Escrever para quê? Se ninguém nos lê...

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ESCREVER PARA QUÊ?

SE NINGUÉM NOS LÊ…

JORGE VIEGAS

FICHA TÉCNICA

título: Escrever para quê? Se ninguém nos lê…

autor: Jorge Viegas

edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro)

ilustração capa: Lívio de Morais

arranjo de capa: Ângela Espinha

paginação: Alda Teixeira

1.ª Edição Lisboa, junho 2025

isbn: 978-989-8986-99-3

depósito legal: 547951/25

© Jorge Viegas

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publicação e comercialização: www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

Moçambique conta com mais um poeta – Jorge Viegas

De Quelimane chegou até nós uma pequena colectânea de poesia intitulada “Os Milagres”, da autoria de Jorge Viegas. Uma nota biográfica de extremo laconismo informa que o poeta nasceu em 1947, em Quelimane, cidade onde reside e onde também foi composto e impresso o seu livro, o que talvez explique o seu mau aspecto gráfico da colectânea.

Antes de mais, convirá aclarar e confirmar aquilo que o nosso título deixa prever aos leitores – Jorge Viegas é uma revelação que, sem favor, tomamos como notável.

A sua juventude denuncia-se através das influências sensíveis, e ainda em fase de se sucederem com certo anacronismo, em jeito de descobertas que ferem muito fundo e produzem certo eco. Entretanto, acontece que, apesar de jovem, conseguiu já Jorge Viegas dizer algo de pessoal e com uma voz que possui o seu timbre próprio.

A sua colectânea divide-se em 3 cadernos, dos quais preferimos o último por melhor realizado e também porque aí as influências se mostram menos e ainda porque o poeta soube evitar algumas concessões formais a esquemas que o levam a tropeçar algumas vezes em defeitos de mau gosto.

JORGE VIEGAS

Estas objecções não invalidam nem sequer diminuem a certeza de que a poesia moçambicana conta agora com mais um poeta de mérito, por sinal revelado nessa mesma Quelimane que ainda há pouco nos surpreendeu com a revelação desse poeta, não menos meritório, que se oculta sob o pseudónimo de Sebastião Alba.

Fernando Couto e Artur Costa

Jorge Viegas: Uma Ética Tenaz

Pires Laranjeira

O novo livro de poesia de Jorge Viegas (nascido em Moçambique em 1947), Novelo de Chamas (1989, Edições ALAC, de Manuel Ferreira), surge sete anos após O núcleo tenaz (1982, Maputo). Implicado numa poética neo-romântica de discursividade clássica, com certa sedução por um vocabulário parnasiano e simbolista (ónix, alistridente, flexuosa, alabastro, etc.), Jorge Viegas propõe-nos ardilosamente a agudeza e o rigor do realismo.

Sensações e imagens românticas de um sujeito poético desesperado, solitário e magoado que glosa o amor, a ternura e a amizade (a sua perda, a sua dificuldade em cultivá-los) como dos poucos bens inestimáveis, são vazadas em métricas e rimas, sonetos, odes, redondilhas maiores de tom elegíaco e trágico, sem que nisso se perca um sentido vigoroso e incisivo da clareza e da impressiva realidade de um ente atormentado mas concreto. É esse perfil romântico, de linguagem dorida e reluzente, que transparece no seu realismo (na sua pujança e veracidade sentidas) propenso ao desespero. Preview

Alguns poemas não se enquadram no panorama atrás mencionado: pequenos epigramas líricos, cépticos ou cínicos, por vezes humorísticos, que, nalguns casos, deveriam ter sido excluídos, de acordo com uma visão mais homogeneizante da organização do livro.

Exclusão que deveria estender-se a poemas como «Construção», mais próximo da prosa de intenção pedagógica ou ética.

Parecendo não ter passado pela sedução do modernismo, do surrealismo e do experimentalismo, Viegas procura sobretudo uma poesia como revelação divina no homem, sem que ela deixe de se apresentar, todavia, em última análise, enquanto criação (responsabilidade) do poeta: «a rocha impávida quando o poeta quer é Deus; nenhum deus vela à minha cabeceira».

A nomeação de Deus é frequente porque para o autor a poesia é a «fúria vocabular de Deus» («O poeta »).

O «Novelo de Chamas» (a alma em fogo) do poeta, o seu «núcleo feroz» («Soneto») ou «núcleo tenaz» (retomando o título de 82), a essência do ser e da poesia, desenreda-se através da loucura (metáfora provável da própria criação), única forma de liberdade permitida. Essa rebeldia (involuntária, porque inerente) conduz o sujeito ao mistério e ao sonho, no interior da cerração, da obscuridade, onde o único escape, o único caminho iluminado, se apresenta na sedução da escrita no papel em branco.

Embora com estilos diferenciados, há uma identificação entre Jorge Viegas e João Maimona (Angola) quanto ao neo-romantismo e ao pendor elegíaco. No poeta moçambicano as leituras portuguesas abarcam, de forma mais nítida e explícita, autores como Camões e Cesário. Talvez essa fidelidade, esse cultivo clássico da língua (em que se reconhece uma tradição «arcaica», não de modernidade radical), o leve a tomar o sentido patriótico como meramente natural e amoroso (a terra, as mulheres e o amor), a que a identificação com a língua portuguesa confere um âmbito mais vasto, ainda e sempre à maneira pessoana (não explicitada). Significará, por outro lado, uma desilusão amorosa em relação à pólis, ao sociopolítico?

Há um desencanto de cariz social e político (a morte da utopia colectiva), em plena assunção da ética estóica no desemparo individual. Para além dessa contingência, poemas como «Os bárbaros» e «Os mastins» inflectem para uma crítica do poder (de modo genérico), que alarga o alcance desta poesia desenvencilhando-a da datação e da circunscrição a fenómenos restritos, universalizando o poético/ político.

«Um poeta muda de pátria/ e muda de lugar», escreve Jorge Viegas, mas, onde quer que esteja, mantém raízes, que são difíceis de obliterar.

Por isso, a homenagem a Mondlane. Ama-se a terra e não sei se o povo – essa entidade mítica sem rosto. E farpeiam-se os poderes discricionários de todos os tempos e lugares: «Os Preview

temíveis cães de guarda/ cuja missão é defender/ a corrupção que se instala no poder»; «os cães de fila são intemporais».

Na sua objectividade material, a poesia de «Novelo de Chamas», é intemporal e universal, se descontarmos alguns trechos feridos por essa memória ácida da terra, do afecto e da ilusão. Os lugares da infância e da juventude são permanentes na memória e, no corpo do poema, há frases que só se entendem nessa perspectiva. A distância e o distanciamento fazem desta poesia um texto de sofrimento, saudade e revolta, de que resta, no final, o sentido último do desenraizamento e, finalmente, da compreensão decisiva da solidão inteira do poeta.

A angústia humana ocupa

os horizontes

As minhas primeiras palavras vão para fazer um elogio ao Delmar pelo seu intenso activismo cultural. Em lugares diversos de Portugal, a literatura moçambicana consegue alguma divulgação através do trabalho por ele desenvolvido. Pela sua persistência, pela sua dedicação, pela sua empatia capaz de congregar pessoas e instituições no sentido de alcançar os seus objectivos, o Delmar merece a admiração e o agradecimento de todos nós.

O título desta comunicação não é meu. “ A angústia humana ocupa os horizontes ” é um verso solto, retido na minha memória, isolado do poema de que faz parte e do seu autor, dado que não me lembro de nenhum dos outros versos, e nem do nome de quem os escreveu. Mas no referido verso julguei encontrar a epígrafe ideal para o meu discurso. Porque o tema de fundo do que pretendo dizer é o da angústia humana, tanto a individual como a colectiva, no modo como foi sentida e expressa por alguns poetas moçambicanos.

Das muitas linhas de diferenciação entre a literatura portuguesa e a literatura moçambicana, uma delas poderá ser a seguinte: A literatura portuguesa é fundamentalmente o substrato anímico duma nação consolidada. A literatura moçambicana é um sistema operativo da linguagem que tem como objectivo definir as coordenadas espirituais duma nação a construir-se.

Na história da literatura mundial, as literaturas portuguesa e moçambicana não podem ser analisadas em “compartimentos estanques”. Elas estão ligadas por um sistema de vasos comunicantes, cujo propulsor principal é o de terem uma língua comum.

Angústia individual. Angústia colectiva. Angústia existencial. Angústia massiva. Angústia murmurada. Angústia gritada. Tonalidades e modos diversos expressos por alguns dos nomes definitivos da poesia moçambicana: Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, José Craveirinha e Armando Guebuza. Reinaldo Ferreira. O emigrado astral da poesia moçambicana. O poeta que cumpriu o mandato de Eugénio de Castro: “Procuremos somente a beleza, | porque a vida | é um punhado infantil de areia ressequida | um som de água e de bronze | e uma sombra que foge”. A angústia de Reinaldo Ferreira obedece às leis que regem os destinos dos astros. Como o universo ela está sempre em expansão, e sente sobre si o peso da eternidade:

Contente nunca estou; feliz não sei

Se existe alguém ou neste ou noutro mundo.

Vou para o Nada, sou do Nada oriundo,

E entre dois Nadas desventura é lei.

De cobarde esperança emancipei

A previsão do meu destino imundo.

Sou consciente do mal em que me afundo,

E consciente do mal continuarei.

Nem revolta me fica, apenas pressa

De me tornar por fim parada peça

No cósmico rolar nefasto e louco.

Depois quero dormir um sono enorme…

Que para uma aflição que nunca dorme

A Morte, temo bem que seja pouco.

Rui Knopfli – Um inovador na forma, e nos temas, da poesia moçambicana. O registo dos sinais do tempo, a voz discursiva das realidades circundantes, tanto a social como a natural, o ponto de encontro e de dispersão das grandes linhas de força da poesia universal. O seu poema “gritarás o meu nome” fala-nos da angústia gerada pela impossibilidade de comunicação:

Gritarás o meu nome em ruas

Desertas e a tua a voz será

Como a do vento sobre a areia:

Um som inútil de encontro ao silêncio.

Não responderei ao teu apelo,

Embora ardentemente o deseje.

O lugar onde moro é um obscuro

Lugar de pedra e mudez:

Não há palavras que o alcancem, Gelam-lhe os gritos por fora.

Serei como as areias que escutam

O vento e apenas estremecem.

Gritarás o meu nome em ruas

Desertas e a tua voz ouvirá

O próprio som sem entender,

Como o vento, o beijo da areia.

Teu grito encontrará somente

A angústia do grito ampliado,

Vento e areia. Gritarás o meu

Nome em ruas desertas.

José Craveirinha – Poeta em estado de nação. Está no panteão nacional moçambicano não na qualidade de poeta, mas na condição de herói. Poeta subversivo, poeta clandestino, poeta prisioneiro político. O pulsar indómito do coração de África.

Alguns dos seus versos são a memória descritiva de dores físicas imemoriais: “Mordaças. | Palmatoadas. | Calabouços.

| Anilhas de ferro nos tornozelos.” Outros versos referem a desestruturante dor moral que sobrevém quando um ser humano se sente obrigado a aceitar a temporária demissão do seu próprio eu idealizado:

O vício do tabaco

Era não!

Mas o tabaco

É um vício.

E o vício

Fumado nas omoplatas

Põe-nos sobre a língua a nicotina

E descerra os lábios

Para o sim.

Armando Guebuza – Chefe militar, estadista, e poeta moçambicano. Uma voz centrada na tradição cultural africana que, ao evocar o peso opressivo do tempo antigo, apela para a necessidade de extinguir definitivamente as suas influências negativas no tempo presente:

O sofrimento

Vi as tuas mãos crisparem-se convulsas

Querendo prender-se ao solo pátrio

Que os estrangeiros te querem roubar

Vi as tuas mãos agarrarem-se com força

Às árvores verdes das savanas

Querendo travar a noite horrenda e ingrata

JORGE VIEGAS

Vi os teus dedos tremerem

Tremerem tiritando de raiva

Frente à infâmia extrema de estrangeiros corruptos.

Vi teu coração a bater

A bater mil vezes a bater

A pulsar de febre sangrenta

Rebelde à extravagância ignóbil.

Vi tudo isto

Depois de ter sentido

A dor extrema de ser sem terra

Em minha própria terra.

Vi tudo isto

Depois de suportar a dor da corrente de séculos

Perseguindo sempre o meu pescoço negro.

Vi e senti tudo isto

E não me calo

Não me calo quando te vejo crispar as mãos de raiva

Sofrer como eu

Vou falar aos vales e montes escarpados

Vou bradar aos mares e oceanos medonhos

Vou gritar p’ra o sol ardente

Vou cantar aos guerreiros da África

Toda a miséria

O sofrimento,

O desespero a acabar.

Vou falar numa língua dos avós

P’ra ser ouvido em todos os cantos.

Bodki de Agostinho Fernandes

Li com gosto o romance acima assinalado do cardiologista Dr. Agostinho Fernandes. Surpreendi-me por não ter referência alguma deste escritor, antes de o Mário Cirilo, editor da revista “Voz do Oriente”, me haver emprestado um exemplar de Bodki, que eu considero ser uma obra invulgar. Porque, no fundo, é um livro para pessoas crescidas que tem o condão de despertar o adolescente que subjaz em todos nós.

Eis-nos diante duma história com a gravidade duma tragédia que se deixa invadir pela irrealidade sem fronteiras das mitologias activas. Bodki, que será em última análise, o registo das oscilações da consciência de um médico, é também a cristalização de personagens perdidas nas margens do tempo, portadoras de valores e crenças das quais os herdeiros da civilização tecno-industrial se encontram totalmente alheados.

Nesta obra fatalista os critérios de objectividade das mentalidades lógicas como que recuam perante o apelo avassalador das interpretações míticas que regulam, a partir dos Preview

deuses, os modos de entender e de proceder dos humanos: “Fora também num domingo que eu chegara, no velho e antiquado Chitrapur. Depois fora o sucesso, os dias de trabalho, a vida agitada de médico de bairro, sempre a lutar com as superstições que surgiam de todos os lados como teias de aranha tentando embargar-me o passo. Lutara contra elas e saíra vencedor. Agora, porém, eram as mesmas superstições que acabavam de me vencer, de me aniquilar. Era o fim. Fim trágico, terrivelmente trágico.” – “Lena grávida e o noivo, carbonizado. De repente lembrei-me do gaddi... “Elas trazem desgraças...” Seria verdade? Que ideia... Uma simples coincidência, simples e terrível. Fiquei a pensar como a situação da Lena era idêntica a de Kamala. “Agora é uma bodki”, murmurei eu com um sorriso amargo...

Num processo de escrita sem grandes pretensões estilísticas o autor consegue insuflar vida própria nas suas personagens, demarcando-as na sua singularidade com uma nitidez que as torna memoráveis.

Neste tempo em que das mais variadas formas se tenta justificar a fuga dos cérebros, Bodki vem segredar às nossas consciências que os médicos, para além de terem cérebros, devem ser portadores de almas: “Muito pouco se deve poder fazer aqui. O médico de aldeia não tem futuro de espécie alguma. Fica cristalizado e a pouco e pouco vai-se esquecendo da medicina. Por mim não era capaz de me enterrar cá. Teria a impressão que estava entaipado ainda em vida. Preview

Não digo que não, mas, essa vida tem também a sua poesia, o seu encanto. Com o tempo a gente acaba por gostar e mesmo amar esse modo de vida. Quando vim para aqui pela primeira vez pensava exactamente como tu.

E agora?

Agora acho que valeu a pena. Sou feliz. Não acredito. Como é possível exercer medicina num sítio desses? Sem laboratórios, sem análises, sem radiografias... eu não era capaz. Estás satisfeito com a medicina que exerces? Isto corresponde ao ideal que tantas vezes sonhaste?

Eu meditei por momentos, sorvi um gole de whisky e respondi:

É o lado psíquico da medicina que justifica que um médico possa usar duma astúcia enganosa com a finalidade de condicionar positivamente a sua influência sobre os doentes: Preview

— A medicina, aqui, é sobretudo baseada no psíquico. Não é que eu realmente não sinta às vezes a falta de todos aqueles recursos que hoje em dia tornam mais eficiente a acção do médico, mais perfeita a maneira de conhecer, interpretar e enfrentar as doenças. Mentiria se dissesse o contrário. As análises, as radiografias, os electro-cardiogramas e muitas outras coisas fazem-me realmente falta, porém, cá me vou arranjando. Dizem que a fome é proporcional à possibilidade de comprar os alimentos... Medicina incompleta? Morrem aqui mais do que noutros sítios. Bem sei. Mas também não é verdade que morrem menos do que antes, quando não havia médico nenhum? Sempre é alguma coisa.

“O quarto estava cheio de outras mulheres que conversavam alto, contavam umas às outras casos idênticos em que as parturientes tinham morrido no meio de intenso sofrimento, outras que tinham parido “demónios”, terceiras que tinham chegado a vomitar o próprio coração e várias outras histórias absurdas e sinistras. A doente ouvia tudo isso e mais aumentava o seu pânico. Via-se claro que sofria horrivelmente. Era uma máscara de terror e desespero. Xencor, nunca mais – gritava ela – nunca mais...

Xencor era o marido, um marido que agora estava, certamente, arrependido de o ser.

Quando entrei tudo se calou por momentos para recomeçar logo depois a mesma algazarra. Uma velhota, de aspecto de uma verdadeira bruxa, com a autoridade da sua longa experiência, aproximou-se de mim e segredou-me ao ouvido:

Inútil, não é verdade? Ela morre de certeza. Já tenho visto muitas parturientes nestas circunstâncias. Isso é obra da bodki. Deve ter visto a bodki um dia destes.

Não sei porquê, aquilo pareceu-me de mau agoiro. E se ela morresse de facto? Não. Tinha de fazer qualquer coisa. Ao menos para ter livre a minha consciência. Ao mesmo tempo era necessário ter muita prudência. Se saísse bem era um sucesso na minha carreira. Alteei um bocado a voz e mandei sair a mulherada toda que já me começava a enervar com a sua algazarra absurda. A doente contorcia-se cada vez mais e gritava: Senhor doutor... Não posso... Ai... Ai... Não posso mais. Mate-me... Mate-me... Ai... Não posso...

Os seus gritos arrepiaram-me. Estaria realmente tão mal? Estaria? Tinha de examiná-la sem o que nada podia concluir.

Era o seu primeiro parto e isso talvez explicasse a demora e o sofrimento. O pulso estava bom, talvez um bocadinho acelerado. Calcei umas luvas, fiz o toque e um raio de esperança passou-me pela mente. Estava salvo. A minha carreira estava assegurada. O parto chegava quase ao fim. Mais uma meia hora e a minha presença seria desnecessária. Era precisamente essa meia hora que eu tinha de aproveitar. Era a minha meia hora de libertação. Tinha de explorar a ingenuidade daquela gente para me lançar de vez.

Na sequência do texto o médico dá a entender que o caso é muito grave, restando possibilidade de se salvar a vida da mulher, e que, só por milagre, a criança poderia ser salva.

Como o doutor previa o parto decorreu duma forma absolutamente normal, mas ele simulou utilizando os utensílios próprios – os ferros: fórceps, pinças, bisturis, tesouras, porta-agulhas, e não sei que mais – que se estava a defrontar com uma situação de extrema gravidade, de vida ou de morte, da qual a sua perícia saíra vencedora.

Este procedimento ocasionou um conflito na sua consciência, que somente se apaziguou ao considerar que fora o parto uma oportunidade única para ganhar a confiança dos doentes nas capacidades do médico, confiança essa essencial para combater mesmo as doenças somáticas, as quais se encontravam quase sempre envolvidas em factores psicológicos.

Os excertos até agora transcritos não conseguem dar uma ideia clara de Bodki. Que é uma história, com algumas histórias dentro. Histórias essas nas quais o maravilhoso e o fantástico se casam perfeitamente com a realidade. Uma dessas histórias é a da rainha Taramati: “Taramati era rainha duma região qualquer da Índia. Era casada com um homem que, como rei, era adorado pelo seu povo. Também ele dava tudo pela sua gente. A vida sorria-lhes serena e tranquila como um lago de mansas e sonolentas águas. A fome não os aterrorizava porque o trabalho era compreendido como sendo uma qualidade inerente à natureza humana. As guerras não conseguiam penetrar naquele rincão pacífico onde apetecia viver. Tudo corria às mil maravilhas, causando inveja aos reis vizinhos, até que, um dia, meteu-se um súbdito régio na paz conjugal. Era tirano, sagaz, ambicioso, forte, belo, um verdadeiro deus do amor. Tinha um fulgor no olhar que era capaz de endoidecer santas. Taramatí, frágil e sentimental, apesar de tão amada pelo seu esposo, esquecendo-se da sua posição social, esquecendo-se do próprio pudor de rainha, apaixonou-se loucamente por esse jovem súbdito e fez-se sua amante. No início ninguém soube. Era tudo secreto como secretos eram os seus desejos. O súbdito, porém, era ambicioso. Vogava-lhe na mente a louca esperança de subir qualquer dia ao trono. Rei? Sim, era a única coisa que lhe faltava. Rainha já a tinha... O bom rei não sabia de nada...

Quer saber o final desta e de outras histórias? Leia Bodki. Preview

Rio de Memórias – Uma corrente de afectos de Álvaro Carvalho

Para o leitor de alcance reduzido que eu sou, que tem vindo a ler cada vez menos e sem carácter selectivo, há dois autores que servem de paradigma para os médicos que são também escritores: Miguel Torga e Fernando Namora. E eu escreveria com uma maior propriedade designando-os como escritores que também são médicos.

O Dr. Álvaro de Carvalho que, em 2002, assumiu a presidência do Conselho de Administração do Hospital Garcia de Orta, é um médico que também é um escritor. Um escritor em cujos textos as personagens têm menos importância que os lugares e as práticas. E dos lugares sobressaem a aldeia de Mata de Lobos e o transnacional Rio Águeda. Etnógrafo por conta própria a sua atenção centrou-se por um mandato subconsciente no lugar onde nasceu: “Quando, no ano passado, comecei a escrever uns artigos, relacionados com a Medicina e a sua prática, para o “Ecos da Marofa”, estava longe de avaliar todas as consequências deste novo hábito. É que, Preview

adquirido o gosto pela escrita, ela vicia e leva-nos cada vez mais longe, o que me aconteceu com esta experiência que me arrastou, suavemente, para vivências do berço natal e memórias bem guardadas no baú da minha infância.”

O bom termo do cumprimento desse mandato é sublinhado e autenticado pelo prefaciador do livro, o Dr. José Hermano Saraiva, conhecido comunicador cultural televisivo, o qual escreve: “Mata dos Lobos é hoje uma pequena aldeia no concelho raiano de Figueira de Castelo Rodrigo. A população, segundo as últimas estatísticas, não atinge o milhar de habitantes, mas a memória da terra vai muito longe e já vemos o nome da aldeia referido num documento de 1165, em que o Rei, D. Fernando II de Leão, faz doações ao Mosteiro de Santa Maria de Aguiar.

Entre os factos realmente importantes da história local terão os futuros monografistas de incluir o de ali ter nascido, no dia 10 de Agosto de 1948, um menino a quem foi posto, na pia baptismal da Igreja Matriz, o nome de Álvaro e que é o autor do livro que agora se apresenta ao público.”

Mata de Lobos. Um nome sugestivo a dimensionar um antagonismo entre o homem e a natureza, em que esta última parece sair-se vencedora.

Marcel Proust, um escritor francês de nomeada, que teve uma influência profunda na literatura do século passado, deu à sua obra principal o título de “Em busca do tempo perdido”. Eu não li, nem excertos, do livro de Proust. Mas o título que ele ostenta sugere, na sua amplitude significativa, evocações

semelhantes às ocasionadas na inscrição no princípio da obra de Álvaro Carvalho, “Rio de Memórias – Uma corrente de afectos”.

Ao dar livre curso às suas memórias o autor procura libertar as mesmas da ganga das palavras desnecessárias e dar ao texto a transparência imemorial do particularmente muito seu Rio Águeda: “Como que a fugir ao domínio de Castela, o Rio Águeda embrenha-se em Portugal, atravessa-o num curto trajecto escondido, em que se constitui fronteira entre os dois países.” – “E aquela água cristalina que apetecia beber! De tão clara e límpida mal se via. Se não se bebia mais vezes era porque na margem do rio, como se por milagre brotasse da pedra, havia uma fonte com água excelente, sempre fresca. Estava incrustada entre grandes pedregulhos que a protegiam do calor. Muitas vezes, se estou no campo e tenho sede, ainda me lembro, com frequência dessa fonte.” Palavras estas que definem uma natureza ainda fora da alçada do domínio humano, qual testemunho definitivo e perene da criação divina.

Referidos estão os principais sítios. Dos usos e costumes, que são muitos e variados, tem lugar cativo nas nossas anotações alguns dos que não resistiram à voragem do tempo: “Uma compra curiosa era a dos jornais. Os poucos assinantes de diários ou semanários vendiam-nos aos comércios após a sua leitura e, depois, eram revendidos com o objectivo de forrar as prateleiras das casas, preparando-as para os dias de festas, sendo-lhes para tal, criados efeitos decorativos após

serem recortados e picotados. “–“Muita gente andava descalça, metendo os pés na lama, no Inverno, só ficando brancos quando a neve os escovava. Os remediados tinham direito a umas botas fortes feitas pelo sapateiro ou a uns tamancos comprados no mercado, sempre com as solas brochadas para melhor resistirem ao atrito com os pedregulhos, semeados irregularmente nas ruas.” – “As refeições eram precedidas ou seguidas por uma reza, agradecendo o pão que Deus dava, orando-se ainda pela alma dos antepassados: “Senhor abençoai / O alimento que vamos comer / o qual generosamente nos concedeste / Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” – “Assim, as candidatas a noivas tinham de se sujeitar ao estreito crivo dos pais e outros familiares, que queriam um rapaz com algo de seu ou que tivesse perspectivas de ter um futuro profissional prometedor, encontrando-se na linha da frente aqueles que tinham em andamento a candidatura a “uma farda”, na Guarda Fiscal ou na Guarda Republicana.” Não li ainda, e tudo indica que não virei a ler qualquer outro livro sobre a região a que pertence Mata dos Lobos. Mas estou convicto que nenhuma dessas obras poderá ser mais abrangente que o livro de Álvaro Carvalho. Um médico com a costela necessária de um bom samaritano, a fazer fé nos escritos do colaborador do Diário de Lisboa, Carlos Gil: “Um caso flagrante regista-se no campo da saúde. Na raia, muitas são as populações que demandam Espanha em busca de médico!” – “Na Mata dos Lobos, uma freguesia de Figueira de Castelo Rodrigo, um médico natural dessa aldeia, Álvaro

Carvalho, que reside em Lisboa, deu-se conta do estado sanitário a que chegaram as gentes da sua terra. Pois bem, decidiu ir todos os meses à aldeia para atender os doentes gratuitamente! São exemplos isolados de boas vontades, que por si só nada resolvem. A saúde não é um simples acto de magia, nem uma instituição de caridade.”

Ao taxativo e excedentário “que por si só nada resolvem” do articulista, o Dr. Álvaro Carvalho contrapõe: “As boas vontades, por si só, não resolvem os problemas de base e não duram sempre.” – “Se formos dar a palavra a muitos doentes, que beneficiaram com a minha intervenção, eles certamente que terão um ponto de vista diferente e agradecerão essa actuação isolada e desgarrada que não tinha, como pano de fundo a caridade, mas sim a solidariedade, que a todos é devida.”

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