Historia do nordeste

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HISTÓRIAS DO NORDESTE DE BH Rafaela Lima Eduardo Barbosa de Andrade Sheila Castro Eveline Xavier Vera Lúcia Monteiro Lisboa (Organizadores)



EQUIPE TÉCNICA (produção, apuração e edição) Eduardo Barbosa de Andrade Eveline Xavier Pablo Abranches Rafaela Lima Sheila Castro Vera Lúcia Monteiro Lisboa COORDENAÇÃO Eduardo Barbosa de Andrade Rafaela Lima Sheila Castro Vera Lúcia Monteiro Lisboa CONCEPÇÃO DO PROJETO Eduardo Barbosa de Andrade COORDENAÇÃO DE APURAÇÃO – depoimentos e imagens Sheila Castro FOTOS Sheila Castro Arquivo pessoal dos participantes Mariana Vallentim (foto de Reynaldo Ribeiro – ReyOne) PRODUÇÃO EXECUTIVA Rafaela Lima EDIÇÃO Eveline Xavier Rafaela Lima PROJETO GRÁFICO AMI Comunicação e Design DESIGN GRÁFICO Bruna Lubambo [ Casa Miúda ] Frederico Quintão Livro desenvolvido em um projeto de memória comunitária a partir do registro de histórias de vida. O projeto “Histórias do nordeste de BH: rede de memória dos agentes culturais comunitários” foi realizado com recursos do Fundo Municipal de Cultura de Belo Horizonte – Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. Belo Horizonte, abril de 2015



SUMÁRIO Linha do Tempo

p. 07

Mapas ilustrados dos bairros

p. 23

Histórias de Vida

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Capitão Eduardo

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Alisson Santos, Ana Colen, Carlos Moreira, Gastão Alves, Lúcio Flávio Barbosa Naves, Marcos Colen, Miryam Colen, Moacir Gomes da Silva, Sara Colen, Sebastião Francisco Gomes.

Novo Aarão Reis

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Aloísio Carvalho – “Black Steve”, Geraldo Magela dos Santos, Iraldete Rodrigues, João Marcos Sousa Gonçalves, Sebastião dos Santos Oliveira – “Seu Tião”, Sônia Sousa.

Paulo VI e Conjunto Paulo VI

p. 141

Andréia Aparecida Martins, Claudeci José da Fonseca – Grupo Folia de Santos Reis do Paulo VI, Isaura Simão Vieira, Vera Lúcia Monteiro Lisboa – “Tia Verinha”.

Ribeiro de Abreu e Conjunto Ribeiro de Abreu

p. 169

Clenilda Januário, Conceição Maria dos Santos, Fernando (marcador de quadrilha), Heloísa Batista Bernardes, Itamar de Paula, José Roberto Xavier Gomes – “Pitbull”, Maria de Lourdes Marcela de Carvalho – Dona Lurdinha, Marcone Paulo de Jesus, Nair Pereira Serpa, Reynaldo Ribeiro – ReyOne, Rosa Guedes Melo, Sheila Castro Queiroz, Tomaz Francisco de Oliveira – Sr. Tomaz, Wanda Oliveira, Wantuil Alves.

Nota: Os bairros e as histórias de vida foram organizados em ordem alfabética.



CAPITÃO EDUARDO PAULO VI NOVO AARÃO REIS CONJUNTO PAULO VI RIBEIRO DE ABREU CONJUNTO RIBEIRO DE ABREU

Linha do Tempo*

FINAL DO SÉC XIX E INÍCIO DO SÉC XX Ouro Preto deixava de ser a capital de Minas Gerais. A nova capital era transferida para onde existia um pequeno arraial, chamado Curral Del Rei. Os arredores dessa cidade planejada, que futuramente seriam a região nordeste da capital, eram ocupados por fazendas da Família Paula Cotta (cujas terras iam do Ribeirão do Isidoro até a Fazenda da Baronesa de Santa Luzia), a Fazenda do Capitão Eduardo, a Fazenda do Coronel Antônio Ribeiro de Abreu, a dos Clementes e, no início do século 20, a Granja Werneck.

1890 Os ex-escravos Cassiano e Vicência se estabelecem na área do “Ribeirão da Izidora” (localidade que viria a ser parte do bairro Ribeiro de Abreu), dando origem ao Quilombo Mangueiras.


1893 Os trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil chegaram a Santa Luzia. Ainda hoje, se encontram no bairro Ribeiro de Abreu vestígios desta estrada de ferro – como as ruínas de uma ponte e um túnel de pedra.

1906 O médico carioca Hugo Werneck, então com 28 anos, muda-se para Belo Horizonte, para se tratar de uma doença pulmonar e para gerir a Santa Casa de Misericórdia. O médico tem destaque na vida social da cidade, realizando emprendimentos de destaque (foi um dos fundadores do jornal Estado de Minas e do Banco da Lavoura) e trilhando carreira política.

1914 Uma área verde de dez quilômetros quadrados (o equivalente a toda a área interna à Avenida do Contorno), que pertencia ao poder público, foi doada ao médico Hugo Werneck para que lá ele construísse um hospital com seus próprios recursos.

Imagem: Álbum de família: doutor Hugo e herdeiros posam para a foto oficial em sua fazenda, no final do século XX


ANOS

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Um dos poucos povoados existentes à época, o Povoado do Onça (atual bairro Aarão Reis), é destacado no Mapa da Estrada de Bicas, antigüidade hoje exposta na Casa de Cultura de Santa Luzia. Imagem: Parte do Mapa da Estrada de Bicas, que ligava Santa Luzia a Belo Horizonte

1925 Inaugurada a Estrada que ligava Santa Luzia a Belo Horizonte (futura Rodovia MG 20).

1926 Inaugurado o Sanatório Modelo (Recanto Nossa Senhora da Boa Viagem), criado por Hugo Werneck. O sanatório atendia pessoas com tuberculose, muito comum à época (o próprio Werneck tinha a doença). Imagem: Sanatório Modelo, 1932


1929 Hugo Werneck constrói duas usinas elétricas (uma hidroelétrica no Ribeirão do Isidoro e uma térmica, ao lado do sanatório), além de abrir uma estrada (a antiga Estrada do Sanatório).

1935 No dia 19 de março, Hugo Werneck morre, aos 52 anos.

1937 É inaugurado o Matadouro Modelo de Belo Horizonte (na localidade em que hoje está o bairro São Paulo). Uma vila operária é criada para abrigar as famílias dos funcionários. Rapidamente, os arredores foram invadidos e outras vilas se formaram. Imagem: Matadouro modelo

1940 As fazendas da região nordeste de BH começam a ser divididas em lotes. Assim, nasciam os bairros Primeiro de Maio e Aarão Reis.


1942 Maria Luzia de Oliveira Assunção adquire um pequeno terreno na Fazenda que pertencia ao Sr Antonio Ribeiro de Abreu. Com isso, torna-se a primeira moradora do bairro que, posteriormente, herdaria o nome da fazenda.

1950 A família Werneck constroi uma pedreira, às margens do Ribeirão do Isidoro.

1960 Em uma parte da fazenda do Sr Antonio Ribeiro de Abreu, surge um lugarejo chamado Rancho Novo, habitado em sua maioria por vaqueiros que trabalhavam no Matadouro. Na região, também eram desenvolvidas atividades agropastoris e de extração de areia no Córrego do Onça. Os moradores nadavam no Onça. Imagem: Moradores nadam no Onça

1968 Loteamento e criação do bairro Ribeiro de Abreu, inaugurado em 08/02/1968.


1969 Numa área próxima à mata do Isidoro, é construído um conjunto habitacional (casas financiadas pelo Banco Nacional de Habitação – BNH). O bairro, que ficou conhecido como “Conjunto Velho” pelos moradores, possui várias nascentes, que formam a bacia da Santinha e o córrego do Isidoro. Imagem: Bebê diante de casas do “Conjunto Velho”

1971 No dia 12 de dezembro, é fundada a Escola Municipal Desembargador Loreto Ribeiro de Abreu, no “Conjunto Velho”.

1972 Em função de falta de pagamento de impostos, a fazenda “Capitão Eduardo” (assim nomeada em referência à forma como seu proprietário era chamado) é desapropriada pela Prefeitura de Belo Horizonte.

1975 As terras da fazenda Capitão Eduardo são repassadas ao serviço de limpeza urbana para a futura instalação do aterro sanitário da capital.


1979 Inauguração do prédio da Escola Estadual Bolívar Tinoco Mineiro (Ribeiro de Abreu), que foi construído no lugar de uma pequena escola de madeira. A escola também atendia a comunidade em diversas demandas, como festas, velórios e missas.

1980 É criada a Associação Comunitária do Bairro Ribeiro de Abreu, que luta para a instalação de saneamento, telefoes e outros itens básicos de infraestrutura.

1981 Inauguração, no Ribeiro de Abreu, de um conjunto de prédios e casas populares (financiados pelo BNH). Somente está área do bairro possuía infraestrutura como ruas asfaltadas, esgoto e áreas de lazer.

1983 Construção da Escola Municipal Secretario Humberto Almeida, inicialmente em caráter provisório, com estruturas de placas de compensados. Os alunos chamavam a escola de “ Coleginho”, “escola de Isopor” e “Isoporlândia”.


1986 Construída, no bairro Paulo VI, a Escola Municipal Professora Acidália Lott.

1987 Iniciada a construção do bairro Conjunto Paulo VI, com a participação da população, em sistema de mutirão.

1988 O movimento de luta por moradia, atuante na região ao longo de toda a década, visita pela primeira vez o terreno onde seriam construídas as casas do futuro bairro Capitão Eduardo. No dia 16 de outubro, os moradores do Capitão Eduardo fizeram uma caminhada, da igreja do Goiânia até o Bairro Capitão Eduardo, levando uma cruz – que, até hoje, está na igreja. A caminhada foi realizada para receber a visita de Dom Serafim (Arcebispo de Belo Horizonte) à comunidade. Neste dia, foi lançada a pedra fundamental da igreja. Dom Serafim batizou a comunidade como Comunidade Nossa Senhora da Rosa Mística. No Conjunto Paulo VI, é inaugurada a Igreja Nossa Senhora do Rosário – que, à época, serviu como abrigo dos moradores nas lutas pela conquista da moradia. Imagem: Caminhada dos moradores para receber Dom Serafim


1989 Fundada a Paróquia São Domingos de Gusmão, no bairro Ribeiro de Abreu. Até então, as missas eram campais, no mirante do campo – a parte mais alta do bairro Ribeiro de Abreu.

1991 Aberta, no Conjunto Paulo VI, a Creche Infantil Vovó Geralda Lucas. A unidade de saúde do Conjunto Ribeiro de Abreu inicia suas atividades, em um espaço provisório e pequeno.

1992 A Escola Municipal Governador Ozanam Coelho é inaugurada, quatro anos após a formação do bairro Capitão Eduardo.


1993 A Creche Escola Uma Nova Esperança é criada no Bairro Capitão Eduardo, por meio de uma parceria entre o Comitê de Cidadania da Caixa Econômica Federal e a Prefeitura de Belo Horizonte. Os primeiros moradores, após passarem cinco meses vivendo sob barracas de lona preta, em condições precárias, iniciam o processo de construção comunitária das moradias do bairro Novo Aarão Reis.

Imagem: Ocupação em barracas de lona no Novo Aarão Reis

1994 Construção do Centro de Saúde Capitão Eduardo. Inaugurada, entre os bairros Capitão Eduardo e BeijaFlor, uma unidade do Projeto Curumim, do governo do Estado, voltada ao atendimento de crianças de 7 a 14 anos, em horário extra-escolar. No Novo Aarão Reis, iniciam-se as atividades do Centro de Promoção e Assistência Social Ana Bernardina – CEPAS, que ficou conhecido como Casa da Sopa. Motivo: nos anos 80, Dona Ana Bernardina, moradora local, buscava doações de alimentos, preparava e distribuía sopa às pessoas que viviam nas tendas. A sopa era servida em sua casa, que acabou se tornando o imóvel sede da entidade.


1995 Início das obras do conjunto CBTU, também chamado de casinhas de baixo e casinhas de cima, pelo fato de o bairro ser dividido ao meio pela rodovia MG 20. O conjunto foi construído para receber os moradores da Vila Boa União, na região do bairro Primeiro de Maio, que foi desapropriada para obras na Avenida Cristiano Machado. Imagem: Conjunto CBTU em construção


1996 O Centro de Vivência Agroecológica (CEVAE) inicia suas atividades no Bairro Capitão Eduardo, oferecendo à população local cursos e oficinas voltados para a educação ambiental urbana, como horticultura, medicina caseira, alimentos alternativos, melhoria de quintais, recuperação de áreas degradadas e arborização de espaços públicos.

1999 Fundada no Bairro Paulo VI, a Paróquia Pai Misericordioso.

2000 Falece o Padre Argemiro Moreira Leite, fundador da Paróquia Pai Misericordioso. Ele foi o primeiro padre a morar na casa paroquial do bairro Paulo VI, andava a pé pela comunidade é era conhecido por todos, devido à sua dedicação às causas da população da região. Anos mais tarde, a principal rua de comércio da comunidade ganharia seu nome, em uma homenagem da comunidade.


2001 Inaugurada, no Ribeiro de Abreu, a Escola Municipal Professor Paulo Freire, construída com recursos do Orçamento Participativo. O COMUPRA (Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu) é formalizado. A entidade nasce com o objetivo de potencializar ações da comunidade voltadas ao desenvolvimento social, econômico e ambiental do bairro e adjacências. Publicada a Lei Estadual de número 13.958, sancionada pelo então governador, Itamar Franco, criando a Área de Preservação Ambiental (APA) da Fazenda Capitão Eduardo. Pela lei, uma área de 260 hectares, antes destinada à construção do aterro sanitário, passa a ser protegida para a preservação e conservação das nascentes, córregos, vegetação nativa e animais silvestres da região.

2002 No mês de setembro, é inaugurada a Escola Municipal Herbert José de Souza, no bairro Novo Aarão Reis.

2003 Nasce a OSCOSE (Obras Sociais da comunidade Santa Efigênia), também chamada de Projeto Recriança, pelos moradores. Suas atividades, promovidas por irmãs de caridade, acontecem na área externa da igreja do Novo Aarão Reis.


2004 No mês de outubro, um núcleo Fica Vivo, programa do governo de MG voltado à prevenção à criminalidade por meio de ações sociais, educativas e culturais, é criado no Ribeiro de Abreu. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Onça, realizado pelos moradores do Ribeiro de Abreu, desfila pela primeira vez no carnaval de Belo Horizonte. A escola foi vice-campeã do desfile, com o enredo “Deixe o Onça Beber Água”, que alertava para a necessidade de preservação do Ribeirão do Onça.

2006 Um CRAS (Centro de Referência de Assistência Social, equipamento público municipal) é criado no Conjunto Paulo VI, atendendo a uma antiga demanda da população da região. O Centro Educacional Marista Marcelino Champagnat (Cemmac), destinado a adolescentes privados de liberdade, em regime de internação, é inaugurado no Capitão Eduardo.

2007 Nasce o movimento Deixem o Onça Beber Água Limpa, iniciativa voltada para a despoluição e revitalização do Ribeirão do Onça. O movimento é articulado pelo COMUPRA. Surgimento das vilas da Mata e Montes Claros, ocupações irregulares localizadas em parte do Conjunto Paulo VI, Paulo VI e Ribeiro de Abreu.


2008 Numa parceria com o CRAS Conjunto Paulo VI e com inspiração nos mosaicos bizantinos, os moradores da comunidade reformam, com mosaicos, a Igreja Nossa Senhora do Rosário.

2010 Expansão e modernização do posto de saúde do Conjunto Ribeiro de Abreu.

2012 Iluminação da rodovia MG 20. Conhecida como “Estrada velha para Santa Luzia”, a rodovia corta os bairros Novo Aarão Reis, Ribeiro de Abreu e Conjunto Ribeiro de Abreu.

2013 O poder público apresenta à comunidade os projetos executivos de novo acesso à ponte do Ribeiro de Abreu. Na ocasião, é discutida a ideia do Parque Ecológico do Ribeirão do Onça (demanda dos moradores). A construção do novo acesso está prevista para 2015.

* Linha do tempo construída a partir dos marcos mencionados pelos moradores participantes do projeto e de pesquisa de Sheila Castro (integrante da equipe e moradora da região). Fotos: Acervo pessoal dos participantes.



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MAPAS Produção dos alunos da Escola Municipal Secretário Humberto Almeida (Ribeirode Abreu), sob a coordenação de Sheila Castro, a partir dos marcos mencionados pelos moradores participantes do projeto. Autores: Allanis, Caio Prado, Carlos Daniel, Daiane de Jesus, Gabriel Gonçalves, Isadora, Luiz Henrique Medeiros, Matheus Henrique, Uiverton Iuri.

CONJUNTO CBTU

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CAPITÃO EDUARDO

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NOVO AARÃO REIS

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PAULO VI

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RIBEIRO DE ABREU

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ALISSON SANTOS

Alisson foi para o Capitão Eduardo ainda criança. Foi mesmo sem querer ir. Pouco a pouco, em sua curiosidade infantil, foi descobrindo o espaço. As ruas de terra, os laguinhos, as atividades sempre realizadas no coletivo eram um prato cheio para qualquer criança. Ele se entregou, acabou gostando do lugar. Hoje adulto, casado, pai, é grato pelas experiências vividas, principalmente pelo apoio que recebeu da comunidade em tempos difíceis e por ter aprendido a compartilhar.

QUANDO ME MUDEI PRO CAPITÃO Quando me mudei pro Capitão Eduardo, não gostei muito de vir pra cá. É que eu cresci com meus pais moravam num terreno junto com a minha avó, no bairro Água Branca. E eu tinha muita convivência com meus primos. Quando me mudei pra cá, senti falta disso, eu achava muito longe pra ir visitá-los. Mas a mudança era o que meus pais queriam e eu, menino, tive que vir pra cá. Uma coisa que eu me lembro é de uma coisa que ajudou a gente, que era o sopão. O pessoal chegava com suas panelas, pegando a sopa e trazendo. Minha mãe sempre levava pra dentro de casa. Só que teve uma época em que pararam de distribuir essa sopa.

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Numa outra época, você tinha que ir até a Rua Branca buscar. Era sempre na manhã do sábado... Você via aquele tumulto de gente indo, e a gente ia lá buscar o tal do suã. Muita gente ia. Quando minha mãe fazia esse suã, não tinha quase carne nenhuma, mas quando minha mãe fazia, do jeito que ela fazia o suã, dava vontade de comer, porque o toque era da minha mãe.

MUITA COISA BOA Na adolescência, tinha a época do carrinho de guia [carrinho de rolimã] dentro do bairro. De noite, eu sempre brincava disso com os meus amigos. Os pais sempre trabalhavam.. E a gente era menino, não tinha que trabalhar, que se esforçar pra colocar nada dentro de casa. Aí, a gente ia com nossos carrinhos de guia e começava a descer o morro do bairro Capitão Eduardo. Nisso, as mães começavam a implicar, não queriam essa prática do carrinho de guia. As mulheres até falavam: “Se vocês virem pra cá com esse carrinho de guia, nós vamos jogar água quente nocês”. A gente sempre explorava muitos lugares no bairro. Tinha o tanquinho, que era onde a gente nadava bastante. A gente ia, pulava, muitas das vezes ia um bocado de gente pra lá, na época de calor. Quando era época dos peixes estarem férteis, eles [os donos da propriedade] não deixavam a gente nadar lá, por causa da procriação. É que

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o pessoal pescava lá. Mas, fora dessa época, todo mundo descia pra lá. No final de semana, todo mundo estava lá. E aconteceu muita coisa boa. Tem também o Clube do Cowboy, que é perto do hotel que tem ali. Quando esse clube foi inaugurado, o pessoal ia. Eu ia de bicicleta com meus amigos, muita gente ia. Quando você chegava lá, parecia que o Capitão Eduardo saía daqui e ia pra esse clube, porque era muito perto, o pessoal sempre queria ir. E a gente sempre gostou de explorar. Na época de papagaio, esse mato vivia cheio de gente... Muita coisa boa aconteceu aqui no bairro.

TODO MUNDO PRÓXIMO A gente viveu muita coisa legal aqui. É uma comunidade em que todo mundo se conhece. Quando acontece alguma coisa aqui na rua, espalha pelo bairro... É uma comunidade pequena. Mas aqui todo mundo fica muito próximo um do outro, a gente pode conversar, sair na rua. Se você sair e dar uma volta no bairro, você vai ver as mesmas caras toda hora, não tem muita diferença. Tem a escola também, que sempre rolava o tal do som. Quando rolava esse tal de som, parecia que era o momento do bairro. No final de semana, no sábado à noite, você só ouvia: “Você vai no som?”. E já tinha a galera formada... “Oh, vamos em tal hora”, aí começava aquela coisa. Mas o

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pessoal do Jardim Vitória vinha pra cá, o tal do “Pocaoi”, e começava a arrumar tumulto com o pessoal do bairro... Com o decorrer da vida, cada um foi tomando seu rumo, eu conheci a minha esposa, casei. Temos uma menininha pequena...

DIVIDIR COM O PRÓXIMO Agradeço a Deus por ter vindo pra cá. Conheci muita gente, cresci bastante e estou crescendo dentro da igreja [Igreja Evangélica Comunidade Cristã Projeto Esperança], como pessoa. Quando me mudei pra cá, meus pais se separaram e eu acho que pesou pra mim bastante não ter meu pai perto. Tenho a minha mãe. Ela sempre me corrigiu, mas tinha assunto de homem que eu não poderia falar com a minha mãe, tinha que ter meu pai perto. Mas, meu pai não estando, eu tive que crescer com isso e aqui eu vi pessoas que poderiam me ajudar. Isso eu agradeço muito ao Capitão Eduardo. Hoje, tirando a violência, as drogas desse bairro, eu acho que dá pra ser uma comunidade melhor ainda, mas pra isso acabar tem que ter o esforço de cada um. Cada um tem que querer conhecer as necessidades do bairro – porque eu acho que, muitas vezes, as pessoas estão se voltando para o seu próprio eu, de forma egoísta: “Ah, não é minha família, não faz parte de mim, então vamos deixar de lado”. Isso nos prejudica.

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Jesus Cristo não morreu pra um, morreu pra todos: é o que eu tenho aprendido dentro da igreja, a dividir. O que eu tenho e Deus tem me dado é pra eu dividir com o próximo. Afinal, a necessidade está em todo canto e, se queremos que ela acabe, cada um tem que se importar com o seu próximo.

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ANA COLEN

Há 18 anos, Ana chegava ao Capitão Eduardo. Naquele tempo, participou das mudanças que aconteceram na comunidade e a comunidade foi marcante nas mudanças que aconteceram em Ana. As portas de sua casa se abriram para acolher a juventude do bairro e encher o Capitão de música.

RUAS PEQUENAS, CHEIAS DE BRINCADEIRAS Eu vim pra cá em 1999. Era criança, acho que estava com sete anos, mais ou menos. Eu lembro daqui... tinha pouca casa, não era tanta como tem agora. Não tinha muito comércio. Lembro da pracinha super arrumada, com a igreja como destaque. Lembro assim... de pouca coisa. Apesar do longo tempo que estou aqui, poucas coisas mudaram: tinha a creche que eles fizeram ali, e depois foi reformada. As pessoas que abriram a creche, em casa mesmo, para cuidar das crianças. E tinha a escola. Agora, ela foi reformada, colocaram os espaços para as pessoas que são cadeirantes. Eu lembro que aqui tinham duas e, quando elas iam para a escola, era aquela multidão para poder ajudar a carregar. Sempre aquele monte de gente para ajudar na hora do banheiro, na hora do recreio. Agora não, a escola está capacitada para essas pessoas.

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Não sou aventureira como meus irmãos, mas brincava. Eu lembro que minha rua era morro, costumávamos deitar no morro e eu ficava olhando para as nuvens e tentando achar figuras nelas. Brincávamos de “rouba bandeira”, “queimada”, peteca. Nós adorávamos. Tudo na rua. Aqui, as ruas são muito pequenas. Tem a rua principal, em que passa o ônibus. Mas, nas outras não tem muito costume de passar carro, não. Passa muito é moto. Hoje, todo mundo tem moto. Mas, naquela época, era tranquilo, os pais ficavam sentados vigiando a gente, os adultos também brincavam junto. Era um tanto de gente pequeninha e uma “cepa” de gente grande brincando e vigiando a gente. Hoje, não tem mais isso, é muito difícil de ver. Hoje, vejo os meninos da minha rua brincando, é aquela barulhada danada. Meu Deus, que tanto de barulho! Mas, depois, fico pensando assim... acho legal, mesmo que sejam poucos. Ainda brincam de carrinho, futebol, peteca. Às vezes, eu sinto falta. A maioria das pessoas que brincavam comigo se foi. Alguns já mudaram daqui, outros estão presos, outros nem estão aqui mais (morreram). Outras pessoas têm a vida cheia, trabalham, não têm pique mais... E eu não tenho mais contato com elas. Tenho contato com o João Paulo... Eu o conheci na escola, na segunda série, estudamos até o primeiro ano [do ensino médio] juntos. Ele parou, mas eu continuei. Até hoje, temos muito contato, eu sou até madrinha do bebê dele. Adoro, é muito bom!

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Com alguns, eu tenho contato; com outros, não. É triste ver que vai passando o tempo e os grupos vão se desfazendo, assim.

HAVIA PRECONCEITO NA IGREJA... ENTÃO, CRIAMOS A NOSSA! Nós éramos de outra igreja, ficamos lá mais ou menos dez anos, mas foi passando o tempo, vimos que não tinham a mesma visão que a gente. Nosso interesse foi sempre o trabalho para o lado social, trabalhamos muito com os jovens. Minha casa sempre ficou lotada de jovens, sábado e domingo era o dia inteiro... Pessoas da escola, da igreja... Sempre lotada de jovens. Foi quando começamos a trazer instrumentos musicais. Ai, coitada da minha mãe! Era música o dia inteiro. Muitos meninos começaram a se envolver com drogas e se afastaram da visão que o grupo tinha. Mas começamos a trabalhar isso com eles, só que tinha gente na igreja que não estava agradando, porque tinha uns tatuados, doidões, de piercing, e chegavam lá na igreja... A maioria das igrejas é muito tradicional, principalmente nessa coisa de costume, de roupa... Daí, não aprovavam muito. Então, decidimos nos desligar de lá. Depois, o pessoal foi lá pra casa, reunir, conversar... e decidimos abrir uma igreja lá: a Comunidade Cristã Projeto Esperança.

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MÚSICA, SOLIDARIEDADE E ALEGRIA A gente sempre mexeu com música. Aqui, o povo ama música, respira música, adora música. Alguns meninos tocam violão, tocam guitarra, eu mesma comecei a aprender violão e cheguei até a passar algumas aulas, algumas coisas básicas, mas não levei muito adiante isso, passei para outras pessoas. Hoje, tem outros meninos que tocam muito mais que eu, cresceram nisso, aperfeiçoaram. Agora, tem as meninas que dançam e tem também o teatro. É muito bom ver esses talentos despertarem na vida das pessoas, ver que elas estão motivadas, estão interessadas em fazer isso, estão dedicando um tempo. Elas saem daquela rotina, só trabalho e casa, às vezes até à toa dentro de casa. Elas estão empolgadas, incentivam, vêm com ótimas ideias, querem ficar, sempre participar mais, é muito bom! Na verdade, é uma responsabilidade muito grande, mas ao mesmo tempo, uma alegria muito grande também. Ver essas pessoas aqui na igreja, não por elas estarem na igreja, mas ver como a vida delas está mudando, pessoas que estavam roubando, estavam nas drogas, na violência, famílias praticamente destruídas, pessoas mendigando... Vê-las aqui, com novas expectativas de vida, voltando a estudar... Muitas pessoas que tinham vindo aqui pararam de estudar, a gente incenti-

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vou, minha mãe chegou a ir à escola e implorar pra uma pessoa ter a oportunidade de voltar e estudar, porque os diretores nem queriam ver essa pessoa lá. As pessoas estão conseguindo o seu diploma, além dos tantos trabalhos que a gente já arrumou para elas. O João [marido de Ana] ligava pedindo emprego para as pessoas, pedindo pra dar oportunidade... “Acredita nele!”. Vê-los assim, construindo agora suas famílias estruturadas, diferente da família que eles tiveram, construindo uma história diferente pra vida deles, isso é muito bom!

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CARLOS MOREIRA

Professor de informática e hip hop, membro da Trix Monster. Carlos brincou nas ruas de terra do Capitão Eduardo até que elas se transformassem. Viu chegar o ensino médio e ajudou a construir a Escola Aberta, além de propor outros projetos que atendessem a comunidade. Para ele, valorizar a luta que foi para erguerem o bairro é o que realmente faz a diferença.

BRINQUEI, ESTUDEI, ME TORNEI VOLUNTÁRIO... Eu sou o Carlos... E o que eu mais gosto no Capitão Eduardo são as pessoas, a convivência... Não tem muito a cultura individualista, todo mundo é muito correto. Cada um no seu posto, cada um com sua filosofia, seu estilo de vida, mas cada um respeitando um ao outro. Isso é bacana! Eu moro no Capitão Eduardo há 25 anos. Vim pra cá aos cinco anos de idade. Aqui era tudo terra, poeira pura onde brincávamos na rua... Nossa! Eu brincava! Eu me lembro de quando eu brincava na rua. Me lembro de quando chegava da escola, era uma 5h30 da tarde, eu chegava em casa. Tomava um banho e a primeira coisa que eu fazia (não tomava café) era sair pra brincar de esconde-esconde até 11h30 da noite, esperando meu pai chegar com

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um cartucho de Super Nintendo. Toda noite, ele trazia pra mim. Então, a gente ficava brincando até tarde. Eu sinto falta desse movimento, de poder ficar até mais tarde. Hoje, você não tem mais essa segurança de poder ficar ali conversando com a galera, vou bater um papo com os meninos, lembrar alguma coisa antiga, isso tem um prazo, vou ficar aqui até umas 10h da noite. Depois desse horário... Hoje em dia você não sabe o que pode acontecer. Nem tanto pelas pessoas da comunidade, mais muitos vêm de fora. Aos 15 anos de idade, estudei na escola daqui. Antigamente, não tinha ensino médio, a gente tinha que descer até o Pérsio [Escola Municipal Persio Pereira Pinto] pra estudar o ensino médio. Depois, conseguiram trazer pra cá, fizeram uma parceria com a Escola Estadual Flávio dos Santos. Foi a primeira escola a desenvolver o ensino médio aqui no Osanam Coelho [Escola Municipal Governador Ozanan Coelho]. Dessa parceira deles, surgiu a ideia de fazer um projeto de informática, que foi onde eu comecei a trabalhar, como instrutor. Surgiu uma parceria com a PUC pra cuidar da sala de informática. Tinha mais de cinco anos que estava tudo parado: tinha uma sala, mas ninguém mexia. Isso era mais ou menos em 2001, e não tinha ninguém pra cuidar dessa sala de informática. Daí, veio a ideia de chamar alguém pra trabalhar. Como eu tinha muita amizade com a pessoa, ela perguntou: “Você quer mexer e tal? Então, você vai pra PUC e faz um cursinho”... E foi isso que aconteceu.

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Começamos com um projeto pequeno. Na época, tinha o PROERD [Programa Educacional de Resistência às Drogas, realizado pela Polícia Militar, em parceria com as escolas e as famílias], que promovia aula de música com o maestro da Polícia Militar. Foi quando comecei a gostar de música e a mexer com isso também. Aí, surgiu um projeto de informática na escola, mas não era muito compartilhado para a comunidade, era tudo mais pra dentro da escola, pros alunos. Foi quando conversamos lá pra colocar aquilo tudo pra comunidade. A gente começou a fazer essa parceria, comunidade e terceira idade, e começamos a dar cursos de informática na escola... Eu fiquei como voluntario até os meus 20 anos, mais ou menos. Foram cinco anos seguidos, como voluntario com informática. Depois disso, surgiu a Escola Integrada, aí entrei como aprendiz em informática, pelas AMAS (Associação Municipal de Assistência Social), da prefeitura, e aprendi muita coisa. Fiquei dois anos lá. Saí e abri um projeto pela Escola Aberta, onde comecei a trabalhar com o hip hop com os meninos. Esse trabalho era muito gratificante, principalmente pra mim. Tinha muitos amigos meus que cresceram junto comigo, brincamos juntos, mas eles começaram a participar de algumas coisas: drogas, bebidas... E a gente conseguiu resgatá-los disso através da informática e do hip hop. A gente ia apresentar muito no Minas Shopping, na área do estacionamento, e muitos hoje, graças a Deus, andam muito comigo. Muitos me ligam o

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tempo todo, “Vamos fazer um ensaio ali em tal lugar”. Isso é muito bacana, saber que a gente conseguiu resgatar um pouco essa união. Porque, antigamente, quando começou o bairro, tinha isso, a gente brincava na rua, saía pra nadar nas lagoas, Cebolinha, Lagoa dos Borges. Hoje, ela já não existe mais, hoje já não tem como fazer essas coisas, mas seguimos buscando um lazer bacana, saudável.

APRENDER A DAR VALOR Eu gosto muito de conversar com os antigos. Meu pai sempre dizia: “São os sábios de hoje em dia”. Nem tanto os livros, nem tanto os professores, mas converse com os mais velhos, que você vai enxergar um pouco mais a vida como ela é. Me lembro que eu, minha mãe, meus irmãos – meu pai trabalhava o dia todo –, a gente vinha pegar água no pico do morro, porque não tinha. O carro pipa vinha pra encher o balde de água pra encher a caixa, então ficavam três irmãos na fila, guardavam os três lugares. Minha mãe pegava uma, descia com outro, voltava correndo pra pegar. Então, eu vivi essa época, esse sufoco. Naquela época, não tinha realmente água, não tinha luz. A gente conquistou aqui um pedaço de terra, foi até através de um projeto do Sérgio Ferrara, na época. E acho que muita gente realmente não sabe o sufoco que foi pra criar isso aqui. Fica tudo jogado na história,

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tudo meio disperso. Isso é um pouco que eu passo pro pessoal do hip hop. Aprender a dar valor ao que você tem aqui é que faz a diferença, não é a polícia, não são os governantes, quem faz a diferença somos nós. Cada um fazendo a sua parte. Isso é o mais interessante!

FILOSOFIA DE EXISTIR Nós montamos um grupo algum tempo atrás, chamado Trix Monster. Esse grupo era mais puxado para disputa, participávamos de algumas campanhas de break e tal. Então, a gente trabalhava pra ter um número impactante, alguma coisa que as pessoas olhassem e vissem: “Aquela Trix Monster são pessoas que impactam!”. Atualmente, fazemos ensaios no sábado à tarde e no domingo pela manha. Em alguns sábados não tem ensaio, porque a escola fica fechada. Mas a gente trabalha muito com isso, né, com o sistema do hip hop, a filosofia verdadeira do hip hop. Quando as pessoas olham e falam do hip hop, a impressão que dá é que é o cara que fuma maconha, é o cara que puxa o crack. Realmente você vê muito, mas são pessoas que viam as outras dançando, copiaram o negócio e dançaram. É uma pessoa que não vive o hip hop, a filosofia é dança, e é também você aprender a se educar, aprender a conviver. Não é simplesmente um estilo de vida, é uma filosofia de existir.

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GASTÃO ALVES

Como ajudante de caminhoneiro, de passagem, Gastão viu as primeiras lonas ocuparem o espaço onde nasceu o bairro Capitão Eduardo. Na época, sequer imaginava que iria morar no local. Anos depois, foi lá onde ergueu sua morada. Da lona ao concreto, da poeira ao asfalto, Gastão foi um dos presidentes da associação de moradores, símbolo das conquistas do povo do Capitão Eduardo.

A CAMINHO DE SANTA LUZIA Eu conheço a região, o que importa é conhecer a região. Eu conheço essa região há 50 anos, desde quando eu vim pra Belo Horizonte. Minha terra natal é Governador Valadares. Aqui, na beira do rio, aqui embaixo era a praia... Buscava cascalho rolado aqui. Eu trabalhava de ajudante de caminhão, então vinha, pegava aqui o cascalho. Eu tinha 16, 17 anos. Conheço essa região desde 1963. Tinha mato. Só mato. Em 1978, eu vim trabalhar na fábrica de Santa Luzia, a empresa em que eu aposentei. Quando foi em 1980, 1982, eu fazia trabalho na metalúrgica aqui embaixo, daqui dá pra ver... Eu nunca imaginava que um dia ia morar no Capitão Eduardo... Via as primeiras casas... Casas, não. Lona! Lona! Eu passava na BR e comentava com o motorista: “Coitado do trabalhador,

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como é que sofre!”. Na época de calor, aquela lona preta... E eu nem imaginava que iria morar no Capitão Eduardo. Eu fiquei me perguntando: “porque eu vim pra cá?”. Eu era líder sindical, tive que me aposentar por invalidez. Eles me mandaram embora da empresa. Eu não podia pagar aluguel... Aí, eu ganhei um pedacinho de terra aqui. Eu vim construir minha casa aqui.

TRABALHEI NAS OBRAS QUASE TODAS Eu morava em Santa Luzia com outras pessoas – isso foi final de 1988. Eu mudei pro Capitão Eduardo mesmo, guardo a data até hoje, foi em 15 de agosto de 1989. Mas eu já estava fazendo meu barraco aqui. Buscava pedra embaixo da mangueira, ali no final do ônibus, era um buraco. Carregava cascalho, pedra, tudo nas costas. Uma dificuldade... muita luta. Vinha a pé de Santa Luzia aqui pra construir meu barraco, e são 12km! Vinha a pé. Trabalhava o dia todo e, à noite, ficava arrumando lá. Foi assim que eu consegui o barraco. Uma coisa que eu tive oportunidade foi de trabalhar nas obras quase todas do Capitão Eduardo, inclusive no grupo escolar, o Osanam [Escola Municipal Governador Ozanam Coelho]. A única obra em que não trabalhei aqui foi o posto médico, mas a igreja católica ajudei a fazer, também. Fazendo escavação, carregando terra. Conheço demais essas coisas! A última obra em que trabalhei foi

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a quadra daqui da comunidade. Isso em 1994. Eu já era aposentado, mas trabalhei de mutirão. Talvez, da região nordeste, o bairro que cresceu mais foi esse nosso. Tem asfalto, luz, tem tudo! É tanto que, outro dia, uma senhora veio aqui... tinha 15 anos que ela não vinha aqui e ela ficou abismada: “É outro bairro!”.

TÁ NO SANGUE Infelizmente em 1995, eu tive um AVC. Fui convocado pra uma reunião na comunidade e saí morto, praticamente. Algumas pessoas falaram que eu nem escapava do AVC, do aneurisma. Estive internado por seis meses, voltei de cadeira de roda, algumas pessoas achavam que eu nem andaria mais e, graças a Deus, eu me recuperei. Eu não gosto nem de lembrar da situação. Tem gente que fala que é milagre. Agora, tem uma coisa em que a comunidade me ajudou muito: em orações. Foi muita luta! Minha família detesta que eu mexa com determinadas coisas, principalmente por causa da minha saúde, mas não adianta: isso tá no sangue. Desde a idade dos 20 e poucos anos sempre fui assim e eu, com meus 70 anos, vou continuar sendo. Eu vejo que não tem muitas pessoas pra brigar, principalmente hoje em dia, ninguém tem tempo pra isso. Mas, se não tiver, fica difícil. Eu não trabalho mais, então o que posso fazer é ajudar a comunidade.

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É BONITA A HISTÓRIA NOSSA De orçamento participativo, eu sou delegado, sempre fui delegado. Fui o presidente da associação aqui em 1998, fui eleito com boa margem de votos. Eram três chapas concorrendo. A minha, de 600 e poucos votantes, eu tive 400 e poucos votantes. A comunidade tem muito respeito por mim. Às vezes, as pessoas não acreditam, mas a história minha é bonita. É bonita a história nossa do Capitão Eduardo. Foram muitas brigas. Já conquistamos muito. Mas nós vamos conquistar mais, falta muita coisa ainda. Vem pessoa de fora e está vendo que realmente conseguimos muitas coisas. A primeira coisa, que foi uma conquista muito grande pra nós, foi a água. Nós não tínhamos água. Era difícil água. Até costumo falar com os novatos aqui embaixo que uma lata d’água, naquela época, tinha mais valor que o dinheiro. Porque o caminhão pipa vinha trazer a água e a gente tinha de carregar nas costas. E depois também veio pra cá o coletivo. A gente pegava o coletivo lá no Jardim Vitória, na Vila Maria. Depois, os primeiros ônibus começaram a nos apanhar aqui. Isso foi uma conquista muito grande pra nós – os ônibus, que nós não tínhamos. Só que os ônibus não vinham aqui em cima quando chovia. A gente costumava ir com dois pares de sapato, um velho e outro novo e, muitas vezes, o pessoal dos bairros Jardim Vitória e Vila Maria difamava

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a gente: “Lá vem os pé vermelho!”. No princípio fomos muitos discriminados aqui, mas conquistamos. Hoje em dia, temos grande respeito às outras comunidades. Eu costumo falar com os políticos que fomos jogados aqui de qualquer maneira. Porque ninguém queria isso aqui. E todos que vieram pra aqui, os antigos, têm um motivo. Como eu. Eu não tinha outo jeito, não tinha condições de pagar aluguel. A maioria das outras pessoas que vieram junto comigo foram assim também. Os outros bairros eram muito parecidos conosco, começaram do zero, mesmo. Quantas vezes juntava mutirão e ia pra prefeitura... Mãe com criancinha no colo, com fome... O prefeito, eu lembro, não recebia a gente. Não recebia! Reivindicávamos água, não era rede de esgoto não, era o básico mesmo... Então, foi muita luta, mas nós conseguimos. A rua em que eu moro, a rua principal, se chama Rua Bernadete. Nós ganhamos no orçamento participativo das favelas todas. Mas, no final dessa rua, tinha uma pedra muito grande, no meio da rua. Já tínhamos ganhado o orçamento participativo, chegou uns 20 metros da minha porta, eles falaram que não poderiam fazer por causa da verba. Aí, o que eu fiz: reuni umas 10 a 20 famílias e conseguimos fazer com que eles quebrassem a pedra e terminassem a rua. Outra coisa que tenho muito alegria também são os caminhões de lixo. Tinha muito lixo, demais da conta. Eu tive uma reunião lá na SLU e nós conseguimos a lim-

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peza das ruas. Hoje em dia, tem o varredor de rua, tem os caminhões. Isso é outra coisa que tenho muita alegria de ter conseguido junto com a população. Outra coisa, são as seis ruas pelo orçamento participativo. Quando assumi a presidência da comunidade, eu corri atrás e nós conseguimos. Principalmente o pessoal das seis ruas, eles têm a maior alegria, eles achavam que não iam conseguir isso. Agora, recentemente, tivemos uma reunião na prefeitura. Estamos correndo atrás de algumas coisas aqui pra comunidade: o velório, a academia. Por que o velório? Às vezes, o pessoal fala: “Mas o meu bairro não tem isso”. O problema nosso aqui é que é o último bairro de Belo Horizonte e quantas e quantas vezes morre uma pessoa aqui na comunidade e não pode ser velada aqui, tem que ser no Cemitério da Paz, ou Cemitério da Saudade, ou outro cemitério. Muitas das vezes, fica só a família lá velando o corpo. O pessoal não pode ir por causa de condição. Dava quando a empresa cede o ônibus... quando cedia... quando era de graça. Mas, hoje em dia, tem que pagar. As pessoas não podem ir ao velório por não terem dinheiro pra pagar passagem. É por isso que nós estamos reivindicando esse velório para a comunidade Do que mais gosto aqui no Capitão... Amo a tranquilidade. Eu conheço bastante bairro de Belo Horizonte. Tem 50 anos que moro em Belo Horizonte e são poucos bairros que têm a tranquilidade que temos aqui. Outra coisa é a força da comunidade, é só chamar que faz... coisa boa, é claro! Quando eu vejo, não acredito que fomos nós que fizemos isso.

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LÚCIO FLÁVIO

Lúcio conta que, aos cinco anos de idade, ele, seu pai, mãe e irmão foram morar no Capitão Eduardo. Suas lembranças remetem ao tempo da luta por moradia e da formação de uma comunidade, para além da construção do próprio bairro. Nas muitas narrativas das peripécias desse morador, é interessante perceber como a ocupação do espaço e a história da comunidade do Capitão Eduardo se mescla à história do próprio Lúcio.

BAIRRO COM POEIRA Quando eu vim aqui pro bairro Capitão Eduardo, eu tinha assim, mais ou menos, uns cinco anos de idade. Creio eu que o que aconteceu é que meus pais – tanto meu pai quanto minha mãe – estavam lutando pra ter uma moradia, eles estavam diante de um desafio de buscar algo pra família. Quando eles estavam ali lutando por esse desafio dessa moradia aqui no bairro, eu e meu irmão descobrimos que tínhamos ido pro paraíso. O bairro aqui é como qualquer outro lugar: ele tem fases e cada fase foi marcada por um acontecimento. Eu me lembro que aqui não tinha asfalto, era terra purinha, poeira purinha e tinha o famoso morro, ali, do Dorel... O pessoal co-

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locou o nome de Morro do Dorel, só que a rua é Rua Ângela Bernadete. Aí um dos meninos – não fui eu, porque, se fosse, eu falava – desceu na maior correria. A mãe dele disse: “Fulano, não corre não, não corre não!”. Quando pensa que não, na hora que a gente viu, a gente só viu uma poeira subindo. Quando a gente chegou perto, você não sabia se aquele menino era um menino ou uma menina, de tão branco que ele estava de poeira. E foi um caso assim, que aconteceu e marcou essa fase do bairro com poeira... Se chovesse, era barro. O Borgin, o ônibus que buscava a gente, ele atolava lá no começo, na entrada do bairro. Depois, na hora que ele tentava subir, ele atolava e não conseguia subir. A gente tinha que vir andando, subindo no barro, as mães correndo atrás dos meninos com guarda-chuva, aquela bagunça toda, chegava cheio de lama em casa. E, também nesse ponto, não tinha muita coisa aqui, não tinha luz, não tinha água.

SOBRE QUANDO O CAMINHÃO INVADIU A NOSSA CASA Um dos primeiros acidentes que aconteceram dentro deste bairro foi comigo mesmo. Foi quando eu morava logo ali embaixo. Tinha um senhor que trabalhava no Ceasa e ele parava o caminhão ali. Num belo domingo de manhã, ele parou o caminhão e foi mexer debaixo dele... Quando pensa que não, o caminhão perdeu o freio do nada... E aonde ele foi acertar? Logo na minha casa, no meio da casa.

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As casas aqui no Capitão Eduardo eram uma cozinha, um banheiro e um quarto. Nesse quarto, dormíamos eu, meu irmão no beliche, meu pai e minha mãe na cama deles. Todo dia de manhã, eu tinha esse costume de ir lá na cozinha, pegar minha caixa de brinquedo e ficar brincando. Eu lembro disso como se fosse hoje. Naquele domingo de manhã, eu fiz a mesma coisa. Eu lembro que peguei o brinquedo assim, fiquei olhando... Era até o He-Man, na época, um bonequinho loirinho. Aí, me lembro que eu estava lá, sentado, olhando o bonequinho. Meu pai, minha mãe e meu irmão estavam dormindo. Eu pegava esses brinquedos, levava pra cama e ficava brincando. Assim que eu saí de lá, assim que eu deitei, que eu olho pros brinquedos, eu só escuto um barulho ‘Prowww’... Entrando tudo pra dentro da casa. Quando eu fui ver, era o caminhão. Meu pai e minha mãe acordaram assustados e eu fiquei só pensando: “Nossa, eu tava ali agora”. O fato foi assim, e marcou minha vida. No período que aconteceu esse acidente, nós precisamos da ajuda das pessoas. Isso foi bom porque, hoje, se eu cresci como pessoa, é porque um dia eu precisei de alguém dessa comunidade.

O SURGIMENTO DA “PASSAGINHA” Nós fomos crescendo, fomos vendo muita coisa acontecer... Tinha o caminhão pipa antes do chafariz, de-

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pois vieram o chafariz, depois eles começaram a lutar pra ter um colégio aqui no bairro, que não tinha. Não tinha o Ozanam [Escola Municipal Governador Ozanam Coelho], a gente tinha que estudar no Pérsio [Escola Municipal Pérsio Pereira Pinto, localizada na BR 262]. Dessa situação de estudar no Pérsio, eu trago uma coisa marcante: os tumultos que aconteciam lá na porta do Tersio. Entra daqui, toma cotovelada dali, voadora... De tudo o que você pensar tinha naquele lugar pra entrar no ônibus – tudo coisa de criança. A gente passava debaixo da roleta e ia pro fundo. Um dia, voltando pra casa, eu fui passar com minha mochila nas costas debaixo da roleta. Na hora que eu passei, a roleta rodou e o trocador me repreendeu. Eu fiquei com aquilo na cabeça. O trocador falou: “Não, eu vou reclamar lá na empresa, vocês vão ter que começar a pagar agora, todo mundo. Não tem nada de idade não, vai ter que pagar”. Aí, chego em casa e, nesse dia, minha mãe não foi me buscar. Ela deixava combinado assim: “Se eu não te buscar, você entra no ônibus e vai”. Eu cheguei e... “Mãe é... Hoje aconteceu um fato meio estranho dentro do ônibus. Nós tava lá passando na roleta, um garoto foi passar a roleta e a mochila dele agarrou na roleta. O trocador vai falar lá na empresa que a partir da manhã todo mundo vai ter que começar a pagar passagem”. Ela: “Mas isso não pode, que não sei o quê...”. Minha mãe, na época, participava muito da questão de ajudar ali na fila, agrupar os meninos, colocar dentro do ônibus.

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Mas por que eu tô contando esse fato? Porque, a partir desse fato, surgiu uma espécie de projeto pra nós que estudávamos lá, que se chamava Passaginha. Tinha um trailer, o Trailer do Catatau, em que todo mundo ia: o que tivesse que comprar, você tinha que comprar na mão dele. Nossos pais fizeram uma reunião lá e resolveram de criar essa “passaginha”. A famosa “passaginha”: a gente entregava ao trocador e o trocador repassava pra empresa. Isso me marcou porque, por causa de uma atitude minha, surgiu a “passaginha”.

É A MINHA ORIGEM Eu acredito que essa comunidade aqui tem toda uma influência na minha vida, porque eu cresci aqui, andei aqui, machuquei aqui... Tenho várias marcas na minha canela – de futebol, de correr atrás de papagaio... Era muito bom! Eu creio que a maioria dos jovens que crescem nesse bairro aqui tem um privilégio que muitos bairros não têm. Aqui, se você for olhar, é um bairro que é bem mais calmo do que muitas pessoas imaginam. Eu lembro de algumas conversas que tinha: - Eu moro no bairro Capitão Eduardo. - Credo, aquele bairro é violento! - Violento por causa de quê? Não tem quase violência nenhuma ali. Se você quiser dormir na rua e levantar, não acontece nada com você, você continua vivendo sua vida.

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Teve o fato dos torniquetes, acontecia a desova de corpos aqui nessa redondeza. Esse foi um caso que aconteceu aqui, que pra mim foi um dos momentos mais negativos do bairro, que acabou manchando a visão das pessoas em relação ao lugar. Muitas pessoas achavam que o que estava aparecendo aqui estava acontecendo aqui mesmo. Depois o pessoal descobriu que era uma quadrilha que matava pessoas em outros lugares e, como aqui era muito distante, dava pra desovar. Por isso, eles desovavam os corpos aqui. Grande parte da experiência da minha vida eu conquistei nesse lugar aqui, porque Deus permitiu de a minha família vir pra cá, de todos nós virmos pra cá. Voltando lá no começo, eu lembro que a minha foi uma das 10, 15 primeiras casas construídas no bairro. Você olhava e só via umas 15 casas espalhadas e o resto do bairro todo loteado, cheio de cercas, estacas, esperando outras pessoas pra virem morar no bairro. Algo positivo, que eu trago até hoje na minha mente, é o caminho do bairro Beija-flor. Pra quem não sabe, o caminho que vai pro Beija-flor, onde o ônibus segue hoje, era uma espécie de túnel natural, só que era todo cheio de árvore. A gente tinha que andar por esse caminho, porque uma mulher tinha uma mercearia lá e era o único lugar que vendia pão. Quando a gente ia buscar o pão de manhã, a gente andava no caminho, que tinha uma grama verdinha, clarinha... Eu andava com meu pai, porque ele levava a gente. A gente convencia ele de levar

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a gente, porque a gente gostava de andar ali e ouvir os cantos dos pássaros. Era uma coisa muito boa, mesmo. Só quem viveu pra saber. Uma coisa que demonstra que esse bairro marcou tanto a minha história é o fato de que, há 10 anos, meu pai, minha mãe e meu irmão se mudaram para o Rio de Janeiro, na cidade de Santa Cruz. Eu fui pra lá umas oito vezes, pra tentar morar lá, mas o coração estava queimando por não estar aqui. Eu não nasci aqui, mas fui criado aqui. É minha origem, é como se tirassem a origem da pessoa. É interessante essa coisa de você viver num determinado local e assimilar as coisas do lugar. Você tem que tomar muito cuidado porque, do mesmo jeito que a gente assimila as coisas positivas, a gente também assimila as coisas negativas do ambiente

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MARCOS COLEN

Marcos vive no Capitão Eduardo desde os cinco anos de idade. As aventuras da infância vividas nesse lugar lhe garantiram alegres lembranças e um profundo apreço. Tanto que, agora, 15 anos depois, trabalha num projeto para resgatar algo que o bairro lhe ofereceu: espaços para que as crianças, e toda a comunidade, tenham oportunidades de lazer, cultura e formação.

FUTEBOL, PAPAGAIOS E OUTRAS AVENTURAS Tenho 20 anos e há 15 anos eu moro aqui no Capitão Eduardo. Quando eu era criança, a bola rolava na rua em que a gente brincava e sempre um tinha que correr pra pegar a bola, pra ela não cair no buraco. Como eu era pequeno, eu fui fazer o herói da história e, como o morro ainda era de pedra, eu tropecei no final dele e lá fui eu com bola e tudo: ralei nariz, braço, ombro. E eu, que nunca tinha desmaiado na minha vida, caí e, depois disso, não lembro de mais nada do que aconteceu naquele momento... Aí, me falaram que eu desmaiei. Foi a única vez em que eu desmaiei na vida. Outro caso que também tem a ver com a rua, na rua principal lá embaixo, na entrada do bairro, indo pra Santa Luzia. Ela ainda é de terra e em volta há mon-

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tanhas e mato. Quando eu era pequeno, juntava com mais dois amigos pra soltar papagaio e a gente ia lá na fazenda, lá embaixo, roubar bambu. Minha mãe ia pro seminário estudar e minhas irmãs iam fazer outras coisas, travessuras... E a gente ia roubar o bambu. Como o bambu era grande, ia um no final, um no meio e um no começo do bambu. Eu lembro que a gente vinha na estrada de terra e sempre quando ouvíamos o som vindo de um carro, a gente jogava o bambu no mato e continuava andando normal, como se não tivesse acontecendo nada. Depois, voltava pra pegar o bambu, fazer os papagaios e viver outras aventuras. Eu brinquei demais aqui. Em volta da minha casa mesmo, era futebol o dia inteiro, na rua. Era escola, rua e dormir. Só isso. Gosto demais de morar aqui, eu acho o bairro muito tranquilo, apesar da imagem que muita gente tem daqui, ou de qualquer outra coisa que digam. Tem gente que reclama que aqui fica a duas horas do Centro. Mas eu acho muito bom e tranquilo. É um lugar muito bacana de viver, a gente tem paisagens muito bonitas, eu acho muito legal mesmo morar aqui. De cultura e arte, aqui tem, por exemplo, a Escola Aberta [programa da rede pública de ensino, que consiste na abertura de escolas aos finais de semana para eventos da comunidade]. Mas eu acho que, quando esse programa começou, era mais cheio de criança e acredito que mui-

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tas das oficinas de arte que eram oferecidas acabaram. Mas, se Deus quiser, num projeto da nossa igreja [Igreja Evangélica Comunidade Cristã Projeto Esperança], nós vamos tentar resgatar isso pra fazer esse bairro crescer ainda mais. Vamos fazer o bairro ser melhor ainda do que eu creio que ele já é.

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MIRYAM COLEN

Moradora do bairro desde o início dos anos 2000, Miryam nos conta que aprendeu a gostar e a valorizar a região. Mãe de filhos hoje jovens, à medida que os filhos iam crescendo e se desenvolvendo, estendeu suas preocupações de mãe às crianças, adolescentes e jovens da localidade. Assim, a ação social, educativa, cultural e religiosa foi ganhando espaço em sua vida. Educação, cultura, formação em valores humanos são os grandes pilares do trabalho que ela desenvolve com a família no Capitão Eduardo, em iniciativas como a Igreja Evangélica Comunidade Cristã Projeto Esperança e a Biblioteca Comunitária Casa de Sofia.

CRIEI MEUS FILHOS AQUI Meu nome é Miryam. Moro no Capitão Eduardo há tem 15 anos. Quando eu cheguei aqui, já havia a escola, o Posto de Saúde, asfalto em tudo. Os meus filhos foram criados aqui. O que eu me lembro de antes de eu mudar pra cá, porque eu vinha visitar minha irmã que já morava aqui, é que o acesso pra comunidade era só pelo túnel. Ainda não tinha estrada, o ônibus não passava aqui e, então, a única passagem era pelo túnel, lá embaixo. É... Lembro de

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muitas ruas ainda sem asfaltar, não tinha comércio, não tinha padaria, não tinha açougue. Era uma mercearia só na comunidade. Então, eu acompanhei a criação desse comércio mais recente. Não havia muitas igrejas também, a que predominava mesmo era a católica e as festividades se envolviam com a igreja católica. Eu criei meus filhos aqui, aprendi a gostar da comunidade. Me lembro que, quando a gente vinha visitar minha irmã, só tinha mesmo esse comércio lá embaixo. Onde é o posto de saúde hoje, tinha um bar. Tudo era comprado nesse bar. O primeiro telefone que houve na comunidade foi instalado nesse bar. Quando a gente queria se comunicar com minha irmã, a gente tinha que deixar recado no bar. Quando os Correios começaram a entregar cartas aqui, todas as cartas dos moradores eram entregues nesse bar e cada um ia lá procurar sua correspondência.

GOSTAR E CUIDAR Vivendo todas essas coisas, aprendi a gostar da comunidade e quero contribuir pra ela melhorar. A geração que construiu o bairro foi uma geração que teve uma luta muito grande de trazer água, luz, essa infraestrutura, que não teve tempo pra pensar em eventos culturais, pensar no lado da educação no bairro. Eu vejo hoje uma geração que não sabe cuidar da comunidade. Talvez por não ter feito parte da construção dela, não valoriza.

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A gente vê que, apesar de ter coleta de lixo, é um bairro sujo. É um bairro em que, para todo canto que a gente vai, tem muita sujeira. Não tem uma educação voltada pra isso de manter o bairro limpo, de manter a praça preservada. A minha vontade de contribuir é nesse sentido, de melhorar o aspecto da educação, de conscientizar sobre a educação, sobre o valor da comunidade... Falar do que essas pessoas passaram para construir essa comunidade. Valorizar, preservar, caminhar mais pra frente e trazer melhorias. A minha vontade é de contribuir nisso.

PROJETO ESPERANÇA Uma iniciativa que tivemos aqui no bairro foi criar a Igreja Evangélica Comunidade Cristã Projeto Esperança. Por que criamos? Porque as igrejas evangélicas daqui não falavam a língua, não dialogavam com os adolescentes e jovens. Eu e o meu marido tínhamos filhas nessa idade. Havia também os amigos delas e as suas famílias... Todos queriam um espaço para a fé, pra que os jovens tivessem uma influência positiva e pra realizar coisas aqui na região. Então, criamos a Igreja, pouco tempo depois de eu ter me mudado pra cá. É o nosso espaço de encontro e de oração. Eu e uma das minhas filhas nos formamos em Teologia, pra fazer um bom trabalho de evangelização. Evangelização junto com atividades culturais, arte, músi-

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ca, literatura. Queremos construir caminhos pra formação das nossas crianças, adolescentes e jovens.

BIBLIOTECA COMUNITÁRIA Eu conheci a Sabic [Associação dos Amigos das Bibliotecas Comunitárias da Região Metropolitana de Belo Horizonte] a partir do contato com o caminhão biblioteca, que vinha toda semana. Na conversa com esse pessoal, surgiu a ideia de implantar uma biblioteca comunitária aqui. E a gente escolheu mobilário, buscou doações de livros, organizou os livros e foi muito bom, conseguimos criar a nossa biblioteca [Biblioteca Comunitária Casa de Sofia, inaugurada em abril de 2014]. Realizamos a biblioteca e outras coisas na comunidade pra trabalhar uma relação diferente com o bairro. Às vezes, a gente critica muito os jovens da comunidade pelas escolhas que eles fazem, mas temos que nos perguntar se as opções de escolha não estão muito limitadas. E, se estão, trabalhar pra mudar isso. Eu acho que a biblioteca é uma oportunidade de contribuir, de ser mais uma opção pra essa geração que está começando, de fazer a diferença na vida deles. Através da biblioteca, vão vir outros eventos culturais, que vão dar cada vez mais opções pra juventude.

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MOACIR GOMES DA SILVA

Seu Moacir foi um dos primeiros presidentes da Associação de Moradores do Capitão Eduardo. O bairro nasceu da luta do Movimento dos Sem Casa, que veio do bairro Goiânia e acolheu diversas famílias de outros movimentos. Na soma dos esforços, antes mesmo do Capitão ser bairro, já era comunidade, coletividade.

A LUTA PELO NOSSO DIREITO DE MORADIA A nossa história começou fora do Capitão Eduardo. A nossa história começou na minha comunidade. Nosso movimento começou ainda no bairro Goiânia, no ano de 1987, quando nós vivíamos de aluguel e criamos uma associação. Aliás, quem criou a associação foi até o Hélio Baldonni... Por sinal, tem muito tempo que eu não o vejo. Como nós não tínhamos habitação, lugar onde morar, nós fincamos pé com essa associação para ir atrás do nosso direito de moradia, que é um direito de todos, mas nem sempre é dado a todos. Aí, passamos a frequentar as reuniões, a trabalhar com a prefeitura – em especial, com a Secretaria de Ação Social, que ficava na Rua dos Tupis. Isso em 1987, ainda. Nós íamos às reuniões todas as semanas... Até que, no final daquele ano, o secretário de ação social, Eduardo Antunes Costa, me chamou para conhecer o Capitão Edu-

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ardo. Aliás, antes disso, nos foi prometido ir ao Paulo VI. Nós conhecemos o Paulo VI. Gostamos demais do Paulo VI... Também, nós gostávamos de qualquer coisa. Se fosse um lugar pra fazer casa, a gente gostava. Mas depois veio o pessoal que vivia nas casas em Santa Luzia, era um pessoal que fugiu lá de uma ocupação, e vieram para o Paulo VI. Nós ficamos, de novo, sem lugar pra ir.

A CHEGADA AO CAPITÃO EDUARDO Um tempo depois, o secretário nos chamou para conhecer a fazenda Capitão Eduardo e, naquele dia, eu vim com ele... Ele disse: “Ô Moacir, se vocês gostarem, nós vamos mandar colocar vocês aqui. Nós vamos mandar abrir e colocar vocês aqui”. Eu falei: “Aqui está ótimo! Não tem lugar melhor do que esse aqui, não”. Isso foi no final de 87. Em 7 de fevereiro de 88, nos foram entregues os primeiros 50 lotes no Capitão Eduardo, ali onde é o centro de saúde hoje. Ali, havia várias mangueiras... Aí começamos a construção de nossas casas, que eram um quarto, uma cozinha e um banheiro. Mudamos pra cá sem nenhuma infraestrutura. Cada vez chegava mais gente, pessoas de todas as associações vizinhas, do Jardim Vitória, vinham pessoas da Amabel (que era um movimento muito forte em Belo Horizonte também naquela época dos sem casa), tinha o pessoal da Famope também (era um outro movimento muito forte). Então, vieram pessoas de

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vários locais, de vários setores de Belo Horizonte. Pessoas de desapropriações da prefeitura feitas em alguns lugares: todos vieram para aqui. Esse povão todo aqui, a maioria deles sem suas casas prontas! Depois, houve uma grande ocupação de moradores que não tinham sido contemplados com seus lotes. Alguns foram retirados pela Polícia Militar, pela prefeitura, mas outros ficaram junto com os que já estavam ali, nas barracas de lona. Eles vieram depois, como invasão. E, com muita luta, eles ficaram. A maioria deles – eram em média 75 famílias – na barraca de lona. Então, além de ser um lugar que as pessoas viviam precariamente, sem transporte, sem água, nem luz, sem nenhuma infraestrutura, o bairro ainda tinha pessoas que moravam na barraca de lona. Era desumana aquela vida. Veio também o pessoal que estava ali naquela região onde é a Câmara Municipal e foram colocados ali na pracinha, com as barracas verdes do exército. Esse pessoal ficou uma temporada, depois a prefeitura arranjou um lugar pra eles habitarem também. Muitos deles não tinham nem sequer alimentação. A gente tinha que recorrer a órgãos pra tentar arrumar alguma coisa pra eles poderem se alimentar, e a gente também.

CONSTRUÍMOS O BAIRRO E fomos buscando um meio para construir as casas, para colocar água e luz, colocar os benefícios. O prefeito

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era o Sérgio Ferrara. Aí, veio o mandato do Eduardo Azeredo e as construções pararam totalmente. A gente teve que procurar o governo do Estado e a associação fez um convênio com o governo do Estado. Primeiro, fizemos um convênio de um milhão; depois, um convênio de 900 mil. Com o dinheiro, nós montamos a associação. Transformou-se numa pequena empresa: contratamos três caminhões para colocar água e material nos lotes das pessoas, contratamos um mestre de obras, três pedreiros, três serventes, três vigias, um almoxarife, três auxiliares e os ajudantes dos caminhões. Tivemos que contratar também um contador, porque era muito dinheiro. Pra gente que não tinha, estávamos acostumados a mexer apenas com o salário mínimo que a gente ganhava, pra mexer com aquela fortuna de dinheiro, tinha que ter alguém para poder nos auxiliar financeiramente, tecnicamente. Contratamos o Sr. Euler, que foi nosso contador, foi quem nos ajudou muito, e nós fizemos as concorrências públicas, compramos o material e levantamos as casas das pessoas. Quando as casas estavam em condição de rebocar por fora... foi quando o governo Collor prendeu nosso dinheiro. O dinheiro de acabamento de nossas casas, o Collor prendeu. Aí, voltamos à estaca zero. Além da construção das casas, nós estávamos também atrás da água. Nós já tínhamos a luz. Colocou a luz, mas as pessoas não tinham o padrão, não podiam comprar o padrão... Aí, nós fomos atrás do padrão de luz. Conseguimos

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o padrão de luz com o Estado. A água estava na torneira, mas não havia os cavaletes [tubulação para a condução da água às casas]. Aí, fomos tentar com o Estado os cavaletes de água. O Estado também nos doou os cavaletes de água.

COMUNIDADE DE FÉ Eu queria frisar também que, naquele momento, a gente tinha que fazer não só construção das casas, água, luz, esgoto, mas também o trabalho de comunidade, porque a nossa comunidade cristã, comunidade de fé, ela não nasceu depois que nós mudamos pro Capitão Eduardo. Nossa comunidade de fé nasceu ainda no bairro Goiânia. Nós não sabíamos pra onde nós iríamos e já colocávamos, pedíamos a Nossa Senhora: “se nossos lotes saírem, onde quer que for, nós daremos à comunidade o nome de Rosa Mística”. E, para nossa surpresa, poucos meses depois... aliás, naquele dia mesmo, começamos a rezar em nome da Rosa Mística, lançamos na assembleia daquele dia essa proposta do nome de Nossa Senhora e nós recebemos nosso terreno, graças a Deus! A gente tinha que construir casa, fazer comunidade, fazer igreja e fazer tudo pela graça de Deus.

NÃO PARAMOS MAIS Nossos meninos estudavam lá na beira da BR. Essas crianças iam pra lá e pra voltar à noite era muito difícil.

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Nós conseguimos junto a uma empresa os vales. Aliás, não tinha o ônibus também, o ônibus era na BR. Depois, passamos a ter um ônibus de integração, que nos levava daqui até Jardim Vitória. Nós usávamos esse ônibus até que foi criada essa linha daqui. Enquanto isso, a gente tinha da empresa de ônibus uns ticketizinhos que as crianças usavam pra ir e voltar da escola. Quando foi criada a linha definitiva para a cidade, a coisa mudou. Àquela altura, nós já tínhamos água, luz... faltava o meio de comunicação. O telefone mais perto daqui era ou no Posto Beija-flor ou no Jardim Vitória. Às vezes, não conseguíamos linha, tínhamos que ir lá no bairro Santa Inês fazer uma ligação. A partir daí, nós não paramos mais. Nós tínhamos também que construir a igreja – e construímos. Realizamos muita coisa, sempre com muito esforço e união. Um ano e meio depois, se não me falha a memória, o Collor de Melo devolveu o dinheiro da associação. Foi em média mais de três milhões de Cruzeiros e o Estado queria esse dinheiro de volta: “Vocês não usaram, tem que devolver esse dinheiro!”. Eu falei: “Não, o dinheiro não é de vocês, o dinheiro é da comunidade. Eu não vou devolver pra vocês esse dinheiro”. Nesse vai e vem, eu já tinha um período muito grande na associação, a saúde não estava muito boa mais, minha pressão estava muito alta, era muita coisa pra mexer... Foi quando apareceu uma pessoa, a Dona Égina, e assumiu a associação. Não apareceu can-

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didato, ela foi candidata única. Àquela altura, o dinheiro estava no banco em nome da associação. Eu passei pra Égina e, com o dinheiro, ela calçou grande parte das ruas do Capitão Eduardo. Aí, então, ela assumiu a associação e passou a fazer o trabalho. E eu continuei atuando na luta, como sempre fiz. Mesmo sem ter a associação na mão, nunca deixei de fazer alguma coisa, de estar presente no lugar e lutar pelas coisas.

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SEBASTIÃO FRANCISCO GOMES “TIÃO DA ORAÇÃO” Sebastião viveu os desafios de uma ocupação. Conhecido como “Tião da Oração”, foi sua fé que alimentou a labuta diária na concretização de seu sonho: construir sua casa, ter seu canto. A história de Sebastião é uma realidade compartilhada por outras dezenas de famílias que, junto com ele, fizeram o Capitão Eduardo.

QUANDO SURGIU O CAPITÃO EDUARDO Quando surgiu o Capitão Eduardo, minha esposa veio primeiro, pra poder conseguir moradia. Dentro de pouco tempo, surgiu um trabalho pra mim. Aos poucos saiu trabalho... Saí anunciando como estava o Capitão Eduardo. Tava maravilha! Tinha um pessoal que queria mexer no material do outro e eu tava sempre ali, vigiando. De noite, era a mesma coisa, eu saía olhando. Eu e Dona Geralda dissemos: “Nós vamos começar com o trabalho aqui”... Eu, com aquela boa vontade de limpar, naquela capinação... Ela também pegou firme. Todo mundo lutou. E o bairro foi crescendo, crescendo... Hoje já cresceu! As ruas estão asfaltadas, cada dia que passar vai melhorar mais ainda. Eu, minha esposa e todos os moradores daqui falamos a mesma coisa: “Cada dia que passa, vai melhorando. Tá melhorando até. Quem está

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com benção com Jesus, só vai melhorar!”. Éramos minha esposa, eu e minha irmã... Vinha o caminhão, a gente tinha que colocar as pedras dentro dele, com aquela força. Eu fazia isso alegre, satisfeito. Foi em 1989 que viemos pra cá. Eu morava no Goiânia. Nem sabia como era isso aqui. Daí, surgiu o negócio da reunião. Tinha o Sérgio Ferrara [prefeito de Belo Horizonte no período de 1986 a 1989]... eles marcavam o dia que era pra reunir... Chamaram primeiro o nome da minha esposa e liberaram o lote. Hoje em dia, continuamos crescendo e eu quero ver cada um morando no seu lugar. Tem mais de 20 anos que estou aqui. Eu sei, porque eu plantei uma muda de goiaba lá em casa tem mais de 20 anos... talvez mais de 30. Minha esposa plantou, tem mais de 20 anos. Se perguntar pra ela, ela não esquece. Sabe tudo, do começo até o fim. No início, era só mato... só mato! Tinha aqueles carrerim... Eu passava naquele caminho e ia olhando os passarinhos cantando. Aqui embaixo era só mato, tinha aqueles paus grossos, grama... tinha grama demais por ali. Aí, eu capinava, tinha aquela vontade pra trabalhar. Capinando ali, mais tarde era um café, e daí foi melhorando, melhorando, melhorando... Cada um ganhou seu material, sábado e domingo cada um mexendo aqui e ali, trabalhando. O ruim foi que surgiu gente de fora, querendo invadir. Vinha dois ônibus cheios, as pessoas vinham chegando porque queriam

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invadir, um esperando o material do outro. Um dia, por exemplo, o povo estava capinando o lote... aí, chegou uma mulher e duas meninas, querendo invadir. Mas, depois, elas foram embora. Tinha que vigiar mesmo, porque esse tipo de coisa acontecia muito. Passei as madrugadas orando. Eu ia aguentar pagar lote? Pagar aluguel? Eu não ia aguentar. Eu estava desempregado, não parava em emprego. Pegava biscate... Mas depois, fichei. Deus me afirmou no serviço. Trabalhava de gari, varrendo rua. Tem que agradecer a Deus! Desde o começo, por poder capinar. Esse matagal aqui, eu peguei, enfrentei... Desde de lá do começo... É por isso que eles gostam de me chamar de “Tião da Oração”... Eu passava as madrugadas orando. E estava correndo atrás também. Cada um aqui estava numa luta. Cada um numa luta. Muita gente não tinha lugar pra morar e conseguiu um lugar aqui. Água foi a maior luta. Vinha o caminhão, tinha que ficar até 11 horas na fila. Mulher brigava, xingava aqueles nomes ruins. Eu ia andando e fazendo oração. Deu tudo certo, mas foi uma batalha. Carregar água, mexer com o material, encher tambor. Não foi brincadeira. Mas, agora, tô no céu. Foi muito bonito de ver!

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SARA COLEN

Para Sara, atuar pela cultura do bairro em que vive desde os dez anos de idade é uma importante forma de melhorar a vida de todos. Hoje jovem, Sara trabalha com a dança e acompanha atentamente as festas, tradições e outras atividades artísticas locais. Assim, ajuda a construir a história do Capitão Eduardo – fato que, para ela, é motivo de orgulho.

CONSTRUÍ A MINHA VIDA AQUI Tenho 26 anos e me mudei pro Capitão aos dez anos de idade. Não tive, infelizmente, a oportunidade de participar da construção do bairro. Quando eu cheguei aqui, já tinha escola, posto de saúde, a maioria das ruas já era asfaltada e tinha água, luz, acesso a telefone, internet. A partir dos dez anos eu estudei aqui, comecei a frequentar a igreja, comecei a dançar. A minha vida pessoal foi construída aqui no bairro. E, daqui pra frente, eu pretendo ajudar com aquilo que eu pude construir na minha vida, quero contribuir pra termos um bairro melhor.

TRABALHO PARA MUDAR A IMAGEM DO BAIRRO Infelizmente, hoje, a gente vê no bairro muita droga, muita violência, muitas meninas se prostituindo nas

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ruas, muito novas. Então, o que eu tive e tenho dentro da igreja [Igreja Evangélica Comunidade Cristã Projeto Esperança], eu quero levar pras pessoas, ajudando a criar um bairro com mais qualidade de vida e com menos daquilo que denigre a nossa imagem. Porque quando a gente fala “eu moro no Capitão”, as pessoas respondem: “oh, credo!”. Então, é essa imagem ruim que a gente – tanto eu individualmente, como nós como igreja – busca mudar. As pessoas virem até nós e nos procurar pra contar a história desse bairro é a oportunidade que a gente tem de contar tudo o que nós passamos, o que as pessoas passaram, e tudo o que a gente pretende fazer e ser daqui pra frente. Um futuro melhor, um bairro melhor, sem violência, sem nada daquilo que é ruim. Infelizmente, já tem mais ou menos uns oito meses que eu casei e não tô morando aqui no bairro, mas todo mundo que me conhece sabe que eu venho pra cá todo fim de semana. Não estou longe, moro no bairro Jardim Vitória – que sofreu, com certeza, as mesmas coisas pra ser construído, pra estar como está agora. Mas o meu fim de semana é aqui. Eu venho pra cá na sexta-feira e só volto na segunda.

AMIZADES PRA VIDA TODA Eu gosto muito daqui, nossa! Eu tinha amizade antes de vir pra cá, porque quando eu vim eu já estava com

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10 anos. Eu deixei amigas no bairro onde eu morava, mas eu fiz outras amizades aqui. Quando aprendi a andar de bicicleta, eu já morava aqui. A maioria das amizades que permanecem comigo até hoje, eu fiz aqui. Quando eu visitei a primeira vez a igreja, eu morava aqui. Então, tudo o que aconteceu de bom comigo foi aqui, meu namorado, meu marido. O bairro proporcionou muitos momentos importantes da minha vida. Então, eu quero contribuir pra melhoria do bairro.

ESPAÇOS PARA A ARTE E A CULTURA A Escola Integrada [programa da rede pública de ensino de BH, que estende a jornada escolar para nove horas / dia], quando veio aqui pro bairro, trouxe atividades artísticas pros estudantes. Tinha aula, por exemplo, de instrumentos musicais. O meu cunhado mesmo, marido da minha irmã, dava aula de bateria. Tinha aula de vários instrumentos, flautas, teclado... Há também pessoas da igreja e da comunidade que fazem artes, trabalham com pintura em pano de prato, com crochê, fazem caixinhas decoradas. Como uma escola fica aberta todo sábado e domingo, de 8h até 17h, eles têm a oportunidade de vender. Uma vez ou outra, a comunidade organiza um bazar em que a gente tem a oportunidade de comprar. É um jeito de ajudar as pessoas da comunidade que são mais

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carentes. Nem todo mundo tem um acesso total às coisas, financeiramente falando, então a gente tem a oportunidade de ajudar. A igreja católica, geralmente, é a que organiza a maior parte dos eventos do bairro. Quando chegam os meses de junho e julho, tem quadrilha... As festas tradicionais acontecem, todas, aqui na nossa região. A igreja evangélica tem crescido e a gente tem procurado se estabelecer no bairro também, participar dos eventos culturais. Nosso interesse é através da dança, temos um grupo, ensinamos arte e fazemos eventos culturais pro nosso bairro. O bairro precisa ser despertado e eu espero contribuir pra esse despertar para cultura. É gratificante estar aqui e participar da história do bairro Capitão Eduardo.

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ALOÍSIO CARVALHO “BLACK STEVE” Steve, Black Steve, ou Aloísio Carvalho mesmo. Pioneiro do movimento Soul no país está na luta por ocupação e direito à moradia desde os tempos do acampamento de barracos de lona às margens da MG-020. Nos anos 1970, para o poder público, o Novo Aarão Reis ainda não existia, mas Aloísio se lembra de ver a comunidade surgindo na luta comum e diária entre os barracos de lona. Membro ativo da associação do bairro desde que ela foi fundada, ele faz questão de enfatizar que é um “multiplicador e somador” e continua na luta, através do projeto de cultura soul que desenvolve no Escola Aberta (programa da rede pública de ensino, que consiste na abertura de escolas aos finais de semana para eventos da comunidade) e da disposição de apoiar todos os outros projetos que despontam no bairro. Na maior parte do tempo, Aloísio se expressa no coletivo e sua própria história se confunde com a do bairro.

COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI: LUTAS E CONQUISTAS A gente viveu muita luta pra chegar até aqui. Tivemos duas entidades que chegaram no começo, dois movi-

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mentos de sem casas. O sucesso deles deu origem a outros movimentos. Quando nós chegamos aqui, já tinha uma turma, um pessoal simples, meio deprimido. Eram chamados o pessoal da ‘Mabel’. Nós chegamos pra cá depois de algumas lutas no centro da cidade, questão de pernoitar na porta de Secretaria de Habitação... De igreja. Esse negócio todo pra gente chamar a atenção da sociedade com relação ao direito à moradia. A gente não estava pedindo nenhum favor. É um direito do cidadão. Ficamos acampados do lado da avenida que hoje dá acesso ao bairro, antes de ela ser duplicada. E aí a gente tinha o problema do risco de estar na beira de uma rodovia estadual. Era um risco muito grande... tinha crianças. Tínhamos outros problemas. Na época de chuva, era uma dificuldade danada no meio do barro, a gente tinha que combater cobra, escorpiões. Bom, felizmente, acho que ninguém chegou a ser vítima de algum bicho desse. Vivemos coisas assim... as questões da luta... As lutas trazem sempre alguma coisa pendente e o sabor da vitória, das conquistas. Aí, vieram as conquistas. Formamos associações de bairro. Viemos da barraca, subimos aqui pra cima, pras casas, e fomos recebendo o material pra fazermos nossas casas e tudo. Nós não chegamos a ficar nem um ano, praticamente, com ruas de terras. Urbanizaram tudo. Foi uma conquista muito grande isso, né?!

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Eu cheguei a ser vice-presidente da associação. Fizemos um trabalho muito bonito durante esse tempo, que chamou a atenção na capital toda. A gente alcançou uma conquista histórica em BH: a conquista da Escola Municipal. O valor dela era muito alto, as pessoas não queriam votar [no Orçamento Participativo] na obra por ela ser muito cara – uns dois milhões, oitocentos e pouco. Na época, esse dinheiro dava pra fazer muito. Até hoje dá pra fazer muitas obras. Então, não queriam repassar. Aí bolamos um plano estratégico, conversamos com o delegado [representante no Orçamento Participativo]... Aquele negócio todo... E conseguimos passar a escola, que abraçou 1/3 do orçamento participativo de toda a capital. Foi realmente uma conquista muito grande e histórica. Com essa conquista, nossa comunidade se valorizou mais ainda junto aos órgãos públicos. Hoje, nós temos um bairro que tem tudo... Quase tudo, vamos dizer assim... Ainda há muita carência e algumas dessas carências estão amenizando aos poucos, graças a alguns projetos. Por exemplo, o trabalho com pessoas de terceira idade, com crianças, trabalho com jovens. Essa carência está amenizando através do projeto En-Hacoré [iniciativa comunitária local, abordada em detalhes em outros depoimentos do livro], de ações da igreja. E agora temos uma Escola Aberta também.

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QUANDO O TRABALHO É COLETIVO, OS GANHOS SÃO DE TODOS Nós temos um defeito na nossa comunidade, que acho que existe em muitas comunidades. Diante das lutas que passamos, muitas pessoas se acomodaram. As pessoas ganharam suas casas e, com isso, tudo se acomodou. Nós lutamos por coisas do bairro acionando a comunidade, mas a presença das pessoas às vezes era muito pouca. Mesmo assim, havia pessoas que tinham vontade, acreditavam no bairro, queriam melhorar e doavam um pouco do seu tempo pra poder acompanhar a associação, as conquistas, as batalhas todas. Não é uma coisa que traz méritos pra uma ou duas pessoas, não. É um ganho coletivo, pra toda comunidade, mesmo aqueles que se acomodaram em casa, ou não puderam. Então, a gente tem que acreditar nas coisas. Somar e acreditar. É o caso aqui do En-Hacoré, que começou com uma escolinha infantil... Viveram tantas dificuldades e, se não tivessem acreditado, não existiria esse projeto. Não é verdade?! Todos nós temos que ter um objetivo na vida, senão a gente não anda, a gente não tem porque lutar, a gente vai vegetar. Se você não tiver objetivo na vida, não tem como você sair do lugar. E quando o objetivo é coletivo, é muito mais bacana. Eu, durante o tempo em que estive na associação, não tinha praticamente nem apoio da minha família. Eles

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não entendiam: ‘ah!, não sei pra que perde tempo com reunião’. Mas eu me apoiava numa coisa: quando a gente está a serviço do próximo, estamos somente a serviço de Deus.

BLACK STEVE, O SOUL E OS DESAFIOS À CULTURA NO NOVO AARÃO A cultura Soul tem muito a ver com a vida de cada um de nós desse país, principalmente quem viveu na década de 1970. A gente tinha muita dificuldade de comunicação com as pessoas, muita dificuldade de tudo, exatamente por ser um cidadão de cor. Havia muito preconceito não só de cor, como de classe social também. Então, era como se retornasse lá atrás, quando estávamos na época da escravidão, e o escravo desenvolvia a sua cultura, as suas religiões na senzala. Cada um descobriu um ambiente, e fomos desenvolvendo as nossas coisas. Meu primeiro baile soul foi aqui no Aarão Reis, em 1974, ali perto dos quebra molas. Jamais imaginei que eu ia morar aqui nessa área. Os primeiros locais que comecei a dançar foram por aqui... Aarão Reis... Pirajá... Essa região toda aqui, norte e nordeste. Eu sempre tive a vontade de desenvolver a cultura soul aqui, porque em todo lugar em que a gente fazia uma apresentação, fazia uma atuação, as pessoas queriam aprender. Então, a gente fica buscando uma forma, um meio de poder ensinar as pessoas.

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A cultura soul foi o pontapé que eu – um adolescente de 14, 15 anos – precisava na quela época, num país que não tinha a mínina experiência de lidar com o preconceito. Um país que estava engatinhando ainda pra lidar com esse tipo de coisa. Um adolescente que veio de uma cidade pequena pra capital cheio de complexos. O negro antigamente se olhava no espelho e via uma ‘porrada’ de defeito... No nariz, aquele negócio todo... Não se autovalorizava, exatamente porque as pessoas os incentivam a criar esse tipo de complexo... Era muito difícil lidar com essas coisas. E indo na escola de samba, mexendo com capoeira também – já fui capoeirista –, conhecendo novas pessoas, acabei conhecendo o soul e me identifiquei rapidinho com ele. Desenvolvendo a dança, aquele negócio todo, a gente foi se elevando, se autovalorizando. E, hoje, a gente que faz parte da cultura soul tem essa vontade de passar nossa experiência para a nova geração, porque na nossa geração tivemos todos os problemas que eles enfrentam hoje, e era pior ainda. Então, a gente faz o projeto com os jovens pra tentar amenizar as situações que já passamos na vida e não queremos que eles passem. Não é?! As situações que a gente passa na vida e não quer que nossos filhos passem... Então, a gente faz o quê? Faz projeto e tudo, porque a gente quer somar, não só para nossos filhos, mas também para as pessoas da nossa comunidade.

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AÇÕES PRA COMUNIDADE PARTICIPAR Eu trabalho com o En-Hacoré, com o Fica Vivo [programa do governo de Minas que, com vistas à prevenção à violência, oferece oficinas culturais, esportivas e de lazer para jovens em situação de risco social] e com a Escola Aberta. O programa que realizamos com a Escola Aberta ainda precisa de divulgação. Precisa cuidar da informação, precisa de mais empenho da diretoria da escola em relação a esse projeto da Prefeitura... Afinal, se a escola está aberta, não é só para os alunos ou para os professores. É para a comunidade. E boa parte da comunidade só se atrai por eventos. Você só consegue reunir uma boa parte da comunidade com um evento. Um evento chama a atenção. Então, a nossa ideia é exatamente essa: desenvolver eventos na escola. Em vez de ser uma coisa pra comunidade ir lá e visitar, a comunidade vai lá todo fim de semana participar de um evento. Já tivemos a situação de programar um evento na Escola Aberta e, quando chegou na diretoria [da escola], ela barrou. O órgão público, às vezes, é muito burocrático. Eu vejo tanta burocracia... Pra nós, cidadãos, burocracia é péssimo, viu?! Nós da comunidade temos muitas ideias bacanas, já conquistamos muuta coisa, mas ainda falta espaço. Espaço físico, mesmo. O espaço físico é uma das carências que a cultura ainda tem aqui na comunidade.

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GERALDO MAGELA

Geraldo Magela vive no Novo Aarão Reis há 18 anos. Membro ativo nas reuniões das associações, nos trabalhos voluntários e na construção da história do bairro, foi o primeiro presidente do conselho de saúde. Geraldo também é o pastor Geraldo e conta como a disposição em atender as necessidades da comunidade e a luta comum fazem com que os diferentes credos trabalhem juntos e convivam em harmonia no espaço que deve ser de todos.

CONSELHO DE SAÚDE Eu gosto muito de fazer parte, de ajudar a comunidade, de ajudar as pessoas. Eu comecei a participar das reuniões e logo surgiu a ideia: “Vamos formar um conselho de saúde?”, porque não tínhamos. O pessoal achou por bem fazer uma votação pra ver quem se saía melhor como presidente. E eu fui um candidato unânime na votação. Todo mundo votou em mim. Eu fiquei um tempo e não pude continuar mais por causa do meu serviço. O serviço não estava me deixando participar das reuniões. Aí, eu não pude dar continuidade. Chegamos a aconselhar algumas pessoas aqui. Chegamos a ajudar resolver alguns problemas lá no posto de

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saúde, as coisas caminharam bem. A gente ficou muito alegre com o que recebemos lá no posto de saúde: aparelhos dentários novos, computadores novos, que nem todos os postos tinham. E as pessoas lá buscavam nos compreender. Tivemos apoio dos agentes comunitários, então fiz bastante amizade com eles. Mas a gente não tem nenhum privilégio de chegar num posto e falar “oh, sou presidente do Conselho e eu vou ser atendido primeiro”, não. Se você chegou lá, você é um paciente, você é um morador do bairro. Você é um presidente lá no Conselho. Na hora de ser atendido, você é um morador também. Você vai entrar na fila, vai participar da triagem e tudo, até chegar sua vez. Eu fui presidente por uns 3 anos ou mais. O posto de saúde é mais antigo. Com o tempo é que resolve-se criar o Conselho. O Conselho foi criado, vieram as reuniões, e nós fomos participando e entendendo a importância de tudo. Chegamos a andar pelo bairro, fomos até embaixo, na beirada do rio, pra poder olhar as condições de moradia do pessoal lá. Os lixos que eles estavam jogando na beirada de lá... O prefeito manda a máquina pra poder limpar, mas o lixo vai pra dentro do rio. Tira, aí o pessoal volta a jogar de novo. Nós fomos lá, porque uma moça que fazia parte do conselho reclamou. Nós fomos lá e chegamos a descer com a diretora, dona Jani. Descemos a beirada do córrego todinho até lá embaixo, olhando as condições de vida do pessoal todo.

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O VINDE Ah, o bairro cresceu assustadoramente. O pessoal fala que não tinha igreja, mas tinha a Igreja Católica, que era também uma casa de madeira, igual um circo. Foi uma das primeiras que surgiram aqui. Hoje, o padre lá é meu amigo. Eu vou lá, ele não me deixa ficar sentado no meio do povo não, ele me põe lá no altar com ele... “Vem cá. Vem ficar do meu lado aqui porque você ministra o Evangelho, você tem que ficar aqui do meu lado”. E como eu sou estudante de teologia e ele é professor de teologia, ele já faz questão que eu vá lá e me dá a oportunidade de falar com o povo por dois, três minutos. Ele fala assim: “Eu tô te devendo. Você já veio na minha igreja já umas quatro, cinco vezes e eu ainda não fui na sua igreja”. Quando tem uma festividade de uma igreja, ela convida todas as outras, e todo mundo vai. A gente tinha um movimento aqui na praça que chamava Vinde. “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vós aliviarei” (Mateus 11:28). O Vinde era um movimento que enchia a praça, trazia muita gente de vários bairros. Muitas igrejas vinham e tudo, mas depois foi acabando. O presidente [da associação de moradores] não quis mais dirigir. Não encontramos ninguém pra ocupar o cargo de presidente, porque tem que ser uma pessoa de garra, que esteja

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disposta mesmo a batalhar, a procurar melhorias, mesmo. Acho que o último Vinde aconteceu em 2009. Ele começou, mais ou menos, em 2003, 2004. E acabou em 2009. Mas a participação trazia motivação pro povo. Vale a pena seguir a Deus e servir o povo. A gente está ali em nome de Deus, servindo o povo. Eu sou pastor desde 87. Há 25 anos. E a gente faz um trabalho, além de pregar o Evangelho, a gente faz a parte social também, que é ajudar as pessoas na alimentação, na vestimenta, no calçado. As pessoas, às vezes, nos procuram. Às vezes, a gente tem algo pra doar. A gente procura quem está precisando pra poder doar porque, depois que a gente é reconhecido como pastor, não tem jeito. Tudo que eles têm, eles procuram a gente... “Aqui, oh pastor, eu tô com uma cama lá em casa de solteiro, eu comprei uma nova e tudo, tá parada e tal. Vê se o senhor arruma alguém que quer”... “Eu tô com um guarda-roupa lá, eu troquei o meu, o outro tá desmontado lá. Eu tô querendo doar pra alguém, vê se alguém precisa de uma doação”. As pessoas doam roupas, alimentos, levam pra casa da gente, então a gente ajuda as pessoas aqui no bairro assim, também.

O NOVO AARÃO REIS NÃO É MAIS UMA FAZENDA Eu gosto de morar aqui no Novo Aarão Reis porque tem saída pra todos os lados. Pra todo lugar que você quiser

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ir, ele tem acesso. Se você quiser ir pro lado da Pampulha, tem o ônibus 70, lá em cima, que sai pra lá. Hoje, eu trabalho na Pampulha, pra lá do Iate Tenis Clube. Então, eu pego o ônibus 70, desço na Antonio Carlos e vou a pé até lá. Se você quiser ir pra cidade, você tem várias opções. Você pode pegar o ônibus aqui ou pode pegar ônibus ali, descer no metrô e ir. Se você quiser ir lá pro BH Shopping, lá em cima, é a mesma coisa, tem acesso ao ônibus que deixa você no metrô lá no Corpo de Bombeiros e, de lá, você vai até o BH Shopping. Eu ficava chateado porque nosso bairro era considerado uma fazenda. O pessoal fazia o mapa da região e colocava fazenda. Antes não tinha nada, então era uma área verde, uma fazenda... E era mesmo, mas pôxa! A gente já estava morando aqui, por que o lugar ainda era considerado uma fazenda?! Aí, um dia, teve um assassinato, uma coisa pesada... Eles vieram e desenharam tudo. Fizeram o croqui todinho do bairro. Eu estava até conversando com a gerente de um posto médico, ela até me mostrou o jornal... O nosso bairro aparecia, estava tudo pronto. Eu falei: “Tá vendo! Agora eles fizeram um croqui, tudo do nosso bairro, mas precisou acontecer uma coisa ruim primeiro, né?”. Depois, reconheceram nosso lugar como bairro. Eu gosto de morar aqui, porque aqui as pessoas são humildes e, graças a Deus, até banco 24 horas nós temos aqui dentro do bairro. Eu saio da minha casa e, com menos de três minutos, estou dentro da padaria. Eu saio

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da minha casa, com cinco minutos, estou no açougue. Se eu quero cortar cabelo, eu tenho várias opções, tem vários salões. Mulher também, pra arrumar o cabelo, tem vários salões pra escolher. É... temos sacolão, temos supermercados – uns três ou quatro supermercados. Tem mercearia, tem bar, tem lan house – parece que são duas lan houses. Então, não é um bairro de se deixar de lado, não. É um bairro que realmente acompanha o desenvolvimento, acompanha o progresso e a gente fica satisfeito com isso. Houve uma organização, o bairro tá organizado. Dá vontade da gente trabalhar por ele, sempre.

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IRALDETE RODRIGUES

Iraldete Rodrigues, que vive no Novo Aarão Reis desde 1996, conhece bem as carências da comunidade e comemora as conquistas alcançadas da época das lutas por condições dignas de moradia até os dias de hoje. Ela destaca uma em especial. Em 2003, a Igreja Católica, a partir de iniciativa da irmã Rosa Maria, fundou uma creche no Novo Aarão para atender a intensa demanda do bairro. Os pais precisavam sair para trabalhar e não tinham com quem deixar as crianças. Muitas, às vezes, ficavam na rua. A irmã Rosa Maria, que morava ao lado, no bairro Primeiro de Maio, viu essa necessidade e começou a OSCOSE – um projeto social que oferece diversas oficinas e atualmente atende cerca de 100 crianças do bairro. Iraldete assistiu a fundação do projeto, no qual decidiu se engajar e ao qual se dedica com afinco, até a atualidade.

OBRAS SOCIAIS DA COMUNIDADE SANTA EFIGÊNCIA – OSCOSE Eu tô com um movimento aqui no bairro, a OSCOSE. É uma luta! Não é fácil pra gente manter as crianças, pra gente manter o oficineiro, pras famílias estarem mais presentes junto com a gente, pra que a gente possa crescer. Pra que não aconteça, de repente, de chegar um

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dia em que se diga: “Ai, a OSCOSE acabou, vai fechar”. Pra OSCOSE não fechar, a gente precisa de mais parceria, precisa de mais ajuda, precisa da família estar junto, porque não tem como cuidar da crianças sem a família estar por perto, não tem como. A gente precisa fazer um movimento com as famílias. A gente precisa trabalhar muito com todas as famílias: trazer cultura, trazer evento que envolva familiares das crianças e comunidade, pra que todo mundo possa participar e nos ajudar. A OSCOSE, sigla das ‘Obras Sociais da Comunidade Santa Efigência’, existe há 16 anos e, desde 2003, ela tá aqui no Novo Aarão. Começou da carência das famílias. Os pais têm que trabalhar e não têm onde deixar as crianças... Começou com isso, pra ajudar a criança e a família. No começo, eram 60 crianças. Depois, o número foi pra 80 e, hoje, nós temos 100 crianças. Quem criou foi a irmã Rosa Maria. Ela é espanhola e veio morar aqui em BH, no Primeiro de Maio. O trabalho dela abrange essa regional toda, porque ela conheceu a dificuldade das famílias, viu a situação das crianças aqui... Foi assim que a gente começou. Ela fundou a igreja e depois trouxe o projeto aqui, pra atender as crianças e as famílias. Hoje, nós temos aula de capoeira e de música, temos reforço escolar, temos nossos brinquedos e brincadeiras, né ? Temos professores e monitores pela instituição. Também temos professores e monitores que vêm através

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do CRAS [Centro de Referência de Assistência Social, equipamento público municipal], que são professores de esporte. Então, fica assim: tudo muito legal! Na escola daqui, tem 1.200 crianças. E tem a OSCOSE, com 100 crianças, além do EN-HACORÉ, com mais cerca de 100 crianças. Mesmo assim, ainda tem muita criança na rua. São tantos projetos acontecendo aqui, mas muitas vezes faltam vagas e há várias crianças que ficam vagando.

É PRECISO RESGATAR ESSAS HISTÓRIAS Cheguei aqui em 1996, no bairro. Eu comecei a trabalhar com projeto social. Eu vim trabalhar numa creche, na Rua 45. Eu me lembro que, na época que trabalhei na 45, era difícil demais. A creche que não tinha água, não tinha luz... Eu fiquei nessa creche, muitas vezes, até nove, dez horas da noite, esperando as mães buscarem suas crianças. A dificuldade era enorme. Eu realmente vi muitas crianças carentes, acompanhei a carência das famílias. A gente está aqui, conversando, e vai vendo os resgates de tantas coisas que nos aconteceram... Eu vi e vivi essa luta. Então, hoje, graças a Deus, eu vejo o bairro do Novo Aarão Reis desenvolvido, vejo um bairro que tem tudo. A gente precisa conscientizar as famílias pra verem essas histórias. Temos que colocar essa história, pra que a comunidade conheça a história do seu próprio bairro: como ele foi formado, as pessoas que lutaram, como é que

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está hoje. As pessoas de hoje têm que valorizar tudo isso e as pessoas que lutaram, pra que essas pessoas possam continuar e outras possam chegar e somar. Isso é importante pra que nossas crianças, nossos jovens saibam dar mais valor a tudo isso que veio, que aconteceu, porque não aconteceu de uma hora pra outra. O que nós temos aqui hoje é fruto de uma luta e muitas coisas já se perderam. Então, a gente está tentando resgatar as memórias, pra que as pessoas tomem consciência do que já melhorou e de que é preciso melhorar muito mais. Que o nosso bairro tem muita coisa boa e que pode acontecer mais coisa boa ainda – se a gente quiser, né? Quando o bairro começou, tinha a luta, tinha reivindicação, muita gente ia reivindicar pelas coisas da comunidade. Hoje, a gente precisa de mais coisa e não encontra pessoas dispostas a se reunirem pra buscar mais coisas pro bairro.

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JOÃO MARCOS SOUSA

João Marcos é morador do Novo Aarão Reis há cerca de 20 anos. Um orgulhoso morador do Novo Aarão Reis. Foi ele quem teve a ideia de encher as ruas do bairro com o barulho da percussão. Ele é músico e fundador do projeto En-Hacoré. A música foi a forma que encontrou para transmitir seu amor e cuidado pela comunidade, legado que ele herdou da mãe, Créssia, e da avó, Sônia. João fundou o projeto no mesmo lugar onde sua mãe e sua avó empreenderam a escola-creche, nos primeiros anos de vida do bairro.

MÚSICA, CRIANÇAS E FESTA Eu e meu irmão somos evangélicos. Participamos ativamente da igreja. Todo final de semana, a gente está lá. E a gente sempre teve aquela rotina de ensaios, pra fazer apresentações musicais nos cultos... Alguns meninos vinham falar com a gente: “Oh! Me ensina a tocar algum tipo de instrumento”. Eu lembro que, por causa dessa procura, meu irmão falou assim comigo: “ João, vamos ensinar os meninos a tocar bateria!”. E eu respondi: “Mas, pra ensinar bateria, precisa ter bateria, e como vamos comprar bateria sem recurso?”. Aí, meu irmão conseguiu uma bateria com meu tio. Acho que até hoje ele cobra essa bateria

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emprestada, já tem mais de cinco anos e ele cobra essa bateria do meu irmão. Meu irmão levou a bateria e colocou lá em casa, na garagem. A partir daquele momento, todo sábado, nós fizemos o seguinte: desmontamos toda a bateria e demos um tom pra cada menino. Cada menino usava o seu. Começamos no sábado de manhã. Eu trabalhava... Então, sábado seria dia de descansar, de acordar bem tarde. Mas, dava 10h, os meninos começavam a chamar em casa e eu estava dormindo. Aí... Nossa! Eu tinha que acordar. Começou com 10 meninos... 15... Com cinco tons da bateria, começou aquela festa. A gente reunia na garagem lá de casa, batia papo, colocava um som. Às vezes, fazia um suco e, assim, se divertia bastante. E, pelo fato da minha mãe ter esse dom, essa habilidade com o trabalho educativo e social – por toda a vida ela trabalhou com isso –, eu também comecei a gostar desse tipo de coisa. Passei a bater um papo e trocar ideia com os meninos ali. Era divertido pra mim. Aí, eu falei com ela: “Olha, a gente podia usar outros instrumentos”. E eu consegui uma ajuda da igreja evangélica pra ampliar o trabalho. Primeiro foi a bateria. Mais pra frente, conseguimos alguns instrumentos. Eu lembro que as pessoas ficavam assim: “Ah, vou jogar dinheiro fora”, porque era caro. Mas fomos levando a ideia adiante, na garagem de casa. Era tanto menino, que a gente teve que abrir

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uma turma na quinta-feira à noite. Aí, era quinta-feira e sábado na parte da manhã. Isso tudo na garagem. As meninas dançarinas também criaram a oficina de dança. Mal tinha espaço e já surgia a ideia de projeto, com duas oficinas. E o interessante é que não tínhamos recurso nenhum, mas os meninos vinham pra participar e não havia como falar: “Vamos parar com isso”. Os meninos falavam assim: “Ah! Não vamos perder isso, não”. Independentemente das condições que tínhamos, os meninos queriam participar.

“OS MENINOS SÃO BONS! SÃO DE ONDE?” “SÃO DO NOVO AARÃO REIS” Hoje, a coisa cresceu muito. Tem vários tipos de aula de música... Tem até aula de samba, às vezes. O pessoal tira as cadeiras e chega o professor com o teclado, violão... Senta um aluno aqui, outro ali, acomoda todo mundo, e as oficinas acontecem. Na outra semana, às quintas-feiras, quem vem é o pessoal que promove a questão cultural. Missionários de outros países vêm cá e dão uma aula bacana pros meninos. Projetam a imagem na parede. Vão mostrando pros meninos o que acontece na cultura de outros países. Às vezes, eu chego ali na porta, os meninos ficam assim tão concentrados que eu falo: “Gente do céu! Eu vou olhar um pouquinho também, porque é interes-

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sante”. Tem coisa que eu nunca vi, ué! O pessoal com uma roupa típica de outro país, assim... Aprendemos até música com o dialeto deles... É bem interessante as coisas que nós temos aqui no projeto hoje. Tem a percussão, que acontece nos sábados e nas quintas-feiras. Você olha lá na avenida, tá aquele barulho e o pessoal pergunta: “Gente, onde é que é isso? Deve ser ensaio de carnaval”. Chega final de semana, os meninos fazem as apresentações em outros bairros, em vários lugares. Aí, comentam: “Os meninos são bons! São de onde? ”. Eu respondo: “São do Novo Aarão Reis”. Eu me sinto orgulhoso de morar no Novo Aarão Reis. Eu já tive assim, sem condições de cobrir o custo de transporte de um evento. Aí, eu cheguei num supermercado e me perguntaram: - E aí, tudo bem? Do que você tá precisando? - Eu preciso de uma kombi que faz entrega de mercadoria pra levar os instrumentos pra um lugar. O evento é agora, eu não tenho muito tempo. - Eu vou fazer entrega em tal lugar, pode colocar os instrumentos aí junto mesmo da compra do pessoal. E ele foi embora... Levou nossos instrumentos e foi buscar. É assim que os meninos estão apresentando, dando cobertura pra gente. E, a cada vez, aparece um querendo mobilizar, querendo ajudar, né ? A percussão nossa é ótima! E mobiliza muita gente!

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A FONTE DOS QUE CLAMAM Pra criar um projeto, tem que dar um nome pro projeto. Fiquei pensando uma semana: “de onde é que eu tiro o nome?”. Eu tenho o costume de ler a bíblia, aí, pensei: “vou ler a bíblia e o nome mais bacana, esquisito ou engraçado que eu achar, eu coloco”. E, lendo a história de Sansão na bíblia, vi um trecho em ele teve que fugir de uma guerra. Foi pra um lugar distante, porque estava cansando. Onde ele foi descansar não tinha água, não tinha nada. Então, ele fez uma oração pra Deus: “Sr. Deus, depois de tudo, hoje eu tô aqui pra morrer de sede e fome?! Não tem como!”. Ele questionou isso pra Deus. Nesse exato momento, a bíblia fala que tinha uma rocha e no pé dessa rocha começou a brotar água e aquele lugar chamava En-Hacoré. Aí eu falei assim: “Engraçado, porque hoje nossas crianças não morrem de fome, não morrem de sede, mas têm sede de justiça, têm fome de cultura, têm fome de ensino. Têm várias fomes. As nossas crianças sentem fome de local adequado, do direito à cultura, de um espaço, um lazer deles. Pensei: “Gente, vou colocar esse nome. É a fonte dos que clamam”. Esses meninos têm todo o amparo lá, em questão de estrutura. Eu vejo, hoje, que a maioria dos nossos alunos já tem computador, tem televisão, tem videogame. Mas eu vejo, também, alunos meus que chegam e vêm me dar um abraço... Aí, eu começo a conversar com ele e ele

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me conta que não tem pai, ele não tem um amor de pai. Ele tem fome de amor, fome de carinho, a gente sente isso.

A CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO PÚBLICO O projeto começou em 2009, dessa demanda de crianças na rua, sem brincadeira, sem uma diversão. Iniciou com a música, com percussão. Hoje, a gente já atende bares e festas. Nós começamos em 2009 na garagem lá de casa, aí em 2010 eu tive a visão desse posto policial. Aqui, antigamente, era um posto policial. Como a polícia não tinha mais parceria com a comunidade, esse espaço ficou abandonado durante três, quatro anos... Eu conversei com os policiais, pedi pra usar esse espaço pra guardar instrumentos. A polícia militar falou assim: “Vamos repassar o espaço pra vocês, atendendo sua demanda”. Assim, no meio de 2010, eu vim pra cá. Aqui estava tudo quebrado, tudo sujo, as paredes estavam mofadas por causa de chuva, tinha pintura caindo... Na primeira semana em que eu entrei, eu já comecei a limpar, guardei os instrumentos e já comecei a utilizar o espaço. Chamei os pedreiros voluntários e já começamos a sediar as oficinas aqui. Graças a Deus, conseguimos trazer esse espaço pra comunidade. A questão da segurança pública, não precisa de policiamento de 24 horas pra dá sensação de segurança, de sentir que está seguro. De portas abertas, meninos brin-

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cando, isso traz uma sensação de segurança. Final de ano com lâmpadas, com árvores, música na rua... Isso traz sensação de segurança. Chega a ser interessante. Transmite a paz. Não combatemos a criminalidade, mas divulgamos mais a paz nesse espaço também. O cômodo que era usado pela polícia militar, hoje está sendo usado pelo projeto e, graças a Deus, está de portas abertas pro uso que as pessoas precisarem. Está aqui pra comunidade, pra outras pessoas, outras instituições, pra desenvolvermos o trabalho social e cultural. Este espaço aqui é um espaço público e, como espaço público, ele é, por direito, da comunidade.

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SEBASTIÃO SANTOS DE OLIVEIRA “SEU TIÃO” Seu Tião, nome de batismo Sebastião da Silva, vive no Novo Aarão há cerca de 25 anos. Ele era um dos mais conhecidos e bem-sucedidos técnicos do bairro. Apaixonado por futebol e pela comunidade, costumava sair “carregando menino” morro acima para formar time e disputar no campinho, um dos únicos espaços de lazer à época. Mas, um dia, precisou se mudar. Ficou longe do Novo Aarão Reis durante dois anos. Quando voltou, não tinha mais futebol, não tinha mais campinho. Era difícil arrumar gente para montar um time sequer: a maioria preferia ir jogar bola em outras vizinhanças. Sem cuidado, o mato tomou conta do antigo campinho, que acabou virando depósito de lixo. A história do Seu Tião é nostálgica. Tem um pouco de tristeza, mas também um pouco de esperança. Ele acredita na força da comunidade pra voltar a ver a bola rolar naquele lugar. E tem também a Iraldete, uma vizinha que relembra os tempos do futebol e ajuda a contar a história.

COM A PALAVRA, SEU TIÃO Eu organizava o futebol com as crianças, os adultos e até pessoas de 17, 18, 19 anos. Eu treinei os meninos

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por uns oito anos, mais ou menos. Saía carregando menino ‘pro’ campo – menino de 7, 8, 9 até 12 anos; de 12 até 15 ; e de 15 a 16. Depois, outro passou a tomar conta, que era o Vaguinho. Nós fomos subindo, trazendo grão do próprio lote pra plantar aqui no campo, porque aqui não tinha grama. Foi indo... Foi indo... Aí, o povo começou a animar, começou a sair pra fora pra jogar... Santa Luzia... Iam aquelas crianças todas, com aquela alegria toda. E o pessoal foi subindo pro futebol. Chegamos a ter menino de 17 anos jogando... A meninada toda do bairro. Era eu e ‘sô’ João Branco que carregávamos essa turminha de ônibus, de kombi. O dia que não tinha kombi, a gente ia a pé. Tinha dia que era 6h, tinha menino batendo na porta: “Tum, tum, tum... Moço, vamos, já tá na hora! ”. Eu levava pro campo, pro São Gabriel. Hoje, parou tudo, você não vê mais ninguém. Quando vai jogar, vai jogar fora. Aqui dentro não se joga mais. Você olha lá, não vê um menino batendo uma peladinha ou jogando um ‘trem’ qualquer. Tínhamos a quadra logo do lado, e ela era cercada dum lado ao outro de tela... Mas eu fiquei dois anos fora daqui e, quando voltei, o capim tinha jogado os negócios no chão. Então, eu pensei: “Se só o capim jogou os negócios no chão... Não tem jeito não.”. Tudo parou. Agora, você não vê mais nada.

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A IRALDETE FAZ CORO... Eu fico assim: “Gente, mas cadê o pessoal do futebol?”. Eu acho que as pessoas do futebol, como o senhor e como tantas outras pessoas, devem se unir a todo mundo, à comunidade também, para que a gente possa dar conta desse campo, junto com a prefeitura. Porque a prefeitura, sozinha, não está dando conta. Agora, o que é que a gente pode fazer pra esse campo voltar ao que era antigamente? Pra esse campo voltar a ser onde vocês muitas vezes já fizeram campeonato? Eu vi que a destruição do campo foi acontecendo ao longo de quase dois anos. Depois, a Copasa chegou, jogou terra lá e destruiu muito mais. Agora, como retornar esse campo, e como retornar melhor? O campo está lá, abandonado. Muitas famílias hoje vão lá, ainda tem um esporte, mas não tem o lugar adequado. Porque, hoje, a gente vê que as crianças, os jovens, adolescentes vão lá tá, mas a área virou de risco, porque a turminha que mora ali do lado fez o local de lixeira. O lixo está indo todo para ali, estão jogando tudo ali. Agora, como a gente conscientiza a comunidade disso, pra que a gente possa estar junto e compreender que ali não é lugar de lixo? Ali era um buraco mais fundo, hoje em dia já está igualando quase com o nível da rua, de tanto jogarem lixo ali dentro. Eu fico muito indignada com isso! E fico pensando em como encontrar e juntar

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pessoas como o senhor, a gente daqui, pra gente se conscientizar mais e mudar isso. O pessoal da prefeitura já esteve aqui, visitou o campo, abriu uma conversa pra que a gente possa melhorar. Não é que a prefeitura não queira refazer o campo... É que, pra refazer o campo, tem que ter a comunidade junto, né? Pra cuidar, pra não deixar que estraguem o campo como está acontecendo, atualmente.

E O SEBASTIÃO ENCERRA Hoje, às vezes, o bairro falha, porque as crianças dependem daqui do espaço. E o que é espaço?! É o local pra eles brincarem, dançarem, se divertirem. Eles não têm o que fazer se sobrar só o meio da rua. Eu acho que, nesse caso, depende dos pais, principalmente no caso das crianças, pra chegarem e se juntarem para formar um campinho novo. Igual está lá, não tem como levar criança, porque ela vai machucar. Então, pra mudar isso, eu acho que depende da ajuda de todo mundo da comunidade.

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SÔNIA SOUSA

Nos tempos da lona e do barro, Sônia Sousa fez parte dos movimentos de moradores que primeiro habitaram e organizaram o Novo Aarão. Veio como missionária e entendeu que, principalmente em meio a tantas adversidades, a fé deveria andar de mãos dadas com uma ação social capaz de transformar em alguma medida a realidade das pessoas daquele lugar. Assim surgiu, dentro de barracões de lona emprestados, a entidade mais antiga do bairro: a Instituição Beneficente Nova Esperança, que dava conta de uma série de demandas. Soninha, com o apoio de outros missionários e moradores, arrecadava e distribuía cestas básicas, sediava reuniões das associações do bairro e cuidava das crianças para os pais trabalharem.

ACAMPAMENTO RIBEIRO O bairro deve ter uns 25, 26 anos... por aí. Eu cheguei quase no começo. Aqui chamava Acampamento Ribeiro, na época. Só que eu não pertencia à primeira lona, porque eram duas organizações. Tinha a organização da lona dos barracões de cima e tinha a organização de baixo. Tanto que chamava “a de cima” e “a de baixo”. “A de baixo” era a que eu pertencia. Foram criadas quase juntas, mas havia duas diretorias.

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Tinha o presidente da “de cima” e tinha o presidente da “de baixo”. Tinha o Nem e o Toco, que eram da “de baixo”, mas o espaço de tempo é quase o mesmo. Tanto que eles já estavam fazendo as casas, ganharam material, e nós não. Não ganhamos nada. Nós, de baixo, só tínhamos mesmo o terreno pra construir. Eu perdi o meu. Fui usar de boa vontade pra ajudar alguém, falei: “Não, você vai ficar junto comigo” e a pessoa pegou meu terreno e perdeu.

O SOFRIMENTO NOS UNIU Foi uma história muito bonita, quando nós chegamos aqui. Eu cheguei pra fazer um trabalho missionário e aí eu contemplei esse tanto de lonas. Quando a gente chega pra fazer um trabalho missionário e encontra uma realidade do jeito que nós encontramos aqui, a gente fala: “Realmente, se for falar do Evangelho, nós temos que falar do Evangelho completo. Aqui, numa realidade dessa, não há como esconder uma parte do Evangelho”. E a parte que eu quis mostrar aqui foi a parte da área social. Falei: “Não, então vamos fazer uma ação social que acompanhe o caminho da igreja também, porque uma não vai prosseguir sem a outra”. Eu até tenho foto daqui, de quando nós tínhamos uma criança morrendo à míngua. Nós falamos: “O que vamos fazer? Nós não temos estrutura nenhuma pra cuidar dessa criança, levar para o hospital. E se leva pro hospital,

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depois que ela tiver, vai pra onde? Vai chegar aqui e vai se contaminar com essas águas, esgoto, essa casa de telhado de lona e tal”. Nós vivemos um drama com aquela criança, mas, na verdade, aquela criança abriu um espaço no nosso coração, abriu um espaço em muitos corações... Foram muitas pessoas a nos ajudar aqui, nesse lugar. Eu me lembro que tinha um missionário lá da Escócia, ele veio aqui. Ele, inclusive, levou minha turma da escolinha lá pro sítio dele, pra fazer um passeio. Foi bonito demais aquele passeio. Os meninos cantavam e gritavam de alegria dentro do ônibus. Eles aproveitavam e traziam jabuticaba, couve, abóbora. Eu lembro que eles traziam de tudo. Chegou aqui, abriu a porta do ônibus, desceram e saíram cantando por esse morro afora. E a comunidade também era bem prestativa quando confiava a nós as suas crianças, confiava a nós, às vezes, uma barraca... Que a gente, quando chegou, não tinha barracão e pegava barraca de um, barraca de outro. Fazia os trabalhos um dia numa barraca, outro dia noutra barraca, guardando mantimento, guardando cestas básicas e aquela coisa toda. Eu creio que, naquela época, nós já começamos uma comunidade, que hoje vocês chamam de unida. Eu creio que, naquela época, a gente construiu isso, porque o sofrimento une as pessoas. E aqui neste bairro tem história de sofrimento do passado, que nos uniu muito. E nós não podemos perder essa identidade que nós criamos. Foi

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muito bom. Tinha falta de tudo, mas tinha muita coragem, tinha muito ânimo, tinha muita esperança. Talvez até mais do que hoje, porque nós lutamos por muito.

VIVI UM FILME AQUI Antes, havia aqui as filas de água. Primeiro, um caminhão dava a água pro povo, que tinha que fazer filas de latas e ficar ali lutando pra poder ter sua hora de pegar água... Era aquela coisa de lata e tal, muito difícil. Depois, vieram as torneiras, que eram em vários buracos. Elas ficavam na frente do açougue. Bom, tudo isso foi no espaço de tempo de 1991 a 1993. Eu tive três barracas, porque, a cada vez que a gente fazia barraca e arrumava tudo, alguém vinha e falava: “Vai ficar noutro lugar”. Nós arrumávamos tudo de novo, depois vinha o coronel dizendo: “Não, vocês podem juntar tudo, semana que vem as máquinas vão passar aqui e vocês vão ter que ir pra outro canto”. Aí, desmanchavam as barracas todas. Eu me lembro que, um dia, nós estávamos desmanchando as barracas. Foi no mês de Fevereiro, no último dia de fevereiro. Veio uma tempestade e, no meio dela, estávamos nós, mudando de barraca, com nossas coisas todas no chão, indo montar noutro lugar. A tempestade veio e nós só vimos nossas panelinhas pela enxurrada abaixo. Nossas panelas, nossas coisas... Aquela tristeza. E as mães pegando a lona e cobrindo as crianças com aquela lona.

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Nós morávamos num pedaço da escola... Da igreja pra lá, era tudo casinha de lona, tudo barraca. Depois, foi feito um lixão ali. Uma senhora, que estava grávida, morava ali, onde é a escola, hoje. Ela se assustou demais com a tempestade teve um trabalho de parto no escuro, foi aquela confusão... Assim, eu vivi um filme aqui. Mas tinha também uma área com um gramado muito lindo, e nós fazíamos festa lá. Era do lado da fazendinha, do lado de cá do córrego. Era um gramado enorme e bem bonito. Não tinha casas lá, não. Aí, nós fazíamos muita festinha lá.

A IGREJA, A ESCOLA-CRECHE E O EN-HACORÉ O projeto En-Hacoré é ligado à Instituição Beneficente Nova Esperança, essa que eu fundei com a igreja, que tem quase 25 anos, e é a entidade mais antiga daqui do bairro. Nosso trabalho começou na Rio Branco, lá na cidade, porque nós trabalhávamos com moradores de rua. Depois, nós fomos lá pro Capitão Eduardo. Hoje, tem uma creche lá que começou conosco, creche Nova Esperança. Daí, do Capitão Eduardo, nós fomos mais longe, fomos lá pra Rosa Neves. Depois de Neves, nós fomos pro bairro Maria Gorete. Depois do Maria Gorete, nós fomos pra Santa Luzia, pro Padre Miguel. Depois do Padre Miguel, por fim, nós viemos praqui. Teve uma época em que nós trabalhávamos em quatro lugares ao mesmo tempo. Então, graças a Deus, hoje nós estamos aqui.

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Eu congrego na Igreja Redenção em Cristo, essa que tem aqui na porta do bairro. A Redenção em Cristo, nominalmente, surgiu em 2003 e eu trabalhava com a Igreja Pentecostal Nova Sião. Eu era missionária da Igreja Pentecostal Nova Sião mas, quando eles não adotaram esse trabalho aqui... Eles falaram: “Nós não vamos adotar esse trabalho, vê o que você faz”... Aí, o pastor Francisco Carlos, muito meu amigo, fez minha ordenação e organizou a Igreja Evangélica Redenção em Cristo, que é até hoje a minha igreja. Bom, então fui andando, seguindo... Vários pastores ajudaram. Não pode deixar de dizer que não foi só a Igreja Pentecostal, várias igrejas ajudaram. Muitas pessoas chegaram aqui pra passear e ofereceram ajuda. Então, muitas pessoas ajudavam, davam apoio aqui. Mandavam pastores pra dar palestras e apoiar em muita coisa... E era tudo a céu aberto, mesmo. As nossas crianças daqui, no princípio, ficavam no tapete. Eu fazia campanha das pessoas darem tapetes e almofadas, então eu forrava aqueles tapetes e colocava as almofadas, escorava as crianças, deitava elas... Era assim. Pessoas trocavam o tapete de casa e me davam. Tudo era nas barracas. Então, eu tive três barracas. A minha última barraca foi bem perto de onde eu estou hoje. Depois, nós não pudemos fazer mais nenhuma barraca, nenhuma lona. O coronel falou: “Nenhuma lona mais vai ter aqui”. Ele tomava conta aqui. Era coronel da Polícia Militar mesmo, e ele tinha algum cargo na URBEL [Com-

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panhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte, ligada à prefeitura] e trabalhava nessa redondeza aqui. A gente não sabe como isso era possível, mas ele tinha um cargo na URBEL. Eu me lembro, também, que eu tinha um terreno, naquela época. Eu tinha ganhado um terreno perto da BR. O coronel, quando chegou, disse: “Você vai fazer sua creche aí”. De repente, surge uma grande dificuldade, às vezes um desinteresse, a gente trabalha aquele desinteresse e ele se torna uma oportunidade. Eu me lembro que, quando ele me ofereceu o terreno, aquilo foi o máximo pra nós, nossa! “A gente vai fazer uma creche grande aqui, vamos fazer salão, fazer isso, fazer aquilo, fazer sala de reunião, fazer sala de associações...” – é que as associações não tinham sede, se reuniam nas casas. No final de 1994, o salão ficou pronto... Estava tudo lá, uma beleza! Eu já estava com minha casa quase pronta. Tudo pronto não tá até hoje, mas é incrível! Em 1994 o salão ficou pronto. Era um salão multiuso. Aqui dava cesta, aqui as associações faziam reuniões, aqui era a creche, aqui era tudo. No tempo da festa da creche, era aqui. Depois, quando foi montada a escola, eu tive que ir cortando algumas coisas, devido ao fato de as crianças estarem ali de manhã e à tarde. Foi quando chegamos na história da escola-creche. Porque a escola ficou mais na direção da professora que eu contratei, que é, inclusive, do bairro Ribeiro de Abreu. Ela fez um trabalho importante

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aqui também. Ela, Ana Coelho, foi a primeira professora formada que deu aula aqui. Aí, veio o tempo da escola-creche. Esse tempo durou, mais ou menos, uns seis anos. Foi de 2008 pra 2009 que eu fui à Secretaria de Educação e dei baixa na escola – porque era tudo registrado, tudo. Encerramos o tempo da escola... Mas, aí, eu emendo na história do projeto En-Hacoré! Vieram para o espaço aqueles meninos, que já estavam antes ali na escolinha, e outros meninos foram chegando. A igreja apoiou muito. Deu bateria velha pra eles começarem. E eu cresci muito aqui, nesse lugar. Cresci, assim, na questão do meu ser, eu desenvolvi dentro de mim uma outra pessoa quando eu vim pra cá.

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ANDRÉIA APARECIDA MARTINS Andréia nasceu no Paulo VI e cresceu junto com o bairro e o vizinho Conjunto Paulo VI. Nostálgica, ela lembra a infância brincada nas ruas de terra e em volta da mina d’água que ainda existe nos fundos de sua casa. Entre as lembranças da infância, ela recorda o surgimento da biblioteca comunitária do bairro, onde trabalha até hoje.

NA RUA CHEIA DE TERRA Eu moro aqui há bastante tempo. Praticamente vi esse bairro crescer – tanto aqui o Paulo VI quanto o Conjunto. Eu moro no Paulo VI desde que nasci. Foi aqui que eu cresci mesmo. E, no começo, não tinha luz, não tinha água. Pra gente poder comprar comida pra minha casa, a gente tinha que ir num comercinho que existia lá no Nazaré. A gente – eu, minha mãe e minha avó – saía daqui a pé até lá no Nazaré. Aqui não tinha ônibus, então a gente andava a pé uma meia hora. Agora, tem essa facilidade de ônibus, de ir e voltar. Naquela época, era só poeira. Em cima aqui na rua, era só floresta. Depois, derrubaram tudo. Eu vi a escola do bairro ser construída, e também inaugurei a escola... O uniforme tinha aquela sainha de prega, a blusinha com emblema da escola,

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cantávamos o hino nacional... Aqui era muito bom. Toda a infância foi muito boa. A minha rua era toda cheia de terra. A gente adorava jogar bola ali! Eu ficava toda suja de terra, minha mãe xingava... No fundo da minha casa, tinha uma mina... Ainda tem, só que agora ela minguou... Brotava água ali, tinha argila. A gente pegava argila pra fazer bonequinho. Aquilo era, nossa, o máximo pra gente! Cavar buraco ali e pegar argila pra fazer boneco. E lá perto da mina tinha uma graminha, onde a gente pulava corda, jogava peteca... Só que, com essa modernização toda, as pessoas foram construindo casas, foi mudando tudo. Mudou tudo.

A GENTE VIU TUDO NASCER AQUI Naquele tempo, tanta coisa era modernidade pra nós... Telefone, era só na Rua Capricórnio, lá em cima, quando não era lá, era no bairro Nazaré, lá embaixo. Era uma dificuldade antigamente! Mas não vou dizer que era ruim, pelo menos pra minha infância foi muito bom. Depois, a gente viu tudo nascer aqui: comércio, muita gente chegando, a pavimentação das ruas. A gente, como toda comunidade, tem seus problemas, mas convivo muito bem com as pessoas daqui. Quando o Conjunto Paulo VI estava começando com aquelas casas de lona, eu fui lá com a minha avó. Nós fomos lá de curiosidade, pra ver como é que era, porque a

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gente nunca tinha visto ada como aquilo. A gente foi lá pra ver... Todo mundo naquela casinha de lona, as cerquinhas, gente passando, até virar o que é hoje. A gente não tinha muito acesso lá em cima, por essa coisa de rivalidade do pessoal daqui com o pessoal de lá... Mas agora não tem mais isso, graças a Deus. Hoje, eu tenho vários amigos lá em cima, ainda bem. Tenho muitos amigos aqui e lá.

BIBLIOTECA COMUNITÁRIA Eu conheci a Verinha por causa da escola, quando eu estudava aqui. Quando a escola começou, era só de 1ª a 4ª série e não tinha outro colégio pra gente ir pra continuar os estudos. Mas, aí, foi implantada a escola de 5ª a 8ª série, então continuei a estudar aqui mesmo. As professoras pediam pesquisas, a biblioteca daqui não tinha muito acesso pra fazer pesquisa... Foi quando que eu conheci a Verinha, na casa dela tinha uma biblioteca. Toda vez que eu precisava fazer uma pesquisa eu ia pra lá, eu ficava lá pesquisando e, assim, comecei a conhecer ela e me envolver com as ações sociais. Eu parei por um tempo, fui pra uma escola fora do bairro. Mas, de uns anos pra cá, eu decidi me envolver de vez com os projetos ligados à Equipe Linha de Frente [grupo liderado pela Verinha]. Faço isso porque eu gosto dessa coisa de participar, de estar ali incentivando as pessoas e atuando em ações que promovem a educação, a cultu-

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ra, as coisas boas do bairro. Por isso, tenho uma parceria firme com a Verinha, até hoje. E, com certeza, vamos continuar até quando Deus quiser! Foi assim que eu cresci, convivendo com todo mundo no bairro, e é assim que eu vivo até hoje: acreditando que dá pra conversar, construir parcerias, e seguir melhorando o Paulo VI.

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GRUPO FOLIA DE SANTOS REIS DO PAULO VI O grupo Folia de Santos Reis existe há 18 anos no bairro Paulo VI. Todo mês de dezembro, os foliões batem de porta em porta e adentram as casas na comunidade com alegria, brincadeiras e músicas que contam a história do nascimento do Cristo, em Belém da Judéia. Em agradecimento, a vizinhança ajuda a Folia com doações e o grupo repassa essas ajudas a paróquias e comunidades na região que precisam. Quem conta a história da Folia é o Claudeci. Ele integra o grupo há quatro anos e é o presidente.

AS SEIS VOZES DA FOLIA Esse grupo foi fundado há 18 anos pelo Seu João Domingos, José Benedito Miranda, o Jânio Quadros – a gente chama ele de Janin –, e o Zé Reis. Mas o Seu João era o capitão da Folia e depois, por motivo de alguns problemas particulares, ele largou a Folia de Reis, foi até pra outra religião. O Janin mudou pro Tocantins de Minas. O Zé Reis saiu também, desistiu por motivo particular. O primeiro nome era Coral Foliões de Reis. Há cinco anos, nós trocamos o nome. A sede da Folia de Reis do Paulo VI é na Rua Pio XII. Já são 32 membros. A frequ-

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ência desses 32 é constante. Nós temos várias crianças no grupo, mas a maioria é adulto. A chegada, no nosso grupo, desses novos componentes, foi assim: O grupo começou como coral, num tinha um ‘dos reis’. Aí, com a entrada do João Evangelista, começou a ter a figura do rei. E depois, com a chegada do Bastião, teve mais um palhaço, que faz a graça da folia, que faz o divertimento das crianças. A gente usa o palhaço pra distrair as crianças, enquanto a gente canta, alegra o dono da casa. Tá um clima meio tenso, ele chega, faz uma graça, tira um sorriso pra gente começar a dar um processo à nossa cantoria. Na Folia de Reis, são seis vozes. O João Bento puxa a música, o Geraldo ou Antônio respondem pra ele. Tem outros que também respondem com a segunda voz e vem a terceira voz, que é a Lucilene; vem a quarta voz, que a Maria faz; a quinta voz, a Conceição faz e a sexta voz é com o Altamiro. Então, da forma que a gente vai cantando, quando o João canta a primeira parte, o verso é repetido por ele e por todos. É cantado duas vezes. Ele canta a primeira vez e depois repete com o restante, formando essa gaita, essa melodia, levando o evangelho de Jesus Cristo cantado a todos os devotos. A música na Folia de Reis, na verdade, é feita no improviso. Nós temos alguns versos que são tradicionais, de cantar na porta, mas ela é feita de improviso. A cada casa que a gente chega, a gente depara com um fato di-

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ferente. Então, aquele fato é que faz o puxador fazer o verso e as pessoas responderem esse verso. Se na casa tem uma pessoa doente, a gente canta pela recuperação dela, se na casa tem uma pessoa aniversariante, a gente faz pelo aniversário dela. Então, assim, a gente vai levando a caminhada de casa em casa.

A FOLIA E A VIZINHANÇA O objetivo desse grupo é evangelizar. Levar o Evangelho cantado. E os donativos que a gente recebe, os alimentos, a gente passa pra Sociedade São Vicente de Paula e o dinheiro passamos pra comunidade Paróquia Pai Misericordioso, através de obras. No último ano, nós colocamos o telhado na Comunidade Nossa Senhora das Graças e agora nós vamos ajudar a comunidade Santa Luzia, que fica lá no Conjunto Paulo VI, lá no ponto final do ônibus. A relação do grupo com a região é muito grande, porque esse grupo frequenta de casa em casa, de porta em porta. Então, a amizade dele é muito grande e ele praticamente conhece todo o bairro. A gente entra de casa em casa, visita de cara em cara, vamos dizer assim, frente a frente com o pessoal. E tem a convivência diariamente do grupo, já que moram praticamente todos no bairro. Então, todos conhecem bem a região. Não é só aqui no bairro, nós atendemos outros bairros também. A Folia cresceu bastante e, graças a Deus,

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está atendendo a outros bairros. Já atendeu o São Gabriel, Ribeirão das Neves, bairro Ouro Preto. Nós temos componentes também de outros bairros. O João Evangelista e a Inês são de Santa Luzia, o senhor Emérito é lá de Ribeirão das Neves, o Edson é do bairro Jaraguá e temos o Antônio, que é da Cidade Industrial, bem como o nosso Bastião, que é uma figura importante na Folia. É ele que faz as graças, as adivinhações, ele que faz as coisas pra agradar o dono da casa, enquanto a Folia tá chegando. Tem também o Marino, que mora no Nazaré, e dá essa força pra gente.

PRA MANTER O GRUPO UNIDO Hoje, as nossas dificuldades até são menores, antes a gente tinha dificuldade de manter o grupo unido. Montar o grupo e deixar ele unido durante todo o ano era muito difícil. Antes, a gente reunia o grupo só na época da folia, só no mês de dezembro, aí ficava um período muito longo distante... Agora, temos as reuniões mensalmente, temos os encontros, a confraternização, até participação na rádio [comunitária local]. Isso tudo a gente faz pra manter o grupo unido, ocupado e sempre encontrando, porque senão fica aquela coisa muito longe, dum dezembro até no outro dezembro pra conseguir participar e encontrar novamente. Nesses 18 anos de caminhada, eu não participei de todo esse tempo, mas eu acho que a grande vitória desse

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grupo é o aumento do número de membros. Quando você sente que o grupo aumentou, que tem crianças, que tem gente nova chegando a todo momento, dizendo “ah, eu vou entrar na folia...”, então isso dá o ânimo, mostra pra gente que o grupo vai crescer, que o grupo vai expandir, que vai alcançar universos maiores, que daqui a um certo tempo o grupo não vai estar esquecido. Ele vai estar sempre vivo. Outro dia, eu estava até comentando com um participante do grupo que, muitas vezes, a gente está com os jovens aqui e começa a plantar essa sementinha dentro do coração deles. Certamente, daqui a um tempo, eles vão se afastar do grupo, como vários já fizeram – eles dão aquela afastada, mas a semente está plantada. Aí, daí a pouco, sentem vontade de retornar ao grupo – é a sementinha que ficou plantada. É mais fácil do que quando chega um adulto, sem a sementinha plantada. E a nossa proposta é sempre estar ajudando as comunidades. A gente vai escolher mais uma comunidade que estiver precisando da nossa ajuda. A gente espera que o grupo possa continuar trabalhando dessa forma. Aumentar as doações que a gente recebe e, assim, aumentar também a ajuda que a gente dá pras outras pessoas, as outras famílias. Que a gente consiga aumentar as doações... Aumenta o trabalho, aumenta a responsabilidade e o grupo não fica no esquecimento, pra gente sempre trabalhar.

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ISAURA SIMÃO VIEIRA

Dona Isaura nasceu em Santa Luzia, mas vive há tanto no Paulo VI que reclama sua origem para tal lugar. Na verdade, o Paulo VI mesmo veio depois. Quando criança, ela conheceu foi o Belmonte, que era toda aquela região. Benzedeira, parteira e dona de uma “farmacinha natural”, ela conta sua prosperidade pelo número de vezes que pôde ajudar as pessoas e por, depois de tanto tempo, ainda poder atendê-las.

MINHA ORIGEM Isaura Simão Vieira, 80 anos, nascida em Baldin, município de Santa Luzia. Desde a idade de cinco anos, estou aqui no Paulo VI. Eu casei, mudei e tudo, depois voltei. Mas minha origem é aqui. Sou casada tem 57 anos. Tivemos oito filhos, 13 netos e oito bisnetos. Tive três filhos adotivos. Um já morreu e agora tenho a Regina e a Marlene. Uma família grande. Quando nós viemos morar aqui, não era Paulo VI ainda. Tudo isso aqui era Belmonte. Depois veio o Nazaré, que era Vila São Gabriel. Paulo VI tem pouco tempo pra cá que foi mudado o nome. Mas, nesses acompanhamentos todos e em todas as coisas daqui, não temos nada a reclamar. Nada a reclamar.

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Eu gosto muito daqui, porque eu tenho muitos amigos, graças a Deus sou bem recebida, sou bem-vinda. E, no que as pessoas precisarem, nós estamos aqui.

DE BOM GRADO Sobre as benzeções, essas coisas... Eu era muito procurada. Era por Deus. Eu tinha uma sabedoria de Deus. Estudo eu não tinha, nem tenho, eu nem nunca fui à escola, mas essa coisa que eu tenho foi dada por Deus. Sempre tive bons acessos aos meus vizinhos quando me procuravam. Sempre pude servir e tive boas, assim... Boas formalidades. Sempre fui bem sucedida, graças a Deus, em tudo que eu fiz. O que eu pude ajudar eu ajudei. Então, eu fico muito feliz por Deus ter me dado essa prosperidade de eu poder ajudar os meus irmãos, porque todos somos filhos de Deus, do meu ponto. De boa vontade eu pude fazer o que eu fiz e tô pronta pra fazer até hoje, se tiverem necessidade de mim. Se alguém necessitar da minha ajuda, o que eu puder fazer, faço de bom grado. A gente cultiva essas plantas medicinais aí, porque é bom. Tem sido bom. Tem sido útil pra nós. Às vezes, meus vizinhos precisam, então tenho... Dou nas mãos deles. Poder atender os outros é muito bom ... você poder dar, melhor do que você ter que pedir. Também já fiz bastante parto aqui nesse Paulo VI. Muito! Meu próprio parto, da minha filha mais velha, fui

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eu quem fiz. Eu e Deus que fizemos. E tem muitas pessoas daqui, dos meus partos que eu fiz aqui, que já são avós... Já têm netos, bisnetos desses partos. E eu mantenho contato com essas pessoas... Pessoal da comadre Maria, minha família lá no Primeiro de Maio... Mantenho contato até hoje. A maioria mora aqui, ao redor de mim.

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VERA LÚCIA MONTEIRO LISBOA “TIA VERINHA” Vera Lúcia tem o Paulo VI no coração. Nordestina, passou por vários lugares de Belo Horizonte, cidade para a qual migrou nos anos 70, mas foi nesse bairro que encontrou seu lugar no mundo. A luta para se estabelecer com a família, nos primeiros tempos de urbanização da região, acabou se misturando à luta da comunidade. Jornal comunitário, creche, biblioteca comunitária, festival pela paz, eventos e cursos de arte e cultura. Tudo isso faz parte da trajetória de Verinha no Paulo VI. Empreitadas que ela lidera por meio da “Equipe Linha de Frente – 100% Luta Para Bem Viver”, iniciativa que mobiliza os moradores na construção de ações concretas por um bairro melhor.

DE TUDO UM POUCO Tenho 57 anos, e nasci em Juazeiro do Norte, no Ceará. Vim com a família para Belo Horizonte aos 19 anos, em 1976. A gente veio como muitas famílias do Nordeste: em busca de uma vida melhor. E aqui em Belo Horizonte foi uma “via sacra” de moradia, de aluguel em aluguel. Foram umas 12 mudanças. Até que encontrei o bairro Paulo VI. Profissionalmente, eu já fiz de tudo. Comecei como costureira e bordadeira – fiz curso no SESC lá de Juazeiro do Norte. Já trabalhei como secretária e telefonista em

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consultório médico e em hospital; fui professora, cobradora de ônibus, concursada pela prefeitura como Educadora Infantil. Mas sempre fui, e sempre serei, líder comunitária. E o meu trabalho principal, ao qual mais me dediquei, é de educadora infantil. Tenho seis filhos – três “de sangue” e três adotivos. Os de sangue são o Warlei, a Thaís, e a Verônica, todos com mais de 20 anos. Os adotivos foram surgindo na minha vida. O primeiro foi o Leander, que hoje tem mais de 30 anos e é casado. Adotei quando ele tinha um mês e 11 dias. A mãe dele trabalhava em casa de família e não tinha condições de criar. Comecei tomando conta dele pra ela e, depois, como ela não tinha condições, me deu pra criar. Ele foi criado por mim e pela minha mãe. A segunda foi a Natasha, que hoje tem onze anos e chegou com dois. Ela era uma das crianças que eu atendia no Clubinho Tia Verinha, mas a própria mãe, que tem uma vida de alto risco, me pediu que cuidasse dela. O mesmo aconteceu com o meu sexto filho, o Washington, que hoje tem seis anos e eu crio desde que tinha um mês e meio. Ele é irmão “de sangue” da Natasha.

SOU APAIXONADA POR ISSO AQUI Eu faço questão de dizer que amo o Paulo VI. A gente precisa mudar o pensamento das pessoas daqui. Todo mundo – e a imprensa, principalmente – só fala mal do bairro. Eu quero mudar isso. E até coloquei no jornal

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que realizamos, por muitos anos, essa frase: “Eu amo o Paulo VI”. As pessoas disseram que eu era louca, e eu dizia que não, que precisamos valorizar nosso bairro. E é verdade: eu sou apaixonada por isso aqui. Essa paixão tem a ver com a minha história, porque eu já fiz muita coisa, e já passei de tudo “um tiquim”. E um bom pedaço da minha vida foi de muita loucura: fui uma adolescente muito rebelde, meio hippie. Mas eu queria mudar. Eu pedia a Deus pra ter outra cabeça, uma família e uma casa grande. Eu queria uma casa com quintal, pra os meus filhos não terem que ficar brincando pela rua. E eu conquistei isso tudo aqui, no Paulo VI. Então, aqui é a minha raiz, é onde o meu umbigo emocional está enterrado. O bairro é tudo de bom, o índice de violência está reduzindo, tem muita coisa acontecendo aqui: nosso trabalho comunitário e também programas como Escola Aberta, NAF [Núcleo de Assistência à Família, realizado pelo governo estadual], Mediação de Conflitos [iniciativa do governo estadual voltada à promoção da resolução extrajudicial de conflitos e a oferta de orientação sociojurídica gratuita], Fica Vivo, Escola Integrada muitos outros programas comunitários. Existe uma rede trabalhando em prol do bem estar social. E as coisas estão mudando. Então, aqui hoje é um bairro em que dá pras crianças brincarem em frente de casa, dá pras donas de casa baterem papo... Antes, ninguém tinha coragem. Hoje, tem muita gente unida em prol da paz.

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EQUIPE LINHA DE FRENTE Eu me mudei para o Paulo VI em 1995. E logo vi que o bairro tinha muitos problemas que precisavam ser resolvidos com urgência. Aí, em 1996, eu me juntei a um grupo de amigos (éramos oito), todos os pais de família e moradores da Rua Absinto (que naquela época era a “Rua 2”), e criamos a Equipe Linha de Frente. A gente queria trabalhar pela comunidade, lutar por saneamento básico e urbanização. O bairro era um caos, era muito difícil o trânsito, quase não tinha asfalto. No início, tivemos o apoio do Padre Argemiro, que acreditava na nossa luta. Começamos a fazer as reuniões em nossas casas, e a minha casa (que é nº 296) passou a ser o local mais fixo das reuniões. Conseguimos despertar o interesse de muita gente: teve reunião com até 150 pessoas! A gente discutia as necessidades do bairro... Em 96 mesmo, tentamos aprovar o asfaltamento de nossa rua no Orçamento Participativo (eu era delegada), mas não conseguimos. Só quatro anos depois (em 2000) é que conquistamos esse asfalto. E não foi pelo OP, não. Foi fazendo pressão na prefeitura, mesmo. E a nossa rua ganhou o nome de Rua Absinto. Depois dela, conquistamos o asfalto para outras que ficavam ao redor: as Ruas 1 (Cana Caiana), a 3 (Água de Colônia), e várias outras – foram 16 ruas ao todo! E isso foi legal porque, no início, o pessoal falava: “esse empenho

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todo é só porque querem asfalto pra rua deles”. E não foi nada disso. Conseguimos o asfalto para várias ruas e batalhamos (daquele tempo até hoje) muito mais coisas pra comunidade como um todo. Outra coisa interessante é que, hoje, nós estamos apoiando os movimentos dos bairros Ribeiro de Abreu, Tupi/Lajedo, Montes Claros e Paulo VI B, que são vizinhos ao nosso bairro, na mesma luta do início da Linha de Frente: a luta pelo asfaltamento das ruas, pela urbanização. E, aí, vamos estendendo a rede. E por que o nome “Equipe Linha de Frente”? Porque sempre que íamos fazer alguma coisa pela comunidade, o pessoal falava: na linha de frente quem está é a Vera. Mas eu dizia: não, existe uma equipe na linha de frente. Aí, ficou “Equipe Linha de Frente”. Essa equipe, no começo, juntava o pessoal da Rua Absinto, mas a coisa cresceu. Já tivemos até um “Clube da Luluzinha”, em 97 / 98, onde as mulheres se reuniam para falar das questões familiares. Hoje, temos mais ou menos 12 colaboradores, vindos de todo o bairro – tem até gente que nem mora mais aqui.

“CLUBINHO TIA VERA” Como eu disse, a Equipe Linha de Frente foi muito além dessa questão do asfalto. Eu me juntei a algumas pessoas interessadas em ajudar e criamos, em 1996, aqui em casa, o “Clubinho Tia Vera”. O Clubinho é um “hotel infantil”

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que recebe as crianças de três meses a 11 anos, filhas de mães que trabalham fora como diaristas e outras profissionais. A gente cobra só um valor simbólico de mensalidade, pras despesas mais básicas de alimentos. Atendemos uma média de 20 crianças, sendo que quase todas passam o dia inteiro, de segunda a sexta, e até almoçam conosco. E atendemos todo mundo: temos criança com dificuldade de fala, temos criança com necessidades especiais. Algumas famílias não têm como contribuir com a mensalidade, mas a criança fica do mesmo jeito, a mãe pode contribuir com algum serviço voluntário – o que não pode é criança ficar na rua... Desde o início, todo o trabalho é feito por voluntárias, como a Andréia, que trabalha comigo em várias iniciativas; a Tia Kátia, a Tia Zildinha, a Jéssica, que são minhas vizinhas. Minha filha Verônica, meu filho Warlei e amigos deles também ajudam. São mais ou menos dez pessoas ajudando. E o sustento do Clubinho é Deus que manda. Algumas empresas já doaram cestas básicas, alguns pais doam alimentos, vizinhos que têm pés de fruta em casa doam frutas...

“NOTÍCIAS – JORNAL COMUNITÁRIO” Eu tinha um sonho antigo: criar um informativo comunitário. Falei desse sonho pro Nivaldo, um artista gráfico que também mora no Paulo VI, e ele resolveu encarar o desafio comigo. Aí, em fevereiro de 2006, criamos o jornal do bairro, que publicamos até 2012.

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O primeiro número foi uma luta: ele tinha uma folha de ofício, em preto e branco (350 xerox), que eu paguei do meu bolso. Pro segundo número, conseguimos o apoio da Igreja Batista e três anunciantes – cada um deu o que podia. Com isso, passamos pra 450 cópias xerox. O terceiro número a gente já rodou numa gráfica parceira, com 500 exemplares. Depois, passamos pra 1500, com o formato de uma folha ofício dobrada, e ainda em preto e branco. E foi crescendo, passamos para duas cores, aumentamos cada vez mais a tiragem. Por fim, ele era colorido, com seis páginas (com duas dobras), e cinco mil exemplares, despertando o interesse de mais comerciante e entidades para divulgação. O jornal saía mensalmente e tinha vários anunciantes. Mas o Nivaldo precisou se desligar por questões pessoais e as outras demandas da Equipe Linha de Frente foram crescendo... Assim, em 2012, tivemos que interromper o trabalho. Mas sonho em retomá-lo. O jornal falava dos acontecimentos e da história do bairro, dava dicas de saúde e cidadania, de temas da família, e divulgava os trabalhos sociais e comunitários que aconteciam no Paulo VI – esses trabalhos a gente divulgava sem cobrar nada, é claro!

BIBLIOTECA COMUNITÁRIA Tem uma conquista com a qual temos enorme carinho: a nossa biblioteca comunitária. Criamos a iniciativa em

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parceria com a Sabic BH – Associação dos Amigos das Bibliotecas Comunitárias da RMBH, entidade com a qual eu e Andréia colaboramos, também. Corremos atrás de doações e conseguimos um acervo bem legal, com cerca de mil exemplares de qualidade – constituído, principalmente, por literatura infanto-juvenil, além de literatura de interesse geral. Recebemos leitores de todas as idades e realizamos muitas atividades de arte e cultura na biblioteca – contações de histórias, apresentações teatrais, oficinas artística. E temos muitos leitores. Estamos conseguindo fazer um bom trabalho de incentivo à leitura aqui no bairro!

OUTRAS ATIVIDADES Já tivemos aula de informática, curso de formação de babás, oficinas culturais, eventos variados... Até alfabetização de adultos já teve aqui no Clubinho. Vira e mexe, fazemos algo diferente. Pra colocar tudo isso pra funcionar, uma fonte grande de recursos é o aluguel da garagem da minha casa. Alugo essa garagem pra projetos educativos ligados ao poder público e para festas. Também organizamos eventos para gerar renda, e uma última fonte é o aluguel de um barracão que eu tenho.

GRUPO DE QUADRILHA ARRAIAL SÃO VICENTE O grupo, que é formado por vários casais de jovens do bairro, existe desde 2005. Ele realiza apresentações gra-

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tuitas em eventos comunitários do bairro, escolas de diversas regiões de BH... Já esteve até em eventos no interior de Minas. Já se apresentou no Arraiá de Belô, e fez muito sucesso. Mas os trajes ainda são muito improvisados e o projeto não tem apoio nenhum do governo. Vejo essa situação e tento ajuá-los, mobilizando a comunidade para apoiar o grupo e não deixar que ele se acabe.

FESTIVAL DA PAZ Desde 2006, a Equipe Linha de Frente, com o apoio de vários grupos comunitários e comerciantes locais, realiza o Festival da Paz. O festival acontece, todos os anos, na Escola Municipal Professor Paulo Freire, que fica aqui no bairro. Nosso objetivo, com ele, é reunir a comunidade em prol da cultura da paz, da arte e da busca pela qualidade de vida. Com um dia inteiro de apresentações artísticas, o Festival faz com que os moradores conheçam as pessoas e grupos que trabalham com arte e cultura no Paulo VI e que buscam construir uma vida melhor para quem mora na região. Também falamos, o tempo todo, que é possível a gente exercitar a não-violência e a gentileza. Os meios de comunicação, de modo geral, enfatizam a violência do Paulo VI e bairros vizinhos, mas é preciso combater essa imagem preconceituosa. Afinal, há muito trabalho comunitário de qualidade acontecendo aqui. O Festival existe para mostrar que as práticas voltadas ao bem comum es-

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tão se multiplicando e que vale a pena abraçar as causas da paz e da cidadania. Depois de contar todas essas histórias, quero deixar uma mensagem: vamos ser todos voluntários pela vida! E me despeço com um beijo no coração de todo mundo. Quem me conhece, sabe que eu nunca deixo ninguém sem o beijo no coração!

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CLENILDA JANUÁRIO

Clenilda, nascida e criada no Ribeiro de Abreu, é uma das mais antigas moradoras do bairro. Ela é da época em que tudo ali era fazenda e mato, no finalzinho da década de 60 e início dos anos 70. Aliás, os tempos da Fazenda Wernek, das matas, das festas de santos são o que lhe enchem de nostalgia por aquilo que não mais é. Ela relembra o valor que a cultura tinha naqueles dias para o povo que trabalhava nas fazendas e o lugar que ocupava na vida da comunidade local.

EU NASCI AQUI O Ribeiro era uma casinha ou outra e aquelas fazendas... Não tinha nada. Ali no Ribeiro não tinha nada, você via só aquelas fazendas. Não tinha luz... nada, nada. Quando eu era criança, já tinha a escola do Loreto [Escola Municipal Desembargador Loreto Ribeiro de Abreu]. Eu estudei lá. Eu lembro da fazenda dos Wernek, quando eles fizeram uma área hospitalar lá, era um sanatório. A gente não podia entrar lá, não tinha acesso, mas eu morava lá, porque eu nasci lá. E as irmãs que tomavam conta, ficavam lá. Depois, nós fomos embora daqui, fomos pra Governador Valadares. Mas, um tempo depois, nós

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voltamos pra fazenda. Da fazenda eu lembro mais, dos plantios de lá, do gado, das frutas... Eu conheci a Dona Dorinha, a filha do dono mesmo. Conheci o Dr. Hugo, o Dr. Samuel, que eram os filhos, e o senhor Roberto Wernek, que era o dono da fazenda onde a gente morava. Meu pai era motorista particular dele. Tinha uma fazenda lá em cima, que todos chamavam de “Fazenda dos macacos”. Por que tinha esse nome ‘Dos macacos’? Meu pai é que conta, porque eu não lembro. É porque era um lugar isolado, em que você via macacos mesmo, sabe?! Mas era uma fazenda fechada, lá. Na época, a gente via a tal de jaguatirica, que dizem que é um tipo de oncinha, e macaquinhos, esquilinhos, miquinhos. Hoje... Ah... Eu não sei... A gente acostuma. Eu gosto de morar aqui. Não posso reclamar, não. Só que a gente fica triste com as coisas, mas vamos pôr assim: lá na fazenda, se for pra eu morar lá hoje, eu não quero mais. Por quê? Onde era a fazenda, hoje já não é, é bairro Solimões, é Felicidade... Já em volta de lá, já não tem mais sossego, já virou uma coisa, assim... vamos dizer que toda hora você vê alguma coisa já indevida.

PEDACINHO DE INFÂNCIA BOA Você só entrava na mata pra quê? Pra pegar sapucaia, mas a gente apanhava pra correr atrás dos macaquinhos, pra apanhar coco, essas frutas que dão no

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meio do mato, é... gabiroba, castanha do pará. Você sabe o que é castanha do pará? Vem dentro de tipo um coco, você tira a tampa e lá estão as castanhas... Tem muito nessa mata ainda. Mas eu não posso falar muito de lá, não, porque a gente era mais privada – sendo moça, não deixavam a gente solta assim, não, a gente ficava mais dentro de casa, mesmo. Meus pais não deixavam a gente ser igual meu irmão. Os dois nadaram muito nesse rio do Isodoro, naquela ponte do recanto ali, era limpinho ali! A gente dava aqueles deslizes, entrava lá correndo e já ia saindo. Sempre, toda a vida, teve isso. Meu pai trabalhou muitos anos nessa fazenda. Quando nós voltamos, eu estava com nove anos. Nós fomos embora, eu devia estar com uns quatro anos. Eu sou de 1969... Ah... Meu pai morreu lá, em 2001. Ainda tinha a fazenda... Ainda tinha não, ainda tem a fazenda, mas só que não é do jeito que era. Tinha o gado, tinha plantação de café, tinha o milho, caqui. Hoje em dia, não tem isso mais. A gente limpava arroz no pilão, na época, pra comer. Os empregados da fazenda colhiam o arroz. Eu colhi um pedacinho de uma infância boa. Eu acho que era tudo fazenda isso aqui. Eu lembro que a gente descia à noite, não tinha asfalto, era estrada de chão mesmo. A gente descia, tudo escuro, pra ir no Monte Azul, meu pai via um irmão lá. Era tudo morro, aqui pra baixo era fazenda.

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ERA MAIS DIVERTIDO, ERA MAIS ORIGINAL... A cultura se perdeu, não existe mais. Eu penso assim: eu acho que o que eu vi, presenciei, meu filho não tem isso, não valoriza. Hoje, as coisas são muito artificiais, eles fazem as coisas por aparência, por disputa. Igual à quadrilha hoje, não é um modo de cultura, como era. Eu nunca presenciei uma igual às daquele tempo... A gente ia fazer comida típica... Você ia lá, você matava o porco que estava no chiqueiro, você tirava toicinho, você tirava costelinha, era comida típica. Hoje, você vai no açougue pra fazer comida típica. Não é. Não aceito, não valorizo. Então... Na minha opinião, viu? Eu lembro das festas juninas, festa de São João, Santo Antonio, São Pedro. Era tudo divertido, cheio de brincadeiras. As procissões... Eu gostava de ir. Ah! Era tudo diferente, muito bom. Era tudo muito bom. A cultura era levada mais a sério, o pessoal valorizava as coisas, você via que era aquela alegria. As procissões eram feitas lá no sanatório mesmo. Tem igreja lá. A procissão acontecia lá dentro, com as irmãs. As quadrilhas também eram lá, mas na fazenda também tinha. Era festa que juntava o pessoal... Era muito bom! Hoje, você vê que as coisas são muito diferentes. A tecnologia chegou, é muito mais confortável. Então é... Vamos colocar assim: é mais comodismo. Não tem aquela

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disputa, aquela batalha pra você correr atrás. Por exemplo: numa gincana, não sei se você pegou isso, a gente tinha uma rifinha, mas aquela rifinha era valorizada, você fazia de tudo pra ser a rainha da pipoca. Não tem isso mais. Os meninos não valorizam... “Oh pai, me dá 50 centavos?”... “Vai lá no armário”. Hoje em dia, é tudo fácil. Eu, Clenilda, penso que não deveria ter mudado e perder aquela origem da cultura original. Era mais divertido, você dava mais valor, você curtia mais, era mais original. Bom, você tem que ver também pelo lado do progresso. Você não pode ficar parado naquele tempo que era chinelinho de pé. Tudo bem. Mas eu tô falando por mim: pelo menos um pouquinho devia ter continuado.

MUDOU MUITO Eu acho que despertou alguma coisa, em mim, quando construíram o conjunto. A gente achou que era um conjunto, uma coisa nova, um conjunto de prédios do outro mundo... “Nossa! Deus... Olha só esse conjunto!”. Então, eu mesma ficava muito satisfeita de ver. Nossa! Eu achava aquela coisa maravilhosa. Mudou muito, e aí começou a crescer. Mas a cultura, hoje eu não acho que não tem, não. Eu acho que o pessoal não valoriza muito isso aí, não dão valor hoje ao que eles têm, não. Tem gente disposta a en-

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sinar, que chama, incentiva os jovens a conhecerem como as coisas eram, mas infelizmente eles não valorizam isso, não. Não valorizam nada, nada. Isso é muito triste, porque a gente vê que poderia estar numa aula dessas oficinas que oferecem pra eles, mas eles querem ir atrás de outras coisas, pra depois se arrepender e voltar atrás.

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CONCEIÇÃO MARIA DOS SANTOS A senhorinha com mais de 90 anos é dona Conceição. No Ribeiro, ela já está há mais de 40. Viu as pessoas chegarem e erguerem o bairro quando ali não havia nada. Assim também foi a história dela, do marido e dos três filhos. A labuta diária fortaleceu sua fé e os laços com a comunidade. Da fé e do convívio, ela começou as benzeções. Assim, tornou-se uma das mais antigas e conhecidas benzedeiras do Ribeiro de Abreu.

CAMINZINHOS Eu moro aqui no bairro tem muitos anos. Uns 40 e cacetadas, se não for mais. Quando eu vim praqui, só tinha a casa da Lurdinha, a casa da dona Madalena e a chácara. Depois que passava a ponte, só tinha um barracão. A gente comprava as coisas lá, só tinha lá. Era mato, era grama. O caminzinho, de tanto a gente passar, era só o caminzinho que a gente passava pra lá e pra cá, que não tinha não. Eu passei dificuldade demais, minha filha. Só Deus é que sabe. Deus me deu tanta força e ainda está me dando até hoje! Quando eu vinha de lá, quando estava chovendo muito, ali depois que passa a ponte, enchia d’água. Eu caía e chegava toda molhada. É... Às vezes, eu não via buraco, não tinha rua, sabe?! Enfiava o pé no buraco e ia na água

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mesmo. Era um pau e tinha um guarda mão. A gente pegava esse guarda mão e vinha com o pau, atravessava com o pau. Depois que passaram muitos anos é que eles fizeram uma ponte. Não era boa, não, mas era melhor que pau.

NÃO TINHA NADA... A maior dificuldade que eu tive foi quando eu mudei pra cá que e não tinha nada, não tinha casa pra morar. Quando eu mudei pra cá, minha filha, não tinha barracão não. Meu marido era tão bom pra mim, que pôs eu e mais os três meninos no caminhão, trouxe a gente pra cá. Tinha era grama, só. Meu marido era crente, mas começou a beber, aí falou: “Oh, Raimundo, você vai lá, bate adobro pra nós fazer dois cômodos de adobro. Bate o barro e pronto, não queima igual queima tijolo, não”. Mas ele sai quadradinho, porque tem a forma do tijolo. Põe o barro e vai despejando no chão, aí você seca. Qualquer barro faz, mas o melhor pra fazer é barro branco. E aqui embaixo tinha uma terra boa pra fazer, nós fizemos aqui embaixo. Fizemos aquele buracão. Pra cozinhar... Na mata, lá tinha muita lenha seca, a gente ia pra lá e cortava as lenhas secas, fazia o fechinho, colocava na cabeça e trazia. Água pra beber e cozinhar, eu buscava na Dona Madalena. Tinha cisterna de tocar sári, muito boa essa água dela. A gente buscava pra cozinhar e beber, buscava lá... Tinha um corregozinho, esse que pas-

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sa ali embaixo, a água era uma beleza, era limpinha. Eu lavava roupa lá. Luz não tinha, não. Era lamparina, era querosene. Mas não tinha casa nenhuma. Isso aqui tudo foi depois que eu vim pra cá, tudo. Pegar o ônibus era de lá da ponte. Eu trabalhava lá no Santo Agostinho. Você conhece o Santo Agostinho?... Na Rua Ouro Preto. Eu ia todo dia. Ia a pé até lá naquela rua que passa o ônibus, descia na cidade e ia a pé até lá no Santo Agostinho. Pra pegar um ônibus só, porque o dinheiro era pouco. Eu ia a pé todo dia, da cidade pra lá, de lá pra cá.

BENZEÇÕES A Lurdinha que mandou um moço de longe. Acho que morava muito longe. Ele estava com um negócio na perna, no pé, que já tinha um ano que ele tinha. Não sarava não, e já tinha um ano. O pai dele que trouxe. A Lurdinha falou assim: “Vai lá na Dona Conceição. Ela é boa pra benzer e vai curar o seu pé”. Eu ia cedo pra lá trabalhar, que os meninos eram pequenos... Aí, eu falei assim: “Eu nunca tinha benzido, não”. Mas é Deus, né? Ele foi cedo pra lá e falou: “A Lurdinha falou que a senhora é muito boa pra benzer, que a senhora benze. Já tem um ano que eu tô com esse pé desse jeito, e tem jeito de sarar: a senhora benze e sara”. Eu falei: “Oh, meu Deus do céu! Eu nunca benzi ninguém, como é que eu vou benzer esse moço... Tá bom. Eu vou benzer seu pé, mas você tem que vir benzer três vezes”.

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Você acredita que tinha um ano que ele estava tratando do pé? Ele veio as três vezes, ele não dormia de noite, não comia direito... Eu benzi a primeira vez assim: “Oh meu pai, que pode tirar esse problema do pé, assim como ele andou curando as pessoas, vai curar o pé dele. E São Lázaro também andou pelo mundo curando as pessoas, vai também curar o pé dele. Deixa ele ficar com o pé assim, não. Eu não sei, mas o Senhor sabe e pode fazer essa caridade”. Ele jantou, ele dormiu de noite e, quando foi no outro dia, ele veio cedo... “Nossa, dona, a senhora foi boa demais. Eu dormi, eu comi”. Aí, eu falei assim: - Mas você não dormia? - Não, eu não dormia, não comia e eu dormi que só a senhora vendo. Na segunda vez, eu pedi a Deus, benzi as três vezes e ele foi embora curado do pé. Daí, as pessoas, todo mundo começou a me procurar, demais, demais e todo mundo que vinha, meu Pai curava. Pra todo mundo que vinha cá, que eu pedia, Ele deu a graça. Não fui eu, não. Foi Ele. Vem gente lá de São Paulo na minha casa. Não sei quem é que falou, foi lá em São Paulo, veio e falou: “Dizem que a senhora é muito boa pra benzer”. Chegou carro de São Paulo. Falei assim: “Meu Deus do céu! Só o Senhor que tem poder, eu não tenho poder, Pai” Pedi a ele e pedi à rainha do mar. Pedi, sabe?! Só de pedir com fé que Deus faz. Ele ficou curado. O caso mais difícil que eu fiz foi desse homem lá de São Paulo. Esse foi porque ele não dormia, não comia,

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espinhela caída... Você segura e levanta o corpo três vezes. Espinhela é assim. O sintoma da espinhela caída você sente dor perto do estômago. Ele saiu curado. Difícil é quando o menino tá com o vento virado. Ele desenda... É difícil pra sarar. Tem muitos que não saram, não. Eu vi um que eu até chorei, lá de São Paulo, eu estava assistindo televisão, a dona falando e a dona não sabia o que era. Ele estava magrinho, não comia... Eu falei assim: “Jesus vai te sarar”. Ele estava com uma perna muito maior. Braço e junta da perna, um é mais baixo, fica diferente... Tem que ficar junto. Tem que levantar três vezes que chega no lugar. Aí, deitado, eu levantava as perninhas dele, aí chega no lugar. A avó do Taquinho benzia também. Era velhinha e levava os meninos. Eu ficava lá, via. Vem gente demais pra eu benzer e sara. Veio gente de São Paulo. Daqui da comunidade, eles procuravam muito também... Deus foi me ajudando.

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FERNANDO

Fernando, 32 anos, nascido e crescido no Ribeiro de Abreu. Nascido e crescido também na cultura, festas, danças e brincadeiras da comunidade. Agora, já adulto, atua no bairro para resgatar uma paixão de infância, passada de geração a geração em sua família: a quadrilha. Fernando é marcador de quadrilha. E ser marcador de quadrilha é mais que um trabalho na Escola Aberta. É um passatempo, uma paixão, é sua identidade na comunidade.

COISAS DE QUE NOSSOS PAIS BRINCARAM Viver no Ribeiro de Abreu pra mim significa tudo, porque a minha infância foi crescida aqui no bairro. Conheço todo mundo do bairro. Hoje, trabalho na escola onde me formei. Antigamente, quando eu era criança, o bairro era mais mato. Depois, com o tempo, o pessoal veio, foram criados os conjuntos, os prédios... Há muito tempo atrás, esses rios aí eram limpos, meu pai e minha mãe nadavam; minha avó, uma moradora antiga do bairro, nadava. Tinha muitas coisas boas que hoje não acontecem no bairro. Antigamente, o pessoal brincava no meio da rua. Você via o pessoal brincando de polícia e ladrão. São

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coisas de que, antigamente, os nossos pais brincaram, de que eu tive a oportunidade de brincar. Mas a gente vê que esses meninos de hoje não estão brincando. Eu danço quadrilha desde os meus quatro anos. Desde a época de escola, eu sempre gostei de participar dos eventos, das peças teatrais, das brincadeiras da época, de gincana... Uma das principais coisas que existiam na época e me encantavam era quadrilha, em que eu estou até hoje. Atualmente, atuo em duas áreas: sou dançarino – eu danço num grupo de quadrilha – e, na comunidade, eu sou marcador de quadrilha... puxador de quadrilha. Já dancei numa quadrilha que é conhecida como Arraiá Fogo no Rabo. Não existe mais. Dancei nela nove anos. Dancei na Canto de Minas por três anos e danço há quatro anos no Arraiá de São Mateus. Quando eu comecei a dançar, as quadrilhas eram aqui mesmo. A primeira em que eu dancei foi a Arraiá Fogo no Rabo – que, hoje, não existe mais. Depois, dancei no Palha Seca. Dancei um ano no Canto de Minas. Hoje, eu danço no São Mateus. Dessas, só a São Mateus não é da comunidade, mas é da Região Norte de BH, mesmo.

PRA RESGATAR A CULTURA Eu marco quadrilha aqui na comunidade, dentro da escola. Já marquei também fora da escola, mas aqui

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dentro da comunidade. Agora, vou fazer um trabalho diferente, que é tentar fazer três quadrilhas no bairro: na escola, em que eu já faço todo ano; no bairro Ribeiro de Abreu (nas casas populares); e tentar fazer uma terceira, que resgate o pessoal mais velho. Já fiz até reunião com algumas pessoas, que decidiram participar. Na escola eu faço esse trabalho há seis anos. Na comunidade, já marquei algumas vezes. Geralmente, as quadrilhas que eu puxo não disputam os campeonatos como existem em Belo Horizonte – o Arraiá de Belô –, mas é uma coisa ampla pro próprio bairro, pra fazer movimentar, fazer com que os familiares fiquem mais próximos. A dificuldade maior é encontrar pessoas que gostem realmente de fazer parte desse trabalho. Muitas pessoas têm vergonha e tudo, mas com uma boa conversa, um bom diálogo, você consegue uma turma boa pra brincar, pra fazer parte da dança. E uma das conquistas que eu tenho buscado é a de resgatar a cultura que está sendo esquecida no bairro. Muita gente não gosta mais de dançar quadrilha e a gente sabe que, há muitos anos atrás nossos, pais dançaram, nossos avós dançaram. Eu tenho tia que já foi noiva de quadrilha. Eu tenho tio que já foi marcador de quadrilha. Eu tento resgatar essa cultura no bairro que, cada dia que passa, está morrendo. Por isso, estou tentando resgatar a quadrilha também com as pessoas mais velhas.

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Então, a proposta do trabalho é resgatar a cultura mineira que estava sendo esquecida, mas que já está chamando a atenção da comunidade mais antiga e dos jovens, para que eles gostem de participar, atuem na área da dança e tudo o mais. Essa que é a conquista maior que eu penso em resgatar.

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HELOÍSA BATISTA BERNARDES “DOUTORA HELOÍSA” Heloísa é pediatra no Ribeiro desde a fundação do Centro de Saúde. Desde que os pais de hoje ainda eram crianças no bairro. Convivendo com a comunidade, descobriu que seu trabalho ali não poderia se limitar a tratar das doenças. Médico da família, num bairro com toda aquela história de luta em comum, cuida de vidas, mas trata das almas também. E trabalhar as feridas e alegrias das pessoas no Ribeiro é o que mantém o coração da “Doutora Heloísa” saudável.

PATRIMÔNIO DA COMUNIDADE Eu trabalho aqui, no Ribeiro de Abreu, desde 1991... É a idade do centro de saúde. Ele foi inaugurado em 30 de setembro e eu vim pra cá dia 17 de outubro do mesmo ano. Inicialmente, eu fiquei como pediatra, função em que me mantive até 2002, foi quando começou, no Ribeiro, o PSF [Programa Saúde da Família, do governo federal, cujo foco é a estruturação de equipes de saúde que fazem o acompanhamento direto das famílias locais, com foco em prevenção e em educação sanitária]. Eu fiz o curso de especialização e passei a ser a médica da família. Sou a médica da família, mas continuo sendo a pediatra da minha equipe.

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Eu falo assim: “Eu sou um patrimônio da comunidade, só não tenho a plaquinha”... Afinal, eu já tenho paciente neto, porque os menininhos que eu peguei com seis, sete anos, já são pais e hoje levam os filhos pra serem consultados comigo. É uma emoção muito grande saber que ainda estou dando conta; que, em vez de me aposentar, ainda estou na ativa. E é uma interação muito boa que eu tenho com a comunidade. Sempre fui muito bem tratada, eles gostam muito de mim e eu gosto muito deles. Mas eu me lembro da dificuldade que a gente teve no início. Nós sempre estávamos desfalcados de médicos, muitas vezes eu fiquei sozinha. Teve uma etapa, ao longo desses anos, que eu fiquei seis meses sozinha, eu e a Soraia [enfermeira]. E esse entra e sai de médico é uma constante no Centro de Saúde. Nós tínhamos um centro de saúde pequeninho, restrito, com a dificuldade toda... E já tem cinco anos que conquistamos um grande e bonito, mas essa questão da falta de médico ainda não se resolveu totalmente.

CUIDADOS COM A VIDA Eu também desenvolvo outros trabalhos aqui na comunidade. Eu sempre pensei que pudesse haver uma integração entre ginástica, alimentação e saúde... Aí, descobri a unibiótica [corrente que propõe a conquista da saúde e da qualidade de vida a partir da conjugação de bons hábitos alimentares, exercícios e condicionamento

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mental]. Há sete anos, eu fiz um treinamento com a Vera, uma dentista do Guarani que tinha um grupo piloto lá. A partir daquela formação, comecei a implantar uma experiência com no nosso Centro de Saúde. Iniciado em 11 de julho de 2007, o grupo de unibiótica tem atividade semanal, toda quarta-feira, a partir das sete horas. Atualmente, nós estamos realizando a atividade no salão da igreja, porque precisamos de espaço e o grupo, no total, já tem mais de cem participantes. Tem uma extensão do grupo que acontece às segundas-feiras, coordenado pela Dona Ana, moradora que aprendeu as técnicas e passou a multiplicar a ação. A proposta é reeducar a pessoa na alimentação; promover a prática de exercícios que melhoram a circulação, o intestino, a mente; cultivar a afetividade, a crença no Deus, no agradecimento. E, acima de tudo, acreditamos que a pessoa, para manter uma boa qualidade de vida, tem que se conscientizar de que ela é responsável pela própria saúde. A unibiótica é essa união da saúde, do cuidado com a vida, da preservação da vida. Não só a sua, mas a do outro também. E trabalha pra elevar a autoestima, porque a pessoa, ao se autocuidar, fica atenta àquilo que faz mal pra ela. Se ela precisa tomar medicação, ela toma medicação regularmente. Se é uma caminhada, que ela faça também essa caminhada. É uma prática que não inibe a pessoa de fazer outras atividades físicas.

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Além disso, ela não tem cunho religioso, muito embora a gente faça uma oração, mas não tem uma tendência a puxar para uma religião especificamente. O que vale é ter fé nesse criador, nesse Deus maravilhoso, que é o dono da vida. E, cuidando da vida com responsabilidade, a gente demonstra pra Ele que valoriza o bem maior. Muitas vezes a alopatia, que é essa medicina tradicional que a gente faz, visa muito tratar a doença. Uma vez, eu fiquei assustada, porque o Diclofenaco estava em falta na farmácia, e as pessoas tomam muito esse medicamento pra dor. No dia marcado, chegaram dois mil comprimidos e, em dois dias, não havia mais nenhum comprimido na farmácia. Aí, eu falei: “Gente, o pessoal toma muito remédio, e nem por isso as pessoas estão mais saudáveis”. Eu, sempre com essa preocupação, descobri a unibiótica, implantei aqui e realmente temos tido um bom efeito, a gente tem testemunhos de pessoas dizendo do benefício que elas usufruem. Tem também o Lian gong, um treinamento que a Prefeitura custeia. Mais de 100 centros de saúde já têm essa atividade. É um curso bem valioso, porque melhora a insônia e a depressão, as dores osteoarticulares, dá o equilíbrio pra pessoa. A proposta é tratar com exercícios físicos. É uma ginástica chinesa, que normalmente a gente faz no centro de saúde duas vezes por semana, há cerca de quatro anos. Só que, por sempre estar faltando médico, muitas vezes, se eu ficar até duas horas dedicada à ginástica, na quarta-feira, o colega que está lá no Centro fica sobrecar-

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regado. Mas, dada a importância do exercício físico, a gente faz uma combinação, rganizando o atendimento, para que eu possa desenvolver esse trabalho e também possa prestar o atendimento regular. Sempre digo que experimento as conquistas desses trabalhos junto com a comunidade. Eu vejo que são atividades que realmente me dão mais disposição para o trabalho, minha imunidade é boa, eu quase não adoeço, eu venho mantendo o peso. Eu tenho 57 anos e não tenho pressão alta, não tenho diabete, não tenho problema nenhum de saúde. E tenho também a satisfação de ver as pessoas que, embora tenham problemas de saúde, conseguem ter um bom controle e uma boa disposição pra vida. Essa é a conquista maior, que é a satisfação dos usuários que participam, que estão ativos, que estão felizes. E a gente tem um arranjo: cada vez que o grupo faz aniversário, fazemos um passeio juntos. Já fomos para um hotel fazenda, já fomos para um clube, já fomos para o Sesc... a cada vez, passamos um dia maravilhoso juntos. É muito bom ter pessoas alegres divertindo juntas, e toda semana a gente fala que a ginástica é uma diversão coletiva, pra manter a boa saúde. E é legal saber que ali no meio tem gente de trinta e poucos até 77, 80 anos.

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ITAMAR DE PAULA

A história do Ribeiro é a história de gente, de muita gente, entre elas a do Itamar, que enxerga tudo pela ótica do coletivo. Ele é um dos idealizadores do Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (COMUPRA), carrochefe de muitas das lutas que ajudaram a erguer o Ribeiro.

DO PRIMEIRO DE MAIO AO RIBEIRO Eu nasci e me criei no Primeiro de Maio. Então, essa história de ocupação, invasão, eu sei de cor e salteado, e o Primeiro de Maio tem uma característica de luta, sempre foi, você vê pelo nome dele. Antes era Vila Marmiteiro... Pau Comeu... Vila Operária... Depois que foi nomeado Primeiro de Maio, Dia do Trabalhador. A gente sempre teve a coisa de mobilizar e correr atrás. A origem de tudo no bairro Primeiro de Maio foi construção comunitária, o “coleginho”, as creches, o centro de saúde. E eu cresci aprendendo isso, nesse meio aí, com o padre Pitty e resto do pessoal. O Primeiro de Maio era uma loucura, o maior barato! Lá, morria um cachorro, o pessoal queria fazer festa, missa de sétimo dia, congado... Eu nasci lá no Primeiro de Maio e depois eu vim para cá. Tem mais de trinta anos que eu moro aqui. E

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aqui, quando eu cheguei, achei bonito demais.

NA MARGINAL A gente vive um processo de exclusão, sem ter um alvo, sem ter uma culpa. Eu nasci lá no Primeiro de Maio e, quando eu fiz 20 poucos anos, fui casar... Aí, você não consegue mais comprar uma casa naquele lugar em que você nasceu, aí você vai comprar em outro lugar periférico e longe, e vai ter os mesmos problemas que você teve lá. Se você tiver alguém que ajudou a enfrentar aqueles problemas, menos mal, você vai conseguir. Mas, infelizmente, você não tem. Poucos têm... A escola não ensina isso, a igreja não ensina isso, a faculdade não ensina isso. Assim, as pessoas são excluídas. O que vai acontecer com a geração seguinte que nasceu no Ribeiro de Abreu? Provavelmente, ela não vai ter dinheiro para comprar um lote aqui. Vai viver na periferia, na marginal. É assim que funciona. Mas eu tive a oportunidade de aprender a enfrentar isso, então, quando eu cheguei aqui, eu comecei a fazer isso. Aqui era mato, uma fazenda. O Onça, naquela época, era mais ou menos poluído, mas não era como é hoje. Ainda tinha peixe, tinha muito bicho na beira dele, tinha aquele cenário dos meninos barrigudinhos pela rua afora, passando dentro de esgoto... Aquele cenário triste. Era época daquele movimento new wave, músicas do Biquíni

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Cavadão, Nenhum de Nós... Naquela época, eu curtia muito esses baratos. Quando eu vim para cá, o pessoal cortava um dedo, ia lá para a MG-20 pegar carona para ser socorrido no Pronto-Socorro: aqui não tinha um centro de saúde. Essa escola que tem aqui na rua de cima tinha acabado de ser construída, estava novinha. Então, eu comecei a conversar com o pessoal... “Porque a gente não faz um centro de saúde? ”... Aí, fomos pra dentro da igreja católica. Lá, tinha uma construção em que eles queriam fazer um teatro. Eu não sou contra a cultura não, eu acho que tem que ter teatro, mas para assistir a uma peça, a pessoa tem que ter saúde para ir ao teatro, educação para entender a peça, rua para chegar ao teatro. Aí, propus de votarmos se ia ser um teatro ou centro de saúde. E o centro de saúde ganhou... “Mas como vamos fazer o centro de saúde?” – essa era a grande questão. Eles tinham acabado de inaugurar a escola, então conversamos com a diretora e ela aceitou ceder o espaço para fazermos eventos e, como eu já mexia com o pessoal do som lá em cima, eu convidei todos os meus amigos do Primeiro de Maio e desceu geral. Aqui não tinha nada. A gente ia aos botecos e tinha grapete, crush. O tira gosto mais chique era salame frito. Então, nós apostamos nesse negócio. Colocamos 16 caixas de som – e caixa grande, quase derrubou a escola –, transformamos a cantina em

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bar, oferecíamos pro pessoal cerveja gelada, refrigerante gelado, churrasquinho, fritas, caipirinha... Assim, nós construímos o centro de saúde. A gente gerava o recurso no sábado e gerenciava no meio da semana, contratava pedreiro, servente... E as pessoas doavam. Por exemplo, os caras que tiravam areia na beira do rio doavam, quem tinha material sobrando no quintal doava, a igreja também fazia campanha e ajudava... e assim, construímos.

COMUPRA Um dia, fui conversar com um amigo meu, que chamava Hilton, com a ideia de fazer uma coisa diferenciada aqui para o bairro, algo que funcionasse como uma associação comunitária, mas sem essa institucionalização da associação. Em 2001, colocamos a ideia pra funcionar com uma proposta de sair dessa coisa de mandar ofício e aguardar resposta. A gente queria ouvir o morador, que nem sempre vai à reunião, mas a gente ouve no boteco, na padaria, caminhando pelo bairro. Algumas ações foram sendo construídas: o “Natal sem Fome”, que a gente fez durante alguns anos, a horta comunitária, a alfabetização de adultos... A alfabetização de adultos foi um exemplo clássico da atuação do Comupra. Juntou a comunidade, a igreja evangélica, os comerciantes e um voluntário... e montaram um curso de alfabetização de adultos.

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O “Natal sem Fome” começou em 2003, uma participação nossa com o comitê Minas Ação e Cidadania, em que nós distribuímos 600 cestas básicas, mas num formato próprio. O Comupra organizava e articulava a ação. Por exemplo, íamos na igreja Batista e perguntávamos se alguém precisava de cesta. Se tivesse, a igreja iria distribuir, mas a pessoa tinha que fazer um cadastro. Então, nós criamos a horta e as pessoas cadastradas que precisavam de trabalho ajudavam na horta e tinham direito ao que era colhido. Nós fizemos o Natal sem Fome durante quatro anos, aí nós chegamos a uma percepção que, graças a Deus, não precisava mais. Sobre a alfabetização, tinha um menino do depósito que era aluno. Ele falou uma coisa que achei muito interessante: “Minha vida mudou por causa da alfabetização por conta do seguinte: eu tenho 23 anos e agora ninguém precisa ler mais cartas da minha namorada. Agora eu não preciso falar para o outro o meu sentimento para ele escrever pra mim e pôr lá no correio. Eu mesmo faço. Agora eu leio faixa em ônibus, papelzinho na rua”... Eu achei o maior barato. Uma das demandas coletivas que surgiram a partir de 2001 foi a duplicação da MG-20, onde é a ocupação do Novo Lajedo, que ainda nem era ocupação. Com a duplicação da MG-20, foram realocadas 600 famílias. O Comupra não tem a característica de luta por moradia, ele não tem uma característica de luta ambiental, e faz todas elas. Então, essa realocação aconteceu den-

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tro do Comupra. Nós alugamos um espaço para a Urbel, porque uma coisa é eu resolver dentro do meu território, outra coisa é eu resolver as coisas do lado de fora do meu território. Se você pega um morador daquele ali e põe ele para negociar indenização lá na Rua da Bahia com Contorno, é uma coisa, né? Se você pega ele e põe pra negociar aqui, onde ele viu os amigos dele, a casa dele, ele pode tomar um cafezinho, é outra coisa, né? Em um ano, nós resolvemos tudo sem brigas, sem discussão, sem sacanear ninguém. Foi um aprendizado, também. De 2005 para 2006, a violência na região foi assustadora, 57 homicídios em um ano. Com a realocação dessas famílias – que na realidade estão todas aqui, então não foram realocadas pra lugar nenhum – caiu de 57 para 12. Elas precisavam de polícia ou de moradia?! Elas estavam em paz, você já viu gente feliz brigando? É isso que eu acho que tem de acontecer em nosso país, os direitos têm que ser respeitados. Não é privilégio não, é direito! Tem uma coisa que meu pai falava para mim, que era: “O que é seu, é seu, uai!”. Tem como consertar isso?! Tem como emendar, colocar uma fita?! Tem não. Tem coisa que é isso e ponto. A partir do momento que você passa a respeitar as pessoas, sem querer mudar essas pessoas, o caminho é de paz. Quando você passa a respeitar o povo, a primeira coisa que melhora é a autoestima e, junto com autoestima, anda a paz. Todo mundo quer paz. E a paz não é a paz do tiro não dado, da facada não tomada. É algo muito maior e valioso.

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E o Comupra, nesse tempo todo, com essa possibilidade de aprender que a gente tem, é uma iniciativa comunitária que não nega suas origens. Conseguimos um investimento de mais de 35 milhões de reais para a construção do que se chama Novo Acesso do Ribeiro de Abreu. Essa construção é um anseio dessa comunidade, uma luta de 30 anos. Era uma luta feita de forma político-partidária. Na realidade, a gente também faz política, mas outro tipo de política. É uma política comunitária, não é esse tipo de política de dentro de quatro paredes e decidindo a vida dos outros. Então, teve um momento em que a coisa ficou muito política. Ficaram oito anos falando que tinha um projeto e não tinha. Mas foi bom vivermos isso, pra coisa chegar aonde chegou. Fizemos um aniversário da ponte, bolo de aniversário, bandinha e tudo que tinha direito. Entramos em contato com os comerciantes, que doaram a farinha, doaram foguete, compramos os chapeuzinhos, mandamos um ofício para a polícia para fazer a segurança, alguns amigos nossos acharam interessante e mandaram para a mídia. Todo mundo cobriu o aniversário da ponte, nós apertamos o governo sem falar um nada com eles. Logo depois, foi marcada uma audiência pública na Câmara. Solicitamos a presença da SUDECAP (Superintendência de Desenvolvimento da Capital, órgão da prefeitura de BH responsável pelas obras de infraestrutura urbana) e colocamos duzentas pessoas lá dentro.

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Aí, perguntamos para o cara: “Tem o projeto da ponte?”, o cara respondeu: “Não tem”. Eu falei com ele que nós não fomos ali para brigar, a gente não ia disputar poder. Eu já dormi em muitos lugares neste mundo, estava naquele dia numa sala muito chique e falei com ele: “Vou convidar meus amigos para ficarmos aqui até que saia o projeto”. Esse cara ficou quase louco e aí marcou e apresentou o projeto. Então, o projeto do novo acesso é uma intervenção numa área de alto risco de inundação, com realocação das cem famílias dessa área de risco. Vão ser construídas duas pistas de cooper com um quilômetro e meio de extensão. Vão construir um campinho e estamos querendo agora uma pista de skate na beira do rio. O pessoal pensou que era só uma ponte, mas é muito maior. Nada foi conseguido através de nenhum político, foi uma luta de outra forma. É um direito nosso de fazer e procuramos o caminho da não agressão. Hoje, em Belo Horizonte, poucas instituições têm essa carga que o Comupra tem. Graças a Deus, a região está mudando e vai mudar mais. A gente vive do impossível. Eles falaram que duplicar a rodovia MG-20 era impossível, eles falaram que colocar academia a céu aberto na beira do rio era impossível, eles falaram que iluminar a MG-20 era impossível... Está tudo lá. O quê que era impossível? Você anda dentro do bairro, você não vê placa, não vê nada do Comupra, a propaganda é de coração.

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DEIXEM O ONÇA BEBER ÁGUA LIMPA O movimento “Deixem o Onça Beber Água Limpa” é uma loucura. Ele surge a partir da realocação das famílias da MG-20, em 2007. Nós temos reunião uma vez por mês e é totalmente aberto, tanto para comunidade, quanto para todos os parceiros. E assim o movimento vai se construindo, vai construindo uma discussão na região, as pessoas vão conhecendo a região, vão aprendendo com a região. Dessa forma, não fica aquela coisa engessada. E nós estamos falando de uma região, o Deixem o Onça Beber Água Limpa não é só de um bairro, então você tem que enxergar a região. É um movimento que trabalha com a mobilização. Queremos que a ideia de sustentabilidade ambiental esteja mais perto da realidade, das atitudes das pessoas. Queremos chamar a atenção para o Ribeirão do Onça. Mas o rio não é uma coisa separada da vida, ele é vivo e é preciso pensar nas pessoas ligadas a esse rio. Não podemos cair num discurso moralista, vazio. Precisamos investir na capacitação comunitária para gerar atitudes ambientalmente sustentáveis para a região. E precisamos de atitudes diferentes do poder público, também. É preciso seriedade dos agentes públicos em relação às nossas águas. O primeiro evento do Deixem o Onça Beber Água Limpa foi o dia inteiro. Teve desfile de escola de samba é até ato ecumênico, no meio da rua, aberto. Desde então,

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o evento combina muita coisa: apresentações culturais, exibição de documentários, exposição de fotos, oficinas de educação ambiental, atividades de lazer... E participa quem quer, vai quem quer. Para cada evento desse, são no mínimo oito reuniões na comunidade onde vai acontecer o evento. As reuniões são com centro de saúde, escola, igreja e comércio. Já fizemos evento no Ouro Minas, no novo Aarão Reis, no Ribeiro de Abreu, nas casas populares, no Paulo VI... Nós fechamos essa região, todos esses lugares estão sabendo do Deixem o Onça. Antes, ninguém sabia, era só tragédia. Ficavam esperando pra ver na televisão o Ribeiro de Abreu inundado. Hoje se você quiser ser uma pessoa que vai enxergar diferente, você tem um caminho.

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JOSÉ ROBERTO XAVIER GOMES “PITBULL” O capoeirista José Roberto, que depois de um jogo ficou conhecido no Ribeiro como Pitbull, vive há mais de 30 anos no bairro. É “uma vida”. Há uma década, ele compartilha a capoeira com os jovens da comunidade. Pit Bull tem visto essa arte transformar os caminhos de muita gente, como foi com ele mesmo. A capoeira é tudo para ele e sua maior alegria é compartilhar tudo o que sabe com a comunidade.

VIVER NO RIBEIRO Eu vim pra Belo Horizonte aos 13 anos. Eu sou goiano, eu vim pra cá e até vivi uma vida meio atribulada: drogas, bebidas, bagunças... E, então, quando eu conheci a capoeira, aos 37 anos, comecei já velho, mas foi uma troca que eu fiz, uma troca justa. Hoje eu tendi pela capoeira e até hoje é o lazer que me dá alegria. Viver aqui na comunidade significa esses 30 anos que estou aqui... Uma vida, né? No nosso bairro, quando eu vim pra cá, você podia contar as casas que havia aqui, se tivesse duas dúzias de casas, era muito. Nós não tínhamos ônibus, não tínhamos uma ponte adequada, se a gente quisesse pegar um ônibus, ou tinha que ir do lado da BR ou no Nazaré pegar o ônibus. Rua de terra, sem luz...

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mas era uma maravilha. Depois o bairro foi crescendo e as dificuldades foram vindo.

A CAPOEIRA PRA MIM A capoeira pra mim é tudo, tudo o que tenho... Parei de mexer com bebida, com porcariada, tudo em troca da capoeira. Primeiramente, Deus, depois, a família e depois, a capoeira que me deu os amigos que são esses meninos maravilhosos que treinam comigo. Eu comecei a fazer capoeira e sou um integrante do grupo Oficina da Capoeira, que foi fundado pelo mestre Halley. Sempre tive grande apoio, grande força do mestre, ele me incentivou muito. É como o mestre Pastino falava: “O que é a capoeira? A capoeira é tudo. A capoeira é uma coisa que se come pela boca”, então pra nós, que somos capoeiristas, é tudo. Eu sou franzino, e acaba tendo muito cara forte, grandão. Quando eu comecei na capoeira, um rapaz falou assim: “Nós vamos fazer a divisão... Você com você, você e você”... Aí, comigo, eu era bem mais magrinho ainda, ele escolheu um menino lá e o menino tinha o apelido de urso. O cara pra ter um apelido de urso tem que ser muito grande. E ele era grande. Quando ele falou: “Vai lá ocêis dois”, aí quando ele baixou assim e eu baixei também, fechei a cara pra ele e falei: “bom, agora eu te pego”. Eu fechei a cara e fiquei em pé tocando berimbau,

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aí ele falou assim: “Rapaz, você é parecido com pitbull”, aí acabou, pegou o apelido. A capoeira, ela me dá muita força, me passa um outro tipo de família e raramente você me vê conversando com outro tipo de pessoa que não seja do mundo da capoeira. Na capoeira, você está sempre em dia, está sempre com as mesmas pessoas e a mesma coisa que eu faço, eu passo para os meus alunos. Então, eu falo com eles: “Nós somos uma família, nós estamos sempre juntos”. A capoeira é uma coisa muito educativa. Sempre tive vontade de fazer capoeira, mas nunca, por causa da vida passada, eu fazia. Mas eu fui vendo as coisas, e comecei a pensar: “E se eu parar de beber, vou fazer o quê amanhã?”... Minha alegria era a bebida. Fiquei dependente uns três meses, achei que não conseguiria andar com as minhas próprias pernas. Mas eu tive grande força da minha mãe... Levei dois meses pra me recuperar. Depois desses dois meses, eu iniciei a capoeira. Uns amigos falaram: “vamos fazer capoeira, quem sabe...” e, aí, foram as últimas vezes que mexi com coisa errada e hoje eu tô aqui pra ajudar os jovens, dar apoio. Faço trabalho com jovens, adolescentes, tentando tirar eles das ruas, das drogas. Eu tenho uns jovens que já foram envolvidos, hoje trabalham e tem até alguns que trabalham comigo. Assim, sempre tem um monitoramente em cima deles.

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RESOLVI PASSAR O QUE A CAPOEIRA ME ENSINOU A capoeira não é só pros jovens, ela é pra adolescente, pra criança, pra velho, pra novo, ela não tem idade. Ela reeduca as pessoas. Eu era um cara violento, até quando eu entrei pra capoeira. Eu tenho um aluno que, depois que a gente já tinha contato, que a mãe sabia que era comigo que ele estava fazendo capoeira e que era tudo correto, veio me contar: “Nossa! Eu cheguei a implorar pro meu filho pra ele não mexer com você... aí, nossa! Eu não acredito que você teve essa vitória. Não sabia que você tinha melhorado”. Eu falei: “Tive”. Então, hoje eu procuro passar o que a capoeira me ensinou. Primeiramente, a Deus, que é o essencial, que é o que dá força pra gente e depois a família, que é a base pra gente... Depois, pra mim, é a capoeira. Pra mim, ela é tudo. Eu até pedi conta numa empresa de 18 anos de trabalho, justamente por causa da capoeira. Comecei o trabalho aqui no Ribeiro a pedido dos adolescentes. Eu trabalhava na semana e sábado e domingo eu dava aula em troca de nada, simplesmente dava aula. Aí, pedi conta a essa empresa, me envolvi na capoeira e trabalhava por minha conta. Continuei e tô aqui até hoje... Há 15 anos.

CONFIANÇA MÚTUA E o que me faz mais me sentir com o pé no chão é me envolver com as pessoas. Eu faço muita amizade com a

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turma. Uma vez, estava conversando com minha esposa, e ela falou bem assim: “Por que você não é um cantor e todo mundo te conhece?”, eu falei: “Não, todo mundo conhece o cantor, mas cantor não conhece todo mundo; e eu quero conhecer todo mundo e que todo mundo me conheça; aí, eu sei que eu sou conhecido”. No começo, você sente vergonha da capoeira, você fica tímido. Depois, você abre o coração, assim, e até fala demais. Eu perdi muita oportunidade pela timidez, mas a capoeira é um modo de vida muito bacana. Só quem está aqui sabe expressar o que vive. A minha proposta com o trabalho é levar a capoeira a todas as partes da comunidade. É o Ribeiro lá embaixo, o Paulo VI e a redondeza. Mas a nossa estrutura aqui na comunidade é muito fraca. No começo, eu tive algumas dificuldades e até a comunidade me criticava. Eu queria conquistar os meninos, os adolescentes, eu passei a andar com eles, conversar... e foi assim, um contato mais longo com eles. Então, eu teria que depositar minha confiança neles e eles teriam que depositar a confiança deles em mim. Muitos da comunidade criticaram na época, falaram que eu estava invadindo, falaram que era vagabundo andando com esses adolescentes perdidos... E hoje eles vêem o resultado que nós temos aí na nossa comunidade. Eu falo que eles não são só meus alunos, são meus amigos. Nós somos como uma província. Nós somos ami-

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gos, nós conversamos. Às vezes, eles me chamam a atenção. Quando precisa, eu chamo a atenção deles. E não tem aquele problema de um torcer a cara para o outro, ou fechar a cara para o outro. Nós somos uma família. Às vezes, no projeto não tem psicólogo, eu mesmo escuto o problema, mas quando eu vejo que não dá pra mim, eu sou obrigado a procurar ajuda. Os meninos, às vezes, eles vêm uma fera, mas aí você vai levando as coisas, vai domando aos poucos, equilibrando eles... Mas tem menino que é difícil. Já perdi aluno matado, então... E não tem uma faixa etária de idade, porque eles impõem um índice de mortalidade entre os 12 aos 24 anos. E eu trabalho com a prevenção. Eu tive um sobrinho que um dia chegou pra mim e falou: “Ei, tio Pitbull, eu posso fazer capoeira? ”, eu falei assim: “Pode. Mas quantos anos você tem? ”, ele virou pra mim e falou que tinha dez. Aí eu disse: “Mas você é novo, os meninos daí são tudo acima de 12 anos” e ele respondeu: “O senhor acha que eu não tenho coragem de dar um tiro em um cara, não? ”. Aquilo ali, pra mim, mudou o modo de pensar. Eu cheguei pro pessoal e falei: “Olha, eu acho melhor a gente trabalhar com menino mais novo”. Porque, quando você antecipa os meninos, quando eles estiverem na adolescência, com 17 anos, eles estão te obedecendo, ouvindo o que você tem a dizer pra eles. Mas, quando você não consegue domar ele desde lá debaixo, ele não te obedece.

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É mais fácil a gente trabalhar com prevenção. Ali, eles vão ter convivência com os adolescentes e com os adultos. O menino vai ter uma vivência... então, ao chegar numa idade assim... de 20 anos, ele vai estar com uma outra cabeça, porque ele sabe por onde passou. Se, desde novo, o menino começa a conviver com pessoas que mexem com tráfico, com essas coisas, as chances de ele lá na frente ser traficante são grandes.

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MARCONE PAULO DE JESUS

Marcone tem uma forte ligação com a história da comunidade do Ribeiro de Abreu. Chegou a viver dois anos fora da região em que cresceu e se criou, mas não pôde ir muito além disso: voltou. Tornou-se técnico de futebol. Marcone dá oficinas de futsal para os jovens moradores. Para além de divulgar o esporte, suas oficinas trabalham nos alunos a dignidade, o respeito e a união. As mesmas causas que mobilizaram a luta entre os primeiros moradores dos bairros da região, que ele conheceu ainda criança. No mais, ele conta que ajuda em tudo o que puder: “do funeral até as festas”.

COM O TEMPO Ah! É difícil até sair daqui do bairro. Eu já tentei morar fora por dois anos, mas não consegui, não. Acabei voltando. Quando eu me mudei pra cá, tinha pouca casa, as ruas não eram asfaltadas, era muito buraco. A gente, pra poder pegar o ônibus, tinha que ir até a BR, que hoje é a MG-20, de saída e entrada pra Santa Luzia. Tinha que andar muito, não tinha comércio por perto, não tinha luz, não tinha água direito. A gente tinha que pegar água em cisterna ou, então, em minas. Tinha muitas

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minas de água aqui na região. Era fogão à lenha, não tinha televisão, não tinha rádio, mas era algo gostoso, porque a gente brincava muito nessas ruas de terra. A gente usava a terra pra poder brincar... era muito bacana, era muito gostoso. Hoje, com a pavimentação, com as ruas asfaltadas, tem muito movimento de carro, de moto. A maioria do pessoal que mora aqui colocou muros em frente a suas casas. Antigamente, não tinha isso, era tudo aberto. Todo mundo era conhecido – apesar de que, até hoje, ainda tem esse conhecimento. Mas, com a chegada de várias novas famílias, a gente acabou perdendo um pouco da liberdade que a nossa comunidade tinha. Na minha infância, brincávamos muito, porque tinha um córrego na parte de baixo, onde era uma fazenda. Costumávamos brincar nos córregos daqui. E tinha também muita árvore, a gente fazia balanço, era muita brincadeira boa. Tinha brincadeira de finca, de pular corda, era só brincadeira boa. Tinha uns pés de coco... a gente vivia brincando. O tempo foi passando e tudo isso foi acabando. Foi aumentando a quantidade de pessoas no bairro e foi diminuindo o lazer. O que tinha de cultura aqui na nossa região era quadrilha, festa junina... Era uma coisa bacana, as pessoas participavam. Depois, as festas juninas foram acabando, ficou um tempo com tudo parado. Não teve futebol, não teve mais nada. Acabaram com alguns campos onde a gente jogava bola.

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Mas, de 1999 pra 2000, foi inaugurada a Escola Municipal Professor Paulo Freire, que começou a abrir um novo espaço de cultura, lazer e esporte dentro da nossa comunidade.

COLABORADOR DA COMUNIDADE Aqui na comunidade, eu faço de tudo um pouco. Tem pessoas que acham que sou um líder comunitário, tem pessoas que acham que eu sou um colaborador da comunidade. A gente ajuda. Uma vez eu até comentei, brincando, que a gente ajuda do funeral até as festas. É que, de tudo, a gente participa um pouco, ajudando naquilo que a gente pode, correndo atrás de oportunidades de emprego, de cursos e de coisas semelhantes, principalmente para os jovens que precisam. Trabalho com os jovens da comunidade, na área do esporte, com oficina de futsal feminino e masculino. Agora, também trabalho com futebol de campo, disputando alguns torneios e campeonatos dentro e fora da comunidade. E a gente vai levando, juntando esses jovens, montando uma equipe, participando de alguns torneios. Tem apresentações dentro e fora da comunidade. Participamos também de outros eventos: rodas capoeira, de break, de dança de rua e outras atividades de cultura; além de torneios de rua e de torneios dentro da quadra de esporte. Alguns jovens nossos já se apresentam na Copa Itatiaia...

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E assim vai indo, a gente vai levando esse povo pra apresentar o trabalho lá fora. O propósito da minha oficina de futebol vai além do esporte: é mostrar aos jovens que eles têm o direito de ir e vir, o direito de respeitar ao próximo e de mostrar pra comunidade que ele pode ser uma pessoa diferente. Muitas das vezes, as pessoas não acreditam em jovens de comunidade ou de periferia, então a gente ensina isso e tenta mudar a história deles, mostrando que eles são capazes e que eles podem fazer a diferença no futuro.

UNIÃO QUE VALE A PENA No começo da nossa oficina, havia uma guerra muito grande dentro da nossa comunidade, até mesmo na questão de locais – era rua contra rua, a parte de baixo contra a parte de cima. Quando a gente começou, havia muita dificuldade, muita briga, era muito difícil colocar esses meninos juntos para jogar bola. Era um contra o outro e às vezes rolava muita confusão. A gente tinha que dar de tudo pra achar saídas pra esses confrontos tão duros, pra mostrar pra esses meninos que a união valeria a pena. Então, a minha dificuldade – e também minha maior conquista – tem sido ensinar para esses jovens o que vale a pena. Agora, 90% dos meus alunos que treinaram comigo desde o início são, hoje, pais de família, estão trabalhando, tem filhos, assumiram uma responsabilidade como

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alguém na comunidade, como pai, como mãe. Pra mim é um orgulho saber que esses jovens que começaram comigo aqui, que viviam no mundo das drogas, que viviam bebendo pelas esquinas, construíram sua família, têm sua casa, alguns já têm carro, tiraram carteira... Isso pra mim é um ganho muito grande. E eu trabalho também na igreja, sou membro da Igreja Batista Vida, sou pastor, e a gente faz alguns cultos nos lares e ajuda também as famílias. Nos últimos anos, eu também trabalho na área de mediação de conflitos, usando o meu conhecimento de poder conversar com as pessoas, com as famílias, pra direcionar eles, pra instruir que vale a pena construir e manter uma família. E a gente vai ajudando em tudo o que pode, levando uma senhora para o hospital, levando um jovem pra tirar uma carteira de trabalho, uma carteira de identidade... É assim que a gente vai fazendo as coisas.

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MARIA DE LOURDES MARCELA DE CARVALHO – DONA LURDINHA Dona Lurdinha é uma das mais famosas e mais antigas bordadeiras do Ribeiro. Com seu varicô, bordou em muitas roupinhas de bebê e em muitas vidas que passaram por suas aulas na Paróquia São Vicente. Com sua luta, bordou ruas e asfalto, que ligam a comunidade.

OS PRIMEIROS TEMPOS Vivo aqui no Ribeiro tem mais de 50 anos. Viver no Ribeiro, pra mim, significa muita coisa, porque eu vim pra cá com 10 anos. Significa tudo, né? Porque quando você mora num lugar que você gosta é muito bom, muito significante. Aqui, agora, está muito bom. Nós temos mercearia, asfalto, tem essa academia, que é uma benção! Se todo mundo participasse, era muito bom... Nós temos nosso posto médico. De primeiro, nós não tínhamos nada, mas o bairro era muito bom e continua bom. Eu gosto daqui. O Ribeiro, de primeiro, só tinha duas fazendas. Só a da Dona Selma, uma aqui na virada do Ribeiro e, mais ou menos, umas quatro ou cinco casas. Nós viemos morar aqui porque nós tínhamos gado e lá no bairro São Paulo tinha caminhão que pegava o gado. Então, nós viemos pra cá por causa da nossa criação. Nós tínhamos, mais ou menos, umas 60 cabeças de gado. Primeiro, nós compramos

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lá no Belmonte, mas aí a Lagoa da Pampulha arrebentou e tampou nosso arroz todinho. Meu pai falou pra Dona Selma que ele precisava continuar plantando arroz e se ele podia morar lá, aí ela nos trouxe pro lado de cá. Meu pai comprou 15 lotes. Eles plantavam tudo, arroz, feijão, milho e tinha muita criação. Eu estudava lá no Bressane [Escola Municipal Francisco Bressane de Azevedo], no bairro São Paulo. Nós tínhamos uma charrete. A gente levava leite pra vender na CIPA, que era o matadouro, e ia pro Bressane estudar. Tinha aquele colégio Clemente [Escola Estadual Antônio Clemente] também, lá no Aarão Reis... Mas só que, quando nós viemos do bairro São Paulo, já tínhamos matriculado lá no Bressane.

NAQUELA ÉPOCA... Quando eu vim pra cá, era tudo mato. Pra comprar as coisas, a gente ia no bairro São Paulo e trazia na charrete. Depois, passados uns tempos, que apareceu um ônibus. Nós pegávamos mais pra Santa Luzia... porque só tinha o Santa Luzia. Ele passava lá em cima, depois é que desceu um ônibus chamado “51”. Esse 51 descia até ali, onde é Conjunto Velho. Mas, depois, abriram a Beira Linha e o trem só rodou uma vez, porque ele atolou. Rodou até lá no bairro São Paulo. Ele foi e depois voltou, e atolou perto da pedreira. Aí, eles tiraram tudo e nunca mais o trem passou.

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Naquela época, o Córrego do Onça era limpo, não era sujo, não. Tinha muito bicho solto no bairro. A gente achava muito tatu, muita coisa e gostava muito de pegar capivara. Agora, com o Orçamento Participativo, nós temos nosso bairro quase todo asfaltado... A primeira rua nossa que foi asfaltada foi a Maurício Campos. Fiquei 15 anos envolvida nessas lutas. Todo ano que a gente ia e trazia uma obra. Você tendo o bairro arrumado, seu lote também fica mais caro, tem mais valor. Porque, não tendo nada, seu imóvel também não tem valor nenhum. Então é muito bom você ter as coisas. Nosso bairro é muito antigo, mas ainda precisa de muita coisa.

VARICÔ De cultura, aqui tinha as rezadeiras e tinha um cruzeiro, ali chegando quase naquela pracinha que o Ribeiro tem. Nesse cruzeiro, a gente rezava lá direto. Estavam fazendo a igrejinha cá embaixo, onde tem a Igreja Conceição. Então, a gente fazia a reza, mesmo não tendo a igreja. Nós subíamos e rezávamos no cruzeiro. Igreja só tinha onde é agora o Recanto da Boa Viagem... Nós íamos na igreja lá. Tinha nos Borges e lá no Nazaré. Na nossa Paróquia Pai Misericordioso, o compadre Afonso engordava porco pra poder levantar a igreja. Nós buscávamos a lavagem pra ele engordar o porco e meu irmão, de noite,

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ia dançar pra poder arrecadar dinheiro na dança... Todo sábado, lá tinha baile... Até fazer a Paróquia Pai Misericordioso. Lá era uma casinha. Agora, nós estamos no São Vicente. O São Vicente é uma igrejinha que está formando no Beira Linha e a gente ensina crochê, tricô e varicô. Tem muita gente. Nós estamos no porão, esperando pra mudar pra cima, que já está quase em ponto de telhado. Depois que colocar o telhado da igreja, nós vamos voltar, porque tem muita gente da Beira Linha que vai nas aulas. O varicô é um bordadinho que tem, muito fininho, que a gente sempre borda em roupa de neném. Eu aprendi lá no Centro Comercial do bairro São Paulo e hoje eu passo pra comunidade. Também ensinei muito aqui em casa. É bom a gente ensinar, porque todo mundo fica sabendo, não fica só pra gente. Que a coisa boa é todo mundo saber, né?! Tem menina que chega e... “Eu aprendi o bordado foi com a Dona Lurdinha”. Aí, você fica muito satisfeita com a pessoa chegar perto de você e falar. Hoje, tem aluna minha ensinando e fazendo pra vender. A nossa dificuldade que tinha, de primeiro, de ensinar o tricô, era muita violência. Graças a Deus, acabou. Nós íamos pra beirada da linha, mas com medo. As meninas tinham medo. Eu nunca tive medo não, porque onde que tem Deus, aí tem tudo. Mas, as meninas tinham medo, então ficava mais difícil de ensinar, porque ensinar com medo, você não consegue. Mas, agora, graças a Deus, pode

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bem falar que nosso bairro está 100% sem violência. Ah! Você sabe o que foi muito bom pra nós? Foi o Fica Vivo. Ele traz as coisas pra dentro do Beira Linha... faz brincadeiras, lá tem uma lan house.

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NAIR PEREIRA SERPA

Nair vive no Conjunto Ribeiro de Abreu há 23 anos. Ela e a família chegaram quase junto com o asfalto na comunidade. As mãos habilidosas de artesã fizeram de uma distração seu ganha-pão, mas ela não guardou o talento para si própria: resolveu compartilhar do prazer que o artesanato lhe trazia com os vizinhos. A artesã Nair tornouse coordenadora do projeto Escola Aberta em seu bairro, onde também ensina sua arte. Ensinando, ela estreitou os laços com a comunidade e, muito mais que sobreviver, encontrou algo com valor inestimável: amigos.

ONDE SE CONSEGUE TER UM PÉ DE FRUTA Olha, em questão de lugar pra morar, eu considero aqui muito bom. A questão de você respirar: por causa da mata, a gente pode. Em outros bairros, outros lugares, é difícil pra gente conviver. Esse é um bairro calmo, eu considero um bairro bem calmo, graças a Deus, e eu acho que é muito interessante morar nesse bairro, eu gosto muito daqui. Imagina você dentro de Belo Horizonte e tendo um quintal onde você consegue ter um pé de fruta, consegue plantar uma fruta no seu quintal. Você poder respirar, escutar uma aguinha correndo no fundo do seu

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quintal, uma fontezinha, uma mina de água. Então, é muito interessante e eu gosto muito daqui. Sempre gostei muito daqui, desse bairro. No meu quintal tem amora, ameixa, manga, laranja, limão, acerola, pitanga, banana... É muito legal! Eu gosto. Eu vejo muitos animais por aqui. Os micos, por exemplo, comem na mão da gente, aqui na porta da cozinha. Você consegue ver tuiú, grande ou filhote, você consegue ver. Você consegue ver muitos bichos interessantes... Tucano, você consegue ver na mata... Você consegue ver animais; passarinhos, então, é uma variedade. Quando eu mudei, até que já tinha asfalto. Mas, antes de eu mudar, quando a gente estava comprando lote aqui, essas ruas eram todas de barro, era muito complicado até pra gente entrar com o carro e sair do bairro. Depois veio a escola infantil, que não tinha. Começou escola infantil, jardim de infância... Então, eu pude ver isso, pude ver começar o jardim de infância, a construção de melhorias no colégio Loreto [Escola Municipal Desembargador Loreto Ribeiro de Abreu]. Não tinha ônibus pra gente, mas depois veio o ônibus.

APRENDER E CONTINUAR APRENDENDO Eu mexo com artesanato. Sempre gostei, sempre trabalhei com artesanato. Hoje, eu ensino. Já dei vários cursos particulares, viajando. Viajava com o Grupo Cristão pra dar

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aula pro pessoal... Isso foi no início, e depois comecei a dar aula pra própria comunidade. Comecei a trabalhar dentro da escola. Primeiro, numa escola fora do bairro, ajudando como voluntária. Depois, aqui na escola do bairro. Eu comecei no artesanato por uma necessidade, na realidade, de sobrevivência mesmo. É... De repente você tem tudo, seu marido vai embora e você precisa sobreviver... então, começou por aí. Eu já gostava, mas eu só fazia por lazer, só gostar mesmo de fazer alguma coisa. Depois, o artesanato veio a ser muito da minha vida. E é muito interessante, você poder aprender e continuar aprendendo sempre. Então, a criança, ela tem muita facilidade pra aprender... e participar do aprendizado de uma criança, pra mim, é maravilhoso! Quando eu consigo transmitir, consigo passar, eu me sinto muito feliz! Feliz em poder ver uma criança fazendo artesanato na escola. É muito gratificante ver uma criança fazendo aquilo que você sabe que ela nunca mais vai esquecer. São coisas que ficam, são valores que ficam. Nas ruas, a gente vê gente fazendo coisas que não devem, colocando em risco a sua própria vida... Mas, se você vê a criança fazendo uma coisa que vai ajudar a se ocupar, se desenvolver, além de se divertir, isso é muito bom. Às vezes, a gente quer, a gente gostaria tanto que a comunidade se envolvesse mais, mas você sente que a própria comunidade não valoriza. Senti muito isso. As próprias pessoas me perguntam se tem o curso, eu falo

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que tem e as pessoas nunca vão lá, nem recebendo material de graça e aprendendo alguma coisa de muito útil. Eu realmente senti isso aqui nesse bairro. A própria comunidade não te valorizar, ou não valorizar um trabalho que é feito na escola que está tão pertinho, a um pulinho. Mas as pessoas não valorizam, eu sinto isso. Por outro lado, é tão gratificante você conviver com pessoas, você conhecer pessoas! É como se ampliasse sua vida, vamos dizer... é um valor inestimável! Se, de repente, eu agora tiver que parar, eu não conseguirei. Eu não gosto nem de pensar muito assim, se tiver que parar... É tanta gente que você conhece, tantas pessoas, tanta gente boa, dentro da escola, fora da escola. E eu sou muito boba, eu falo isso, eu choro mesmo... Eu não gosto nem de pensar em abandonar, de parar o trabalho na comunidade. Quando as pessoas vão, quando alguém vai e percebe o quê que é aquilo, o valor que tem, aquela pessoa que foi, ela valoriza e, além de valorizar, ela gosta. E em relação àquelas que simplesmente falam que querem, falam que vão, você insiste e tal mas, de repente, elas não vão, eu sinto tanto, porque eles estão perdendo tanto, estão perdendo muito.

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REYNALDO RIBEIRO REYONE ReyOne é Reynaldo, b-boy e educador em oficinas de grafite e breaking pelo Ribeiro há mais de seis anos. O testemunho de Rey é o de quem viu a cultura reduzir as distâncias e superar as fronteiras do medo, da desinformação e do preconceito. E mais. Por meio do ensino da cultura hip hop, o jovem professor Reynaldo assiste ao fortalecimento da identidade dos jovens da região e dos laços entre eles e a própria comunidade.

ENCONTROS A PARTIR DA CULTURA Então... faz oito anos que estou trabalhando aqui na região. Eu vim pra cá com o objetivo de trabalhar com oficina de grafite. Uma dessas oficinas teve um término por uma questão de estrutura, porque o local não tinha estrutura adequada pra receber a oficina. Mas havia outra demanda para uma oficina de dança e o pessoal já tinha conhecimento do meu trabalho, até mesmo porque, dentro do programa, havia eventos em que eu dançava. Então, o pessoal sabia que eu dançava e tinha conhecimento do meu grupo, o grupo com o qual eu apresento, que é o Spin Force. Nós dançamos breaking, ou b-boying, e o grupo já existe desde 1992 com o Ilclemar, que é o Beat, e o Jack. Eles formaram esse grupo e o nomearam. Com isso, houve

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o convite pra eu dar essa oficina de dança e foi muito legal, com bastante jovens já em ação, pois o pessoal já tinha feito uma capacitação de jovens. Então, entrei nesse grupo e fui trabalhando com eles dentro da oficina, ensinando eles a dança, apresentando pra eles a cultura e eles foram vivendo um pouco do que eu já vivia há bastante tempo. Antes, eu já tinha vindo aqui. Mas isso foi há muitos anos atrás, eu era bem pequeno... E eu nem vim aqui no Ribeiro, foi no Paulo VI, quando o bairro estava em formação ainda... nem era asfalto, era terra. Foi uma passagem muita rápida aqui. Depois, eu voltei aqui no Paulo Freire [Escola Municipal Professor Paulo Freire] dando oficina, mas foi muito rápido. Foi com uma amiga minha, que me trouxe pra dar um oficina aqui porque tinha essa demanda pra grafite, e não havia nenhum projeto atuando na região. Quando surgiu a oportunidade de eu trabalhar nesse programa, e eu soube que a região pra qual eu iria seria essa, eu fui buscar informações com as pessoas que tinham conhecimento da região, pra saber um pouco da história do bairro. O pessoal sempre comentava que era perigoso, que era violento... “Não, você não viu não que ontem fulano morreu?”. Eu também fui pesquisar o número de jovens que morriam aqui por semana, e eram muitos jovens morrendo. Mas, assim mesmo, eu vim porque é trabalho e também porque eu acho que a gente tem que saber entrar e sair de todo tipo de lugar.

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Eu via que aqui tinha essa necessidade de formação, tinha essa carência de cultura. Tem muitas pessoas que realmente têm essa coisa da cultura, que fazem alguma coisa, mas que não tinham a oportunidade de mostrar. Faziam, mas escondidas, isoladas mesmo, nem todo mundo tinha conhecimento. Mas, a partir do momento em que eu comecei minha oficina de grafite, um outro começou a oficina de teatro, outro de dança... as pessoas, os jovens, as pessoas mais velhas também, começaram a ter conhecimento disso e foram aparecendo outras pessoas também, que faziam outro tipo de cultura ou algum outro trabalho aqui, e começaram: “ah, eu faço aquilo...”. Então, houve um crescimento muito grande em relação a essa questão de formação.

ESPAÇO PARA A ARTE Pra ficar ideal, você vê que ainda falta muito. Você vê, em determinados bairros, algumas periferias, aglomerados que têm centros culturais com vários tipos de oficinas. Aqui ainda não tem um centro cultural. O centro cultural mais próximo que a gente tem aqui é Centro Cultural BH Cidadania. Então, eu acho que falta o interesse dessas pessoas que promovem a cultura dentro do bairro de correr atrás de um espaço cultural, pra ter um espaço pra vivenciar isso. Um espaço que tenha dança, dança afro, percussão, violão, informática, que tenha vários acessos aos jovens, onde a pessoa possa chegar e falar: “Eu

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preciso de um espaço pro meu grupo”. Isso, aqui não tem. O espaço aqui é muito difícil. Eu acho que esse é um ponto muito forte, essa questão do espaço, do entendimento das pessoas sobre o espaço para a arte. Por exemplo: a sala de dança é própria pra dança, não pode ter outro tipo de atividade, ela é própria pra aquela atividade que tenha ritmo. A gente conquistou muita coisa aqui no bairro, o pessoal já sabe desse tipo de dança aqui, já tem referências que antes não tinham, então já buscam. Agora, outra dificuldade que a gente tem é em relação ao tipo de dança. As pessoas acham que é simplesmente vir aqui e dançar e ir embora pra casa, não é isso. Aqui a gente vivencia uma cultura. Pra você falar “eu faço parte dessa cultura”, você tem que viver. Não adianta nada você simplesmente fazer a dança, fica uma coisa muito vaga, você não sabe o que é. Por isso, não é só fazer aula, a história é muito importante, porque tem muitas coisas que influenciam a sua própria arte, a sua própria dança, a forma de cantar, tem os estilos. Pra você fazer parte, pra você vivenciar isso, você tem que conhecer isso, você tem que conhecer as pessoas que começaram isso, tanto nos EUA como aqui no Brasil e em vários outros lugares. Tem as pessoas que começaram isso e que até hoje batalham por um espaço. Se você pensar, até mesmo em questão de comércio, pra cultura hip hop aqui é muito restrito. Em determi-

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nados países, as pessoas conseguem viver dessa cultura, viver dessa arte. Tem gente que consegue viver, consegue trabalhar com isso. Aqui, não existe mercado pra isso ainda, estamos engatinhando.

PRA DIVULGAR A CULTURA HIP HOP Nós começamos a dançar na rua e hoje a gente já consegue fazer várias apresentações em determinados lugares que a gente nem pensava que iria usar. A gente já pensa em espetáculo, em iluminação, pensa em som, em palco. Antes, a gente não tinha isso. E a gente já pensa muito mais além do que só a dança. Pensa em apresentações, em ensinar a cultura, que é preciso realmente estudar, preparar, não é simplesmente chegar ali, dar uma aula e dizer “ah, eu sou professor de breaking”. Não existe isso. A pessoa tem que saber do que está falando. A proposta do nosso grupo é basicamente essa. A gente trabalha com apresentação, com palestras. Divulgamos a cultura hip hop como ela é, de forma correta, não tentando inventar nada. Não é uma cultura nossa, a gente não está inventando, a gente simplesmente tem um acesso com essas pessoas que fizeram essa cultura, a gente consegue ter acesso a eles, conversar com eles sobre o porquê disso, o porquê daquilo, e transmitir isso pra própria comunidade. As conquistas que nós tivemos – eu falo nós porque junto comigo estão todos os meninos hoje que fazem

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parte da Spin Force –, nós conseguimos conquistar vários espaços não só aqui na comunidade, como também fora. A gente tem condições de ir dentro das escolas, essa abertura que a gente tem de ir dar uma palestra, ou de fazer uma apresentação, ou de ir a centros culturais fazer apresentações... A gente, hoje, consegue fazer isso e tem um aval bacana, porque as pessoas já conhecem o nosso trabalho. Entre as conquistas, também conseguimos que o Bruno trabalhasse na escola integrada, o Wesley trabalhasse com população de rua, que é um trabalho muito bacana. A gente também conseguiu aprovar um projeto de Lei de Incentivo à Cultura, que é de dar oficina de breaking com aulas de inglês e aulas de História pra jovens. É uma conquista muito grande pra gente tanto dentro da comunidade, fazer com que jovens aqui de dentro da comunidade sejam vistos com outros olhos, não mais como jovens que tinham tempo ocioso e só ficavam na rua, ou como marginais. Hoje, eles são vistos com outros olhos. Temos 23 membros. Tem o ensaio do grupo aqui e tem que a oficina também. Na oficina, são 25 alunos.

A CULTURA E A PERIFERIA A cultura do hip hop mexe muito com os jovens de periferia, porque fala muito a língua deles. É muito difícil um jovem da periferia fazer um balé contemporâneo, um balé clássico. Ele não vive isso. Se você pegar Beethoven

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pra menino escutar, ele vai falar: “Que música que é essa?”. Agora, se você pega um rap de um cara que é da comunidade vizinha dele, ele vai falar: “Pô, que legal essa música”. E, se a gente falar que é de um cara vizinho dele, ele vai se interessar muito mais. Você pega um breaking, um menino dançando, eles vêem e falam assim: “Olha ali esse menino dançando. Nó, eu quero aprender isso”. Quando você apresenta o grafite, eles ficam maravilhados, porque de um rabisco o cara consegue fazer uma arte, um desenho... Eles ficam loucos. O menino que faz poesia, ele escreve uma poesia, mas ele nem sabe o que está fazendo ali... “Pô, tem um cara que canta rap e ele mexe com poesia, quer ver? Olha lá pra você ver”. Aí, o cara faz poesia depois começa a recitar aquilo em forma de rap. Então, essa cultura está muito mais próxima do que a gente imagina, é muito mais fácil. Quando eu apresentei breaking pra eles, eles ficaram maravilhados. No começo, eles sentiram dificuldade. Mas, ao longo do tempo, eles foram se apropriando e falando: “Eu posso fazer”.

O HIP HOP POR REYONE A dança pra mim, hoje em dia, faz parte da minha vida, porque eu ganho dinheiro com isso, eu vivo disso e tem outra coisa: eu sou apaixonado por essa dança. Desde quando eu vi pela primeira vez, vi e já me apaixonei, foi amor à primeira vista. E já passei muita coisa por causa

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dessa dança, já passei por vários caminhos, tive ganhos com isso e também já tive perdas com isso, porque é uma escolha que você faz. Quando opta por fazer parte dessa cultura, você tem que se dar mesmo a essa cultura, não adianta fazer mais ou menos. Pra qualquer tipo de dança, não adianta você fazer mais ou menos, porque você não vai ser um dançarino, você não vai ser um b-boying. Tudo que eu faço tem a ver com a dança, tem a ver com a cultura hip hop. Até no meu caráter, na minha atitude, tudo isso mudou muito. Essa questão de respeito ao próximo, respeito ao mais velho, eu aprendi através dessa cultura. Não que meu pai e minha mãe não tenham me ensinado, mas ela só veio pra reforçar tudo aquilo que eles já falavam. O hip hop fez com que eu formasse mais ainda meu caráter, e também me deu a oportunidade de transmitir isso pros jovens.

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ROSA GUEDES

Rosa, quando chegou ao Ribeiro, pela precariedade, desacreditou. Mas logo lançou um novo olhar sobre as pessoas que viviam ali e a solidariedade junto com a disposição da comunidade de somar esforços fizeram da luta social, a razão de viver de Rosa.

A REVOLUÇÃO DE ROSA Vivo há mais de 20 anos nessa região. Quando eu cheguei aqui, foi um grande desafio, em todos os sentidos. Chorei muito e levei muitos anos para acostumar. Depois, quando eu comecei a colher os frutos do meu trabalho e comecei a amadurecer e ver que eu não tinha vindo pra cá por acaso, foi Deus que me mandou, é que me veio a aceitação. Hoje, eu não troco isso aqui por nada nesse mundo. Não quero mudar mais, estou investindo na minha casa. Dentro da comunidade, eu atuo com a parte social e política. O social é trazendo qualidade de vida para as pessoas, mostrando que através da educação, do estudo é que elas vão se valorizar, vão se querer bem, vão aprender melhor com as coisas, com a vida. E a política é tudo que nos rodeia, mesmo. É a pessoa saber que ela tem seus direitos e deveres e que ela tem que procurar conhecer

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para poder atuar. Procurar sempre compreender, pra poder viver melhor. Eu resolvi me envolver com a comunidade porque o cenário que eu vi quando cheguei aqui era de muita miséria, muita pobreza, muito abandono do Estado, muita desinformação, muita falta de educação. E, quanto ao Estado em si, Prefeitura, Federação... era total abandono. As pessoas daqui, eu via elas largadas à própria sorte. Tudo era de terra, sem saneamento básico. Tinha lugar que nem água encanada, luz tinha. Asfalto era zero. A linha de ônibus era zero. Não tinha escola, não tinha creche. Era coisa de outro mundo. Eu não tinha vindo de um bairro chique, mas humilde, que era o bairro São Paulo, só que aqui, pra mim, era uma coisa totalmente desconhecida, que não se comparava com as favelas que já existiam há 20 anos atrás. Aqui, era assim... Não dá nem para explicar. Eu fiquei muito chateada quando eu cheguei aqui e eu vi como as pessoas sobreviviam. Elas não viviam, elas sobreviviam. Era difícil demais da conta. O ônibus passava lá no alto, três ruas acima, e tinha dia que não tinha luz. Como é que você acaba de descer pra chegar na sua casa assim, as ruas puro buraco e sem luz? As pessoas que eram chamadas de marginais é que eram nossos amigos, que acolhiam a gente, que buscavam a gente lá em cima, que ajudavam a colocar a chave no buraco da fechadura... Constantemente, era falta de água, falta de energia elétrica. Então, a gente, através da união, da conversa, da busca de conhe-

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cimentos, de políticas públicas, foi buscando, e a coisa foi caminhando. Também existia muita violência. As pessoas eram muito revoltadas e, ao meu ver, com toda razão, porque elas não tinham acesso à educação, à saúde, à cultura. Então, isso provocava uma revolta muito grande. O atendimento do Estado era zero. As diversões eram poucas. A MG-20, que era uma via só, cheia de casinhas, dos ditos “favelados”, foi com luta da comunidade, parando o trânsito, queimando pneu, que a gente conseguiu que ela fosse duplicada. A própria Beira Linha, que era puro esgoto a céu aberto, hoje é asfaltada.

EDUCADORA ATRAVÉS DA LUTA SOCIAL A minha maior dificuldade foi com a violência: o crime e o tráfico. Eu tive que entrar nesses espaços, conquistar a confiança dessas pessoas pra poder andar na Beira Linha, pra poder andar no bairro sem sofrer nenhuma ameaça, nenhuma agressão. Inúmeras vezes que eu precisei de um abaixo assinado, eles que conseguiram pra mim, porque eles acharam que não era legal eu entrar na beira linha, eu entrar no loteamento, então eles corriam atrás. Foi um grande desafio me colocar diante e dentro daqueles núcleos de violência, de pessoas que mexiam com tráfico, que roubavam pessoas, que matavam pessoas. Eu tive que me aliar a essas pessoas pra conquistar a confiança da comunidade na busca do social.

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Eu ainda atuo no social. Eu me formei educadora através da luta social. Eu vejo que o social e a educação têm que caminhar juntos, principalmente para os menos favorecidos, para os mais humildes, para os mais desamparados pelo governo. O social e a educação têm que caminhar juntos e eles têm que borbulhar mesmo, têm que ferver para fazer a pessoa acordar, se armar e correr atrás de uma vida melhor. Pra mim, tem sido uma revelação. Eu converso com muita gente e muita gente me atenta pra isso... “Tá vendo Rosa, quando você veio para o Ribeiro de Abreu, você não veio por um acaso. Foi Deus que tinha esse propósito”. Eu fiquei muito alarmada quando eu vi a feição das pessoas, a miséria das pessoas... Se elas tivessem um pouquinho de informação, um pouquinho de boa vontade, as coisas já estariam fluindo há muito mais tempo. Quando eu vi tudo isso aqui, eu falei: “Misericórdia, não dá pra ser feliz!”, alguém tinha que fazer alguma coisa e, até então, eu não tinha ideia que esse alguém era eu, não. É nos últimos anos que a mídia me procura, que as pessoas me procuram, que as autoridades me reconhecem. Então, pra ser sincera, a minha ficha caiu de uns cinco anos pra cá, porque até então era desespero de causa. Meu marido não concordava, meus parentes não concordavam... “Você não tem nada com isso. Não vai ganhar nada com isso”. Sofri muito preconceito por parte de muitas pessoas. Muitos dos meus amigos, que ainda considero como

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amigos, me abandonaram, porque o bairro era violento. Hoje, eu tenho muitos amigos, que, se eu quiser vê-los, eu tenho que ir a Sabará, Nova Lima, São Gabriel. Eles não vêm aqui. Vieram uma ou duas vezes e foram assaltados, ou houve alguma outra coisa e não quiseram mais vir.

A ESCOLA ABRIU AS PORTAS As diversões eram poucas... Às vezes, acontecia um bazar na creche... um bazar na igreja e uma festa junina... E não era pra divertir só, era pra angariar fundos. Então, era uma coisa muito complicada. Não tinha cultura, não tinha nada. A escola, se alguém quisesse estudar, tinha que ir lá pra BR, pro Bolivar [Escola Estadual Bolivar Tinoco Mineiro] e o Humberto Almeida [Escola Municipal Secretário Humberto Almeida], e só isso. Se quisesse um ônibus, ou se sujeitava a entrar nesse ônibus do Paulo VI lotado, ou ia lá para ponte pegar o de Santa Luzia. Não tínhamos acesso a nada. Hoje em dia, o Ribeiro melhorou muito, cresceu muito e progrediu muito. Hoje, eu agradeço muito a Deus, ao Patrus Ananias e ao Célio de Castro – porque, quando eu cheguei aqui, foi mais ou menos nessa revolução que eles estavam assumindo a prefeitura. Eles tinham um olhar muito amplo para o social. Foi aí que veio o orçamento participativo e, no orçamento participativo, nós nunca perdemos uma obra, nós sempre conquistamos alguma coisa.

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E, daí, veio surgindo escola, academia popular da cidade, a escola Paulo Freire [Escola Municipal Professor Paulo Freire], a escola de samba... muita coisa. Aí abriu a porta para cultura, para o progresso, para o social. Tudo que nós temos hoje, não existia há pouco mais de dez anos atrás. A escola Paulo Freire é um marco, é onde tudo começou acontecer. A criação dela foi através da comunidade. Foi quando a região nordeste conseguiu juntar um número enorme de pessoas pra conquistar a escola. E essa escola, pra mim, eu vejo ela como uma tábua de salvação. Ela que acolheu o Fica Vivo, foi através dela que se criou a escola de samba e as inúmeras oficinas, várias atividades que nós temos... Tudo foi surgindo dali. A escola funciona, no ensino regular, de segunda à sexta, de manhã, à tarde e à noite. Mas, à noite; houve uma conversa entre direção, coordenação, professores e comunidade, e a quadra é oferecida para a comunidade. A cada dia, um segmento usa a quadra e a sala de multiuso, enquanto tem aula nos outros prédios. Aí, cada dia é o esporte, é a música, é o break, é aula de violão, é aula de capoeira, porque a escola é o único espaço público constituído, realmente. Porque nós ainda não temos um BH Cidadania, nós ainda não temos um centro cultural. Estamos lutando pra conquistar, mas ainda não temos. Enquanto não tem, a escola abre porta pra tudo, permite que tudo isso aconteça. Vários segmentos utilizam esse espaço: religioso, político, eleitoral, cultural... A porta sempre está aberta para o que a comunidade quiser utilizar.

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LOUCURAS QUE DERAM RESULTADO Hoje, eu vejo que foram inúmeras conquistas. Se eu paro pra pensar, são poucas as coisas que a gente ainda não conquistou, mas que eu ainda tenho muita expectativa, muita esperança que nós iremos conquistar. E eu fico tão emocionada quando eu vejo mulheres que são da minha idade, aproximam da minha idade, ou já passaram, e estão estudando. Muitas chegam e falam: “Ô Rosa, vai na minha formatura”. Eu vou! Eu tenho prazer em ir. Ou então falam: “Ô Rosa, eu passei no concurso da MGS”, ou “Ô Rosa, minha casa está arrumada”, ou “Ô Rosa, tem uma festa lá em casa, meu marido comprou um carro”. Eram pessoas que, há 15, 18 anos atrás, não se dava nada por elas. Era desesperador. E olha como elas tiveram uma visão bacana, cresceram. A história mais triste que eu lembro aqui do bairro foi a morte de um aluno nosso, que já era rapazinho. Se envolveu com tráfico de drogas, assaltou, foi preso e as professoras o tiraram do centro em que estava internado. Ele voltou para escola e, no dia que ele saiu, eu fiquei sabendo que ele ia morrer. Eu corri na escola, ele estava lá. Eu tentei avisar, só que naquele mesmo dia eles já deram um fim nele. Então, isso é muito triste, porque você vê o menino estudar, crescer, você acompanha a história dele, mas, infelizmente ele volta para o lugar ruim, ele volta para o ciclo. E ali, ele não tem um apoio social, do Conselho Tutelar, das autoridades, e fica à mercê.

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Também tem a história de outro aluno, que na época era um marginal. A gente lutou muito com ele na escola. Quantas vezes a diretora me ligava fora da escola porque ele estava aprontando no bairro, drogado. Hoje, ele é um motoboy, pai de família e, se não me engano, tem três filhos. Certo dia, ele entrou na escola de capacete e todo mundo ficou com medo. Ele entrou, tirou o capacete na sala da diretora e perguntou: “Você não está me reconhecendo, não?!”. Ele contou a vida dele, a história dele. Ficou muito agradecido e falou assim: “Se, inúmeras vezes, você não tivesse me buscado nas bocas de fumo, se você não tivesse chamado a polícia pra mim, eu não estava aqui hoje, não”. Então, é muito bacana você ver que aquelas loucuras que você fez antes para salvar os outros, pra ajudar, deram resultado positivo. E, não é só ele, é muita gente. É muita moça que hoje está na escola integrada de outros bairros e, quando a gente vai fazer aqueles cursos de formação, elas chegam e falam: “Ô Rosa, lembra de mim?”. Aí eu digo: “Ai, desculpa. Não lembro”... O adolescente muda muito... Aí, a menina conta o caso – um caso cabeludo – e eu só lembro por causa do caso. E quando você encontra um aluno que hoje está fazendo faculdade? Nossa! Que felicidade! A qualidade de vida no Ribeiro melhorou demais. Hoje, qualquer casa tem computador, tem antena parabólica. As pessoas... era uma bateção no portão pedindo cestas básicas, pedindo comida, há alguns anos atrás. Hoje,

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na maioria das casas, tem universitário, que tem sua moto. Dá orgulho demais. E eles só têm isso porque entenderam que é através da educação, da honestidade, que eles vão conquistar aquilo e muito mais.

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SÉRGIO SOARES MAGALHÃES E WELLINGTON LEONARDO DE OLIVEIRA Sérgio e Wellington trabalham juntos há mais de uma década por um sonho em comum: ver o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Onça ser a campeã do carnaval belorizontino. Sérgio é fundador do grupo de percussão Meninos do Tcha Tcha e vice-presidente da escola de samba do Ribeiro. Wellington é o diretor da Unidos do Onça. Ambos trabalham incansavelmente e contam com o apoio de suas famílias e dos moradores do bairro na construção desse enredo que tem a cara da comunidade.

EVOLUÇÃO Sérgio Eu morava na Concórdia antes, a minha identidade era na Concórdia. Hoje, eu me identifico com o Ribeiro de Abreu em tudo, é... com a escola de samba, com a comunidade carente, com tudo. Eu me identifico com o Ribeiro mais que tudo. Hoje, se fosse pra eu sair do Ribeiro, eu não sairia. Hoje eu me identifico totalmente com a comunidade do Ribeiro de Abreu. A comunidade é muito carente. É muito difícil pra gente fazer um trabalho em cima da cultura, principalmente com relação a escola de samba, dança, percussão, canto, violão... tudo que gira em torno da arte e da cultura. Até

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mesmo no esporte é complicado, devido às áreas de risco que há aqui. Paulo VI, Beira Linha, Conjunto Paulo VI, Novo Aarão Reis, são regiões com a margem de criminalidade muito alta, pois não tem cultura, lazer, não tem quase nada. Eu comecei na cultura, graças ao presidente aqui, o Wellington, porque eu sempre desfilei em escola de samba, sempre gostei de tocar alguns ritmos. O Wellington me chamou pra escola de samba e eu, na cultura, eu atuo como percussionista. Então, eu passo para os meninos um pouco do meu conhecimento de percussão. Aqui tem a escola de samba, que é o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Onça, que é a Escola do bairro. Só que o Tcha Tcha é um ritmo que eles mesmos [adolescentes e jovens] bolaram, eles mesmos fizeram. Então, esse é o nome atual do grupo de percussão: “Tcha Tcha”. A proposta da percussão é tirar os meninos da criminalidade, ocupar o tempo dos meninos. Tem os meninos que saíram das drogas, mas também tem os meninos que morreram e já passaram pela percussão. Então, a proposta da percussão é sempre trazer mais jovens, que hoje eles morrem muito cedo, aos 14, 15, 16, até os 24 anos. A gente perde muitos jovens. Então, a proposta é ocupar o tempo dos jovens, da nossa juventude, que hoje está morrendo muito precocemente. No começo foi muito difícil, existiam vários grupos de percussão. Uma percussão no Paulo VI, uma percussão na Beira Linha e muitos jovens eram discriminados porque

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o pessoal fazia grupos com os melhores. Os mais fracos ficavam sempre sem tocar ou tocavam só um pouquinho. Então, qual foi a proposta? Trazer esses jovens que eram discriminados por essas percussões e montar um grupo que eles pudessem administrar. Nessa relação com os meninos, tem cinco anos que eu tô com a minha percussão. Em Belo Horizonte, quando eu entrei, tinha mais ou menos umas 60 percussões. Hoje existe a minha, que é aqui do Ribeiro de Abreu, uma do Felicidade, Cabana e Granja de Freitas, que são quatro percussões que persistem ainda, que resistem. As outras todas acabaram, não existem mais percussões em Belo Horizonte. Ou seja, percussão que toca o ano inteiro são essas quatro que eu te falei. Escola de samba é uma bateria que a gente monta no final do ano, pra desfilar no carnaval de Belo Horizonte. As dificuldades são inúmeras, porque a gente recebe uma verba de 864 reais pra administrar lanche, pra administrar saída, levar menino pra clube, conserto de instrumentos. A gente conta com a colaboração do Wellington, que está sendo quase o novo presidente da escola de samba, do Ronaldo, da Região Nordeste [administração regional nordeste – PBH], da ex-diretora da escola, a Oneida. Inclusive, é preciso dizer que a atual diretoria da Escola Municipal Paulo Freire está se abrindo, mas a antiga, que ficou aí por quase seis anos, fechou as portas pra percussão. Daí, a gente perdeu o espaço na escola. Não tem mais espaço.

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O comércio aqui também não apóia. Você pode pedir ajuda de custo, mas você não consegue. A gente não tem apoio nenhum, quase nenhum. Se não fosse essa disponibilidade que a gente tem, essa garra que a gente tem (o Wellington, o Ronaldo, os meninos que estão há cinco anos e resistem na percussão até hoje), já tinha acabado. Mas, pela vontade de estar sempre aqui, toda segunda e toda quarta, a gente vem, a gente não falta. A gente está aí, a gente corre muito atrás pra essa percussão viver. As conquistas foram muitas, mas a maior de todas é a amizade dos meninos. Amizade e confiança.

SAMBA-ENREDO Wellington Amizade e confiança também foram primordiais. Se a gente falar, pedir com respeito, existe um respeito do outro lado... Acho que isso é um troféu, mesmo. A gente está junto há muito tempo, eu e o Ronaldo estamos sempre juntos, sempre correndo juntos. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Onça nasceu de uma proposta de fazer um protesto do Ribeirão do Onça, pela questão política, social, ambiental e por aí vai... Por todas as áreas. Mas, realmente, a proposta foi feita pra ser um protesto, pra mostrar para as autoridades, pro pessoal, das dificuldades daqui da região. Tanto que a própria escola, todo o projeto em si de alegoria, de carro, era de material reciclável.

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Sérgio E a proposta também veio de dentro da Escola Municipal Professor Paulo Freire, com a diretora Maria Oneida, que abraçou a ideia. O Meá fundou a escola de samba mas, depois, ele não deu conta e passou para a Escola Professor Paulo Freire e a diretora abraçou essa causa. Essa escola de samba, num primeiro momento, vinha de alunos. A maioria das alas tinha alunos. Mas os moradores mais próximos também abraçaram a escola. O Wellington, que sempre foi um carnavalesco puxador, um intérprete, soma forças comigo e a gente segue buscando e contando com pessoas da comunidade. A gente nunca pagou pra por nosso carnaval sair na avenida. Depois do que a gente passou... Wellington Os objetivos mudam, como em qualquer escola, não é? Mesmo que tenha a questão de protesto, eu acho que tem que brigar pra ganhar, pra ser campeã, então realmente tem que estruturar. Foi onde a gente começou... Contrata um, não dá certo, contrata outro, não dá certo. A gente mesmo faz e também não dá certo. Então, a gente realmente é um pouco inexperiente, mas... Sérgio A escola surgiu em 2001/2002. 2002 foi o primeiro ano em que ela desfilou. E, já no primeiro ano, ela ficou em terceiro lugar no carnaval. Tem até uma foto lá em casa num quadro. Aí, ela desceu outras nove vezes. Por nove

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vezes, a gente conseguiu colocar o carnaval na avenida. Ficamos em terceiro mais uma vez, depois que nos tornamos um pouco maiores – mas a gente não pode falar grande, porque a gente está engatinhando ainda. Concorrer com escola de samba igual Bem-Te-Vi, Cidade Jardim, que tem 60 anos de cultura no carnaval, pra nós é como se a gente tivesse sido campeã quando alcançou o terceiro lugar. Wellington Pela atualidade, a Escola foi até aprimorada, porque já não olha mais só a questão de protesto. Virou uma área de desenvolvimento, porque a gente pagava costureira, pagava algumas pessoas pra ajudar com as fantasias, os carros alegóricos. Então, ela gerou desenvolvimento. Outra coisa boa é a amizade que a gente cria... A gente sabe o que é a deficiência; então, se você vê uma pessoa, você ajuda. A escola em si ajudou bastante a comunidade. O desenvolvimento é pequeno, mas tem que ser citado.

COMISSÃO DE FRENTE Sérgio Devido à falta de cultura da nossa comunidade, à falta de cultura em geral, o pessoal não abraça a escola de samba. E a Escola não é minha, não é do Wellington, não é do Ronaldo, não é da Oneida, é deles. Eles não entendem que esse instrumento é uma forma deles aparecerem em Minas Gerais toda, porque uma escola de samba é um ins-

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trumento, é uma ferramenta que a Prefeitura e o Governo nos dão pra gente aparecer. A comunidade não abraça essa causa. A gente fica igual louco correndo atrás de pessoas pra desfilar. Nós descemos pro segundo grupo por causa de dez pessoas, era pra gente estar no primeiro. A gente precisa de mais pessoas pra formar uma diretoria forte, porque essa é a dificuldade no carnaval: a gente não tem perna. O Wellington põe o carro dele, eu coloco o meu, o Ronaldo põe o dele, é a pé, de ônibus, carrega isopor nas costas, pano pra costureira... A gente precisa de mais gente, senão essa nossa escola de samba, infelizmente, vai acabar porque vai faltar perna. Pra escola de samba continuar, é preciso que ela fique sólida, que ela seja um produto da comunidade. Ela não pode ser considerada um produto meu, do Wellington ou de outras pessoas. É um produto da comunidade. Passou o carnaval, esse produto tem que continuar trabalhando pra se firmar; senão, ela não firma. Você vê que, noutras comunidades, as escolas de samba firmam, porque as pessoas participam e bancam, dando condições pras coisas acontecerem.

FANTASIAS Wellington A conquista maior é uma coisa mágica. É a hora do desfile. É uma empolgação, você vê os olhos brilhando, é

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gente que não participou em nada, mas na hora quer entrar, quer vibrar. Ah, não! Não tem coisa melhor que isso, não. Sérgio A gente vê esses meninos ensaiando aqui, buscando melhorar... A gente sabe tocar – eu sei tocar, o Wellington sabe tocar... – e, às vezes, nos ensaios da bateria, a gente fala que não está bom, porque não está do jeito certo... Mas, quando chega a hora, a gente “arrebenta”, os meninos “se viram”. Alguns deles ficam chateados porque não ficou do melhor jeito, mas a gente vai trabalhando essas coisas com eles. Wellington A gente tem uma responsabilidade nisso, porque há cultura em tudo o que fazemos. Se você pensar bem, desde o tema que a gente pega, o desenvolvimento de um enredo, o porquê daquela fantasia daquele jeito, representa o quê? Tudo cultura. Sérgio E essa escola é o sonho da gente, meu, do Wellington... Um sonho que eu falo assim: “É um sonho que a gente sonha mesmo parado, é de ver essa escola ser a primeiro, ser campeã, trazer essa conquista pro Ribeiro”. Eu chego a arrepiar, porque eu tenho o sonho de trazer um título de futebol pro Ribeiro, tenho o sonho de trazer uma Copa Itatiaia pro Ribeiro, tenho o sonho de trazer um desfile pro Ribeiro. É um sonho de trazer essas cosas: eu moro aqui, eu quero trazer pra cá. Eu posso participar de outras comunidades, da Concórdia, mas a minha bandeira é aqui.

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SHEILA CASTRO QUEIROZ

Sheila teve a honra de conhecer o Ribeiro ainda criança: tinha apenas sete anos quando se mudou para lá. Remexendo suas memórias, é difícil saber se foi Sheila que cresceu com o bairro, ou se foi o bairro que cresceu com ela. A história da menina que brincou na terrinha e viu o asfalto chegar quando se tornava mãe ensina que, em espaços construídos muito mais pelos laços da comunidade que por concreto armado, o que você é pertence ao lugar, tanto quanto o lugar pertence ao que você é. Assim é Sheila, capoeirista, dançarina, videoartista, comunicadora, educadora. Moradora do Ribeiro de Abreu.

INFÂNCIA NO RIBEIRO Quando eu cheguei aqui no bairro, ainda muito pequeninha, havia muito mato. Eu me lembro de muito mato. E aconteceram coisas que marcaram a minha vida. Não tinha água no bairro e minha mãe lavava roupa num córrego ali, na mata. Lá, havia um túnel antigo e, às vezes, a gente passava dentro do túnel. Eu morria de medo, porque tinha aranha. Tinha que subir o morro pra lavar roupa e passávamos a tarde lá naquela mata, lavando roupa... E a gente nadava num pocinho; nadava e voltava pra casa.

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A minha casa era de piso de chão mesmo, era uma casa simples, quase igual aquela música infantil, “... não tinha teto, não tinha nada”. Ela me lembra das dificuldades do bairro. Não tinha luz, não tinha água... Minha mãe passou por isso tudo, e a gente também. Por outro lado, adorávamos brincar na rua! As brincadeiras eram muito diferentes das de hoje... São coisas de que sinto falta... Era polícia e ladrão, era finca, a gente brincava de cozinhadinha. Às vezes, eu roubava pintinhos das galinhas da mãe, pra fazer de verdade, e apanhei muito por isso. Mas era uma infância doce, porque era como se estivéssemos na roça. O Ribeiro era uma roça. Eu me lembro que a gente via um monte de trilho no bairro, e eu perguntava: “Pai, por que não passa o trem? Que horas passa o trem?”. Eu nunca ouvi o trem. Tinha uma pedreira na comunidade que, às cinco horas da tarde, sempre explodia. Era à tardinha. Eu lembro que o dia estava acabando e eu falava: “Ai mãe! Vai cair aqui”. A gente escondia debaixo da cama. O Ribeiro é forte na minha história porque passei toda a minha infância aqui e eu fui vendo o bairro crescer. A minha história emenda com as histórias de outras pessoas daqui. A infância foi tranquila. Eu estudei no Bolivar [Escola Estadual Bolivar Tinoco Mineiro]. Também estudei no coleginho [Escola Municipal Secretario Humberto Almeida], quando ele ainda era improvisado. Eu inaugurei essa escola.

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Eu me lembro de uma sala que era a que eu mais sonhei em entrar: a biblioteca. Eu estava na segunda série e sempre amei ler. Mas, na segunda série, eles só deixavam a gente entrar com professor e pegar livro fininho. A escola cheirava a novinho, a gente cantava o hino nacional no pátio, tinha uma sainha azul, com blusinha branca e escudo da escola. Cantávamos o hino nacional todo dia, rezávamos Ave-maria, Pai-nosso e íamos em filinha pra sala. Podia ir à biblioteca uma vez por semana com a professora... e eu era doida pra pegar um livrinho mais grosso. Mas a gente só pegava livrinho infantil. Aí, eu falava: “Ah, deixa eu pegar aquele livro” e ela: “Não, não pode”. Eu pegava outros, chateada, e ia embora pra casa pra ler. Me lembro que, quando cheguei na quarta série, tinha um livro que rodava a escola inteira, foi a tentação da terceira série. Era “Memórias de um cabo de vassoura”. Eu fiquei a terceira série inteira tentando pegar o livro, mas não podia pegar porque era grosso. Quando chegou a quarta série, no primeiro dia de aula, eu fui à biblioteca e falei: “Eu vim buscar o livro”. Foi o primeiro grossinho que eu tenho lembrança de ter lido. Comprei ele há pouco tempo atrás. Achei pra comprar e ele está guardado lá em casa. O Humberto Almeida é onde eu trabalho hoje, sou educadora da Escola Aberta. Quando eu cheguei lá, a escola era feita de madeirite e, dentro do madeirite (isso foi até uma experiência da prefeitura), havia placas de isopor. Por isso, a gente chamava a escola de “isopolândia”, colegi-

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nho, outros nomes. Eu estudei lá naquela época. Quando eles foram construir a escola pra valer, derrubaram essa de isopor e construíram um prédio novo. Eu inaugurei o prédio... Então, eu inaugurei duas escolas e foi lá que eu vivi a minha adolescência toda.

O BARULHINHO DO BERIMBAU Já na adolescência é quando a minha vida cruza com a do Pitbull, cruza com a da Rafaela, cruza com a de um monte de gente. Eu sempre gostei de dançar e tinha uns sonzinhos na rua: eram os bailes de rua. Era diferente, tinha disputa de passinhos, a gente passava a tarde ensaiando os passinhos. Havia umas coisas de que eu gostava muito... Dançar... Até hoje eu gosto muito e sempre faço isso na minha casa: ligo o som e dou festa só pra mim... Era dançar, ler, jogar capoeira... desde menininha. Eu ouvia o barulhinho do berimbau lá em cima com o mestre Demar, mestre antigo. Ele me levou ao meu primeiro contato com o Pitbull. Eu ouvia o som do berimbau, subia correndo e... “Mãe, deixa eu ir lá?”. Mas a minha mãe não me deixava jogar capoeira. Eu era muito menina. Eu esperei os anos passarem, treinei com ele, treinei com outras pessoas, treinei com o Pitbull... Mas nós dois éramos cordas brancas, nós estávamos começando ali. Eu vim encontrar o Pitbull anos depois... Após “rodar meio mundo” da capoeira, eu vim encontrá-lo. Hoje, eu sou amiga dele.

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PAIXÃO PRA VIDA INTEIRA Na minha adolescência era muito bacana, tinha roda de capoeira dentro da comunidade. Vira e mexe, tinha sonzinho na rua, e eu sempre gostei de ver essas coisas. E foi quando eu conheci o TV Sala de Espera [projeto de extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, realizado na região nordeste de BH nos anos 90, que envolvia a produção de programas de TV comunitária, veiculados nos centros de saúde], que descobri uma outra paixão, que hoje é a minha profissão: o vídeo. Quando eu fui lá, eu não sabia direito o que era o TV Sala de Espera. Fui só porque vi que era sobre televisão, que eu já gostava, e aquilo nunca saiu da minha memória. Me envolvi muito, participei da criação de vários vídeos e, dali em diante, sempre estive, de alguma forma, envolvida com o audiovisual e a comunicação.

VI O RIBEIRO CRESCER Enfim, a minha história na adolescência foi muito bacana, pela riqueza cultural com a qual eu tive a oportunidade de conviver, mesmo com as dificuldades do bairro... Porque o pessoal fala de violência, fala de tiro... Teve, mas eu não tive isso na minha vida. Eu vi um ou outro assim, que eu conhecia, envolvido nessas situações. Acho que foi porque, na minha geração, os meninos eram diferentes. Da minha geração, eu não vi muitos jovens

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morrerem, isso foi da geração que veio depois de mim. A geração que veio depois de mim é que entrou no tráfico, que se envolveu com essas coisas, mas a minha geração, que cresceu dentro da comunidade, que viu a comunidade crescer, teve outros percursos... E eu vi mesmo o Ribeiro de Abreu crescer, ter ônibus, ter escola, a água chegar na minha casa... A gente fez uma festa quando a água chegou, a luz... Tem pouquíssimo tempo que eles asfaltaram minha rua... Eu já tinha filho quando eles foram asfaltar a minha rua. Meu pai faleceu sem ver o asfalto na rua da minha casa. Meu filho ainda viu minha rua de mata, gente brincando... Meu filho brincava de terrinha na rua. Meu filho ainda viveu um pouco disso, porque as coisas no bairro são meio lentas, assim. Hoje em dia, os jovens têm um monte de oficinas culturais, na minha época não existia oficina, não existia nada disso. A gente pagava pra fazer capoeira e era difícil, só um ou outro aqui no bairro é que dava. Eram só dois mestres aqui no bairro. Dança no bairro, a gente montava por conta própria, mesmo. Não tinha nada disso. Hoje, o jovem tem oficina de um monte de coisa dentro da comunidade, é uma riqueza cultural gigante.

LEMBRANÇAS DA MODERNIDADE As minhas memórias com o Ribeiro são bem assim... Uma coisa de que eu lembro quando eu era pequena é que

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tinha só um telefone no bairro. Era rico quem tinha telefone em casa, era muita grana pra ter um telefone. E tinha um telefone na Capricórnio que era quase comunitário, as pessoas mandavam recado e a Dona Maria entregava recado pro bairro inteiro. Naquela época, você sabia de todo mundo, dava notícia de todo mundo ali... “Oh! Fulano brigou com cicrano”, “Oh! Ligaram pra você lá em cima”. Esses dias eu lembrei da primeira vez que eu vi internet na minha vida, isso há muitos anos. Eu ouvia falar de uma tal de internet... Eu fui conhecer a internet um dia que fui na casa da Rafaela. E eu ainda esnobava para as minhas amigas: “Nossa! Que chique! Fui na casa de uma amiga minha e vi um negócio lá que chama internet”. Eu vejo nossa evolução a partir dessa questão do telefone, das telecomunicações. Naquela época, era chique quem tinha telefone! Então, quando minha mãe conseguiu um telefone pra casa dela, eu me senti muito chique, muito bem... Eu jamais imaginava, quando criança, que a gente ia ter um celular, que anda no seu bolso. As coisas foram evoluindo, o bairro evoluiu. Televisão... Gente! Na minha casa tinha uma televisão preto e branca gigante, um tubo gigante, e a gente ficava mudando. O mais engraçado foi a Copa de 1994. Nós compramos nossa primeira televisão colorida, que era uma CCE. Meu pai chamou todos os vizinhos pra mostrar a nova televisão colorida e falava: “Vocês vão ver o final da copa lá em casa”. Nós compramos a televisão um dia antes

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da final da Copa, era o último jogo, que o Brasil ia ganhar. Então, estavam na minha casa o dono da farmácia, o Maurício, mais outros vizinhos, todo mundo pra ver “a cores”. Meu pai ligou a televisão e assistimos o jogo de futebol, tranquilamente. Só que, faltando uns 30 segundos pro anúncio “Vocês ganharam”, a televisão desligou. Meu pai saiu igual louco gritando pela casa, “Liga o rádio! Liga o rádio!”. O Brasil ganhou a copa e a gente não conseguiu ver. Eu lembro de muita coisa do bairro, eu lembro do mato pra modernidade, eu lembro da minha infância pra adolescência, de um monte de pessoas foram importantes pra minha vida. Depois de eu ter formado, eu saí da comunidade e voltei pra ela... Porque eu trabalhava no shopping, na projeção de filmes no cinema... E, depois, em 2009, voltei pra escola em que estudei e, até hoje, trabalho lá. Trabalho com as pessoas da minha comunidade, isso é super interessante. Eu saí dela e voltei pra ela.

EDUCOMUNICAÇÃO Na EMSHA [Escola Municipal Secretário Humberto Almeida], trabalho no Escola Aberta [programa da prefeitura que oferece atividades educativas em escolas públicas municipais, no contraturno do ensino regular], atuando como educomunicadora. Proponho aos meus alunos que descubram os processos de criação em comunicação de uma forma lúdica e prática: eles vão realizando coisas,

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acessando informações e refletindo sobre elas. É assim que se apropriam das tecnologias e se tornam críticos. Fazemos de tudo: vídeo, rádio, jornal, blog... E a minha proposta é trabalharmos com questões atuais da comunidade, bem como com a história da nossa região. O trabalho com a comunicação possibilita que os adolescentes descubram outras possibilidades de olhar a própria comunidade. Quero que eles intervenham em sua realidade e expressem seu olhar dentro da comunidade e para fora dela. E eu tento criar aulas práticas, que não girem em torno de um papel cheio de receitas prontas. Por exemplo: certa vez, para falar com meus alunos sobre a importância e a riqueza da sonoplastia num vídeo ou filme, vendei os olhos deles e andamos pela escola. Pedi que eles prestassem muita atenção aos sons que iam ouvindo ao longo percurso. Com isso, eles foram percebendo que os sons são fundamentais para a caracterização de um ambiente ou situação. Tenho muito prazer e envolvimento com esse trabalho, e sei que os meus alunos também têm. E a nossa dedicação vem sendo reconhecida. Vídeos nossos já venceram festivais de âmbito nacional. Em 2012, um vídeo ficcional que realizamos, “O Segredo das Tranças” [https:// youtu.be/OBzkANfnap0], ganhou um festival importante. A premiação foi em São Paulo. E foi um marco pra nós. Imagine eu e cinco alunos indo para São Paulo de avião.

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Os alunos nunca haviam andado de avião ou se hospedado em um hotel. Também saiu um nota no jornal Estado de Minas... Esse evento marcou a vida deles e a minha. Os prêmios nos animam e alegram, mas o essencial é o dia a dia de prazer e descobertas que a gente vive com esse trabalho.

HISTÓRIA DE LUTA O Ribeiro hoje, pra mim, que sou moradora antiga, realmente é quase como o centro da cidade, você tem tudo. É quase um centro da cidade. Tudo na minha casa foi construído com areia carregada na cabeça, eu me lembro da gente puxando o carrinho pra poder levar a areia, pra poder levar o tijolo, porque não tinha asfalto. Meu pai construiu os blocos de onde hoje é minha casa – ele mesmo, com as próprias mãos. Eu vejo que toda essa luta dele faz parte da minha história, porque eu lutei junto com ele. Faz parte da história de um monte de gente do bairro.

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SÔNIA DOS SANTOS FRANÇA

Sônia é professora e coordenadora do projeto Escola Integrada. Ela escolheu a sala de aula como meio de ajudar no desenvolvimento do Conjunto Ribeiro de Abreu e de toda a região. Envolvida em inúmeras ações voltadas à promoção da cultura e da cidadania, ela e acredita que escola e comunidade podem se construir mutuamente, em prol de uma realidade melhor.

DE NANUQUE AO RIBEIRO Eu sou professora de História na Escola Municipal Secretário Humberto Almeida e, atualmente, sou coordenadora do projeto Escola Integrada. Os meninos do contra-turno da manhã ficam à tarde, e os da tarde ficam de manhã. Coordeno 12 monitores e é com o trabalho deles que a gente tem as oficinas. Juntos, a gente planeja e organiza a escola para que ela efetivamente atenda as demandas de desenvolvimento dos meninos. Eu sou de uma cidade do interior chamada Nanuque. Em 1976, vim para Belo Horizonte morar no Novo Aarão Reis. Em 1987, a gente conseguiu financiar um apartamento aqui no Conjunto Ribeiro de Abreu. Eu morei de 1987 até 1999 no Conjunto. Nos anos 90, passei no concurso público e vim trabalhar na escola.

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ESCOLHI TRABALHAR NA MINHA COMUNIDADE Em 1976, a região do Cachoeirinha para cá era muito mato, não existia ainda o Conjunto Ribeiro de Abreu. Era tudo fazenda e o Ribeiro de Abreu era a referência para gente... O Ribeiro antigo, lá da primeira ponte... Então, a gente andava tudo aqui, quando eu comecei a trabalhar no centro de saúde do Tupi, na década de 80. Aconteciam muitas enchentes e a gente sempre vinha do posto de saúde para a Escola Bolivar Tinoco, para atender as pessoas que moravam na beira do córrego que enchia. Com isso, eu já tinha um trânsito muito grande aqui na região do Ribeiro de Abreu. O Conjunto mesmo, eu só tive contato a partir de quando fui morar lá. Não existia nada ainda do lado das casinhas, só mesmo próximo do Ribeiro e do Monte Azul. Meus irmãos estudaram aqui na escola que existia, que tinha oito salas. Eles chamavam de “Coleginho Isoporlandia”, porque era muito pequenininha e de placas de isopor. Então, quando eu passei no concurso de 1990, eu já morava no Conjunto e me propus a trabalhar na mesma comunidade em que eu morava. Justamente como eu fiz quando morava no Tupi e trabalhava no centro de saúde de lá. As conquistas de melhorias que nós tivemos naquele bairro foram com o centro de saúde e associação de moradores. Então... Quando eu passei no concurso, fui à secretaria de educação e havia muitas vagas, para várias escolas, só que escolhi aqui porque morava aqui. Eu queria trabalhar

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pra minha comunidade, por isso escolhi essa escola.

DIÁLOGO COM OS ALUNOS E A COMUNIDADE Na época que o Guilherme era diretor, ele construiu um projeto chamado “Buscando o Caminho”. Nós também tivemos acesso a outro projeto, de âmbito municipal, que foi a Escola Plural. Muitas coisas da Escola Plural foram possíveis em função dos projetos que já existiam aqui na EMSHA. A nossa instituição já tinha muitos projetos nos parâmetros da Escola Plural. Estavam presentes, por exemplo, a questão de identificação com a comunidade e a proposta de trabalho com a comunidade – eram princípios não só teóricos, mas práticos também. O Guilherme trouxe pra cá uma teoria baseada nos trabalhos de Paulo Freire... Aí, a gente começou a desenvolver ações área por área, além dos projetos interdisciplinares, que levaram os meninos a conhecer a comunidade, a trabalhar a reciclagem, a trabalhar a questão ambiental... Lá no início da década de 90, isso era uma novidade. A gente inseriu isso na vida dos alunos daqui da comunidade. A gente, na verdade, trazia o conhecimento dos meninos e, a partir dele, fazíamos todo o nosso trabalho dentro das áreas. Uma coisa fundamental era trazer a comunidade para dentro da escola, de forma efetiva. E de que jeito eu posso fazer isso? Abrindo mesmo as portas pra essa comunidade estudar. A suplência, por exemplo, é extremamen-

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te positiva. Hoje chama “Educação dea Jovens e Adultos – EJA”, mas antigamente a gente chamava suplência. A prioridade era para pais de alunos, depois para jovens trabalhadores. E deu tão certo! Coincidiu de termos jovens trabalhadores e pais de alunos, ao mesmo tempo, como também havia avós, pessoas mais velhas que tinham parado de estudar. Eu escolhi trabalhar aqui na escola porque acho que é uma questão de respeito pelas pessoas. Eu moro na comunidade, conheço a comunidade... Se quero fazer algo por ela, eu tenho que estar junto com ela. Se for pra lutar por melhores condições, eu vou lutar também. Eu penso que, pra você conseguir qualquer coisa, tem que trabalhar junto, primeiro conscientizando as pessoas do direito delas, fazendo-as entenderem que são seres de direitos. E um ser de direito que junta com o coletivo... ele pode muito mais! É isso: cada um precisa se conscientizar, ter respeito pelo outro e lutar pelos seus direitos. Não adianta ir trabalhar na zona sul, fazer algo pela zona sul, se a minha comunidade é que precisa que eu faça algo por ela. Eu penso assim: é uma questão de pertencimento. Se eu pertenço a esse lugar aqui, eu quero ficar aqui. E, se aqui não está bom, eu luto para melhorar isso.

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TOMÁS

Um dia, voltando de Santa Luzia, há mais de 40 anos atrás, um pequeno paraíso bem perto do centro da cidade grande atraiu Tomás, que logo fixou morada ali. Era o Ribeiro de Abreu, que nascia em meio a quatro cursos d’água. Aliás, esse foi o fato que mais chamou a atenção de Tomás. Desde então, sua relação com o Ribeiro é atravessada pelo cuidado que tem com os rios de lá.

EU ME APAIXONEI POR ISSO AQUI Ontem, quando eu vinha do Conjunto, na hora em que atravessamos a ponte (a primeira ponte aqui), o ribeirão estava cheio.... Aí, eu falei com o rapaz que estava comigo: “Eu passei o maior aperto nesse redemoinho aqui... por conta de uma assistência a uma mãe. A primeira filha dela morreu, afogou. A outra foi tentar salvar... afogaram elas três. Então, eu entrei no Isidoro. Desci, passei bastante aperto na cachoeirinha, o rio tava cheio... Conheço as manhas de rio, mas quando chegou ali, realmente, ele era muito forte... Foi por instinto, eu resolvi entrar na água pra ajudar. Eu me apaixonei por isso aqui em 1969. Eu tinha ido a Santa Luzia e, quando voltei, vi os carros parados naquela queda de água ali. Aí, a água me chamou a atenção... E me chamou a atenção as mulheres tomando banho

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lá também. Não acreditei que tão perto do centro de Belo Horizonte tivesse um lugar assim. Resolvi fazer um levantamento do curso da água e, pra minha surpresa, eles estavam construindo casas aqui. Aí, eu falei: “É nessa mata que eu vou ficar, aqui na beirada do córrego”. Eu trouxe uma equipe, uns dois lá dos bombeiros, pra gente fazer o levantamento. Subimos córrego acima, medindo com corda de trinta metros pra ver o percurso, pra ir até lá na nascente. Foi muito difícil. No primeiro momento, não conseguimos chegar à nascente, porque lá o mato é mais fechado, tem brejo, aquela coisa toda... E nós respeitamos, se a nascente está protegida, você não tem que pisotear, roçar, essas coisas, pra poder ter acesso.

PATRULHEIROS MIRINS Eu comprei a casa aqui e achei por bem cuidar do espaço, apesar de não conhecer o proprietário. Fiquei tão empolgado, na época, que eu queria trazer um grupo de escoteiros pra cá, mas comecei a encontrar dificuldades pra poder transferir ou criar um grupo de escoteiros. Um rapaz já estava iniciando um trabalho com os patrulheiros mirins, um trabalho semelhante ao dos escoteiros, mas sem aquele pagamento mensal... Aí, criei a unidade dos patrulheiros mirins para crianças de sete até treze anos, e criei uma nova graduação também, porque havia

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necessidade da turma na proporção que fosse graduando na carreira dos patrulheiros... E essa parte com o meio ambiente ficou muito forte.

SUCURI 1, 2 E 3 Por volta de 1981, apareceu um moço apavorado e falou comigo: “Seu Tomás, o senhor não vai com esses meninos pra esse mato, não, porque eu vi uma sucuri!”. Ele estava indo buscar lenha e se deparou com uma sucuri. Aí, a sucuri serviu de inspiração. Então, criamos as trilhas Sucuri 1, 2 e 3. A Sucuri 1, com um mínimo esforço para crianças e pessoas idosas, a Sucuri 2, média... e a Sucuri 3. Foi essa Sucuri 3 que eu consegui na nascente... Foi numa época de seca e o próprio gado tinha pisoteado, eu fiquei conhecendo a nascente e me encantei. Fiquei com aquele egoísmo de não levar mais ninguém, por causa daquele poção bonito, as piabinhas... Eu tô falando aqui do Santinho. É bom saber como aqui é rico em cursos d’água. O Santinho é afluente do Onça e o Pocinho Azul é afluente do Isidoro. Na verdade, nós estamos aqui entre quatro cursos d’água: o Santinho, o Isidoro, o Onça e o Pocinho Azul. O Pocinho Azul, se você olhar no mapa, não está Córrego Pocinho Azul, está Córrego da Rua Efigênio Bartolomeu. O acesso ao Pocinho Azul é mais fácil, você passa perto da escola, lá em cima. Lá, não tivemos o mesmo privilégio do córrego daqui, porque o Santinho, você vê

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que ele é completamente livre, não tem ocupação. As únicas ocupações que tinham na beirada do córrego, nós negociamos na época em que foi feita essa rua aqui. Os moradores que estavam na margem foram retirados e conseguimos tirar a rede de esgoto. Já o Pocinho Azul tem ocupação bem na margem, de uma certa parte pra baixo. Mas ele é interessante também. Algumas pessoas usam a água dele até hoje e a água desce com a força da gravidade. Agora, você vê a riqueza... a altura em que essa água daqui nasce! Se fosse o caso de querer sustentar a comunidade com a água daqui teria como, por causa da altura em que ela nasce. Foram vinte anos trabalhando com os meninos, fazendo limpeza no córrego. Depois, fizemos um convênio com a prefeitura, de limpar o córrego de seis em seis meses. A preservação é uma coisa realmente complexa. Nosso relacionamento aqui com esse espaço é muito forte. Por ser um local aberto ao público, entra quem quer, principalmente pra vir tomar banho. Se você passar lá no poço, atualmente, você vai ver uns galhos jogados lá dentro do poço, e, com certeza, é galho com espinhos, para os meninos não nadarem lá. A Dona Norminha é moradora da última casa aqui. Teve um dia em que eu até brinquei com ela: “Ô Dona Norminha, olha o brilho nos olhos desses meninos, a satisfação que essas crianças ficam de ter um espaço”. É por isso que o poder público podia acompanhar a gente mais de perto. Eu fiquei vinte

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anos com a unidade dos patrulheiros mirins, nunca a prefeitura chegou nem pra me elogiar, nem pra me chamar a atenção. Só o pessoal do conselho tutelar, na época de eleição, aparecia pra pedir voto. Mas, independentemente disso, foi um trabalho gratificante. 95% dos patrulheiros mirins corresponderam às expectativas... 95%! Eu dou muitas graças a Deus, porque é muito difícil você pegar crianças que vivem em situação abaixo do nível da miséria e conseguir trabalhar... Constantemente, eu tô recebendo convite de patrulheiro formando em advocacia, curso superior... Tem um agora que passou num concurso de delegado. Então, foi realmente gratificante esse trabalho.

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WANDA OLIVEIRA

No Quilombo Mangueiras, espaço que já contava com muita vida e cultura quando o Ribeiro dava seus primeiros passos, Wanda é a matriarca. Também é benzedeira, parteira, estudante e amante de poesia. Suas reminiscências mostram que o poder do lugar está, sobretudo, nas histórias das pessoas que o constroem.

O QUILOMBO Tenho mais de 70 anos e sou do signo de Leão. Há mais de 50 anos atrás, cheguei aqui no Quilombo Mangueiras, que está situado no bairro Ribeiro de Abreu. Eu sou a matriarca do quilombo. Matriarca é porque eu sou a mais velha de todos e tudo que eu falo é como se fosse uma lei. Todos obedecem. Eu benzo cobreiro e mal olhado. Quando o neném tá com a perna maior que a outra, ele fica trupicando e caindo, ninguém sabe por quê... É mal olhado. Tem que benzer! Pra aguamento, é pedir comida pras Três Marias, em três sextas feiras. E tem aquele negócio da boca... sapinho... que é benzido no coxo do porco. Pode ser no curral, mas tem que ser no coxo. Eu aprendi com a minha mãe. No Quilombo, tem umas tem umas vinte famílias... Quando eu vim para cá, eu estava com 18 anos. Eu tinha

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casado de pouco com o filho do dono do Quilombo, que era meu sogro, já falecido há muitos anos. Eu casei em 1960 e vim morar com meu sogro. Ele me chamou para morar com ele, porque na época teria que pagar aluguel e meu marido ganhava pouco. Então, meu sogro me chamou para morar aqui. Eu era doméstica na época. Quando eu vim pra aqui, já não tinha vestígios de nada dos escravos nem nada não, porque naquela época eu ainda era criança. Aí, as histórias eu fui sabendo por outras pessoas. Eu soube que aqui era lugar de refúgio... era um quilombo, um refúgio dos escravos que fugiam das fazendas próximas de Santa Luzia. Nas festas de santo, todo mundo junta. Cada um traz uma coisa. Uns trazem arroz, outros trazem o óleo ou a carne, outros fazem a salada. Tem a caixinha também, e os que têm condições colaboram. Para poder fazer a defesa, precisa de vela, cigarro e bebidas. Cada um que tem o seu guia, traz a bebida que ele bebe e o cigarro que ele fuma. Aqui, o Maurício [filho de Wanda] recebe alunos, e sempre eles perguntam: “Cadê o escravo que já apanhou?”. Tudo já foi passado. Mas aqui está como se fosse presente para nós... É como o Dia da Consciência Negra. Todo mundo comemora e tudo mas, se for olhar bem, foi muito sofrimento. Os negros sofreram muito. Numa missa do Dia da Consciência Negra que nós tivemos, vivemos uma decepção muito grande. Nós mandamos celebrar a missa na igreja das casas populares. Pra você ver o que o padre fez conosco... Foi a maior decepção,

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todo mundo saiu da missa chorando. Não teve esse que não chorasse, porque todos ficamos sentidos com o que o padre falou. O padre que ia celebrar nossa missa adoeceu, aí foi substituído. O outro padre falou que não ia vestir aquela roupa que a gente tinha feito, que aquilo era uma marmota, que ele não era palhaço de ninguém. Na parte do sermão, ele falou: “É por isso que antigamente falavam que preto não tem alma”. Aquilo judiou demais. Eu falei: “Peraí! Seu Tomás, você fica com Deus que eu vou embora”... Num teve um que não chorou. Depois disso, parece que bagunçou tudo, não fizemos a missa mais.

A LABUTA O Ribeiro, antigamente, era muito atrasado. A estrada era toda cascalhada, não passava ônibus, era jardineira. A gente punha os balaios em cima do teto da jardineira. Mas quase não tinha condução, a gente andava era a pé. Pegava a jardineira e descia... Mas não descia perto do lugar em que trabalhava. Tinha que andar mais um bocado pra acabar de chegar. Eu trabalhava com o moço que... Como que fala quando concerta a estrada? Ele consertava, porque aí os carros iam passando e iam chegando o cascalho pra beirada. Então, ele vinha e chegava os cascalhos no lugar, senão ficava um buraco na roda dos carro. A mamãe vendia marmita pros camaradas. Antigamente, chamava camarada. Aí, vendíamos marmita.

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A BR era toda de cascalho. O conjunto era o lugar que a gente ia para buscar lenha. Era mata fechada e a gente buscava lenha, fechos e mais fechos... Os prédios são novos. Na mata aqui, a gente via raposa, teiú, tatu, gambá... Aqui ainda tem o teiú. Na época que as galinhas botam, eles ficam rodeando. Tem também um casal de mico estrela. Eu trato deles na janela, compro banana pra eles... Agora, eles estão fazendo pouco caso de mim, mas a época deles tá chegando, porque tem muita manga, mas antes eles nem lembram que eu existo... Eu converso com eles e eles entendem. Já acostumaram de eu tratar deles. Eu buscava lenha, lavava roupa... Quando era época de seca, a gente podia varrer o corguinho ali, que a água secava toda. De certos anos pra cá, parou de secar... O porquê eu não sei. A não ser que é porque a gente parou de cortar madeira. A gente vigia muito pra pessoa num cortar, porque tira a sombra, seca a água... Aqui no quilombo tem cinco nascentes. Junta tudo e cai aqui. Naquela época, o conjunto não existia. Tinha umas casinhas pingadas logo ali na subida, no rumo da passarela que tem agora. Tinha escola de tábua... Meus meninos estudaram lá. Depois de muitos e muitos anos, eles construíram o Loreto [Escola Municipal Desembargador Loreto Ribeiro de Abreu]. Meus meninos não chegaram a estudar lá no Recanto, na escola das freiras, não. Eles estudaram na [Escola Estadual] Antônio Clemente, no Aarão Reis, porque eu des-

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combinei com meu marido e larguei ele. Eu num aguentava aquela vida de cachaça. Eu trabalhando... trabalhando para sustentar os meninos... Eu pensei: “Não! Eu posso sustentar os meninos, você não”. Aí, eu mudei para o Aarão Reis. Já tinha melhorado, tinha mais condução, já tinham acabado as jardineiras... Eu peguei a transferência daqui e coloquei os meninos no Antônio Clemente. Eles iam à pé. O córrego do Isidoro era limpo. Eu já lavei muita roupa lá. Depois, eu fui chamada a atenção, porque lá num era asilo, era sanatório. Lá era lugar que internava essas pessoas que estavam fracas dos pulmões. Eu conheci uns parentes do Werneck, mas a maioria já morreu. A família é enorme, mas um bocado deles já faleceu. Às vezes, eles ajudavam as pessoas, às vezes não. Eles não gostavam que tirasse lenha nas partes das terras deles. Botavam os empregados pra correr atrás e tomar o feixe. Pro lado de lá, a gente não ia não, porque sabia que eles iam tomar o feixe. No córrego do Onça, eu tirava areia... Tirei muita areia... muita areia mesmo. Eu tirava areia com o Raimundo, que era esposo da Sônia. Esse problema do meu braço é isso... Pra vender, pra tratar da casa... Caminhão de seis, sete metros... Aí, para poder carregar o caminhão, eu tinha que entrar em acordo com o motorista. E eu dividia o dinheiro com o dono do lugar. Ele nem era dono, ele fazia de conta que era dono, porque o córrego não era de ninguém. Trabalhei muito. Tinha dia que eu não tinha nada para dar pros meus meninos... Inclusive a esposa dele era

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muito boa pra mim. Ela tinha uma marmita grandona lá. Ela enchia de comida e aí era para nós cinco... Quer dizer, tinha que dar para os quatro meninos mais pra mim. Eu pegava o pão, tomava com água com açúcar, porque não tinha suco igual tem esse suco de pacotinho... Fazia aquela água com açúcar, bebia com pão e voltava pro serviço. Botava uma colher na mão de cada um dos meninos, eles ao redor da vasilha, e ia embora trabalhar. Era assim.

A PARTEIRA A primeira vez que eu fiz um parto foi pra ajudar a mamãe. Ela era chamada para atender algumas mulheres, então eu ia junto pra poder ajudar esquentar água, trocar de água as bacias. Eu fui pondo aquilo na cabeça. A primeira pessoa que eu ajudei no parto foi a Isabel. Foi até eu que coloquei o nome na neném, Elizabete. Na época, essa cantora fazia sucesso, e eu falei: “Põe o nome nela de Elizabete; aí, quando ela crescer, nós vamos chamar ela de Bety”. Como, de fato, aconteceu: a gente chama ela de Bety. Nasceu na minha mão. Aqui no Quilombo tem também o Ilario, que nasceu na minha mão. A mãe dele estava escondendo, não queria contar que estava grávida, aí ela tomou um susto com meu cachorrinho. Eu não sei o que aconteceu, ela estava sentada no pranchão, aí ela foi mexer com o cachorro e o pau virou. Eu falei: “Cuidado com esse pau,

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que esse trem vai cair”. Ela já estava meio perrengue, sentindo dor... Aquela coisa chata... Não deu outra, o pau caiu, ela virou as pernas pra cima e caiu aquele monte de mulher lá no chão. Gritando aqui, gritando ali, eu chamei as meninas, que ajudaram a levantar do chão e levaram ela pra dentro, e ela começou a ter a dor do parto. Eu falei assim: “Peraí! Você não tava não era com dor nas cadeiras? ”... “Não, é porque a dor tá indo e voltando”... Eu falei assim: “Você tá grávida? ”, “Ah! Eu tô sim, mas eu não queria contar não”. Mas uma hora a criança teria que nascer... Levei ela lá pro quarto. Chamei a dona Glória, que morava ali onde tem os pés de manga. Ela veio pro fogão, acendeu o fogo, botou as águas pra colocar na barriga dela. E a dor foi só aumentando, aumentando... Ele era tão pequenininho que cabia numa caixa de sapato... E ele desenvolveu... Depois, tivemos que levar ele pro hospital e por ele na incubadora, porque nasceu de cinco meses e meio... Tem que amarrar umbigo bem amarradinho.

O MOINHO O meu padrasto pegava um saco de milho, era meio da pessoa e meio como paga. Aquilo, ele deixava pra eu tomar conta do moinho na hora que punha lá pra moer. Quem tinha de desligar o moinho era eu, e tinha vezes que desligava na parte da madrugada. Um belo dia,

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nós colocamos um saco de milho pra moer, eram duas e meia da madrugada. O moinho começou: “cão, cão, cão, cão”... Eu, que tinha entrado debaixo da coberta levantei com e ele gritando lá do quarto: “O moinho tá chorando. Se o fubá amargar a culpa é sua... Chamei o Tupã. Saímos correndo eu mais o Tupã e a lamparina na mão. Cheguei lá, desliguei a água, fechei a porta. Quando eu já estava na metade do caminho, no rumo da moita de bambu, eu escutei um barulho e olhei pra trás. Não deu outra. Eu vi aquele bicho enorme, metade gente, metade cabrito e, quando soprava, saíam aquelas lavas de fogo... Eu correndo, correndo, custava chegar em casa. Parecia que tinha quilômetros e não tinha, a minha casa era perto. Quanto mais eu corria, parecia que minha casa ficava mais longe. Era o medo, né. E o cachorro? O cachorro sumiu na minha frente. Latiu duas vezes e não quis nem saber.

A ESTUDANTE Recentemente, eu comecei a estudar, porque eu gosto muito de poesia. Esses versos que as pessoas falam, eu gosto. Inclusive, nós fomos num encontro um dia falar sobre a mulher negra. A professora era negra, bem de idade, e a cabeça da mesa. Ela foi a que mais falou. Ela já escreveu cinco livros. Eu até comprei um e fui lá e falei com ela. Eu tô aprendendo a ler agora. Deus vai me ajudar que eu vou terminar. Eu quero ler fotonovela, poesia... Eu

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via aquelas fotonovelas na revista e era doida para ler. Só as figuras fica sem graça... Faço muito caça-palavras pra poder ajudar. Eu vou à cidade e volto fazendo dentro do ônibus. A professora mesmo falou que eu tô muito adiantada e que, agora, posso ajudar a ensinar os outros.

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WANTUIL ALVEZ DA CUNHA

O Sr. Wantuil é uma figura especial da comunidade. Afinal, graças a ele, um jardim gigante surpreende e dá alegria a quem chega ao Conjunto CBTU, vizinho do Ribeiro de Abreu. Por sua própria iniciativa e com muito trabalho, ele plantou e cultiva diversos tipos de flores e plantas. O motivo? Vontade de transformar um lixão num lugar belo, do qual os moradores pudessem se orgulhar.

O JARDIM DO SEU WANTUIL Meu nome é Wantuil Alves da Cunha. Eu moro no Conjunto CBTU já tem 15 anos. Eu vim morar aqui porque eles desocuparam lá onde eu morava pra fazer a estação do metrô São Gabriel. Aí, fui transferido pra aqui. Sou um dos primeiros moradores. As casas eram sem muro, a gente que teve de colocar, era tudo aberto. A gente tinha que ir lá no Ribeiro comprar as coisas, lá do outro lado. Até hoje, ainda é assim. A gente atravessa a ponte pra ir fazer compra lá. Dentro do Conjunto ainda não tem comércio. O meio de transporte aqui é o do Ribeiro. A gente veio pra aqui e não tinha nome. Aí, a gente colocou esse nome: Conjunto CBTU. Uma coisa que destaca aqui é esse jardim. Eu tinha ele aqui dentro do meu lote, só que o lote é pequeno... Aí,

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vi aquele espaço ali; aquele espaço era um bota-fora, um lixão, jogavam tudo, toda espécie de lixo. Então, eu resolvi cuidar e segui em frente, até conseguir fazer o jardim. E eu me sinto realizado, porque tá muito bonito!

ESSE MOÇO É DOIDO! No início, as pessoas não adotavam, elas não acreditavam que o lugar que era um lixão, ia se transformar num jardim. Todo mundo criticava: “Ah, não! Isso aí não vai pra frente”. Achavam que eu era meio maluco de estar fazendo aquilo, muita gente falava: “Esse moço é doido! Esse velho aí, ele não regula bem”. Agora, os mesmos que falavam estão usando a praça. Eu fui fazendo e as pessoas foram vendo e adotando. Agora, todo mundo reconhece que é uma praça e é pro bem de todos. Eu coloquei o nome de “Praça Terra”, porque eu acho a terra muito importante, ela é tudo pra todos.

SONHAR E PLANTAR As plantas do jardim... Começou assim: as pessoas tinham uma planta em casa e não queriam ou iam jogar fora e me perguntavam se eu queria, e fui plantando. Essas pessoas que doam, uns são moradores, outros são de fora. Chega, pergunta, traz pra mim e eu vou plantando. Lá tem planta de jardim, tem o pingo de ouro, tem muita fruta

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(abacate, manga, acerola, pitanga, goiaba). É misturado, assim, é jardim misturado com pomar. Antes eu cuidava sozinho, mas agora, que a prefeitura viu que é bom, já colocou água pra mim, o que foi muito importante. Antes, eu pegava água da minha casa e molhava, pra não deixar as plantas morrerem. Eu jogava de três em três dias, mas agora eu molho de dois em dois. Aí, as plantas estão agradecendo muito, o jardim está cada dia mais bonito! Aqui não tem um espaço de lazer. Aqui falta o lazer para as crianças, falta muita coisa e tem muita criança. Falta uma escola aqui dentro do Conjunto, porque tem criança aqui que dá pra encher uma escola. Tem muita criança e já vem mais. Pra ir para a escola, eles pegam ônibus na MG-020, que eu acho que é um perigo, já aconteceram acidentes. Se houvesse um colégio aqui dentro, evitaria tudo isso. Falta também uma passarela, porque o pessoal atravessa a rodovia pra pegar o ônibus, o ponto de ônibus é do outro lado. A rodovia passa no meio da comunidade, e aquilo é um perigo. A gente tem que acreditar que é possível melhorar, e correr atrás dessas coisas todas. Sonhar e plantar. Um dia, a gente colhe.

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