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Uma contribuição para a mobilidade no transporte marítimo e fluvial
Um tema de mobilidade importante é o transporte em vias aquáticas, seja marítimo ou fluvial. É o transporte de mais baixo custo, lento, mas econômico. É secular, mas se moderniza continuamente, contribuindo para aumentar o acesso de muitas populações a bens produzidos em locais distantes, a custos aceitáveis.
No Brasil, a mídia demonstra a importância do transporte marítimo de longa distância diariamente, no noticiário econômico sobre as exportações brasileiras. Nestas predominam as commodities com baixa densidade de valor, como o minério de ferro, a soja e o milho, que não seriam competitivas nos mercados externos se não pudéssemos contar com o baixo custo do transporte marítimo.
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Muitos países ricos mostram exemplos impressionantes do uso e dos benefícios do transporte fluvial. Basta observar o Rio Mississipi próximo à sua foz, em New Orleans. Enormes comboios de barcaças, empurrados por barcos potentes mas econômicos transportam mais de mil toneladas em cada viagem.
No Brasil, temos poucos exemplos a elogiar. A navegação costeira, de cabotagem, é praticamente inexistente. A navegação fluvial viabiliza o transporte de cargas de baixo valor unitário no Rio Paraná, contribuindo para a produção do agronegócio, mas recebe baixa prioridade nas épocas de escassez de água. Acaba sendo paralisada, porque não existe uma infraestrutura de dragagem que compense os efeitos do assoreamento. A falta de infraestrutura logística de mobilidade aquática nos custa caro, contribui para o Custo Brasil, mas raramente é lembrada, entre os fatores de dissipação da riqueza nacional.
Uma vantagem do transporte aquático é o baixo gasto de combustível por tonelada transportada. Por isso mesmo, o transporte aquático tem os mais baixos níveis de emissão de gases de efeito estufa, por tonelada. Mesmo assim, a escala gigantesca das cargas transforma as embarcações em grandes consumidores de combustível, pesando no custo logístico e fazendo uma contribuição significativa às emissões globais.
Reduzir o consumo de combustível na mobilidade aquática produz benefícios econômicos e ambientais, barateia o transporte e reduz as emissões. E como isso pode ser feito? O assunto tem merecido muita atenção já provocou muitas ideias. Uma forma de fazer isso é reduzir a colonização dos cascos de navios por organismos marinhos, destacando-se as cracas, que formam crostas rugosas, aumentando o atrito, reduzindo a velocidade e aumentando o gasto de combustível e as emissões de gases de efeito estufa. O atual estado da arte de proteção de navios contra cracas e outros organismos colonizadores é o uso de tintas venenosas, que funcionam, mas são uma fonte de poluição ambiental.
Superfícies de grafeno são extremamente lisas e são hidrofóbicas, portanto não interagem fortemente com a água. Essas duas características são muito desejáveis para reduzir o atrito entre um navio e o mar. Mas revestir cascos de navios com grafeno está fora das perspectivas atuais, por razões científicas, técnicas e econômicas. Uma opção é usar revestimentos formados por grafite esfoliado e reorganizado (ERG), criados no Inomat, um projeto INCT.*
A esfoliação é conseguida quando grafite é disperso em alguns meios líquidos, produzindo lâminas finas de grafeno e nanografites. Aplicando a dispersão líquida a uma superfície, como uma tinta, e deixando secar o filme aplicado, grafeno e nanografites se associam. Resulta uma fina camada contínua, que pode ser polida gerando uma superfície extremamente lisa e resistente à adesão por quaisquer agentes do seu ambiente.
A resistência do revestimento de ERG à colonização pelas cracas é explicada por duas características de ERG: é formado por pilhas de lâminas finíssimas, entre as quais a atração é fraca. Entretanto, uma pequena fração da área das folhas é coberta pelo agente esfoliante que atua como adesivo entre as lâminas, quando a tinta seca. O resultado é que as lâminas despelam ou descascam com facilidade. Como elas são muito finas, sua saída não prejudica o restante do filme. Isso é fácil de verificar, colando e em seguida arrancando pedaços de fita adesiva ao revestimento de ERG. Uma pequeníssima quantidade de tinta é arrancada, de cada vez, mas o filme só revela desgaste depois de centenas de arrancamentos. Portanto, o ERG forma um revestimento formado por camadas fracamente ligadas. Especialistas em adesão chamam isso de “weakly bound layers”, com a sigla WBL e são essas WBLs que dificultam a adesão de quase qualquer tinta a filmes plásticos de polietileno e outros materiais muito usados em embalagens.
O que se passa quando um organismo marinho tenta se fixar no casco de uma embarcação revestido com ERG? Ele pode até aderir momentaneamente, mas é arrancado pelo movimento das águas no seu entorno, preso a umas poucas lâminas muito finas. Uma autêntica “puxada de tapete”.
Aplicando essas idéias, criamos uma tinta esfoliante, que foi testada em laboratório e no casco de um veleiro. A formulação foi aperfeiçoada, e os primeiros testes de desempenho da tinta no mar foram iniciados em janeiro de 2023, na praia do Itaguá, em Ubatuba, local onde as bioincrustação ocorre muito rapidamente. Até agora, a superfície do casco permanece sem manutenção e com pouquíssima incrustação, que sai facilmente apenas passando a mão.
Este sucesso estimulou o passo seguinte, que foi a pintura de cascos de outros veleiros. O primeiro deles pertence a Gian Franco F.
Jaque, empreendedor da área de vela oceânica, que realizou os testes com o primeiro casco (veja a figura 1).
Medindo-se a velocidade quando o barco estava sendo propelido a motor, foi percebido um outro resultado muito interessante: a velocidade aumentou em no mínimo 20%, até 40% sob potência constante e o motor passou a operar em temperatura mais baixa que operava anteriormente, o que indica que uma menor potência estava sendo exigida. Portanto, o ERG pode proporcionar uma economia significativa de combustível, além de atuar como anti-incrustante.
O resultado é excelente, mas a essa altura o leitor pode estar se perguntando porque essa coluna começou tratando de transporte de cargas, em grandes embarcações, e os experimentos estão sendo feitos com veleiros. A explicação é uma regra muito adotada no desenvolvimento de materiais: os primeiros testes devem ser feitos com material esportivo, brinquedos e outras aplicações que não possam criar grandes riscos e são utilizadas em condições adversas. Velejadores são conhecidos por serem bastante atentos a tudo que acontece em suas embarcações, uma vez que qualquer anomalia pode ser sinal de perigo. Estão sempre atentos às forças que atuam sobre o deslocamento de seus veleiros, sendo excelentes parceiros para poder compreender os diferenciais das tintas que aplicam no casco de suas embarcações.
Concluindo, essa tinta anti-incrustante sem venenos é mais uma aplicação de um derivado do grafeno, que está revelando impactos positivos na economia e na preservação ambiental.
* Inomat é o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Materiais Complexos Funcionais, uma rede de pesquisas apoiada pelo CNPq, FAPESP e CAPES. Os produtos baseados em ERG são desenvolvidos pela Galembetech Ltda., uma start-up apoiada popr um projeto PIPE 2 da Fapesp e um projeto PIPE-PAPPE da Fapesp com a Finep
É bacharel, licenciado e doutor em Química pela USP onde começou sua carreira e chegou a livredocente em 1977, depois de pós-doutorados nas Universidades do Colorado e da Califórnia e de um estágio no Unilever Research Port Sunlight Laboratory. Mudou-se para a Unicamp em 1980, tornando-se professor titular em 1987. Dirigiu o Instituto de Química entre 1994 e 1998, foi Coordenador Geral da Universidade e se aposentou em 2011, assumindo a direção do Laboratório Nacional de Tecnologia, do CNPEM. Sempre manteve uma atividade ninterrupta e intensa de ensino de graduação e de orientação de estudantes, expressa em uma extensa produção científica e tecnológica que foi premiada em muitas ocasiões, no Brasil e Exterior, destacando-se os prêmios Álvaro Alberto em 2005 e o prêmio Anísio Teixeira de Educação, em 2011. Em 2020, recebeu o Prêmio CBMM de Tecnologia, a sua startup Galembetech recebeu prêmios da Abiquim e Abrafati e em 2021 foi premiado como Pesquisador Emérito do CNPq. Muitos dos seus estudantes destacaram-se profissionalmente, em universidades e empresas, no Brasil e no Exterior, sendo também premiados em muitas ocasiões.
