HIPÓLITO RAPOSO
COIMBRA DOUTORA
[TRADIÇÕES UNIVERSITÁRIAS DE COIMBRA]
LIVRO DE HORAS
(1908-1911)

Recolha de textos, introdução e notas por Mário
Araújo Torres

(1908-1911)
Recolha de textos, introdução e notas por Mário
(1908-1911)
título: Coimbra Doutora seguido de Livro de Horas (1908-1911)
autor: Hipólito Raposo (1885-1953)
edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)
recolha de textos, introdução e notas: Mário Araújo Torres
imagem de capa: Hipólito Raposo, quintanista de Direito grafismo de capa: Ângela Espinha paginação: Paulo Resende
1.ª edição
Lisboa, abril 2025
isbn: 978‑989 9198 19 7 depósito legal: 541731/24
© Mário ArAújo Torres
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TREISKAIDEKOPEIA
Recolha de textos, introdução e notas por Mário Araújo Torres
José Hipólito Raposo – que na sua produção literária usou o nome de Hipólito Raposo 1 – nasceu na vila (até 1895, sede de concelho) de S. Vicente da Beira (Castelo Branco), no sopé da Serra da Gardunha, a 13 de fevereiro de 1885. Filho de João Hipólito Raposo, agricultor, e de Maria Adelaide Ramos, a sua formação fez-se em ambiente profundamente religioso, cabendo a um seu irmão e a um tio assegurar-lhe os estudos preparatórios que o habilitaram a ultrapassar, com distinção, em 13 de junho de 1902, as provas de admissão ao Seminário da Guarda.
Neste Seminário, a frontalidade das suas atitudes veio a causar a sua exclusão, determinada pelo Bispo da Guarda, D. Manuel Vieira de Matos, em julho de 1903 2. Fracassada a sua tentativa de entrada no Colégio das Missões, em Cernache do Bonjardim, ingressou no Liceu de Castelo Branco, vindo a concluir os estudos secundários no Liceu de Coimbra, ao tempo a funcionar no Colégio de S. Bento. Em outubro de 1906 ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, cuja licenciatura terminou em 1911. Desse seu período coimbrão resultaram as obras que nesta edição se reproduzem.
Recordando esse tempo, refere Hipólito Raposo, no seu prefácio à obra Lira de Outono (Lisboa, Livraria Férin, 1954, págs. 163-171), de António de Macedo Papança (Reguengos de Monsaraz, 18/7/1852 – Lisboa, 17/7/1913), 1.º Conde de Monsaraz, em cuja casa, à Rua dos Militares, se reuniam os condiscípulos de seu filho, Alberto de Monsaraz (Lisboa, 28/2/1889 – Lisboa, 23/1/1959):
1 É incorreta a menção do seu nome como José Hipólito Vaz Raposo, que surge com frequência em lugares de referência.
2 Cf. Pinharanda Gomes, “Hipólito Raposo, seminarista na Guarda (1902-1904)”, Boletim de Trabalhos Históricos / Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, vol. 39 (1988), págs. 33-79, onde são reproduzidas as cartas de Hipólito Raposo para o Bispo da Guarda, publicadas no jornal O Combate (Guarda, fevereiro a abril de 1905).
“Com este aprazível ambiente, pela casa da Rua dos Militares, que em tempos se encostara ao pano da Couraça de Lisboa onde se abria o Arco da Traição, ia passando boa parte da academia, em constante revoltear de capas pretas, trémulas e esfiampadas. Eram os condiscípulos e amigos de Alberto de Monsaraz, poeta de raça e de verdade, classificado aluno de Direito, que aos dezoito anos publicava o primeiro livro de versos.
Esses estudantes chamavam-se António Sardinha, M. Paulo Merêa, Luís de Almeida Braga, Pires de Lima da Fonseca, Félix Horta, Augusto Casimiro, Perry Vidal, Paulo Cancela de Abreu, José Coelho da Cunha, Veiga Simões, Sousa Costa, Luís Cabral de Moncada, Simeão Pinto de Mesquita, Manuel Eugénio Massa, João de Lebre e Lima, com outros mais que viriam a ser notáveis figuras no País, escritores, políticos e magistrados.
(…)
Nessas longas e animadas reuniões de que se perdeu de todo o gosto e vão até morrendo as lembranças, na presença de graves senhoras e vaporosas raparigas de Coimbra, liam-se timidamente primícias poéticas, comentavam-se contos, artigos e sonetos, como em amistosa e juvenil arcádia.
Com vivacidade, às vezes com ironia, sempre com elegância, discutiam-se letras e política, música e artes plásticas, oratória e teatro, dentro dos melhores termos de compreensão e tolerância.
Desta sorte, em tão amplo e variado convívio que jamais perdia o carácter familiar, a personalidade do Conde de Monsaraz, com seu riso aberto e feição paternal, sem qualquer intuito de o fazer, exercia naquela mocidade, de tão diversas tendências literárias e políticas, uma perfeita magistratura, de intelectual e afetivo alcance.”
No seio dessa ampla assembleia, viria a destacar-se um núcleo de jovens, quase todos matriculados, como Hipólito Raposo, no curso de Direito em 1906, que se organizaram numa espécie de sociedade
secreta, que, com sobranceria, se comprazia em irritar a “massa amorfa” da generalidade dos estudantes, por eles depreciativamente crismados de Magna Besta: eram os exhoterikos 3, assim recordados por um dos seus membros (Luís Cabral de Moncada, Memórias ao longo de uma vida – Pessoas, factos, ideias (1888-1974), Lisboa, Editorial Verbo, 1992, págs. 77 a 82):
“Éramos, a princípio, um simples grupo de rapazes de tendências puramente literárias, como os houve sempre em quase todas as gerações coimbrãs de outros tempos, sem credo político bem definido, mas prontos a abraçar ideias novas, conquanto todos mais ou menos desconfiados da propaganda republicana depois do Regicídio. A sua primeira finalidade era, como é natural, fazer bulha, chamar as atenções, dar que falar, irritar a massa amorfa, sempre conformista, mais ou menos burguesa, da opinião pública, a que dávamos o pomposo nome de Magna Besta, tirado do Apocalipse. Revestiam-se os esotéricos de certo ar de superioridade intelectual e, como não podia deixar de ser para o fim em vista, de irritante e de pedante sobranceria. Não deixava também de haver neles, na sua vida de grupo, alguma coisa de fechado, de maçónico, tomado de empréstimo, nos costumes e hábitos de que se revestiam: reuniões necessariamente clandestinas, ou a fingir, rapaziadas vulgares, símbolos ostensivos, etc. O símbolo predileto era a folha triangular da árvore do ponto, da gingko-biloba, que floria, aí por maio, no Jardim Botânico e usava, naquela estação, folhagem amarela. Trazíamos aquilo na boutonnière. Sardinha inquiria, farejava possíveis talentos em incubação, investigando das suas habilidades
3 Sobre o grupo dos exhoterikos, ver: José Manuel Quintas, Filhos de Ramires – As origens do Integralismo Lusitano, Lisboa, Editorial Nova Ática, 2004, págs. 74-80; e José Manuel Quintas, “O Integralismo Lusitano para além das etiquetas”, em As raízes profundas não gelam? Ideias e Percursos das Direitas Portuguesas (coord. de Riccardo Marchi), Lisboa, Texto Editores, 2014, pág. 170.
e tendências mais ou menos extravagantes de espírito. Os primeiros da seita, os hierofantes do novo culto de Elêusis, eram naturalmente todos os do curso que mais se distinguiram por algum lado intelectual, menos, claro está, o de serem “ursos”. O Sardinha, o Hipólito Raposo, o Alberto Monsaraz, o Paulo Merêa, o Eugénio Massa, o Simeão Pinto de Mesquita, o Veiga Simões, o Pita d’Eça Aguiar (este sobretudo pela sua bela figura de um Cristo de barbas, romântico, sonhador e meigo) e eu próprio, como o mais moderno irmão-coadjutor da ordem, fomos os primeiros, aos quais se vieram juntar depois mais alguns fora do curso, mas de cujos nomes, tirados os do Luís Filipe Rodrigues, Virgílio Correia e Lebre e Lima, já me não recordo. Só sei que devíamos ser 13 os eleitos, como os Apóstolos de Cristo, e usar cada um de nós um título ou pseudónimo tirado da galeria dos grandes nomes da história antiga e moderna. Lembro-me do César Bórgia (Sardinha), do Juvenal (Alberto Monsaraz), do Tácito (Hipólito), do Rabelais (Merêa), do Erasmo de Roterdão (Simeão), do Machiavel (Veiga Simões), do Campanella (Massa), e de mim próprio, o Divino Platão! O Hipólito encarregava-se de dar à estampa uma revista-manifesto das nossas ideias revolucionárias, sem objetivo certo, e que se devia chamar, do grego, treiskaidekopeia (a doutrina dos treze), de que nunca saiu mais do que uma folha ou número. (…)
Por essa altura, saíam também os primeiros versos e outros trabalhos dos esotéricos. Em 1908 publicava Veiga Simões o Nitockris; em 1909 publicava Alberto Monsaraz o seu Romper d’Alva, logo seguido, em 1911, no nosso quinto ano, pelo Sol Criador; também em 1910 dava Sardinha à publicidade o Tronco Reverdecido, seu primeiro livro de versos; em 1910 ainda fazia Hipólito Raposo sair a sua Coimbra Doutora, com prefácio de Júlio Dantas; e, finalmente, já depois de terminado o curso, em 1912, aparecia no escaparate do França Amado o livro de versos do Eugénio Massa À Sombra dos Cedros. Estes os trabalhos literários dos esotéricos do meu curso. (…)
(…)
Entre os nossos prosadores houve também, pelo menos, dois que igualmente se distinguiram no mesmo glorioso curso. Foram eles os nossos Tácito [Hipólito Raposo] e Machiavel [Alberto da Veiga Simões]. O primeiro, um beirão robusto, hirto e severo, escreveu a Coimbra Doutora, com prefácio de Júlio Dantas, publicada em 1910; o segundo, o Nitrockis, saído mais cedo, no nosso segundo ano, em 1908. Dois polos opostos na prosa. O Hipólito foi o investigador e historiador austero que já anunciava o futuro autor de D. Luísa de Gusmão. Dizia dele o Júlio Dantas, com toda a razão, que tinha hábitos beneditinos de investigação, notável disciplina mental, espírito sóbrio e preciso, com uma placidez fleumática de processos que não se compadecia com as grandes obras da imaginação e da paixão. Nas receções em casa de Monsaraz, alguém se lembrou de o comparar um dia a “um cajado beirão” ereto e inflexível, no meio de uma sala. O seu livro, antes de impresso, foi premiado nos Jogos Florais de Salamanca, do ano anterior.”
José Hipólito Raposo frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra nos anos letivos de 1906/1907 a 1910/1911. Além das cadeiras do curso, frequentou, em 1906/1907, a Aula de Língua Hebraica, e, em 1907/1908, a de Grego. Participou nos Jogos Florais Hispano-Portugueses de Salamanca de 1909, onde foi vencedor do prémio de ensaio com a memória Tradições universitárias de Coimbra, que viria a ser editada em livro com o título Coimbra Doutora 4. Ele próprio organizou e prefaciou e edição das Poesias Premiadas nos Jogos Florais de Salamanca (Coimbra, F. França Amado, 1910), com poesias de António
4 Cf. Eloisa Álvarez, “Del rosa al sepia: el programa de los Juegos Florales Hispano-Portugueses de Salamanca, 1909”, em Uma Coisa na Ordem das Coisas – Estudos para Ofélia Paiva Monteiro (coord. Carlos Reis, José Augusto Cardoso Bernardes e Maria Helena Santana), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, págs. 131-150.
de Monforte [António Sardinha], Alberto Monsaraz, Manuel Eugénio Massa e M. Cardoso Martha.
Concluído o curso, começou a sua carreira profissional como professor de Geografia no Liceu Passos Manuel (1911-12) e como professor de Filosofia Geral das Artes no Conservatório de Lisboa (1912).
Em 1914, como um dos fundadores do movimento do Integralismo Lusitano, participou na preparação e lançamento da revista Nação Portuguesa e, no ano seguinte, proferiu a conferência A Língua e a Arte no âmbito do ciclo de conferências sobre A Questão Ibérica na Liga Naval de Lisboa.
Em 1919, era diretor do jornal A Monarquia quando desempenhou destacado papel no pronunciamento monárquico de Monsanto, vindo a ser demitido de todos os cargos públicos, julgado no Tribunal Militar de Santa Clara por “crime de imprensa” e a cumprir pena de prisão em S. Julião da Barra (1920). Afonso Lopes Vieira vestiu então a toga de advogado, pela primeira e única vez, em defesa do seu amigo.
Deixou minucioso registo das diversas vicissitudes da sua vida nos dois volumes de Folhas do Meu Cadastro, o primeiro (publicado em 1945) abrangendo o período de 1911 a 1925, e o segundo, Preview
Terminado o cumprimento da pena de prisão, partiu para Angola, exercendo advocacia em Luanda (1922-23).
Reintegrado como professor no Conservatório (1926), defendeu a recusa de colaboração dos monárquicos com a União Nacional e o regime do “Estado Novo”, acabando por ser de novo demitido de todos os cargos públicos, e deportado para a Ilha Graciosa, na sequência da virulenta denúncia da “Salazarquia” que fez no livro Amar e Servir (1940).
Da sua produção como escritor integralista, merece destaque o ensaio que escreveu acerca da distinta matriz doutrinária do Integralismo Lusitano e do nacionalismo francês da Action française (Dois nacionalismos, 1929), bem como a conferência A Reconquista das Liberdades (1930), onde sintetizou o programa político do Integralismo Lusitano e procurou desfazer a miragem de messianismo salazarista que se anunciava.
publicado postumamente em 1986, abrangendo o período de 1926 a 1952.
Investigador incansável, Hipólito Raposo faleceu em Lisboa, a 26 de agosto de 1953, deixando uma vasta obra publicada sobre temas políticos, históricos, literários e artísticos.
No presente volume, reeditam-se três obras do seu período coimbrão: duas da sua autoria e uma de que foi o principal promotor.
Na primeira – Coimbra Doutora, título dado à edição em livro, em 1910, da sua Memória sobre tradições universitárias de Coimbra, com que concorreu e foi premiado nos Jogos Florais Hispano-Portugueses de Salamanca, de 1909 – descreve as fases principais da história da instituição universitária portuguesa, desde a fundação em Lisboa em 1290 por D. Dinis, passando pelo ambiente do século XV até ao esplendor após a transferência para Coimbra em 1537, o declínio subsequente à entrada dos jesuítas e instalação da Inquisição, ao ressurgimento dos estudos com a reforma pombalina, até ao século XIX e a luta pela modernização e europeização. Não se limitou somente à história institucional, traçando vivos quadros da vivência quotidiana dos membros da Universidade, suas praxes e costumes. Conclui a obra com transcrições de poesias constantes de manuscritos descobertos, graças ao seu labor investigatório, na Biblioteca Joanina, designadamente sobre a jornada da Academia a Elvas, em 1645, na Guerra da Restauração.
Na segunda – Livro de Horas, escrito quando era escolar de Leis em Coimbra –, cobrindo o período de 1908 a 1911, evoca, em pequenos capítulos, monumentos e suas histórias (Mosteiro de Lorvão e Santa Comba), lentes (Avelino Calisto e Paiva Pita), estudantes (Diogo Polónio), a famosa Maria Marrafa (servente de estudantes e distribuidora de sebentas), artistas célebres (Mimi Aguglia), e diversos episódios da sua vivência coimbrã.
Finalmente, reproduz-se o único número de Treiskaidekopeia, órgão do grupo, de tendências literárias, designado por Exhoterikos, que Hipólito Raposo integrou, com diversos condiscípulos seus (entre eles, Alberto de Monsaraz, Alberto da Veiga Simões, António Sardinha, Luís de Almeida Braga, Luís Cabral de Moncada, Manuel Eugénio Massa, Manuel Paulo Merêa).
Conclui o volume uma desenvolvida bibliografia, ativa e passiva, de Hipólito Raposo, com indicação, não apenas das 37 obras editadas em livro, como das suas colaborações em obras alheias e em publicações periódicas.
Mário ArAújo Torres.
Coimbra. F. França Amado, editor. 1910.
Hic mihi iucundum liceat traducere vitam: Hic mea, cum moriar, molliter ossa cubent. inácio de MorAis – Conimbricæ incomiũ
Hipólito Raposo foi-me apresentado, há cerca de um ano, pelo meu querido amigo Conde de Monsaraz. Já o conhecia de nome e de leitura pelas suas crónicas do Diário de Notícias, − meias colunas de prosa máscula, simples, serena, terminante. O belo rapaz que o eminente poeta da Musa Alentejana me apresentou, beirão robusto e enorme, de larga envergadura, pulso firme e rasgado e límpido olhar, era bem o autor dessa viril e nobre prosa. Impressionou-me desde logo a sua forte e original figura, que a batina e a capigorra negra da Universidade tornavam mais gigantesca ainda. Cheio de energia e de saúde, de virtude e de bondade, com a tenacidade tradicional dos beirões, dispondo − soube-o logo − qualidades notáveis de investigação e de trabalho, estava ali, sem dúvida, um homem destinado a triunfar e a vencer. Não me enganei. Pouco tempo depois, soube que Hipólito Raposo concorrera aos Jogos Florais de Salamanca e que à sua Memória sobre tradições universitárias de Coimbra fora adjudicado um dos primeiros prémios. É essa memória que hoje aparece a lume sob o título sugestivo de Coimbra Doutora, constituindo simultaneamente a revelação de um escritor e de um erudito.
Só conheci o manuscrito da Coimbra Doutora quando, já depois de premiado, o autor teve a gentileza de mo enviar. Apesar de ter sido convidado para fazer parte do júri e de ter aceitado a honra desse convite, não pude mais tarde, pela imposição de deveres oficiais, comparecer na residência do Excelentíssimo Bispo-Conde, em Carregosa, para onde fora convocado o júri português, não tomando, por conseguinte, conhecimento de nenhum dos trabalhos apresentados ou sequer dos nomes dos seus autores. Não foi, pois, com o meu voto que Hipólito Raposo obteve o prémio que o distinguiu; mas, se estivesse presente na reunião da Carregosa, ter-lho-ia dado, porque os trabalhos probos e honestos não são infelizmente vulgares entre nós, e a Coimbra Doutora é, antes de tudo, um documento de extrema probidade literária. Poderá alguém, mais exigente, contestar à prosa de Hipólito Raposo esse carácter de forte individualidade que em geral só aponta com os primeiros cabelos brancos; o que ninguém com justiça lhe negará é o temperamento de escritor de raça,
a concisão e a nitidez da expressão verbal, a sobriedade máscula da estrutura literária, e esse singular poder de evocação e de pintura que é o segredo dos grandes artistas e que constitui a qualidade fundamental do escritor.
Numa geração coimbrã de poetas, Hipólito Raposo representa a ponderação, a reflexão, a sobriedade, − a prosa. Ao passo que Alberto Monsaraz e António de Monforte, os moços e admiráveis poetas do Romper de Alva e do Tronco Reverdecido, herdeiros do velho lirismo coimbrão, blasonam da serpente de ouro sobre campo verde, de Camões, o autor da Coimbra Doutora segue a douta tradição dos prosadores, tem hábitos beneditinos de investigação e de cultura, uma notável disciplina mental, um espírito preciso, sóbrio e prático, uma placidez fleumática de processos que não se compadece com as grandes obras de imaginação e de paixão. O primeiro livro de Hipólito Raposo revela precisamente as suas tendências literárias, as predileções do seu espírito, o género de trabalho em que o seu forte e real talento se compraz. É mais do que uma notável revelação; é uma grave promessa. Nas páginas desta curta Memória apresentada ao júri de Salamanca está o gérmen de um historiador. Que a vontade firme e a nobre energia do moço e já ilustre homem de letras perseverem no estudo e no trabalho, sem os quais nada se obtém de durável e de profundo, e que o ouro da sua prosa possa ainda servir para a cunhagem eterna de grandes páginas de restituição e verdade.
júlio dAnTAs.
Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva, E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar do Mondego a fértil erva: Quanto pode de Atenas desejar-se
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva: Aqui as capelas dá tecidas de ouro, Do bácaro, e do sempre verde louro. cAMões – Lusíadas
O Estudo Geral que Dom Dinis fundara em Lisboa, a instâncias de alguns abades e priores e à custa das suas rendas, tendia a dar expressão definitiva à nacionalidade portuguesa.
Consagrava a autonomia mental quando a política já estava firmemente assegurada e garantia maior consistência aos direitos reais que o poder eclesiástico vinha disputando com ardor e violência.
No princípio da Monarquia, por extensos caminhos, iam ao centro da Europa estudantes portugueses procurar a cultura, pensionados pelos morabitinos do Rei Dom Sancho, e por lá foram ilustres muitos deles, que, a partir do século XIII, viviam em Bolonha, e não sabemos agora se o entusiasmo pela ciência arrastou alguns à Rue du Preview
Cansado de lutas, aquietara-se o castelhano e na linha da fronteira que a espada afonsina limitara pelo oriente, erguiam-se castelos e atalaias vigiando o horizonte para terras de Espanha.
Diante dos bandos conquistadores inimigos do Profeta, ia a moirama levantando as tendas, a oscilação constante dos domínios do sul dava ao Reino os sobressaltos de um acampamento até ao termo da posse do Al-Gharb que abria o mar ao destino das navegações.
De longe trazia Coimbra a fama das escolas catedralícias nascidas, segundo parece, da ação convergente do Conde Dom Sisnando e do Bispo Dom Paterno, logo após a reconquista cristã da cidade, em meados do século XI, no tempo de Fernando Magno.
Fouarre, em Paris, a ouvir deitados em molhos de palha, os mestres ensinando das janelas baixas.
O certo é que Portugal oferecia para o esplendor da primeira Renascença uma contribuição gloriosa.
Fernando de Bulhões, nobre e rico, partia do convento de Santo António dos Olivais para a Itália, embrulhado no burel franciscano, em busca da perfeição cristã, professando depois Teologia Mística por Montpellier, Pádua e Tolosa e obrando prodígios, como os velhos teurgos sírios…
Na memória do povo revive ainda, já pálida de seis séculos, a figura confusa de demónio e santo, sábio e bruxo, de Frei Gil de Santarém, que foi, quando moço, discípulo em Medicina de Mendo Dias, depois do seu regresso de Paris, reinando Sancho I.
Gil Rodrigues vivia com seu pai, que era do Conselho do Rei, seu mordomo e alcaide-mor da cidade de Coimbra, sede da Corte e onde já havia mestres das boas artes e ciências.
Rico de benefícios eclesiásticos de que o favor real o cumulara, veio-lhe a ambição de completar os estudos e foi caminho de Paris ouvir os sábios.
Próximo de Toledo, o demónio vem propor-lhe um pacto e oferece-lhe conduzi-lo às covas para, depois de bem instruído na arte mágica, curar todas as doenças, e o moço aceita alvoroçado a sedutora promessa.
Abjurava da fé de Cristo em que nascera e fora ordenado de presbítero, por um documento escrito com sangue do próprio braço, entregava a alma ao demónio e, quando chegou a Paris, logo a Universidade o graduou, que nunca ali fora visto tão agudo engenho.
Certa noite em que estudava com fervor, apareceu-lhe um cavaleiro armado, aconselhando-o a mudar de vida e, após sucessivas visões, resolve abandonar a ciência profana e tomar o hábito de S. Domingos em Palencia (Espanha), aquele negativista ateu da escola de Paris.
No mosteiro aonde fora procurar a paz, perseguiam-no ainda mais as tentações de que só viria libertá-lo a oração pelo auxílio da Mãe dos Pecadores, a cujos pés veio cair um dia o pergaminho ensanguentado do juramento toledano…
Agora voltava o frei a Paris, mas pobre e humilde, sem o séquito lustroso de outrora, o orgulho feito piedade e amor da ciência divina de que por más artes de Lúcifer andou arredado e quase a cair em eterna perdição 1 .
Dante cantou o filósofo Pedro Hispano como um dos maiores doutores do tempo, autor das Sumas aristotélicas, que iluminaram a metafísica medieval, servindo de canon para o estudo das artes em quase todas as universidades europeias até ao século XVI e criando tal prestígio ao nome do nosso compatriota que o colégio dos cardeais o elegeu papa com o nome de João XXI.
Do período pré-universitário português vem ainda a tradição de Dom Pedro Alfarde, cónego regular, doutor parisiense, e Dom Frei Álvaro Pais, discípulo ilustre do Doctor Subtilis (Joannes Duns Scotus), adversário de Santo Tomás em notáveis polémicas teológicas que determinaram a perpétua rivalidade entre franciscanos e dominicanos.
Dom Dinis recebera o Reino tranquilo e, para o tornar próspero, não faltava ao neto de Afonso, o Sábio, fundador da Universidade de Salamanca, a necessária cultura de espírito.
A nacionalidade ia tomando consciência de si, trovadores e jograis difundiam o gosto pelas letras, despertando a rudeza do povo e dos nobres para quem já começavam a vir pergaminhos de Paris e Roma.
A língua, até ali rude como os costumes, saía rediviva dentre a confusão dialetal, determinada pela dissolução do latim, cuja rigidez fora sempre temperada ao calor do génio peninsular.
O sermo rusticus já ia longe, cada vez mais impróprio para a expressão de sentimentos delicados que lá da Provença começaram a acordar os espíritos, adormentados das fadigas guerreiras.
À Corte vinham chegando trovadores aos bandos, que a paz do Reino convidava à vida dos castelos e a sua linguagem quase comum
1 Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, vol. I, fls. 83 e segs., e Duarte Nunes de Leão, Descrição de Portugal, ed. 1610, pág. 77 e seg..
a toda a Península, doce e maviosa, ecoava brandamente, como um toque a despertar para uma era nova.
Os tabeliães e funcionários que barbarizavam o latim e imitavam nos instrumentos públicos as fórmulas dos forais − ao ouvirem o Rei e os infantes trovar na língua incipiente, esqueceram o velho costume, honrando na escrita a linguagem vulgar 2 .
O rei que pelas concordatas nacionalizara a Igreja, que em metro e rima fixava as formas indecisas do idioma, já maravilhoso de harmonia e plasticidade −, promovia por todos os meios o progresso material do País e, criando as escolas de Lisboa, proclamava solenemente a emancipação nacional.
O que seria essa Universidade medieva nos costumes e vida, à falta de documentos, podemos conjeturá-lo com alguma segurança pelo confronto com os das outras que na Europa tinham então fama de célebres e que para cá enviavam já mestres os discípulos de outrora.
Instituição formalmente religiosa, hábitos e regra quase monacais, que cinco mudanças em duzentos e cinquenta anos mal deixariam radicar.
Alunos quase todos pobres acorriam das províncias com destino a sacerdotes e com a ambição das dignidades eclesiásticas a que os graus académicos davam acesso, escurecendo humildades de origem.
A nobreza desdenhava a instrução e um moço fidalgo jamais hesitou na preferência pelas subtilezas das artes e meandros das glosas bolonhesas ou pelas sortidas de caça com trombetas a ressoar, seguidos da falcoaria…
A cultura importava um sacrifício a que era humilhante entregar-se a gente bem nascida.
Os escolares, filhos do povo em geral, trabalhavam para melhorar a condição do nascimento e punham nesse empenho o esforço desvelado de quem se liberta.
2 Adolfo Coelho, A Língua Portuguesa, pág. 27.
A estes, nem os cuidados do estudo lhes deixavam tempo de folgar, nem a índole os devia incitar à turbulência que a humildade desaprovava e os hábitos de clérigo defendiam.
Numa desavença com a população do bairro, irritada com os privilégios excessivos dos escolares, queixavam-se os canonistas ao Rei Justiceiro de que o conservador da Universidade lhes aplicava penas das leis estrangeiras das Siete Partidas, em vez do direito que aprendiam dos mestres.
E pouco frequentes deviam ser estes conflitos pela condição da maior parte dos estudantes que a esse tempo seguiam os cursos em Lisboa ou Coimbra, embora a pretexto deles e por causas bem diferentes, a Universidade se transferisse algumas vezes.
Os escolares leigos, em menor número, viviam fora da clausura e usavam armas ao costume da época, provocando desordens, cantando entre o povo, até ridicularizar os atos religiosos e parodiar a liturgia em tabernas e praças, como possessos de diabolismo feroz.
Dessa vidairada para que a condição escolar tem encontrado desculpa e até justificação, através dos tempos, chegando as concessões privilegiadas a alargar-se na tolerância dos costumes − há vestígios na poesia popular antiga e nas coleções dos provérbios:
Estudante
Bargante
Chapéu de alguidar
Com o sentido nas moças
Não pode estudar 3 .
Para a fundação do Estudo Geral não cooperou o alto clero, certamente ainda ferido das dissenções com a Coroa.
Na súplica dos eclesiásticos dirigida ao Papa Nicolau IV para mandar a confirmação do Estudo já estabelecido em Lisboa, inutilmente se procurará o nome de um bispo (*) .
3 Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, vol. I, pág. 85.
(*) Ver Nota A, no fim.
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