Digital entrebordas completo (1)

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Bruno Kurru Paulo Nenflidio Renan Marcondes Sandra Cinto Thomaz Rosa CURADORIA

Paula Braga


A

percepção

humana

parece

depender

do

estabelecimento de intervalos que cumprem a função de conferir ordem às informações vindas do

mundo. Esses fragmentos silenciosos encontram expressão em diversos campos do conhecimento, desde a matemática, com o numeral zero, até as artes, onde vemos manifestas, por meio do espaço em branco da tela, do silêncio entre duas notas musicais, as condições para a ordenação de

uma obra. Ao nos defrontarmos com a concretude do real, todavia, notamos a fragilidade do nosso aparelho perceptivo: ali onde julgávamos ter um espaço vazio, há na verdade uma porção do quadro repleta de texturas e pinceladas; no diminuto hiato entre duas notas, percebemos os sons da rua. A proposta curatorial de Paula Braga na exposição Entre Bordas: sons perceptivos, discursivos, cognitivos — e, tal qual uma lente de aumento ou um amplificador, propõe perguntas como: o que habita o ínterim entre duas imagens aparentemente discrepantes? Quais vibrações permanecem na matéria ali onde já não ouvimos nada? Em sua segunda edição o projeto Entre Bordas procura dar visibilidade à produção de artistas provenientes dos territórios do ABC Paulista. Tal proposta se fundamenta no compromisso do Sesc em difundir conhecimentos locais dos territórios onde atua e, assim, favorecer processos educativos não formais de caráter dialógico. Talvez com a sistematização dessa prática seja possível a construção de contextos sociais mais igualitários, nos quais grãos de silêncios, pausas e falas sutis consigam se propagar e significar plenamente. Sesc São Paulo

O FERVILHAR DO VAZIO

que escapam, se detém justamente nesses interstícios —


E

m 1951, um músico constatou que o silêncio não existe. Ao entrar em uma câmera à prova de som, John Cage percebeu que ainda ouvia um som constante agudo e uma batida rítmica grave. Concluiu que o som agudo que escutara era o barulho de seu próprio sistema nervoso e que o retumbar grave era seu sistema circulatório.

Não há como escrever uma partitura para ruídos que emergem do silêncio com a notação musical convencional. É preciso criar uma nova linguagem. John Cage colecionou exemplos de partituras para peças de percussão, reunidas em seu livro Notations. Cada página é um desenho que tenta descrever, com linhas e pontos, alguns gestos, pausas e dinâmicas. É interessante notar que a dança, ao contrário da música, nunca se ateve a uma convenção de notação. As coreografias são registradas de formas muito variadas, algumas usando a figura humana simplificada a palitos. Enquanto lecionava no Black Mountain College, Cage desenvolveu peças em parceria com o coreógrafo Merce Cunningham, para quem a dança deveria abarcar gestos cotidianos, como andar ou sentar. Assim como Cage valorizou os ruídos singelos, Cunningham levou para o palco o movimento do dia-a-dia. Juntos, organizaram eventos performáticos que incluíam teatro, dança, música, poesia… e um cachorro latindo e correndo atrás dos performers por entre as cadeiras da plateia. Vivemos no meio da gritaria das redes sociais. Todos falam, ao mesmo tempo, em volume cada vez mais alto, e nesse contexto as obras e pensamentos de John Cage adquirem um sentido ético e político: como escutar os sons sutis, os discursos que são pouco amplificados, porém importantes? As obras reunidas na exposição Sons que Escapam salientam a importância da percepção dos sons do silêncio. Sandra Cinto, Paulo Nenflidio, Bruno Kurru, Renan Marcondes e Thomaz Rosa remetem ao silêncio recheado de potência, aos barulhos do mundo, ruídos fisiológicos e ruídos psíquicos, que desaguam em ações e transformações. Paula Braga, curadora

ENTRE BORDAS: SONS QUE ESCAPAM

Um ano depois, Cage compôs a peça 4’33’’ (quatro minutos e trinta e três segundos). Para executá-la, o músico deve permenecer em silêncio durante este tempo. As execuções mais comuns são feitas por pianistas, que sentam-se na frente do instrumento, e cronometram o tempo, durante o qual sons da plateia – tosses, murmúrios – vêm à tona. Para Cage, os sons que existem ao nosso redor são música, tanto quanto uma sonata para violinos.


sonoras, muitas vezes partici-

São Bernardo do Campo em

pativas. Em suas produções,

1984 e formou-se em design

ciência e gambiarra entram em

pela Universidade Bandeiran-

acordo para que a água acione

tes. Depois de trabalhar com

um piano-monjolo, pássaros de

ilustração de revistas e de

metal batam asas em revoa-

moda, passou a apresentar seu

da, ondas cerebrais conduzam

trabalho em mostras coletivas,

um algoritmo a produzir sons.

como “Brazil Illustrated” na

Desde 2003, o trabalho de

Embaixada do Brasil, em Lon-

Nenflidio vem obtendo reco-

dres (2009), “Os Brasileiros”

nhecimento de prêmios e insti-

na Carmichael Gallery of Con-

tuições como a Bolsa Pampu-

temporary Art em Los Angeles,

lha em Belo Horizonte (2003),

EUA (2008) e “O Novo Muralis-

Prêmio Sérgio Motta de Arte e

mo Latino Americano”, no Me-

Tecnologia (2005), 7a Bienal

morial da América Latina em

de Artes Visuais do Mercosul

São Paulo. Mais recentemente,

(2010), Prêmio CNI SESI Mar-

Kurru expôs no Paço das Artes

cantonio Vilaça Artes Plásti-

(2012), no FILE – Festival In-

cas (2011) e Prêmio Funarte

ternacional de Linguagem Ele-

Marcantonio Vilaça (2013). Em

trônica (2012), Museu Nacional

2019, expôs seus trabalhos em

(2015), e no Espaço Saracura

uma exposição individual na

(2017), além de criar grupos de

Caixa Cultural.

interlocução com outros artistas e pessoas interessadas na desaceleração das vivências cotidianas.

RENAN MARCONDES nasceu em São Bernardo do Campo, em 1991. É mestre em Artes Visuais pela UNICAMP e

nasceu

está concluindo um doutora-

em São Bernardo do Campo,

do sobre performance na USP,

em 1976, e estudou na ETEC

investigando corpo e desa-

Lauro Gomes antes de formar-

parecimento. Desde 2011, par-

-se em Artes Visuais pela USP.

ticipa de diversas mostras e

A obra de Nenflidio aplica seus

exposições com sua pesquisa

conhecimentos

eletrôni-

teórico-prática, que tem tam-

ca na produção de esculturas

bém repercutido em prêmios

PAULO

NENFLIDIO

em

BIOGRAFIA DOS ARTISTAS

BRUNO KURRU nasceu em


como o Festival Cultura Ingle-

nentemente instalada na pisci-

sa (2020), SARP (2018), Prê-

na do Sesc Santo André.

mio de Criação Coreográfica do MIS (2018) e Setor de Performance da SP-Arte (2016).

THOMAZ ROSA nasceu em São Caetano do Sul, em 1989. ciatura em Artes Visuais pelo

Santo André, em 1968, e es-

Instituto de Artes da UNESP

tudou educação artística nas

em 2009, e frequentou o curso

Faculdades Integradas Teresa

de pintura e reflexão de Paulo

D´Ávila (Fatea), também em

Pasta e o curso de história da

Santo André. A obra de San-

arte de Rodrigo Naves. Entre

dra Cinto pareia delicadeza e

2012 e 2013 fez uma residência

força. Em desenhos com tinta

de 7 meses pela Faculdade de

branca sobre fundo escuro, a

Belas Artes da Universidade

artista compõe encantadoras

do Porto / FBAUP- Portugal

rendas para representar a fúria

e repetiu a experiência da re-

do mar, emprega milhares de

sidência artística no Pivo em

pontos, brilhantes como estre-

2018. Trabalhou como assis-

las, para nos confrontar com

tente para artistas como Lucas

um céu misterioso, infinito e

Arruda, Claudio Cretti, Caetano

por isso assustador.

de Almeida, Marina Rheingantz

Seus objetos em geral usam

, Paulo Monteiro e Sergio Sister.

madeira e vidro, resistência e

Desde 2016 tem participado

fragilidade, ou se apropriam

de várias exposições coletivas

de formas adoráveis, como

nas galerias Mendes Wood DM,

um cavalinho de pau ou um

BFA Boatos Fine Arts, Estação

violino, para incorporar ideias

e Sancovski. Realizou exposi-

penosas, como a finitude e a

ções individuais na BFA (2017)

solidão. O paradoxo suspende

e na Mendes Wood (2019), e

o contato óbvio com a obra,

uma exposição individual fora

agrada e incomoda, para ex-

do Brasil na galeria Castiglioni

pandir nosso repertório de ex-

(2019).

periências sensoriais e conceituais. É de autoria de Sandra Cinto a obra Céu e Mar, perma-

BIOGRAFIA DOS ARTISTAS

Iniciou o Bacharelado e LicenSANDRA CINTO nasceu em


Pontos de inflexão: índices /_ e ~desvios | <---|---|---> | Viragem |

acrílica s/ tela e madeira, dimensões variadas, 2020

vídeo 10’ em looping, papéis, escultura em resina acrílica, dimensões variadas, 2020

performance com projeção, 2020

O próprio ato de criar conduz Bruno Kurru ao processo de introspecção e auto-conhecimento, de mergulho controlado em uma mente que, num modelo de anatomia não-ocidental, é conectada ao espírito. Signos de iluminação mental, como sol, são constantes nos trabalhos de Kurru, assim como o céu e cabeças humanas. Como na prática do yoga, na qual a repetição de posturas conduz o praticante ao controle e conhecimento de sua mente, olhos, bocas ou pés são repetidamente pintados na prática artística diária de Bruno Kurru. A reescritas nas pinturas sejam também passíveis de repetição, como mantras. No entanto, a ascese como meta não despreza o corpo. Kurru presta atenção aos movimentos motores, à repetição do caminhar, à sutileza da mudança naquilo que se repete. Cultura urbana e meios tecnológicos integram-se na arte de Kurru com uma tradição filosófica milenar para alcançar uma ascese terrena: a vida como deve ser vivida na plenitude do corpo sensível.

BRUNO KURRU

petição de padrões geométricos sugere que as frases


Timeline |

impressão sobre compensado naval, 1000x60cm, 2018

Das tarefas de artista (2) |

performance, 2020

A performance valoriza mais o processo do que qualquer produto final da criação artística e funda-se na potência do corpo, naquilo que o corpo pode fornecer de conhecimento sobre o mundo e naquilo que as ações do corpo revelam sobre o corpo e sobre sua potência. Artistas da performance, como Renan Marcondes, testam os limites do corpo ou tentam libertá-lo de estereótipos de aparência ou pudores de comportamento.

retratos dos performers mais famosos da história da arte, de forma que seus olhares formem uma linha reta, de 10 metros de comprimento. Tudo varia nos retratos, menos a altura da linha dos olhos, que quer encontrar o olhar do espectador, perturbando-o e incentivando-o a ouvir o discurso do corpo.

Durante a abertura da exposição Sons que Escapam, Marcondes apresentará a peça Das tarefas de artista (2), na qual um performer gira, fica tonto e pinta algumas manchas de tinta no espaço em uma escrita decorrente da interação do corpo, seus dircursos e o acaso.

RENAN MARCONDES

Na obra Timeline, Renan Marcondes instala, na parede,


Granulometria |

madeiras diversas, solenoide, ímã, luminária e taça de vidro com água, dimensões variáveis, 2018

4,33 metros |

lápis grafite s/ papel sulfite, 33x42cm, 2017

Som do Silêncio |

pau-marfim, 185x35cm, 2020

Em 4,33 x, Nenflidio constrói um pêndulo que quase toca um copo cheio de água. A leve vibração da proximidade do pêndulo causa ondas na superfície da água. Se o toque se consumar, haverá o barulho do estilhaçar do vidro e do derramamento da água. Como se fosse uma máquina de gerar perigos, o pêndulo ameaça percutir o copo, o que remete às peças de John Cage para piano preparado. Nessas peças, Cage colocou vidros e peças de metal nas cordas de um piano de cauda e, assim, o pianista, ao pressionar as teclas do piano, percute esse materiais, o que gera uma textura sonora inesperada e muitas vezes repudiada por ouvidos desacostumados à variedade dos sons. As teclas do piano preparado, arranham, desconfortam. Esse tipo de referência tátil para o som ganha forma nas peças da série Granulometria, nas quais Nenflidio expõe as várias cores, gramaturas e tamanhos dos grãos da madeira. Se fossem tocadas com as mãos, remeteriam a sons tocados por diferentes instrumentos. Mas a peça que realmente se oferece ao toque é a Som do Silêncio. Trata-se de uma placa de madeira na qual Nenflidio gravou, em baixo relevo, a onda sonora da sua voz falando a palavra “silêncio”, corroborando, com Cage, que o silêncio tem som.

PAULO NENFLIDIO

4,33 x |

cedro, freijó, imbuia, pau-marfim e vidro, 4 peças de 30x74cm, 2018


Le Buisson; Relationship; Momento: sobre o vermelho e o azul; Sem título I; Sem título II; fita e colagem s/ tela, Fouille volant (metastasis) | óleo, dimensões variadas, 2017 As pinturas de Thomaz Rosa parecem criar movimentos, como se registrassem idas e vindas, falas e barulhos coloridos. São instaladas na parede de forma a constituírem uma composição maior, na qual o todo tem a forma de cada uma de suas partes, como um texto é feito de parágrafos, que são feitos de frases. Como o artista declara, suas pinturas constroem um alfabeto imagético, que nesta exposição aproxima-se muito dos signos da notação musical, como nas partituras para percussão reunidas por John Cage no livro Notations. A própria dimensão das obras selecionadas remetem à geometria no papel quadriculado.

Nas telas pintadas a óleo, há interferências de riscos de lápis e fitas adesivas, ao lado do uso gráfico da linha e das cores. Lúdicos e espontâneos, são trabalhos que incitam mutabilidade, convidam o corpo para uma dança de giros, para um concerto musical, transformando-nos em instrumentos e instrumentistas de nossos próprios corpos.

THOMAZ ROSA

página, ao rascunho, à escrita e ao exercício escolar de


Caixa de Silêncio |

madeira, vidro, caderno e concha, 125x97x67cm, 2017

A obra Caixa de Silêncio, de Sandra Cinto, é composta por três caixas concêntricas, uma dentro da outra. No centro da caixa menor, vemos um caderno aberto, com as páginas em branco, e uma concha. O encontro com essa obra é bonito e doloroso, porque é delicado, porém inacessível.

Nenhum som entra nem sai dessas caixas, que emanam a sutileza preciosa da quietude indevassável. Assim, pela distância e inacessibilidade, os sons fechados pelo vidro tornam-se respeitosos e intrigantes.

Que

sussurros

maravilhosos

a

concha

poderia soprar no ouvido de quem pudesse pegá-la! E riam, para serem anotados no caderno.

Para trazer tanta beleza para fora, só o que podemos fazer é, encantados com a obra, procurar a raridade do silêncio interior em nós mesmos, fazer a pausa, domar a mania de movimento barulhento, aquietar, para perceber os sons de nossas conchas reverberadoras de sutis ruídos psíquicos, que podem ser anotados, como uma escrita, com uma linha de pensamentos.

SANDRA CINTO

que maravilhosos pensamentos esses segredos suscita-


SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDENTES Técnico-social: Joel Naimayer Padula Comunicação social: Ivan Giannini Administração: Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria técnica e de planejamento: Sérgio José Battistelli GERENTES Artes visuais e tecnologia: Juliana Braga Estudos e desenvolvimento: Marta Raquel Colabone Artes gráficas: Hélcio Magalhães Sesc Santo André: Jayme Paez Entre Bordas: Sons que Escapam Curadoria: Paula Braga Cenografia: Tatiana Durigan / Bao Estúdio Produção: Bebel Abreu, Letícia Marques e Ellen Queiroga / Mandacaru Design Gráfico: Manaira Abreu e Simona Luchian / Mandacaru Cenotecnia: Oficina das Artes Montagem: Oficina das Artes e Matias Carsolio Picón Laudo: Grace Bedin Obras de Thomaz Rosa: cortesia Galeria Castiglioni, Milão Vídeos da Exposição: Estúdio Raiz de Dois View Room: Gabriel Villa-Lobos EQUIPE SESC: Adriano A. P. de Campos, Alcione Muzel, André Leite Coelho, Carolina Barmell, Cristiane Isidio, Fabiano Preradovic C. Pereira, Guilherme Luiz de Carvalho, Ilona Hertel, Karina Musumeci, Melina Izar Marson, Milena Prinholato, Nádia Almansa, Nilva Luz, Roberta Lobo, Sandro Piscitelli Vidigal, Silvan Oliveira, Tatiana Fujimori e Zilda Sabiá.


De agosto a novembro de 2020 Sesc Santo AndrĂŠ Rua Tamarutaca, 302 Vila Guiomar CEP 09071-130 /sescsantoandre sescsp.org.br/santoandre


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