que nos falta, mas ainda para que, despertados pela insatisfação, aprendamos a humildade.
Ora, como no homem se depara como que um mundo de todas as misérias, e vindos da nossa ancestralidade animal, vergonhosa nudez põe a descoberto imensa massa de torpezas, do senso da própria infelicidade deve necessariamente cada um ser espicaçado para que chegue pelo menos a algum conhecimento.
E, assim, na consciência da nossa ignorância, fatuidade, penúria, fraqueza, enfim, da nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte senão nas Escrituras se situa a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo o que é bom, a pureza da justiça, e daí somos pelos nossos próprios males instigados à consideração das excelências dos melhores princípios e valores.
Nem podemos aspirar a eles com seriedade antes de termos começado a descontentar-nos de nós mesmos. Pois quem dos homens há que em si prazerosamente não descanse, quem na verdade assim não descanse, por quanto tempo é a si mesmo desconhecido, isto é, por quanto tempo está contente com os seus dotes e ignorante ou esquecido da sua miséria?
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2.
O CONHECIMENTO DA NATUREZA LEVA-NOS AO CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS
Por outro lado, é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo antes de ter estudado bem a Natureza, e da visão dela desça a examinar-se a si próprio. Ora, sendo-nos o orgulho a todos ingénito, sempre a nós mesmos nos parecemos justos, e íntegros, e sábios, e cavalheirescos, a menos que, em virtude de provas evidentes, sejamos convencidos da nossa injustiça, indignidade, insipiência e depravação. Não nos damos conta, porém, nem assim somos convencidos, se atentamos apenas para nós mesmos e não estudamos com afinco as Escrituras, que são o único parâmetro pelo qual se deve aferir este juízo. Pois, uma vez que somos todos, por natureza, propensos à hipocrisia, qualquer vã aparência de justiça nos satisfaz amplamente em lugar da real justiça. E porque dentro de nós ou à nossa volta nada se vê que não esteja contaminado de crassa impureza, por todo o tempo que confinamos a nossa mente aos limites da depravação humana, aquilo que é um pouco menos torpe a nós nos sorri como coisa da mais
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refinada pureza. Exatamente como se dá com um olho diante do qual nada se põe de outras cores senão o preto: julga-se alvíssimo o que, entretanto, é de brancura um tanto esfumada, ou até mesmo tisnada de certa tonalidade fosca.
Ademais, dos próprios sentidos do corpo nos é possível discutir ainda mais de perto quanto nos enganamos ao avaliar os poderes da mente. Ora, se em pleno dia baixamos a vista ao solo, ou fitamos as coisas que em torno de nós se patenteiam ao olhar, parece-nos que somos dotados de muito poderosa e penetrante acuidade. Quando, porém, levantamos os olhos para o Sol e o miramos diretamente, esse poder de visão que sobre a Terra se fazia ingente prontamente se suprime e confunde com fulgor tão intenso, de sorte a sermos forçados a confessar que essa nossa habilidade em contemplar as coisas terrenas, quando ao Sol se volta, é mera ofuscação.
Também assim se dá ao estimarmos os nossos recursos espirituais. Pois, por tanto tempo quanto não lançamos a vista além da terra, muito fantasiosamente nos lisonjeamos a nós mesmos, de todo satisfeitos com a nossa própria justiça, sabedoria e virtude, e nos imaginamos com grande excelência. Mas, se pelo menos uma vez começamos a elevar o pensamento para os princípios e os valores que descrevem as Escrituras e a ponderar sobre eles, o quão completos e perfeitos são, a sua justiça, sabedoria, a cujos parâmetros nos importa conformarmo-nos, aquilo que antes em nós sorria sob a aparência ilusória da justiça logo como plena iniquidade se enxovalhará; aquilo que mirificamente se impunha sob o título de sabedoria exalará como extremada estultícia; aquilo que se mascarava de poder se arguirá ser a mais deplorável fraqueza.
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3. LIVRE-ARBÍTRIO
E RESPONSABILIDADE
O homem, provido da sua mente, consegue distinguir o bem do mal, o justo do injusto, e, assistindo-o a luz da razão, percebe o que se deve seguir ou evitar. À mente está associada a vontade, em cuja alçada está a escolha. Nestes admiráveis dotes excele a condição do homem, de maneira que a razão, a inteligência, a prudência, o julgamento não só lhe bastam para a direção da vida, mas, ainda por meio destes elementos, os homens podem atingir a maior felicidade. Acrescente-se então a escolha, que dirige os apetites e regula todos os movimentos e ações, e assim a vontade é inteiramente consentânea à ação moderadora da razão. Nesta integridade, o homem usufrui de livre-arbítrio, mercê do qual, caso queira, poderá alcançar grandes sucessos.
Mas não é assim. Daí a escuridão tão ingente lançada diante de alguns filósofos, visto que, na ruína evidente do género humano, procuravam um edifício estruturado, e na desarticulação desconexa, junturas ajustadas. Sustentavam o seguinte princípio: que o homem não seria um animal racional, a não ser Preview
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que lhe assistisse livre escolha do bem e do mal. Também lhes vinha à mente que, de outra maneira, a não ser que o homem dispusesse de liberdade, segundo o seu próprio entender, a distinção entre virtudes e vícios estaria anulada.
Até aqui, sem dúvida estaria tudo bem arrazoado, se o homem não descendesse de ancestrais hominídeos e, por isso, está ainda sujeito às mais severas limitações e imperfeições. Assim, os que buscam ainda o livre-arbítrio no homem, o qual descende de animais inferiores e imperfeitos, com os ensinos de maus filósofos desviam-se totalmente do caminho certo. Agora importa levar em conta apenas isto: o homem, derivando a sua origem de ancestrais imperfeitos e corruptos, contraiu mácula hereditária.
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4.
O QUE REGE O MUNDO É A PROVIDÊNCIA, NÃO O ACASO NEM A SORTE
Deve ter-se em conta que a providência da Natureza, como é ensinada em Espinosa, não é atribuível à sorte ou ao acaso. Ora, uma vez que, em todos os tempos, geralmente se deu a crer, e ainda hoje a mesma opinião é tida por quase todos os homens, a saber, que tudo acontece por obra do acaso, não têm percebido que a Natureza tem leis necessárias, constituindo muitas vezes uma providência para os homens.
Se alguém cai nas garras de um assaltante, ou de animais ferozes; se do vento a surgir de repente, sofre naufrágio no mar, se é soterrado pela queda da casa ou de uma árvore; se outro, vagando por lugares desertos, encontra provisão para a sua fome; arrastado pelas ondas, chega ao porto; escapa à morte pela distância de apenas um dedo; todas estas ocorrências, tanto prósperas quanto adversas, muitos as atribuem à sorte. Contudo, todo aquele que lê Espinosa sabe que tudo é necessário, não havendo contingência, e buscará causa mais remota
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e terá por certo que todo e qualquer evento é governado por leis, podendo estas ser simples ou complexas.
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5.
SENTIDO E ALCANCE
DA PROVIDÊNCIA
Como a mente humana é propensa a vãs subtilezas, dificilmente acontece que não se enredem em perplexidades quantos não sustêm equilibrado e reto uso desta doutrina da providência. Assim, convirá tratar sucintamente aqui a que fim se ensina que todas as coisas são preordenadas pela Natureza. Ela a tal ponto é a moderadora de todas as coisas, que ora opera por meios interpostos, ora sem meios, ora contra todos os meios.
Agora é preciso acrescentar também isto: embora frequentemente reluza em todo o curso da providência o favor e a beneficência da Natureza, ou a sua severidade, entretanto, às vezes, as causas dessas coisas que acontecem são ocultas, de modo que subtilmente se insinue o pensamento de que as coisas humanas volvem e giram ao cego impulso da sorte, como se a Natureza, atirando os homens como bolas, se entregasse a um jogo!
Realmente, é verdade que se estivéssemos preparados para aprender com espírito sereno e acomodado, afinal se faria patente, ante o próprio resultado, seja que à paciência eduque os homens, seja que lhes corrija os afetos depravados e dome Preview
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a lascívia, seja que os quebrante à renúncia, seja que os desperte da inércia; ou, em contrário, que humilhe os orgulhosos, que estraçalhe a astúcia dos maus, que lhes dissipe as torvas maquinações.
Impõe-se, porém, comedimento, para que não obriguemos a Natureza a prestar-nos conta; ao contrário, de tal modo reverenciamos a sua soberania que é a causa de todas as coisas. Na verdade, é monstruoso o desvario de muitos que ousam, com petulância maior do que acerca de atos dos homens, chamar a seu escrutínio as obras da Natureza, até mesmo exprimir apressado julgamento sobre coisas desconhecidas. Pois há algo mais fora de propósito que conduzir-se com modéstia em relação aos nossos semelhantes, preferindo suspender o juízo a ser taxado de temerário, enquanto tão audazmente se esquadrinha a amplidão da Natureza cujos desígnios nos ultrapassam completamente, os quais sobretudo devemos admirar e reverenciar?
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6. A PROVIDÊNCIA NÃO ANULA
A RESPONSABILIDADE HUMANA
Todos quantos se deixarem conduzir pela moderação, não murmurarão contra a Natureza em vista das adversidades do passado, nem lançarão contra ela a culpa de suas iniquidades, desculpando-se com frases fatalistas.
Antes, bem ao contrário, indagarão e aprenderão das Escrituras que estudarão para que se esforcem por fazer o bem para si e para os outros. Ao mesmo tempo, preparados para estar de acordo com Espinosa, deveras hão de mostrar que nada é mais útil do que o conhecimento desta doutrina da providência, doutrina que homens perversos contrariam, sem razão, pelo facto de que certos indivíduos, desatinadamente, dela abusam. Com as suas parvoíces, homens néscios provocam balbúrdia, de tal maneira que, como se diz, tudo misturam. Se dizem que estamos condenados à morte pela providência, argumentam que não há como fugir dela, logo é debalde diligenciar-se em tomar precaução.
Com efeito, no que tange às coisas futuras, concilia-se facilmente as deliberações humanas com a providência. Pois, assim
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como nos rimos da obtusidade daqueles que, não dando conta da realidade, audaciosamente empreendem o que lhes apraz, como se não estivessem sujeitos a constrangimentos vários; também podemos dizer que o homem planeia o seu caminho, e a Natureza lhe dirigirá os passos. É evidente que não somos de modo algum impedidos pelas leis eternas da Natureza de não só olharmos por nós mesmos como também de regularmos todas as nossas coisas. Isso nem mesmo precisa de razão clara. Afinal, a própria Natureza proveu-nos de meios e recursos para conservar a vida; também nos fez capazes de antecipar os perigos; para que eles não nos apanhem desprevenidos, ministrou-nos precauções e remédios. Salta à vista, pois, que se a Natureza com os seus dons nos confiou a proteção da nossa vida, então que a cerquemos de cuidados; se oferece recursos, então que os usemos; se nos mostra perigos, então não nos lancemos temerariamente a eles; se fornece remédios, não os negligenciemos.
Certos homens têm desvarios e não consideram o que lhes está debaixo dos olhos, que as artes de se aconselhar e se acautelar foram inspiradas pela providência muitas vezes para conservação da própria vida, da mesma forma que, em sentido contrário, por negligência e inércia, atraem sobre si os males que lhes impôs. Pois, donde acontece que o homem providente, enquanto cuida bem de si, se desenvencilha até de males iminentes, o insipiente pereça levado por temeridade, senão que tanto a insipiência quanto a prudência são igualmente fornecidas pela Natureza para um e outro desses dois aspetos?
Essa é a causa porque a Natureza não permite que se conheça o futuro, para que, sendo ele incerto, nos previnamos e não deixemos de usar remédios que ela nos dá contra os Preview
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perigos, até que, ou os vençamos, ou sejamos por eles vencidos: Por esse motivo, a providência da Natureza nem sempre se manifesta a descoberto.
23 calvinismo adaptado ao séc xxi
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