Nada Mais e o Ciúme

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Nada Mais e o Ciúme

Já não dirijo a força do meu próprio olhar, sou incapaz de desfitar, agora, o corpo do Professor E. C. Bernardo, esvaziado de respiração, cessado de viver, como se fosse a única indiscutível ilustração do seu tentado teorema contra o movimento; estendido, todo ele de negro, num fúnebre contraste com o branco daquela espécie de tabuleiro em que jaz na capela; imune ao murmúrio, à lamúria, ao odor docemente pestilento das flores. Como está magro! Como se retraíra fisicamente nos últimos meses. Observo fixa e atordoadamente o complexo de rugas que os gatos-pingados não disfarçaram, as entradas pronunciadas, a tez olivácia, as pálpebras concluindo pesadamente os seus olhos. Quase nenhum dos amigos mais próximos do Professor E. C. Bernardo tinha conhecimento do cancro. Poucos prestavam atenção ao blogue onde ainda se insurgia contra o verdadeiro cancro que o incomodava, «o modo», escreveu ele aí, «como a música é destratada em Portugal». Muito poucos saberiam que, nas últimas semanas, tentara, numa esperança um tanto ridícula para um homem tão perto do fim (como Sócrates aprendendo a tocar flauta nos últimos dias

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