Bem-estar Estudiosos refletem sobre a epidemia de solidão
Costa norte João Farkas fotografa biodiversidade litorânea
Alimentação Caminhos para promover a sustentabilidade à mesa
Saúde bucal Tecnologias ampliam prevenção e cuidado
14 Out—02 Nov
14 Bis Pompeia
Franca
Rio Preto
São José dos Campos
Centro de Música - Consolação, Guarulhos e Vila Mariana
Centro de Pesquisa e Formação
Em sua sexta edição, o festival apresenta shows e ações formativas, com artistas nacionais e internacionais. Ao todo são 27 atrações, em 54 apresentações distribuídas nas unidades 14 Bis, Franca, Pompeia, São José dos Campos e São José do Rio Preto. Além de o cinas, aulas, encontros e bate-papos nos Centros de Música do Sesc Consolação, Guarulhos e Vila Mariana e no Centro de Pesquisa e Formação.
De 14 de outubro a 2 de novembro de 2025.
sescsp.org.br/sescjazz
Festival que integra a Temporada França-Brasil 2025
Organizadores
Apoio
Exposição que integra a Temporada França-Brasil 2025
Organizadores
Patrocinadores
Realização
Exposição organizada em colaboração com o Musée d’Art Moderne de Paris, Paris Musées
Realização
CAPA: Barcos ao largo, de João Farkas, em Bitupitá, costa cearense. A fotografia faz parte do livro Costa norte (Edições Sesc São Paulo, 2025), com imagens do litoral norte brasileiro, contemplando uma faixa de cerca de 2.200 quilômetros entre o estado do Amapá e o Rio Grande do Norte. A Seção Gráfica desta edição, Costa adentro apresenta fotografias do livro. Mais informações em sescsp.org.br/edicoes
Crédito: João Farkas
Um setor essencial
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Legendas Acessibilidade
Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.
No dia 30 de outubro, é celebrado o Dia do Comerciário, data que valoriza milhões de trabalhadores que atuam no comércio de bens, turismo e serviços, fundamentais para a vida nas cidades. Esse setor é responsável por cerca de 70% do Produto Interno Bruto do Brasil (PIB) e ocupa papel central tanto na geração de empregos quanto na sustentação da economia nacional.
O Sesc - Serviço Social do Comércio destaca, nessa ocasião, a relevância do segmento e reafirma sua missão de promover o bem-estar dos trabalhadores, de suas famílias e da comunidade em geral.
Criada em 1946, a entidade está presente em todo o estado de São Paulo, com seus centros de cultura e lazer, promovendo encontros, estimulando a troca de saberes e fortalecendo o desenvolvimento interpessoal. Atua, desse modo, numa perspectiva de ação educativa permanente nos campos do lazer, da cultura, do esporte, do turismo, da saúde e da alimentação.
Ao direcionar investimentos e esforços para essa atuação contínua, há quase oito décadas, o empresariado do setor renova seu compromisso com a promoção da qualidade de vida de seu público prioritário e da sociedade como um todo.
Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo
Sementes do amanhã
Vivemos tempos sem precedentes no âmbito das questões ambientais. Inúmeros estudos evidenciam as mudanças climáticas e projetam cenários adversos para o planeta. Se, por um lado, essa condição potencializa a urgência no debate e na busca por soluções para mitigar os efeitos nocivos, por outro, traz a sustentabilidade como uma pauta transversal que perpassa a sociedade como um todo.
No setor da alimentação, novos modelos de produção começam a ser ampliados, tendo a sustentabilidade como uma premissa. Do plantio aos lares, passando pelo transporte, armazenamento, consumo e descarte, o caminho do alimento é planejado para que responda às dimensões ambiental, econômica e social que compõem a lógica sustentável.
Reportagem desta edição da Revista E apresenta algumas das iniciativas presentes em São Paulo norteadas por essa diretriz. São profissionais que se unem para repensar a produção alimentar a partir do cuidado com o meio ambiente e com as relações sociais que se estabelecem no processo. O resultado dessas ações representa benefícios para quem fornece e para quem consome, propondo uma nova relação com o alimento. São escolhas que trazem para o cotidiano ato de comer um modo de semear um amanhã mais verde e ambientalmente equilibrado. Boa leitura!
Luiz Deoclecio Massaro Galina Diretor do Sesc São Paulo
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC
Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho
CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO
Presidente: Abram Abe Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina
Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.
Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.
Adauto Fernando Perin, Adriana Dias, Adriana Iervolino da Cunha, Alessandra Gonçalves da Silva, Aline Ribeiro dos Santos, Alisson Fabiano Sbrana, Ana Paula Vieira da Cruz, Andrea Simone Lanaro Nunes, Barbara Caroline da Silva Ramos de Freitas, Bruna Zarnoviec Daniel, Bruno de Souza Correia, Camila Capellette Barreto, Carmen Lucia Saito Lelli, Carolina Paes de Andrade, Caroline Tavares da Silva, Cinthya de Rezende Martins, Claudia Dias Perez Machado, Corina de Assis Maria, Cristina Balland, Dalmir Ribeiro Lima, Daniela Cullen, Daniela de Alencar Pereira Lirolla, Danilo Cava Pereira, Debora Cravo Domingues Freitas, Deleni Mesquita, Diana Gama Santos, Diego Polezel Zebele, Douglas Marcelo Bianchi Ramachotte, Elaine Barros Martins, Elaine Lima Balbino, Eliani Hypolito de Souza, Fernanda Augusto Rodrigues, Fernanda Silva Hoshino, Fernanda Soares Nogueira, Flavia Teixeira S Coelho, Francisca Meyre Martins Vitorino, Gabriela Camargo das Graças, Gabriela Carraro Dias, Gabriela Grande Amorim, Gabriella Pereira Rocha, Geraldo Soares Ramos Junior, Giovana Moraes Suzin, Gleiceane Conceição Nascimento, Heloisa Pinto Ururahy, Henrique Sampaio dos Santos, Indiara Fernanda da Cunha Duarte, Itamar Dantas de Oliveira, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivy Beritelli Jose de Souza, Ivy Granata Delalibera, Jade Stella Martins, Jair de Souza Moreira Júnior, Janete Bergonci, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Juliana Neves dos Santos, Karen Daniele Aparecida Amorim Porcelli, Karen Leal da Silva, Karine Sousa Mendonça, Lara Fernandes Andrade Teodoro, Leandro Aparecido Pereira, Lívia Muchiutti, Luana Brito Lima, Marcela Barbosa Xavier Oliveira, Marcelo Baradel, Marcia Rehem de Macedo Drabek, Maria Fabiana Ferro Guerra, Maria Rizoneide Pereira Dos Santos, Mariana Thalacker, Marina Reis, Mauricia Franceschini David, Mayara Cristina Bahia de Souza, Mayara Ramirez Silva, Michele Lopes Rodrigues, Milena Prinholato, Monique Mendonça dos Santos, Nicole Pereira da Fonseca Conceição, Patricia Martins Domingos, Priscila dos Santos Dias, Renata Barros da Silva, Sandra Ribeiro Alves, Sara Maria da Silva, Sheila Mara Travain, Talita Ferreira dos Santos, Tamara Demuner, Tatiana Busto Garcia, Thais Ferreira Rodrigues, Thais Rezende Suraty Cassiano, Thiago da Silva Costa, Vivianne de Castro, Wayne Michael Nishida de Castro Pandolfi, William Galvão de Souza.
Coordenação-Geral: Ricardo Gentil
Coordenação-Executiva: Ligia Moreli e Silvio Basilio
Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Edição de Arte e Diagramação: Estúdio Thema (Marcio Freitas e Thea Severino) • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó e Rachel Sciré • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Nilton Fukuda • Repórteres: Adriana Terra, Lilian Silva, Luciana Oncken, Manuela Ferreira, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó e Matheus Lopes Quirino • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Marina Pereira, Marcel Verrumo e Rachel Sciré • Propaganda: Edmar Júnior, Jefferson Santanielo, Julia Parpulov e Vitor Penteado • Apoio Administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Alexandre Calderero, Barbara Duram, Daniele Barros, Dia Barros, Gabriela Batista Borsoi, Leandro Henrique da Silva Vicente e Wendell de Lima Vieira • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Criação Digital Revista E: Cleber Paes e Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Vanessa Zago
Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488).
A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social
Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios. Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo
Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS). Fale conosco: revistae@sescsp.org.br
Entre os destaques de outubro, o Sesc Interlagos celebra 50 anos com uma programação de oficinas, ações educativas e shows para todos os públicos
Premiada escritora portuguesa, Lídia Jorge fala sobre novo romance, inspirado nos últimos anos de sua mãe, e sobre as costuras literárias entre relações humanas e críticas sociais
Especialistas e iniciativas apontam caminhos para fomentar sistemas alimentares sustentáveis em suas dimensões ambiental, econômica e social
Lançamento das Edições
dossiê entrevista alimentação
No ano do centenário de Sérgio Cardoso, um dos grandes nomes do teatro e da televisão brasileira, o legado marcado por lendas e dedicação visceral
Sesc São Paulo, livro Costa norte reúne registros fotográficos de João Farkas pelo litoral, do Amapá ao Rio Grande do Norte
Inovações em tecnologias somam-se a ações educativas e preventivas para auxiliar diagnósticos e tratamentos na promoção da saúde bucal
Artigos de Alexandre Coimbra Amaral e Deusivania Vieira da Silva Falcão abraçam o tema solidão para o exercício da boa companhia
Chef e pesquisadora, Aline Guedes relembra gostos, cheiros e sabores que, desde a infância, a chamaram para trabalhar a ancestralidade e a cultura afrodiaspórica na cozinha
Neurocientista, pesquisador e escritor, Sidarta Ribeiro alerta para a utilização desenfreada de redes sociais e reforça a necessidade de um pacto transgeracional pela moderação
Júlia Medeiros (conto) e Bruno de Souza (ilustração)
Aumenta o som e conheça cinco opções para conhecer a cultura do vinil, celebrar e ouvir raridades e novidades, do Lado B ao Lado A
Adriana Iervolino da Cunha
em pauta encontros inéditos
Na Cripta da Catedral da Sé, na região central da cidade de São Paulo, o Duo Siqueira Lima, formado pela uruguaia Cecília Siqueira e pelo mineiro Fernando Lima, em parceria com a clarinetista boliviana Camila Barrientos, apresentou um concerto com repertório de obras de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Astor Piazzola (1921-1992) e peças andinas. A apresentação integra o Centro em Concerto, projeto realizado pelo Sesc Carmo desde a década de 1990, que explora as linguagens, formatos e estéticas da música de concerto em atividades gratuitas, realizadas em igrejas e espaços históricos do Centro de São Paulo.
Programação dedicada a refletir sobre a alimentação adequada e saudável em todas as fases da vida, com foco na autonomia para escolhas alimentares conscientes.
Com a presença de
DRAUZIO VARELLA
PATRÍCIA JAIME
ALINE GUEDES
HELOÍSA BACELLAR
EUDES ASSIS
PATTY DURÃES
NEIDE RIGO
GABRIELA KAPIM
MANOELA FIGUEIREDO
E muitos outros profissionais e pensadores da área da saúde, alimentação e nutrição em mais de 170 atividades gratuitas em todas as unidades do Sesc São Paulo.
sescsp.org.br /experimenta
DOSSIÊ
Sesc Interlagos comemora cinco décadas com uma programação diversificada para todos os públicos.
Meio século de histórias
Uma das unidades mais longevas do Sesc São Paulo, Sesc Interlagos celebra 50 anos com programação especial de shows, feiras, oficinas e ações educativas
Inaugurado em 30 de outubro de 1975, o Sesc Interlagos tornou-se um dos principais centros de cultura, lazer e convivência da capital, especialmente da zona Sul. Localizado em uma das poucas áreas verdes conservadas de São Paulo, às margens da represa Billings, a unidade é um verdadeiro refúgio ecológico, com trechos de vegetação nativa, ações contínuas de reconstituição e espaços dedicados à contemplação da natureza.
Entre seus símbolos, está o jacaré gigante, uma escultura de aproximadamente 30 metros de comprimento, que simboliza o diálogo entre arte, recreação e meio ambiente presente em toda a unidade. Outra experiência de destaque é o projeto Viva o Verde, voltado para grupos com
agendamento prévio, que promove vivências de cuidado com o meio ambiente mediadas pela equipe de agentes de educação ambiental.
Segundo Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo, “o Sesc Interlagos consolidou-se, ao longo de sua história, como espaço democrático e acolhedor, que recebe escolas, famílias, trabalhadores e visitantes em busca de lazer, aprendizado e bem-estar. Celebrar seus 50 anos é reconhecer um território de natureza viva, biodiversidade, histórias compartilhadas e futuro em constante construção”.
Para marcar as cinco décadas, a unidade preparou uma programação especial, como o projeto Interlagos 50+, que reúne, até dezembro, atividades como shows, oficinas,
feiras e ações socioeducativas. Um dos destaques é a exposição Presença espiral. Com curadoria do Instituto Lentes Malungas, é composta por videodepoimentos de frequentadores, funcionários e artistas que estiveram presentes na história dessa unidade. Na data do aniversário, dia 30/10, acontecerá a Trilha do Campestre à Floresta: 50 anos de Sesc Interlagos, uma travessia que revela a transformação da unidade desde 1975. De 25 a 26/10, a Mostra de Artes Cênicas das Margens Sul reunirá apresentações de grupos de teatro da região, proporcionando um espaço para que artistas locais compartilhem suas histórias e expressões artísticas.
O Sesc Interlagos consolidou-se, ao longo de sua história, como espaço democrático e acolhedor. Celebrar seus 50 anos é reconhecer um território de natureza viva.
Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo
DOSSIÊ
Estreia no dia 28/10, no SescTV, a série São Florestas, que faz um recorte contemporâneo sobre a diversidade de aspectos sociais e ambientais que compõem a Amazônia brasileira.
AMAZÔNIA EM PRIMEIRO PLANO
Às vésperas da Conferência das
Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, o SescTV lança a série São Florestas, (Miguel de Almeida, 2025). Em 17 episódios, a produção faz um recorte contemporâneo sobre os muitos aspectos sociais e ambientais da Amazônia brasileira, abordando temas como mudanças
climáticas, enfrentamento à fome e à pobreza, saneamento e energia limpa, além de consumo e produção responsável. Também é retratado o aprendizado trazido pela natureza e pela medicina de povos indígenas. Estreia dia 28/10, terça, às 20h. Assista também sob demanda no sesctv.org.br/saoflorestas
Virada para crianças
Nos dias 4 e 5/10, mais de 400 apresentações gratuitas para as infâncias agitam os espaços culturais da cidade de São Paulo no festival Viradinha. Em diferentes regiões, serão realizadas atividades em equipamentos culturais, como casas de cultura, bibliotecas, teatros e outras instituições. A programação é uma iniciativa da Prefeitura Municipal, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa, em parceria com entidades culturais. O Sesc São Paulo é correalizador da ação e promove mais de 70 atividades em suas unidades, contemplando diversas linguagens artísticas, como teatro, música e artes visuais, além de eventos da área esportiva, odontologia, e meio ambiente, dentre outras. A programação completa pode ser conferida em prefeitura.sp.gov.br/cultura
VOZES DA TERRA
Neste mês, a websérie Sinais da Terra estreia no canal do Sesc São Paulo no YouTube. Em 13 depoimentos, a produção apresenta entrevistas que alertam para os sinais de que o planeta está próximo de seu esgotamento e da emergência climática. Participam profissionais com experiências e vivências distintas: das ciências, das artes e das humanidades, como o líder indígena Ailton Krenak, o padre Júlio Lancellotti, a Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, dentre outras. O lançamento de cada episódio é semanal, às quintas-feiras. Confira em youtube.com/sescsp
Santa Rita Filmes (Amazônia
Padre Júlio Lancelloti é um dos entrevistados da recém-lançada websérie Sinais da Terra, exibida no canal do Sesc São Paulo no YouTube.
DOSSIÊ
Diálogos sobre educação
O Sesc Santos realiza o seminário Conversas sobre educar 2025 , evento que apresenta reflexões sobre a educação de crianças e jovens em um mundo marcado pela hiperconexão e por desigualdades. Na programação, práticas e saberes ampliam os horizontes da educação integral, abordando os desafios contemporâneos e almejando a construção de um espaço educativo
vivo e transformador. Entre os participantes estão a psicóloga Geni Nuñez, a pedagoga e ex-deputada estadual Erica Malunguinho e a professora e pesquisadora Bárbara Carine. Voltada a pessoas acima de 18 anos, a programação acontece nos dias 22 e 23/10, quarta e quinta, das 10h30 às 18h, no Ginásio da unidade. Mais informações em sescsp.org.br/santos
A cantora canadense Dominique Fils-Aimé é uma das atrações do Sesc Jazz 2025, que começa em outubro.
DE NOVA ORLEANS PARA O MUNDO
Entre 14/10 e 2/11 o jazz é protagonista nas unidades do Sesc São Paulo da capital e interior. A edição do Sesc Jazz 2025 apresenta shows e atividades formativas que celebram este gênero musical em sua dimensão afrodiaspórica, com a presença de 27 artistas nacionais e internacionais.
A programação destaca a valorização do samba-jazz e do afro-jazz, além de promover encontros inéditos, como o da cantora Evinha e do cantor e compositor Marcos Vale, e o dos pianistas Amaro Freitas e Dom Salvador. Outro destaque é o protagonismo feminino com nomes como Dominique Fils-Aimé, cantora
canadense, Moonlight Benjamin, cantora haitiana, e Sélène Saint-Aimé, contrabaixista francesa. Dentre os destaques nacionais estão as cantoras Luedji Luna, em show com participação de Alaíde Costa e Virgínia Rodrigues, e Trio Mocotó, com participação de Ellen Oléria. Saiba mais em sescsp.org.br/sescjazz
FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA
A Credencial Plena do Sesc é um benefício gratuito para pessoas com registro em carteira, que são estagiárias, temporárias, se aposentaram ou estão desempregadas há até dois anos em empresas do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes familiares. Com a Credencial Plena você tem acesso prioritário e descontos na programação e serviços pagos do Sesc.
Qual é a validade da Credencial Plena?
A Credencial Plena tem validade de até 2 anos - para estagiários a validade da Credencial corresponde ao período de vigência do estágio e para desempregados a validade é de até 24 meses após a baixa na carteira de trabalho.
Como fazer a Credencial Plena?
On-line pelo aplicativo
Credencial Sesc SP ou pelo site centralrelacionamento.sescsp.org.br Se preferir, nesses mesmos canais, é possível agendar horários para realização desses serviços presencialmente, nas Centrais de Atendimento das unidades.
Quem pode ser dependente na Credencial Plena?
• Cônjuge ou companheiro
• Filhos, enteados, irmãos e netos até 20 anos ou até 24 anos, se estudantes
• Pai e mãe
• Padrasto e madrasta
• Avôs e avós
Relacionamento com Empresas
É o programa que facilita o acesso ao credenciamento dos funcionários das empresas parceiras dos ramos do comércio de bens, serviços e turismo. Nessa parceria, além do credenciamento, os aproximamos de nossa vasta programação e serviços. Saiba mais em sescsp.org.br/empresas
Acesse o texto "Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc"
Ricardo Ferreira
Ode à vida
Premiada escritora portuguesa, Lídia Jorge reflete sobre como o luto mudou sua forma de pensar e fazer literatura
POR MATHEUS LOPES QUIRINO FOTOS NILTON FUKUDA
No início de 2020, a escritora portuguesa
Lídia Jorge, na época com 74 anos, via as ruas se esvaziando pelas janelas de sua casa, em Algarve, no sul de Portugal. Naquele momento, o mundo era contaminado pelo coronavírus. A vida entrou em suspensão. Em pouco tempo, as fronteiras se fecharam, a pandemia da Covid-19 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o governo português anunciou um rígido toque de recolher. Lídia Jorge, que tinha o costume de visitar a mãe, Maria dos Remédios, de 92 anos, no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, encontrou as portas do local fechadas no domingo de 8 de março daquele ano.
A escritora portuguesa não viu mais a mãe com vida; ela faleceria em 19 de abril daquele ano, vítima de complicações da Covid-19. Lídia Jorge precisou de um tempo para voltar a escrever. E a superação veio com o romance Misericórdia (Autêntica Contemporânea, 2024), inspirado nos últimos anos da matriarca, num lar para idosos. No livro, o leitor acompanha dona Alberti, junto a coadjuvantes que refletem sobre a existência, mas que também fofocam, choram, riem, brigam e amam.
A complexidade das relações humanas e a crítica social são pilares da obra dessa premiada autora. Ainda que muitas vezes surjam temas complicados de tratar, sua
escrita transforma pensamentos, ações banais e conflitos pela teia do lirismo e da sensibilidade. A autora confessa que desejou escrever um enredo diferente de tudo o que já havia feito. “[Misericórdia] é um livro de paixão, que tem uma meditação sobre a existência”, conta.
Considerada uma das grandes damas da literatura portuguesa, Lídia Jorge nasceu na pequena cidade de Loulé, no Algarve, em 18 de junho de 1946, em uma família de camponeses. Foi uma das primeiras crianças de seu vilarejo a estudar. Quando saiu de casa para frequentar o Liceu, levou consigo um ditado materno: “Fica sozinha, governa-te”. Depois dos anos escolares, entre os livros e o ativismo político, a escritora chegou à capital portuguesa em 1965 para cursar a faculdade de filologia românica na Universidade de Lisboa.
No início da década de 1970, como professora, viajou ao continente africano para lecionar em países lusófonos, testemunhando os últimos momentos da Guerra Colonial em Moçambique, findada com a Revolução dos Cravos, em Portugal (1974). Seu primeiro livro, O dia dos prodígios (1980), foi motivado por essas e outras tensões sociais. Ao longo de quarenta anos, ela conquistou dezenas de prêmios pelos mais de 20 títulos publicados, como O vale da paixão (1998), revisto pela autora e relançado neste ano com o nome Diante da manta do soldado
O escritor é sempre um observador do mundo.
Estou sempre querendo ver, querendo saber, querendo espiar, querendo espreitar.
Misericórdia foi agraciado com o prêmio Médicis de livro estrangeiro em 2023, juntamente com o romance I do not bid farewell, da sul-coreana Han Kang, que recebeu o Nobel de Literatura em 2024. Anualmente, Lídia Jorge é um dos nomes lembrados para receber a honraria da Academia Sueca.
Em 2021, a escritora foi escolhida pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para ser conselheira de Estado do país para assuntos relacionados à cultura. Em seus livros, o empoderamento feminino e a crítica à desigualdade se tornaram suas marcas. Também aborda as conquistas e mudanças da sociedade portuguesa em meio século, além de compartilhar sua trajetória, da infância aos primeiros passos na literatura, lugar em que traz à tona temas contemporâneos, como a crise migratória e o fechamento de fronteiras. Nesta Entrevista, realizada em julho, durante A Feira do Livro, na capital paulista, a escritora fala sobre a relação entre Brasil e Portugal, reflete sobre a história de seu país e os caminhos da escrita literária.
Em 10 de junho, a senhora presidiu as comemorações do Dia de Portugal e de Camões na cidade de Lagos, quando discursou sobre várias questões delicadas que têm afetado o continente europeu, como o preconceito contra imigrantes. A exemplo do número de deportações de brasileiros, que cresceu mais de 700% no último ano. Dada a relação histórica entre Brasil e Portugal, como vê essa situação hoje? Portugal foi o colonizador do Brasil e foi uma relação traumática. Essa relação ainda não está completamente ultrapassada. Contudo, a sociedade brasileira tem as suas
camadas controversas – que precisamos compreender. Porque nenhuma sociedade é homogênea. Fala-se muito que continua existindo um substrato escravocrata muito forte [no Brasil]. Vê-se isso muito [presente na sociedade], [o que gera] uma espécie de impossibilidade para o desenvolvimento do país. A desigualdade também existe em Portugal. Há uma espécie de desentendimento entre as pessoas, nos dois países, por não acreditar em uma unidade, uma causa comum a todos. Porque, a partir do momento que nós entendermos que somos uma soma, não vale a pena pensar que o passado nos desune. O passado é para ser conhecido para que o presente o ultrapasse. Para recomeçar um novo mundo sem escravos e senhores. Hoje, as sociedades que têm em sua matriz o imigrante e a miscigenação quer expulsá-los, como tem acontecido nos Estados Unidos. Alguns países não têm capacidade para ver quem vem para servir a nação e quem não vem. E é um modelo [de intolerância] que está em curso.
É possível mudar esse modelo?
Penso eu que, para além de todas estas divisões que nos passam, é preciso olhar nos olhos e perceber que o futuro é um futuro de superar as diferenças que nos separam. Os direitos humanos, que são absolutamente horizontais, deveriam fazer parte de nossa cartilha cotidiana. É chocante ver que os portugueses, que andaram por toda parte para ganhar a vida, estejam esquecidos desse passado e queiram expulsar [imigrantes] de uma forma cruel, sem ter a noção daquilo que é o acolhimento. É preciso proteger os que chegam e os que estão. É preciso [que haja] leis justas. Eu não advogo uma porta aberta escancarada, mas defendo que, entrando, temos que nos entender uns com os outros. O migrante que vem é um ser pleno de direitos. Precisa ser ouvido, respeitado.
Portugal é notoriamente conhecido por ser a terra de um “povo pessimista”, haja vista o fado, que é lindo, mas muito triste e nostálgico. A que se deve essa melancolia? Quando se diz que os portugueses são tristes e melancólicos, é verdade. Mas quando sentimos uma espécie de autosatisfação é ao contrário. Sonhamos muito. Somos ambivalentes. Passamos de um estado de pessimismo, imediatamente, a um estado eufórico. Então, acho muito difícil caracterizar os portugueses. É muito fácil passar do sentimento de que não valemos nada para o sentimento de que somos os maiores. Nós somos gente carente de reconhecimento. Andamos sempre à procura daquilo em que somos bons, para ficar novamente eufóricos e superar esse fundo pessimista, essa falta.
A questão da falta impactou as sociedades em diversas frentes. Como lidar com o sentimento que está no cerne da sociedade? Temos dificuldade de ilustrar aquilo que pensamos com medo de sermos punidos, com medo de não sermos aceitos, com medo de perder o emprego, com medo de que o patrão nos olhe de lado, com medo de perder dinheiro. Existe a nós [portugueses] esse medo atávico da perda. E por isso esse sentimento [da pobreza] é permanente e faz, a meu entender, com que a democracia falhe pela falta de um diálogo aberto. Nesse momento, a falta de diálogo aberto é extraordinária porque está a ser substituída por uma espécie de agressão aberta. Isto é, em vez de haver diálogo, passou-se a outro nível. A cultura digital veio substituir aquilo que seria um diálogo
O passado é para ser conhecido para que o presente o ultrapasse. Para recomeçar um novo mundo sem escravos e senhores.
como uma espécie de confronto. Não com opiniões, mas com afirmações irredutíveis que criam uma espécie de estado latente de crueldade entre as pessoas.
A literatura pode combater essa crueldade?
A literatura é um antídoto poderoso, ainda que seja uma espécie de softpower. Porque é muito difícil escrever um livro que consiga, em um momento, travar uma guerra. Me lembro de uma escritora que morreu na guerra da Ucrânia [refere-se à Victoria Amelina (1986-2023)], que, de certa forma, descreveu e previu a situação. Seus livros não conseguiram salvá-la. A literatura tem o poder de deixar exemplos póstumos. Quem a ler no futuro vai formar uma consciência e negar aquilo que é a violência. A ação não é imediata. É um processo de reflexão para a criação de valores melhores. É uma formação preventiva, mas que não tem o poder da votação, que pode se ter na ONU (Organização das Nações Unidas). É um poder diferente.
A senhora acompanha movimentos sociais, políticos e conflitos desde a década de 1970. Quais mudanças e eventos foram mais significativos para a sociedade portuguesa?
Dá-se a Revolução dos Cravos e, dois anos depois, cria-se um novo Código Civil, porque o Código Civil de antes [da Revolução] era medieval. Essa é uma mudança extraordinária, muito por conta da liberdade de imprensa e de expressão, que foi fundamental para as mulheres, além da influência do movimento feminista, que começa antes, com o livro Novas cartas portuguesas [obra de referência escrita por Maria Isabel Barreno (1939-2016), Maria Teresa Horta (1937-2025) e Maria Velho da Costa (1938-2020), entre 1971 e 1972]. As mulheres não eram donas de si em nada. Hoje, em Portugal, há uma questão fundamental: as mulheres são donas de seu próprio corpo. São elas que determinam quando podem ser mães. E isso é uma coisa que distingue a sociedade.
Essas conquistas estão consolidadas ou ainda sob ameaça de sofrer retrocessos?
Hoje, eu olho para o passado e vejo que ainda há resquícios da sociedade de antigamente. Porque uma sociedade não muda tão rapidamente. No mundo do trabalho, as mulheres ainda não assumem posições como a dos homens, mas seu valor é reconhecido e elas competem por toda parte. Por mais que haja movimentos retrógrados e violência, esse pensamento de liberdade faz parte de uma cultura superior que alcançamos com muita luta.
Como transpor os dramas reais para a ficção, como fez em Misericórdia?
O escritor é sempre um observador do mundo. Estou sempre querendo ver, querendo saber, querendo espiar, querendo espreitar. No caso do livro, é uma situação muito particular. Não fui uma colaboradora fria, mas alguém envolvido. Tive a capacidade de perceber as relações humanas, quando se há uma espécie de fragilidade do corpo em contraponto com os sonhos da alma. Essa situação, eu vi durante três anos, de forma muito presente.
Então, o livro começou a ser elaborado antes da morte de sua mãe?
Quando a minha mãe faleceu, por diversas razões, eu percebi que era impeditivo escrever esse livro de imediato. Sobretudo porque ela me pediu para que eu escrevesse um livro chamado Misericórdia. Eu não quis escrever um livro sobre ela, mas um livro a partir dela e, portanto, essas tantas figuras que aparecem na história são uma personagem coletiva, mas surgem como personagens individuais que expressam seus sentimentos. No livro, há um choro, mas há também um riso. Tem o dia fervilhante, mas tem a noite pesarosa que nunca mais acaba.
Penso eu que, para além de todas estas divisões que nos passam, é preciso olhar nos olhos e perceber que o futuro é um futuro de superar as diferenças que nos separam
Como foi lidar com a morte à espreita em lares para idosos? Em determinado momento do livro, a senhora escreve: “Vence-me noite, se és capaz”. E [a noite] não a vence. Ela [a personagem] fica até o fim. É ela quem tem a última palavra [no livro]. Porque o livro tem várias batalhas, é um livro de resistência. Para se superar [a morte], para que fique o belo, para que se fique jovem, para que se continue a amar, para ter todas as funções devidas até o fim. Dignidade. Por isso, é isso mesmo [um desafio]: “Vence-me noite se és capaz”. E ela não é capaz de vencer. Ali [no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, onde minha mãe residia], não estavam só os mais velhos. Estavam também os jovens que cuidavam. Isso é curioso, porque há uma mistura das idades, de todas as idades. Foi isso que me deu ânimo para escrever esse livro. Essa mistura de experiências que passei a transfigurar.
Transformar a realidade em ficção nos remete aos livros do início da sua carreira, no começo da década de 1980. Os temas sociais, ainda que tratados com lirismo em Misericórdia, são pilares de sua literatura? Exatamente. Em geral, meus livros costumam reproduzir os movimentos da história atual. São mais sociais. O período em que morei na África foi muito forte. Foi o fim de um império de quinhentos anos.
Como foi presenciar a revolução histórica desencadeada pela Guerra Colonial Portuguesa? Eu era muito jovem, tinha acabado o curso universitário, e percebi que estava vivendo o momento último de dominação não só do império português, mas o momento último de uma dominação da Europa sobre a África. Foi uma luta intensa e injusta. Injusta para jovens portugueses
que morriam, que ficaram despedaçados, feridos, avariados da cabeça, traumatizados de toda maneira. E era injusta para os outros que morreram [no campo de batalha]. Quase um milhão de portugueses morreram no período, e, do outro lado, não sabemos a quantidade exata de pessoas, não há quantificação. Foi um período de muito sofrimento. Eu comecei a escrever literatura a partir daí.
A senhora vem de uma família camponesa, e a literatura, historicamente, sempre esteve associada à elite. Como a literatura começou a fazer parte da sua vida?
O método que foi usado [comigo] foi selvagem. Havia uma biblioteca em casa com os autores românticos do século 19 e comecei a ler em voz alta as histórias de autores populares do campo, como Camilo Castelo Branco (1825-1890) – que não eram para a minha idade. Foi uma experiência traumática, porque a literatura romântica é muito dramática. E nesse universo, a morte aparecia frequentemente. Os abandonos, as tragédias, os amores súbitos que levavam as pessoas a morrerem e a matarem. Eu fazia uma mistura. Ia das histórias infantis às dramáticas. Eu fui uma criança dividida entre dois mundos [ficção e realidade]. Curiosamente, foi isso que acabou por me fazer escrever sobre a vida. Escrevia para me sentir em paz. Sentir que havia harmonia no mundo. Foi uma espécie de antídoto que encontrei com a escrita. Assista a trechos dessa Entrevista com a escritora Lídia Jorge, realizada n'A Feira do Livro, em julho de 2025.
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iNEZiTA BARROSO
AO ViVO NO SESC _ 1978
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Relicário: Inezita Barroso (ao vivo no Sesc 1978)
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ALIMENTAR A transfo
rmação
Da produção ao prato, iniciativas apontam caminhos para conciliar a alimentação com a sustentabilidade
POR MARCEL VERRUMO FOTOS NILTON FUKUDA
Vista aérea das hortas do negócio socioambiental Prato Verde Sustentável: espaço ultrapassa 500 canteiros que ocupam 13 mil m² e empregam 46 famílias do Jardim Filhos da Terra, zona Norte de São Paulo.
Em 2013, os moradores do Jardim Filhos da Terra, na periferia da zona Norte de São Paulo, sentiam a falta de locais que vendessem alimentos saudáveis (frutas, legumes, verduras etc.), enquanto se multiplicavam os comércios que ofertavam produtos ultraprocessados (salgadinhos de pacote, bolacha, entre outros).
Recém-formado em gestão ambiental, o morador Wagner Ramalho começou a se incomodar com esse cenário, conhecido como deserto alimentar. Certo dia, caminhando pelo bairro, observou inúmeros terrenos baldios, repletos de garrafas pet e de outros materiais, e teve a ideia de cultivar hortas agroecológicas nesses locais. Era o início do negócio socioambiental Prato Verde Sustentável.
Com o aval da Associação Mutirão, organização nãogovernamental que gerenciava os terrenos, Ramalho idealizou um trabalho de educação ambiental com crianças e jovens da região. “Os participantes pegavam as garrafas pet do ambiente e plantavam alface, cebolinha e outros alimentos, criavam hortas. Durante esse trabalho, a gente falava do ciclo da água, da fotossíntese, e as crianças conseguiam ver a relação entre os conhecimentos”, conta.
A iniciativa cresceu e atraiu participantes de outras idades. Mais de uma década depois, as hortas do Prato Verde Sustentável ultrapassam 500 canteiros, ocupando uma área total de 13 mil m² e empregando 46 famílias. Parte dos alimentos cultivados é preparada em uma cozinha da iniciativa que produz mais de 500 refeições diárias, servidas gratuitamente à comunidade. Também são destinados alimentos agroecológicos a creches e Centros para Crianças e Adolescentes (CCAs) da região, enquanto produtos derivados ainda são comercializados. “Nossa ação mostra a riqueza da periferia. Tiramos os nossos recursos da terra e do nosso trabalho, e transformamos um bairro com desertos alimentares em um espaço que produz alimento saudável e gera renda, onde as pessoas têm orgulho de morar”, diz Ramalho, sintetizando a mudança promovida pela iniciativa comunitária.
Das hortas agroecológicas cultivadas pelo Prato Verde Sustentável no Jardim Filhos da Terra até a refeição servida, os alimentos percorrem uma série de etapas, sendo modificados por tecnologias e manuseados por diferentes pessoas. Esse caminho, incluindo seus indivíduos, equipamentos e técnicas, compõe o que pesquisadores chamam de sistemas alimentares –no caso, um sistema alimentar sustentável.
CAMINHO DOS ALIMENTOS
“Os sistemas alimentares compreendem todas as etapas, processos e setores [ligados aos alimentos], desde a terra, a semente e os trabalhadores, passando pelo transporte, processamento, abastecimento, preparação e modos de consumo e refeições”, define Elisabetta Recine, nutricionista e professora da Universidade de Brasília (UnB).
Essa jornada da comida influencia a vida dos trabalhadores, o meio ambiente e o que chega aos pratos. Se uma região prioriza técnicas agroecológicas e a agricultura familiar, por exemplo, tende a ter uma disponibilidade maior de alimentos saudáveis e diversos, e o solo preservado. Por outro lado, se essa trajetória for pautada por um sistema baseado na monocultura, pode diminuir a biodiversidade disponível à mesa e a preservação do meio ambiente. “Os sistemas alimentares são a ‘espinha dorsal’ de tudo o que comemos, definindo a variedade, a qualidade, o preço e a disponibilidade dos alimentos que chegam ao nosso prato”, defende Gabriela Rigote, nutricionista e mestra em ciências.
A maior parte dos sistemas alimentares do mundo é insustentável, segundo Rigote, valorizando modelos voltados à produção em larga escala e priorizando as monoculturas de commodities agrícolas, como a soja e o milho. O resultado, defende a pesquisadora, são pratos com menos frutas, legumes e verduras, e um consumo maior de ultraprocessados.
A necessidade de tornar mais sustentáveis os caminhos dos alimentos é um tema urgente, fazendo parte dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU). Até 2030, o documento toma como uma das metas “garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo”.
DA TERRA AO PRATO
Para tornar sustentável a jornada percorrida pelos alimentos, não basta preservar o solo, a água e as florestas, é necessário conciliar o tripé do desenvolvimento econômico, social e ambiental. “Do ponto de vista econômico, [os sistemas alimentares] precisam ser rentáveis para distintos elos da cadeia produtiva e com práticas de comércio justo. Devem, ainda, gerar benefícios amplos para a sociedade e
buscar neutralizar os impactos ambientais negativos da produção, distribuição e consumo de alimentos”, diz Gustavo Porpino, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Alcançar a sustentabilidade exige uma série de investimentos. Para a professora da UnB Elisabetta Recine, é preciso que os sistemas alimentares sejam produtivos e prósperos, garantindo a disponibilidade de alimentos suficientes à população, de forma equitativa e inclusiva, promovendo o acesso de todas as pessoas à comida e aos meios de subsistência. Esses sistemas também necessitam ser empoderadores, fomentando a autonomia dos cidadãos e grupos, e incluindo os mais vulnerabilizados; além de resilientes e regenerativos, para serem sustentáveis e estáveis, inclusive em períodos de crise; e saudáveis e nutritivos, promovendo a saúde.
Quem trabalha para a conformação de sistemas alimentares mais sustentáveis é o bacharel em gestão ambiental e doutor em patologia, Guilherme Reis Ranieri, especialista em PANCs (plantas alimentícias não convencionais), pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), e idealizador do projeto digital Matos de
Quando recém-formado em gestão ambiental, Wagner Ramalho, morador do Jardim Filhos da Terra, na periferia da zona Norte da cidade, viu uma oportunidade de transformar inúmeros terrenos baldios em hortas agroecológicas na região.
alimentação
TIRAMOS OS NOSSOS RECURSOS DA TERRA
E DO NOSSO TRABALHO, E TRANSFORMAMOS UM BAIRRO COM DESERTOS ALIMENTARES
EM UM ESPAÇO QUE PRODUZ ALIMENTO SAUDÁVEL E GERA RENDA, ONDE AS PESSOAS TÊM ORGULHO DE MORAR
Wagner Ramalho, fundador do Prato Verde Sustentável
Comer. O especialista leva a biodiversidade alimentar para as hortas urbanas, repensando as espécies e técnicas aplicadas nesses locais, e já desenvolveu projetos em cidades como São Paulo e Jundiaí.
“As hortas urbanas são reservatórios de biodiversidade alimentar. Consideradas uma forma de agricultura familiar, elas têm um enorme potencial de produzir alimentos saudáveis, sem o uso intensivo de insumos e agrotóxicos, e ainda valorizam a biodiversidade que ficou à margem dos sistemas alimentares maiores, como é o caso das plantas alimentícias não convencionais (PANCs)”, defende Ranieri. O gestor também cita a agroecologia como ciência promotora da sustentabilidade nos sistemas alimentares, por adotar práticas com menor impacto ambiental e, por vezes, até regenerativas (ao invés de degradarem o solo e contaminarem a água, podem melhorá-los com o tempo).
NUTRIR O PRÓPRIO TERRITÓRIO
A lógica linear é outro desafio dos sistemas alimentares. O enfoque à exportação de commodities é uma característica que pode resultar no aumento de preços dos alimentos básicos, na fome e na geração
de resíduos, além da monotonia alimentar (diminuição da diversidade à mesa). “O desperdício de alimentos é parte inerente do sistema [insustentável]. Temos casos extremos, como o descarte em redes varejistas de carnes e o descarte de frutas que viajam o mundo, chegam ao ponto de venda com preços premium para o segmento de maior renda e terminam indo, em parte, para o lixo”, avalia o pesquisador Porpino, apontando a importância da valorização de práticas de economia circular em resposta.
No bairro de Campo Limpo, zona Sul de São Paulo, a chef Tia Nice (Cleunice Maria de Paula) e seu filho, o empreendedor Thiago Vinícius, fundaram o Organicamente Rango em 2018, negócio que desafia a lógica linear das monoculturas voltadas à exportação e serve uma alimentação adequada e saudável à população local. Nascida em Santa Mônica, cidade do interior do Paraná, a chef trabalhou por cerca de quatro décadas na capital paulista, onde aprendeu diversas técnicas culinárias que pôde aplicar no seu próprio restaurante.
Com o sucesso do empreendimento, a dupla comprou um sítio onde começou a cultivar alimentos orgânicos e agroecológicos. Aquilo que era produzido nas hortas passou a ser preparado e servido no restaurante que,
Nascida em Santa Mônica (PR), a chef Tia Nice trabalhou por cerca de quatro décadas na capital paulista, onde aprendeu diversas técnicas culinárias até abrir seu próprio restaurante, o Organicamente Rango, focado em alimentação orgânica para todos.
NUNCA PRECISEI ATRAVESSAR A PONTE PARA COMPRAR UM ALIMENTO SAUDÁVEL.
AQUI NA PERIFERIA, CULTIVO COMIDA
BOA, QUE VALORIZA A DIVERSIDADE E RESPEITA
O MEIO AMBIENTE.
Tia Nice, chef e cofundadora do Organicamente Rango
O PAPEL DO ESTADO
Embora as iniciativas da sociedade civil sejam valiosas para promover a sustentabilidade na alimentação, especialistas indicam que é preciso que o Estado também se envolva com o tema, por meio de políticas públicas que gerem ganhos tanto para quem produz quanto para quem consome. “É papel das políticas públicas fomentar o cultivo e o consumo de alimentos saudáveis, atenuar falhas de mercado, contribuir com o financiamento da produção e do abastecimento, e fortalecer ações intersetoriais e entre diferentes níveis de governo”, elenca Porpino.
Exemplo de política pública que promove a sustentabilidade, a nova cesta básica, de 2024, prioriza os alimentos in natura (obtidos diretamente de plantas e animais, e que não sofreram qualquer alteração após deixar a natureza, como frutas, legumes e verduras) e minimamente processados (grãos empacotados ou moídos na forma de farinha, carne resfriada ou congelada e leite pasteurizado, que são alimentos submetidos a processamentos mínimos, como limpeza, moagem e congelamento), respeitando as recomendações do Guia alimentar para a população brasileira (2014), do Ministério da Saúde. “Isso incentiva tanto uma alimentação mais diversificada, adequada e saudável, contribuindo com a valorização da biodiversidade brasileira, como também a agricultura familiar, que tem um papel de destaque na produção desses alimentos”, diz Rigote.
além de atender no próprio endereço, também recebe pedidos por delivery e doa refeições a pessoas em situação de insegurança alimentar. “Nunca precisei atravessar a ponte para comprar um alimento saudável. Aqui na periferia, cultivo comida boa, que valoriza a diversidade e respeita o meio ambiente”, conta a chef. Respeitando a circularidade dos alimentos, a equipe do restaurante separa o lixo orgânico e produz adubo com os restos de comida, evitando o desperdício. Junto à mãe, Thiago Vinícius sintetiza a mudança promovida: “o Organicamente Rango mostra que não é só o Centro que tem o direito de comer bem. A periferia é ‘PhD’ na alimentação brasileira.”
Entre outras políticas públicas mencionadas pelos pesquisadores, também se destacam o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O primeiro é uma ação do governo federal responsável por adquirir alimentos da agricultura familiar e distribuí-los a pessoas em situação de vulnerabilidade social, equipamentos públicos, dentre outros espaços.
Já o segundo, também de nível federal, distribui alimentos a alunos de todos os níveis da educação básica, privilegiando alimentos locais e da agricultura familiar. “Essas políticas contribuem para ampliar a oferta de produtos da agricultura familiar e impactam positivamente a redução de perdas decorrentes da falta de acesso a mercados para alimentos in natura”, argumenta Porpino.
alimentação
SEMEAR A MUDANÇA
Além de transformar a jornada dos alimentos com etapas, processos e técnicas mais sustentáveis, ações educativas que deem autonomia aos cidadãos precisam ser promovidas, ajudando os indivíduos a fazer escolhas mais saudáveis. “A Educação Alimentar e Nutricional (EAN) sensibiliza os cidadãos para os impactos multidimensionais de suas escolhas alimentares e, então, motiva-os a tornarem-se agentes de transformação”, diz Erika Fischer, gestora pública especializada em programas de alimentação escolar e segurança alimentar, cofundadora do Instituto Comida e Cultura, organização voltada à promoção da EAN.
Essas práticas educativas devem ser impulsionadas desde os primeiros anos de vida da criança, segundo Fischer, de modo a forjar uma futura geração de cidadãos mais conscientes, saudáveis e engajados. “São inúmeras as possibilidades de atuação, mas entendemos que uma abordagem integrativa deva visar à formação de hábitos duradouros, promover a conexão entre teoria e prática e valorizar os saberes e a sociobiodiversidade dos territórios”, defende, citando como exemplos o desenvolvimento de hortas pedagógicas, oficinas culinárias, criação de livros de receitas afetivas e visitas a fazendas de produção agroecológica.
Para cultivar hortas em terrenos desocupados da periferia, o Prato Verde Sustentável desenvolveu um trabalho educativo com crianças e jovens da comunidade, propagando saberes sobre os alimentos e o meio ambiente. No início, em 2013, as ações eram voltadas exclusivamente aos moradores da zona Norte. Conforme a iniciativa cresceu e foi reconhecida pelo Brasil afora, a equipe passou a ser procurada para realizar atividades educativas em outros locais.
fundadores do Organicamente Rango, em Campo Limpo, zona Sul de São Paulo, serve uma alimentação adequada e saudável à população local, de olho no futuro das gerações.
“Fizemos até uma capacitação em Sol Nascente [localizada no Distrito Federal, a maior favela do país em número de domicílios, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)]. Foi uma formação com jovens e adolescentes em regime semiaberto, em que falamos de agroecologia, racismo ambiental e crise climática”, conta o idealizador do Prato Verde Sustentável, Wagner Ramalho. Segundo ele, os jovens impactados pela ação já se tornaram multiplicadores e, hoje, levam a mais pessoas o que aprenderam: “acredito que a educação ambiental seja o caminho para semear saberes e mudar a realidade de comunidades em todo o Brasil”.
Junto à filha Maria Flor, Thiago Vinicius, um dos
para ver no sesc / alimentação
EDUCAÇÃO ALIMENTAR NO CARDÁPIO
Sesc São Paulo realiza 9ª edição do Experimenta! Comida, Saúde e Cultura com mais de 180 atividades gratuitas em todas as unidades da capital, interior e litoral
De 14 a 26 de outubro, o Sesc São Paulo realiza a 9ª edição do Experimenta! Comida, Saúde e Cultura, e convida o público a refletir sobre o universo da alimentação em suas múltiplas dimensões. No mês do Dia Mundial da Alimentação (16/10), serão realizadas mais de 180 atividades gratuitas, em todas as unidades do Sesc São Paulo, como bate-papos, palestras, oficinas culinárias, dentre outros formatos. “Iniciativa
integrante das ações educativas em Alimentação do Sesc São Paulo, o Experimenta! Comida, Saúde e Cultura é um convite à descoberta de sabores e saberes, fomentando a autonomia para escolhas mais saudáveis, justas e sustentáveis”, diz Mariana Meirelles Ruocco, gerente da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo.
Confira destaques da programação.
POMPEIA
À mesa com o bem-estar
Na palestra, o médico
Drauzio Varella e a nutricionista
Patrícia Jaime abordam como as escolhas alimentares podem ser aliadas na construção de práticas promotoras da saúde. Dia 14/10. Terça, às 18h. GRÁTIS.
CONSOLAÇÃO
Na Feira Também Tem!
Oralidade e Saberes
Gastronômicos
Vivência com Dani Lisboa, com escuta e partilha de histórias gastronômicas, que serão registradas em um livro coletivo de receitas e memórias. Dia 18/10. Sábado, às 13h30. GRÁTIS.
BELENZINHO
Cozinha na nossa mão
A importância do consumo de alimentos da época e provenientes da natureza é o tema desta oficina culinária, conduzida pela nutricionista Neide Rigo. Dia 22/10. Quarta, às 19h. GRÁTIS.
TAUBATÉ
Como desenvolver
autonomia e responsabilidade alimentar, da infância à adolescência
A nutricionista Gabriela Kapim aborda escolhas e rotinas alimentares, saúde infantil a partir do prato, e como desigualdades sociais e econômicas influenciam o que é servido à mesa.
Dia 23/10. Quinta, às 20h. GRÁTIS.
Ator e diretor Sérgio Cardoso protagonizou produções do teatro, cinema e televisão. Na foto, o ator na telenovela Somos todos irmãos, 1966, na TV Tupi.
Faces da LENDA
Há cem anos, nascia Sérgio Cardoso, multifacetado ator e diretor que assinou importantes capítulos da história do teatro e da televisão
POR MANUELA FERREIRA
Em agosto de 1972, a telenovela O primeiro amor prendia o Brasil em frente à televisão. Muito desse sucesso era motivado pela interpretação do ator e diretor Sérgio Cardoso (1925-1972), no papel do professor Luciano, o protagonista. A trama estava a apenas 28 capítulos do fim quando o intérprete faleceu prematuramente, aos 47 anos, vítima de um ataque cardíaco, no auge da carreira e da popularidade. Seu enterro levou 15 mil pessoas ao Cemitério São João Batista, em Botafogo, zona Sul do Rio de Janeiro, e espelhou um país em choque. Confirmava-se ali o artista como uma figura central na consolidação das telenovelas, uma das expressões marcantes da cultura nacional. Para além da tela, em sua breve vida, Cardoso foi referência para outros colegas de profissão e grandes nomes das artes cênicas, tido como um dos maiores e mais profícuos atores e empresários teatrais do seu tempo.
Recuperar a memória e o legado do criador é o cerne do livro Sérgio Cardoso: ser e não ser (2024), das Edições Sesc São Paulo, escrito pelo professor, pesquisador e diretor teatral Jamil Dias [leia mais em Luz e sombra]. A obra desvenda não apenas um artista de abordagem única, com uma predileção pela grandiosidade lírica do teatro clássico, o que o diferenciava da vertente realista que caracterizava a maioria de seus contemporâneos, mas, também, os matizes que faziam dele um indivíduo ímpar, cuja autenticidade se refletia tanto nos palcos, quanto em sua própria existência. “Sérgio Cardoso foi um homem
fascinante e, também, muito contraditório. Conviver com essas contradições e mais um lado sombrio, abissal, de sua personalidade não era certamente algo simples para ele e para os que o acompanhavam mais de perto. Mas, para estes últimos – assim como para o público em geral –havia o seu lado brilhante, carismático, que compensava tudo. Para mim, a imagem que fica é a de um artista cuja trajetória não pode ser esquecida”, explica o biógrafo.
VENTOS DO NORTE
Foi em Belém do Pará, sua cidade natal, que Sérgio Cardoso deu seus primeiros sinais artísticos. Mesmo em uma família católica e tradicional liderada pelo pai Francisco, gerente de banco, o menino, por vezes introvertido, encontrava a liberdade para suas imitações, fosse nas brincadeiras com os irmãos ou nos colégios jesuítas por onde passou. Essa inclinação inata o levou ao seu primeiro papel, aos 20 anos, já estudante de direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Era a montagem de Romeu e Julieta, de William Shakespeare (1564-1616), encenada pelo Teatro Universitário (TU). Na peça conduzida pela atriz Esther Leão (1892-1971), interpretou Teobaldo, explosivo e orgulhoso sobrinho de Lady Capuleto e primo de Julieta. Para o trabalho, mergulhou no rigor do texto clássico de tal forma que isso se tornou uma etapa fundamental em seu desenvolvimento como ator.
Eu era criança ainda e fui levada para vê-lo ao final do espetáculo “A raposa e as uvas”, no Teatro Bela Vista. [...] O olhar dele era brilhante, orgulhoso com o resultado daquele dia. Nunca esqueci aquele olhar. Quando ele me abraçou, me fez entender o que aquilo tudo significava para ele.
Sylvia Leão, filha de Sérgio Cardoso
“Quando jovem, ele foi um frequentador assíduo da vida cultural do Rio de Janeiro: espetáculos, conferências, exposições – o seu círculo de amigos era todo formado por pessoas muito interessadas por essas atividades. Mas, os cursos de teatro não tinham a presença que têm atualmente, mesmo em grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo. O aprendizado teatral se dava mais pela apreciação do trabalho de atores consagrados, tanto nacionais (observando-os atentamente em peças teatrais) quanto internacionais (por meio do cinema ou das visitas ao Brasil de importantes companhias estrangeiras – que aconteciam com razoável frequência)”, analisa Jamil Dias. Ao conhecer o Teatro do Estudante do Brasil (TEB), contudo, Cardoso selou sua decisão de abraçar de vez a veia artística, abandonando o sonho de ingressar na carreira de diplomata no Itamaraty.
CHAMADO INTERIOR
A seleção para o protagonista de Hamlet, montada pelo TEB, em 1948, consolidou a mudança de rumos: o rigoroso concurso para a segunda montagem brasileira da peça reuniu 82 candidatos, avaliados por um júri notável que incluía a poeta Cecília Meireles (1901-1964) e a escritora Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982). Nos bastidores,
comentava-se que o ator Luís Linhares (1926-1995) era o favorito, mas Sérgio Cardoso, preparado com afinco, e incentivado pelo ator e amigo Sérgio Britto (1923-2011), surpreendeu. A cena do teste é descrita em Sérgio Cardoso: ser e não ser: “Um certo desânimo aparecia no humor de alguns jurados quando chegou a vez de aquele jovem magro, de aspecto tímido e formal, usando pesados óculos de grau, mostrar a sua versão do mais célebre monólogo do teatro ocidental. Ele levantou-se de sua cadeira, em mangas de camisa, tirou os óculos de lentes grossas, deixando que a plateia percebesse seu olhar perturbador. Sua voz envolveu os presentes e fez-se o milagre: durante alguns minutos, todos o acompanharam num silêncio total, com surpresa e admiração. Quando ele terminou, a multidão concentrada no pequeno auditório explodiu em entusiástico aplauso”.
Com o sucesso do espetáculo, a atenção da imprensa provocou, também, uma certa má vontade em relação ao comportamento de Sérgio Cardoso, “que contribuiu para disseminar, em pouco tempo, um vasto anedotário a seu respeito, ou pelo menos uma ampliação dos fatos reais: que ele desmaiava muitas vezes nos agradecimentos finais, procurando absorver todas as atenções; que era dado aos mais diversos achaques antes de entrar em cena; e outras idiossincrasias resultantes do êxito súbito e precoce”, escreveu Jamil Dias. Em 1949, Cardoso daria outro importante passo ao fundar o Teatro dos Doze, onde levou aos palcos Arlequim, servidor de dois amos, de Carlo Goldoni (1707-1793); Tragédia em New York, de Maxwell Anderson (1888-1959), e o infantil Simbita e o Dragão, de Lúcia Benedetti (1914-1998), sob direção artística de Ruggero Jacobbi (1920-1981), ampliando seu repertório artístico.
Com a companhia, adquiriu tanto prestígio quanto dívidas, que o forçaram a encerrar as atividades do grupo e aceitar a proposta para integrar o recém-criado Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), projeto fincado em São Paulo, e que incluía uma estrutura profissional inédita no país. Na nova companhia, Sérgio Cardoso atuou em vinte espetáculos, entre os quais A importância de ser prudente, de Oscar Wilde (1854-1900); Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello (1867-1936) e Anjo de pedra, de Tennessee Williams (1911-1983), em que brilhou ao lado da atriz Cacilda Becker (1921-1969).
TEMPO DE MUDANÇA
Segundo a atriz, diretora e pesquisadora Lígia Cortez, a investigação que Cardoso empreendeu para desenvolver sua atuação em Hamlet, na qual predomina a leitura do
personagem como um homem ferido, justamente por ser bom e generoso, também mostra o quanto ele não se acomodava com saídas fáceis. “A paixão que ele nutria pelo ato interpretativo, composição de personagens, domínio e profundidade do texto, é algo que veio a se tornar não só um traço do seu trabalho, mas um valor que ele compartilhou com uma multidão de colegas de cena”, reflete. Para Cortez, de forma inédita, Sérgio Cardoso se reinventava a cada novo papel, como se o novo personagem demandasse uma construção sempre original de gestos, de atitudes, de intenções e de expressão vocal.
“Nesse ponto, a pesquisadora Maria Thereza Vargas destaca a habilidade do ator em fazer, mesmo dos textos mais complexos, uma lição de interpretação, pela particularidade com que ele se apropriava de cada fala, ‘uma aula do bem-dizer’. Essa apropriação íntima e autoral dos textos em que Sérgio Cardoso atuava é ainda mais notável quando se tem em conta que o repertório dele incluiu personagens célebres de autores de culturas e épocas bastante distintas, a exemplo de Molière (1622-1673)
e Nelson Rodrigues (1912-1980) e que, ao se experimentar como ator nessas construções, Cardoso contribuiu para esboçar uma assinatura brasileira para a interpretação de obras clássicas – e fez isso tanto individualmente, como ator, quanto no trabalho coletivo de formação estabelecido junto aos grupos teatrais onde esteve inserido”, define Lígia Cortez.
FIOS DO DESTINO
Casado com a atriz Nydia Licia (1926-2015) e pai da pequena Sylvia, buscou novos desafios e aceitou ser o principal ator da Companhia Dramática Nacional (CDN) no Rio de Janeiro. Lá, brilhou em peças como A falecida, de Nelson Rodrigues (1912-1980), e A raposa e as uvas, sob a direção de Bibi Ferreira (1922-2019). Em 1954, fundou a Companhia Nydia Licia-Sérgio Cardoso, focada em repertório nacional. Dois anos depois, o Teatro Bela Vista, na capital paulista, foi aberto como sede do grupo, apresentando uma aclamada nova versão de Hamlet – o local foi rebatizado, em 1980,
Sérgio Cardoso e a atriz Nydia Licia (1926-2015), no cenário de Vestido de noiva (Nelson Rodrigues), no Teatro Bela Vista, em São Paulo, em 1958.
A paixão que ele nutria pelo ato interpretativo, composição de personagens, domínio e profundidade do texto, é algo que veio a se tornar não só um traço do trabalho dele próprio, mas um valor que ele compartilhou com uma multidão de colegas de cena
Lígia Cortez, diretora, atriz e pesquisadora
como Teatro Sérgio Cardoso. Com a separação do casal, em 1960, a companhia se desfez, período de grande sofrimento pessoal para o artista e no qual também iniciaria uma transição do teatro para a televisão, vivenciando um bem-sucedido deslocamento entre linguagens, para o qual a personalidade do artista contribuiu essencialmente.
“Vários aspectos me impressionaram [nesta virada]. Primeiramente a capacidade de vencer as barricadas dos preconceitos de ambos os lados, que eram muito fortes na época – tanto o desprezo da gente do teatro pela televisão, por considerá-la superficial e indigna de um verdadeiro artista, quanto da gente da televisão, por considerar os artistas de teatro muito formais, pretensiosos e técnicos para o veículo, incapazes de atingir a espontaneidade buscada por esse veículo”, comenta Jamil Dias. No caso de Sérgio Cardoso, segundo o escritor, não havia a intenção de fazer televisão, e ele se dispôs a experimentar o veículo (a telenovela) num momento muito difícil da sua carreira e, inicialmente, apenas por razões econômicas.
“Mas, para surpresa geral, o talento e o carisma do ator o transformaram logo em um fenômeno de popularidade, levando as emissoras de televisão a abrirem espaço para Sérgio, e para ele trazendo de volta a glorificação do público que experimentara no início de sua carreira teatral. (...) Em seu trabalho, era dotado de um grande cuidado técnico, mas também de uma entrega emocional que não raro atingia o território da irracionalidade. Vejo-o como um ator romântico, capaz de encantar com a beleza de sua voz, a potência de suas caracterizações e a força de suas emoções – ainda que isso lhe custasse um preço bem alto em termos pessoais”, enumera o autor.
ATOS FINAIS
Tais doses de sentimento e doação fazem parte das recordações da médica, pesquisadora e professora Sylvia Leão, filha do artista e guardiã do acervo dos pais Nydia Lícia e Sérgio Cardoso. “Eu era criança ainda e fui levada para vê-lo ao final do espetáculo A raposa e as uvas, no Teatro Bela Vista. Ele fazia o papel de Esopo, um escravo maltrapilho, com uma maquiagem pesada que o envelhecia, deformado às custas de uma corcunda falsa e com as pernas retorcidas com ataduras, fazendo-o ficar em uma posição forçada. Ele estava visivelmente cansado, e o suor no rosto fazia a maquiagem escorrer. Mas o olhar dele era brilhante, orgulhoso com o resultado daquele dia. Nunca esqueci aquele olhar. Quando ele me abraçou, me fez entender o que aquilo tudo significava para ele”, rememora.
A proximidade da família e de amigos é outra lembrança que a filha traz consigo. “Nos últimos anos, fazia almoços na casa dele no Rio de Janeiro, convidava os colegas da emissora, e sempre contava com a presença da minha avó. Contava casos, fazia piadas, centralizando a atenção de todos. Gostava de cozinhar e de receber pessoas. Ele até fazia um jantar de Natal para os colegas que não podiam voltar para suas cidades porque tinham gravação no Rio”, recorda Sylvia. No final de sua vida, o ator se dedicava aos preparativos do recital Sérgio Cardoso em prosa e verso, que pretendia estrear após o fim da telenovela O primeiro amor. Também visitou amigos, participou do Programa Silvio Santos, e confidenciou, feliz, a uma jornalista do Diário de São Paulo, que deixaria a televisão por um tempo para voltar aos palcos.
para ver no sesc / bio
LUZ E SOMBRA
Biografia lançada pelas
Edições Sesc São Paulo apresenta meticulosa pesquisa sobre triunfos, fracassos e reinvenções do lendário ator
Sérgio Cardoso transcendeu cenários: sua notável versatilidade o impulsionou para uma trajetória marcante no cinema e na televisão, aspectos detalhados pela obra biográfica Sérgio Cardoso: ser e não ser (2024), de Jamil Dias. No cinema, teve atuação destacada em A madona de cedro (1968), de Carlos Coimbra (1927-2007) e foi protagonista em Os herdeiros (1970), de Cacá Diegues (1940-2025).
Na TV Tupi de São Paulo, construiu uma sólida carreira em teledramaturgia, sendo figura central em sucessos como O sorriso de Helena (1964) e Antônio Maria (1968). A partir de 1969, sua carreira se expandiu para a TV Globo, onde se destacou em produções populares como Pigmalião 70 (1970).
Publicada pelas Edições Sesc São Paulo, a obra mostra como as qualidades do ator despertaram, paradoxalmente, admiração e inveja, e geraram boicotes. Além disso, a publicação analisa o polêmico blackface na telenovela A cabana do Pai Tomás, de 1969, na qual Cardoso interpretou um homem negro, em uma escalação que provocou protestos contundentes à época, especialmente do dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999).
A biografia também aborda a “lenda urbana” de que o artista teria sido sepultado vivo, vítima de catalepsia. Tal boato infundado, embora veementemente negado por familiares e médicos, alimentou o vasto imaginário em torno de sua figura ao longo das décadas.
EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
Sérgio Cardoso: ser e não ser
Autor: Jamil Dias 2024. 368 páginas. Mais informações em sescsp.org.br/edicoes
Sérgio Cardoso com a atriz Cacilda Becker (1921-1969) em Hamlet (William Shakespeare), em São Paulo, no ano de 1948.
COSTA ADENTRO
Além de registro documental, fotógrafo João Farkas reforça em novo livro um chamado à preservação do planeta
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Ranchos de pesca sobre banco de areia nas Reentrâncias Maranhenses.
Nós, fotógrafos, lidamos com coisas que estão continuamente desaparecendo e, uma vez desaparecidas, não há nenhum esforço sobre a Terra que possa fazê-las voltar”, escreveu Henri Cartier-Bresson (1908-2004).
A frase do fotógrafo francês foi escolhida por João Farkas como epígrafe de seu novo livro, Costa norte, recém-lançado pelas Edições Sesc São Paulo, e explica uma preocupação que acompanha o fotógrafo brasileiro em mais de quatro décadas de trajetória: a relação entre humanidade e natureza.
Com mais de 40 exposições internacionais e obras no acervo de instituições como Museu de Arte de São Paulo (MASP), Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e International Center of Photography, na cidade de Nova York (Estados Unidos), João Farkas é referência em fotografia documental e ambiental. Autor de diversos livros, após terminar e publicar Pantanal (Edições Sesc São Paulo, 2020), ele se debruçou sobre os mapas do litoral norte do país. Em 2021, deu início a expedições entre o Amapá e o Rio Grande do Norte, uma faixa que se estende por mais de dois mil quilômetros. Em três anos, o fotógrafo documentou a riqueza de uma biodiversidade ainda pouco conhecida pelos próprios brasileiros, ameaçada por um processo acelerado e desordenado de ocupação.
Por terra, mar e sobrevoo, ele registrou um território único, incluindo o delta do rio Parnaíba, a foz do rio Amazonas, a ilha de Marajó, as Reentrâncias Maranhenses e os litorais cearense e potiguar. Um cenário de rios, praias, dunas e manguezais habitados de maneira esparsa por pescadores, comunidades ribeirinhas e povos indígenas. Um local onde avança a especulação imobiliária, com empreendimentos faraônicos à beira mar e dunas cercadas.
Ao todo, o fotógrafo registrou o litoral norte do país, que se estende por cerca de 2.200 quilômetros, onde retratou Belém e a região da foz do rio Amazonas, visitou ribeirinhos, praias e dunas, mostrou a produção do açaí, a pesca artesanal, comunidades e paisagens em páginas costuradas por descrições das expedições.
A obra reúne imagens selecionadas entre mais de 20 mil fotografias, resultado de sete expedições realizadas durante três anos (2021-2023). Além das imagens, a publicação conta com textos de João Farkas, posfácio do jornalista Fernando Gabeira e artigos da pesquisadora Valdete Cecato sobre as características históricas da região e sua biodiversidade.
“Imaginei que meu trabalho poderia ser útil àqueles que, nos próximos séculos, se debruçarem sobre o estudo do passado ambiental. Não podia imaginar que o registro dessa região ganharia interesse imediato tão rapidamente. De Curimã (CE) ao arquipélago do Bailique (AP), todos os dias o cenário natural é modificado irremediavelmente. Os efeitos do Antropoceno são avassaladores. Esperamos que não sejam trágicos para a espécie humana”, conclui o fotógrafo.
EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
Detalhe dos Lençóis Maranhenses.
Costa norte João Farkas. 2025, 192 páginas. sescsp.org.br/editorial/costa-norte
gráfica
Revoada de guarás no delta do Parnaíba.
Navegando os igarapés, no Pará.
Praia dos Pescadores após a tempestade, em Joanes, Marajó, no Pará.
Banhista sobre árvore de mangue, na Praia da Barra Velha, Marajó, no Pará.
Liberdade cromática, em Afuá, Marajó, no Pará.
Anoitecer com parque eólico, em Galinhos, no Rio Grande do Norte.
Pescador em Bitupitá, no Ceará.
Detahes do delta do Parnaíba.
Este livro apresenta uma perspectiva inédita sobre o trabalho dos pensadores da Teoria Crítica, também conhecida como Escola de Frankfurt.
SORRIR Nós vamos
O avanço da tecnologia, aliado a cuidados humanos, promove saúde, que começa pela boca
POR LUCIANA ONCKEN
FOTOS NILTON FUKUDA
Otempo em que ir ao dentista era sinônimo de angústia pode estar cada vez mais distante na memória. O avanço no tratamento odontológico, principalmente nos últimos anos, tem transformado a relação da população com os consultórios. Hoje, o acesso à informação, à educação e a novas ferramentas tecnológicas permite uma prevenção mais eficaz, tratamentos mais eficientes e acompanhamentos ainda mais personalizados. Um exemplo bem-sucedido de tecnologia a serviço do cuidado humano.
A mudança tem sido alcançada por fatores como a integração entre as chamadas tecnologias leves às tecnologias duras. Na prática, enquanto as tecnologias leves envolvem práticas de escuta, acolhimento, criação de vínculo, educação para a saúde e promoção de autonomia do paciente, as chamadas tecnologias duras englobam recursos físicos, como equipamentos odontológicos, radiografias digitais, scanners, impressoras 3D, tomografia, entre outros. No campo da saúde bucal, a
prática profissional e novos estudos comprovam que a combinação entre ambas as tecnologias tem resultado em atendimentos mais integrais e em abordagens mais humanizadas.
PAPEL SOCIAL
A professora Luciane Miranda Guerra, da Faculdade de Odontologia da Universidade de Campinas (FOP-Unicamp), traz um exemplo impactante de como as tecnologias duras aliadas às tecnologias leves fazem diferença na vida dos pacientes. Ela lidera uma equipe de pesquisadores que atua no desenvolvimento de pesquisas sobre o atendimento a vítimas de violência, incluindo mulheres, idosos, crianças, pessoas com deficiência e a população LGBTQIAPN+.
“O cirurgião-dentista é um dos primeiros profissionais a serem acessados pelas vítimas de violência doméstica”, revela a professora. Isso ocorre porque a maior parte das lesões, não por acaso, é em cabeça e pescoço, com a intenção de destruir a identidade da vítima, explica a pesquisadora.
A partir daí, o primeiro desafio do profissional é não apenas reconstruir essa face, mas ir além da tecnologia dura, aplicando a tecnologia leve: com empatia, cuidados e, também, notificação compulsória – o ato de comunicar a suspeita ou confirmação de doença, agravos ou outros eventos de saúde pública às autoridades responsáveis. A complexidade não está no procedimento odontológico, como uma restauração, extração ou reabilitação, por exemplo, está no acolhimento, no encaminhamento, na notificação compulsória", observa Guerra.
Para preencher essa lacuna na formação, o Grupo de Estudos e Pesquisa Qualitativa (GEPEQ), liderado pela professora Luciane Guerra, desenvolve ações de capacitação profissional por meio de um curso de extensão. Nas aulas, aprende-se a lidar com o sistema de informações do Sistema Único de Saúde (SUS) e a maneira correta de fazer a notificação compulsória, além do cuidado na abordagem da pessoa que sofreu a violência, para que não se sinta constrangida ao falar sobre o assunto.
Na nova instalação do Sesc Florêncio de Abreu, em São Paulo, serão produzidas próteses para pacientes atendidos pela ação de Saúde Bucal em unidades de todo o estado.
A GENTE NÃO TRATA DENTE, A GENTE TRATA PESSOAS.
POR TRÁS DAQUELA
TEMOS UM PACIENTE COM SUA DOR, SUA DIFICULDADE, SUA HISTÓRIA.
Márcio Yara Buscatti, radiologista e coordenador do curso de pós-graduação em radiologia odontológica do Senac
Uma solução desenvolvida pelo grupo da Unicamp, em parceria com o Práxis, da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), financiada pelo Projeto Centelha/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI), integra tecnologias duras e leves: trata-se de um WebApp, atualmente em fase de teste nas unidades de saúde da família, com três interfaces (usuárias, profissionais e gestores), por meio das quais profissionais e gestores podem, com oito níveis de classificação de risco, identificar mulheres em situação de violência. “Ao mesmo tempo, a tecnologia permite que as mulheres solicitem acolhimento psicológico e orientações sobre notificação e a rede de atenção, inclusive a de saúde bucal”, resume a professora Brunna Verna, pesquisadora do Práxis Uespi. Esse é um exemplo de como a tecnologia pode humanizar o atendimento.
ALÉM DA BOCA
“A boca é um instrumento de trabalho, de reivindicação de direitos, de comunicação, de prazer, de dor. É um instrumento que alimenta. Então, o nosso grande desafio contemporâneo é se afastar um pouco, para ver o indivíduo que carrega essa boca e onde esse indivíduo vive, mora, se relaciona, trabalha. Porque essas coisas estão integradas”, afirma o professor Paulo Sávio Goes, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Faculdade de Medicina de Olinda (FMO).
Goes coordena o programa Community Oral Health Research Equity (CORE) no Brasil, projeto focado na equidade em saúde bucal, liderado pelo Instituto Nacional de Pesquisas do Reino Unido. “O objetivo central do programa é
traçar estratégias em saúde bucal que possibilitem atender de forma mais adequada as pessoas que mais precisam”, conta. Para isso, o programa trabalha com engajamento comunitário e codesenvolvimento, no qual as próprias comunidades, junto aos pesquisadores, definem as intervenções de saúde necessárias.
Para o especialista, a equidade é fundamental. “Tratar pessoas com necessidades diferentes de forma igual apenas aumenta as diferenças”, alerta. O caminho é composto por modelos que usam critérios de vulnerabilidade para corrigir desigualdades, combatendo o que o médico britânico Julian Tudor Hart (1927-2018) definiu, em 1971, como Lei do Cuidado Inverso, que diz que os serviços de saúde tendem a atender mais aqueles que menos precisam.
A tecnologia dura contribui diretamente para o acesso e a equidade. Um exemplo é a tele-estomatologia, um recurso que auxilia no diagnóstico de doenças bucais, como o câncer de boca. Um dentista em área remota pode fotografar a boca de um paciente com seu celular. A imagem é enviada para um centro especializado, que faz a análise e entra em contato indicando, por exemplo, a necessidade de uma biópsia. “Essa tecnologia é vista como uma oportunidade incrível para pessoas que vivem e trabalham em áreas distantes, pois ajuda a acelerar o diagnóstico de problemas de saúde bucal”, salienta o coordenador do CORE no Brasil.
REVOLUÇÃO DIGITAL
O radiologista e coordenador do curso de pós-graduação em radiologia odontológica do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
Em consultórios do Sesc Florêncio de Abreu, em andar recém-inaugurado, tecnologias e atendimento humanizado contribuem com a promoção da saúde bucal.
(Senac), Márcio Yara Buscatti, representa a face mais tecnológica dessa transformação. O especialista explica que essa área foi a primeira especialidade odontológica a entrar no mundo digital, ainda no início dos anos 2000. “Anteriormente, os centros de radiologia eram apenas locais de diagnóstico, mas hoje, tornaram-se centros de planejamento que trabalham lado a lado com outras especialidades odontológicas”, conta.
“A gente não trata dente, a gente trata pessoas. Por trás daquela radiografia, temos um paciente com sua dor, sua dificuldade, sua história”, ressalta Buscatti. Quando o dentista usa o scanner, explica ao paciente o que está acontecendo, a tecnologia aproxima. “Assim, o paciente desenvolve confiança
no tratamento”, observa. “Isso é humanização também: você envolve o paciente no seu processo terapêutico”, complementa.
A inteligência artificial é vista como outra ferramenta que aprimora o trabalho sem substituir o profissional. “Ela otimiza nossos laudos e nos dá mais tempo para o que realmente importa: cuidar de pessoas. Ou seja, faz com que o dentista ganhe tempo para ouvir o paciente e entender quem ele é, de onde vem, qual a sua história”, explica o professor.
Outro benefício das novas tecnologias está na democratização do acesso a essas ferramentas, a partir da redução de custos. Com impressoras 3D, é possível
confeccionar próteses totais de forma mais rápida e barata. “Isso acaba barateando o resultado final. Já existem projetos, junto a várias prefeituras, de confecção de próteses totais via impressão 3D”, destaca Buscatti. Em clínicas com alta tecnologia, é possível que um paciente entre de manhã e, à tarde, saia com uma prótese total, processo que antigamente levava semanas.
SAÚDE INTEGRAL
A literatura científica comprova que problemas bucais se refletem em todo o organismo. “As doenças crônicas orais, como a cárie dentária e a periodontite, podem predispor um indivíduo a doenças cardiovasculares e metabólicas, além de estar ligada
Equipamentos tecnológicos, como tomógrafos, foram incorporados à área de Saúde Bucal do Sesc Florêncio de Abreu, permitindo diagnósticos mais precisos e tratamentos mais eficazes.
à nutrição, à autoestima e a outros problemas, como de saúde mental”, lembra o professor Paulo Goes. “O diabetes, por exemplo, tem extrema intimidade com a boca. Se você não tem condição bucal saudável, isso pode afetar sua glicemia”, complementa a professora Luciane Guerra.
Essa compreensão de saúde integral explica por que a odontologia foi a primeira área não médica incorporada às equipes de Saúde da Família em 2001. “Quem está ali não é um dente, não é uma polpa, um canal. É uma pessoa que mora em um território, que sofre dificuldades para chegar ao consultório”, diz Guerra, referindo-se ao conceito de Clínica Ampliada.
A boa notícia é que essa percepção sobre a importância do cuidado com a saúde bucal para preservação da saúde integral tem feito parte das ações do governo, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
“A saúde bucal demorou a ser reconhecida como um direito e a ser incluída de forma robusta no SUS. Foi um processo que levou mais de duas décadas para se consolidar”, recorda Goes.
Em 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) pautou a saúde bucal pela primeira vez na história. A OMS estabeleceu o Plano de Ação para a Saúde Bucal 2023-2030 com metas ambiciosas: 80% da população mundial deve ter direito a serviços essenciais de saúde bucal e alcançar uma redução relativa de 10% na prevalência das principais doenças bucais. “Esse foi um momento bastante estratégico para a saúde bucal no mundo”, celebra Goes.
DESAFIOS E PERSPECTIVAS
Apesar de avanços nas ciências e de políticas públicas em âmbito nacional e mundial, desafios
significativos permanecem na promoção da saúde bucal. “Nossa formação é muito biomédica, muito dura. Pouco se discute sobre acolhimento, humanização, vínculo paciente-profissional durante a formação”, observa Guerra. “O aluno está focado em aprender a parte técnica, fazer um dente direito. Mas você está atendendo um ser humano”, complementa Buscatti.
O acesso aos tratamentos também é uma questão central. Cerca de 27% dos pacientes em Centros de Especialidades Odontológicas faltam às consultas. “Isso nos faz refletir: ele não vai por quê? Tem acesso ao transporte? Como é acolhido?”, questiona Goes.
A boa notícia é que, apesar do alto custo de equipamentos como scanners e tomógrafos, a terceirização permite acesso à tecnologia sem a necessidade de elevado investimento individual. “O dentista não precisa ter todo esse investimento individualmente. Ele pode terceirizar o serviço com um centro de diagnóstico, onde a tecnologia já está disponível, e torná-la acessível ao seu paciente”, destaca Buscatti.
A convergência entre tecnologias duras e leves aponta para um futuro mais inovador e humano na área da odontologia. “É imprescindível que tenhamos as tecnologias como parceiras. O desafio será manter nossa face humana e potencializar ainda mais o uso delas”, projeta Goes. Para Guerra, professora da Unicamp, “é do encontro dos seres humanos que surge algo único, mesmo que seja por meio de uma tela”, indicando que, no cerne da revolução em curso, a tecnologia não vai substituir o ser humano, mas pode potencializar conexões, cuidado e equidade.
para ver no sesc / saúde
Desenvolvido desde 1946, programa de Saúde Bucal, do Sesc São Paulo, conta com 34 clínicas em todo o estado e se moderniza com novas tecnologias e espaços no Sesc Florêncio de Abreu.
EXPANDIR CUIDADOS
Sesc São Paulo investe em tecnologia e amplia ação na Odontologia com inauguração de três novos espaços na unidade Florêncio de Abreu
O programa de Saúde Bucal é desenvolvido pelo Sesc São Paulo desde a sua fundação, em 1946. Essa é uma das ações que visam à promoção da saúde, respeitam os ciclos de vida e o contexto social dos indivíduos, valorizando processos que estimulam a autonomia e o autocuidado. Atualmente, o Sesc dispõe de 34 clínicas – 29 fixas e cinco móveis – com um total de 154 consultórios. Em 2024, foram atendidas 49.912 pessoas e realizadas 857.811 consultas por uma equipe composta por 315 dentistas e 203 auxiliares.
Os serviços incluem diversas especialidades, como preventiva, odontopediatria, prótese e ortodontia, entre outras.
A ação ainda se fortalece com a reforma do Sesc Florêncio de Abreu, que irá contar com três novos espaços. O Centro de Diagnóstico por Imagem terá equipamentos com as mais recentes tecnologias para diagnósticos de alta qualidade e com o mínimo de impacto ambiental. O Laboratório de Prótese Dentária apoiará as clínicas
com mais precisão e agilidade, usando tecnologia digital para proporcionar maior precisão e qualidade, reduzindo a quantidade de consultas e otimizando a logística das peças. A nova clínica incluirá uma Central de Material Esterilizado, com um conceito inovador de biossegurança e autonomia do setor.
O acesso ao atendimento odontológico do Sesc São Paulo é exclusivo para trabalhadores do Comércio de Bens, Serviços e Turismo e seus dependentes, com Credencial Plena válida. Além disso, a inscrição acontece anualmente e a seleção dos inscritos é feita com base no grau de vulnerabilidade social.
Mais informações em sescsp.org.br/odontologia
EPIDEMIA DE SOLIDÃO
Será que nunca estivemos tão sós? No século 21, quando o individualismo atinge novos contornos devido ao contexto socioeconômico, político e cultural, a solidão acendeu um alarme. Tornou-se uma palavra recorrente nos sites de busca, em pesquisas de comportamento, em rodas de conversa e, principalmente, objeto de estudo na área da saúde. Em novembro de 2023, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a solidão como uma epidemia global, uma ameaça à saúde física, psicológica e emocional de pessoas em todo o mundo. Com isso, a agência criou a Comissão Internacional para Conexão Social, cujo objetivo, em dois anos, é tornar essa questão reconhecida e dotada de recursos como prioridade global de saúde pública.
“No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde e do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos mostram que praticamente metade das pessoas com 50 anos ou mais relata sentir solidão pelo menos ocasionalmente, aproximadamente uma em cada seis enfrenta solidão frequente. Fatores como sexo feminino, baixa escolaridade, morar sozinho, apresentar problemas de saúde ou depressão aumentam a probabilidade de solidão contínua”, descreve a psicóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Deusivania Vieira da Silva Falcão. Esse
quadro mostra, segundo a especialista, que iniciativas de diferentes setores da sociedade precisam ser postas em prática. “Esse conjunto de evidências deixa claro que a solidão não é apenas um estado emocional incômodo, mas um fenômeno complexo, com repercussões diretas sobre a longevidade. Combatê-la exige tanto ações individuais quanto políticas públicas capazes de fortalecer redes de apoio e promover conexões humanas significativas”, defende.
Para o psicólogo, escritor e colunista Alexandre Coimbra Amaral, cada um de nós também precisa se questionar sobre comportamentos que reforçam o estado de solidão. “Por que tanta gente se sente tão solitária, em meio a multidões que se juntam em redes? As redes, que começaram se chamando ‘sociais’, viraram ‘redes solitárias’? Numa época tão narcísica, em que a selfie é a metáfora mais cotidiana de nosso desejo de sermos vistos, os olhos estão cansados de ver e de não serem vistos? Como fazer as pazes com a sociabilidade, com a amizade, com o amor entre pessoas íntimas? Como deixar de ser uma ilha e voltar a se sentir mais à vontade com a companhia e a intimidade?”, interroga.
Neste Em Pauta, Falcão e Amaral discorrem sobre as nuances da solidão, seus efeitos sobre a saúde da população e possíveis caminhos de enfrentamento a essa epidemia global.
Nós em meio à epidemia de solidão
POR ALEXANDRE COIMBRA AMARAL
A solidão é um quebranto que pode se esconder em máscaras muito bem aceitas. Temos sido experientes em fazer cascas que escondem solidões, mas que no fundo escancaram o sofrimento das pessoas como um espelho ingrato, que as acompanha como uma segunda pele. Como em uma filmagem de selfie, o protagonista imagina que conversa com este outro além-tela. Pode imaginar milhões, e de fato estas multidões podem existir, embora não consigam ser garantia de qualquer companhia. Não há horizonte compartilhado no diálogo, há monólogos.
Pessoas palestram diante de telas, como se acompanhadas estivessem. Cada vez menos testemunho alguma garantia de que este entrelaçamento seja real, inclusive porque fica mais difícil distinguir o real do que é inventado por algum robô. Como psicólogo, sou regido por uma profissão que me diz: escute somente o que te pedem para fazê-lo. Este código de ética me representa sobremaneira: não invado, não busco quem não me busca. Mas sou um tipo de andarilho cujo silêncio é capaz de se sentir à distância. No fundo, há gente. E gente é história viva, silêncio é linguagem, entre mim e os outros há uma teia de vida que se liga com o coração, com a mente e com o corpo todo.
Dessa maneira, venho percebendo a solidão como fera que devora mais do que o razoável. Percebo-me, inclusive, entristecido por tanta solidão à volta, como se o mundo tivesse passado a ser um monte de gente ilhada, conectada à multidão com a facilidade de um sinal de internet, mas com o coração estando mais ímpar que o primeiro número além do zero. Como dois jovens amigos de uma empresa de tecnologia, que moram juntos em uma quitinete de menos de trinta metros quadrados em São Paulo, e que quase não se falam, dividindo as prateleiras da geladeira, o wi-fi e o silêncio de três samambaias.
Como as pessoas que se cadastram em aplicativos de relacionamento e insistem em curtir inúmeros perfis que lhes interessam, mas que por alguma razão
oculta até delas próprias desistem de continuar para além do “oi, tudo bem?” na conversa privada. Como os membros de grupos de WhatsApp que se mostram como “amigos de tanto tempo que se reencontram”, e cuja pobreza comunicacional não consegue ir além do parabéns pelo aniversário, memes e figurinhas trocadas para preencher um tanto do constrangimento de não ter o que dizer, de fato. Como um paciente que me contou uma história de um happy hour da empresa, em que todos se sentiam parte da conversa e ele se escanteava, bebendo mais do que gostaria, sem conseguir se inserir, indo embora à francesa sem que ninguém notasse sua falta.
Como um amigo que me contou, uma certa feita, que ia à padaria comprar um único pão francês, por não ter com quem dividir o café da manhã. Ele comia o seu pão solo enquanto via as outras famílias vivendo nos apartamentos, se perguntando como tinha terminado daquela maneira. Como um motorista de aplicativo que escuta conversas de todos, sem poder interagir com ninguém, como se fosse um arremedo de pessoa. Como pessoas que planejam viagens sozinhas, buscando roteiros insistentemente, mas que não conseguem tempo livre e factível para tomar o rumo da estrada que desejam. Como um pescador que um dia me disse que não consegue mais se sentir em paz no meio do mar. A solidão não se esconde somente em meio à vertigem da aceleração contemporânea. Ela tem a cara também dos abismos que se firmaram entre vínculos humanos desde que o fenômeno da polarização política se radicalizou no Brasil.
O cenário é pouco animador em sua temporalidade – não parece ter fim tão breve. Em novembro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a solidão é uma urgência de saúde global. Foi a primeira vez que se deu este tipo de ênfase a um problema que tem a aparência isolada, e aparentemente única, em quem sofre, mas que estamos sendo convidados a percebê-lo como um evento que colapsa o bem-estar de todo o planeta.
Nomear a solidão como uma epidemia é entendê-la como fenômeno que já deixou de ser parte de uma idade específica (poderíamos pensar somente nos idosos), de uma determinada região do planeta ou de um tipo de circunstância temporária. A solidão se globalizou, atravessou fronteiras geográficas e temporais, virou um dos resultados de uma vida isolacionista. Estamos desconfiados uns dos outros. O isolamento nos encurrala, enquanto corremos os dedos em aplicativos que prometem o diálogo incessante com centenas de pessoas. Ao chegarmos em casa, é fácil que muitos se sintam sem ter a quem recorrer em caso de alguma agonia mais incômoda.
De fato, há gente de toda raça, cor, idade, credo, lugar de origem, condição socioeconômica, sexualidade, gênero e corpo, experimentando esta condição como um final da linha (não da mesma forma): “não consigo compreender completamente como cheguei aqui, e tenho menos lucidez ainda para imaginar como reagir a essa força que me consome”. Parte das pessoas que sentem a vida dessa maneira pensam na morte como uma forma de dar fim a todo o sofrimento. Falar de solidão é falar de perda de sentido em uma história que precisa de energia e colaboração dos outros para ganhar cor. Acelera-me o coração saber que ainda falamos muito pouco disso, como se o problema fosse isolado. E você já entendeu que não estou falando somente sobre quem se sente num mar de solidão, em um naufrágio da companhia bem vivida. A solidão contemporânea é sobre nós todos, tentantes eternos em compreender um tempo que se ergue em fundações que se esfarelam muito antes de ganharem solidez. A solidão e o encontro são partes de nós, humanos, e deste século específico, em que estamos construindo biografias possíveis entre o sonho e o tempo.
Por que tanta gente se sente tão solitária, em meio a multidões que se juntam em redes? As redes, que começaram se chamando “sociais”, viraram “redes solitárias”? Numa época tão narcísica, em que a selfie é a metáfora mais cotidiana de nosso desejo de sermos vistos, os olhos estão cansados de ver e de não serem vistos? Como fazer as pazes com a sociabilidade, com a amizade, com o amor entre pessoas íntimas? Como deixar de ser uma ilha e voltar a se sentir mais à von-
Solidão se trata com olhos úmidos, pele abraçando alegrias e dores, cheiro de colo de vó, gosto de comida compartilhada
tade com a companhia e a intimidade? A conversa que une solidões a encontros parece ser demorada. Não há esconderijo eficaz para o desejo de pertencer, de ser reconhecido e percebido como uma pessoa que vale a pena existir em meio ao caos.
O que não podemos, jamais, e sobretudo neste tempo, é desistir da presença real, honesta, sem intermediação de telas, em que os cinco sentidos se fazem vivos. Solidão se trata com olhos úmidos, pele abraçando alegrias e dores, cheiro de colo de vó, gosto de comida compartilhada. Solidão é sintoma de falta daquilo que é essência, íntimo conhecido de nossa alma, muito antes de tudo se transformar numa certa virada de milênio. Ailton Krenak tem toda a razão: diminuir os vários níveis de distância entre os corpos não é somente uma forma de adiar o fim do mundo, mas também de dar um fim inadiável às solidões. Que possamos pisar suavemente sobre a Terra, como Krenak nos ensina, numa disposição amorosa com a existência, fazendo de cada ato banal a antítese da solidão que precisamos nos desensinar a viver.
Alexandre Coimbra Amaral é mestre em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile (PUC-Chile), psicólogo, palestrante, consultor de saúde mental em empresas, escritor, podcaster de Cartas de um terapeuta, e colunista da revista Crescer (Globo) e do portal Lunetas (Instituto Alana). Atuou como psicólogo no programa de televisão Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo, e hoje participa de diversos programas de TV, na internet e em podcasts. Autor de quatro livros, entre esses Toda ansiedade merece um abraço (Paidós, 2023).
em pauta 63
Um desafio que atravessa gerações
POR DEUSIVANIA VIEIRA DA SILVA FALCÃO
“Muitos anos depois, perceberíamos que vivíamos nossos próprios cem anos de solidão.” Não na Macondo criada por Gabriel García Márquez (19272014), uma cidade fictícia, isolada do mundo e marcada por amores, perdas e silêncios, mas nas nossas metrópoles apressadas, entre ruas lotadas e apartamentos silenciosos. Cercados de telas que prometem conexão, afastamo-nos de diálogos genuínos. Entre notificações e agendas lotadas, faltam tempo, valores e disposição para relações significativas. Solidão não é apenas estar só, mas sentir-se só, invisível, mesmo na multidão. É a experiência subjetiva de perceber que os vínculos disponíveis não satisfazem as necessidades de afeto e pertencimento.
Diferente do isolamento social, que é uma condição objetiva, identificada por fatores como manter poucos contatos presenciais ou participar raramente de atividades coletivas, a solidão é vivida por quem pode estar cercado de pessoas, mas sem se sentir conectado. O sociólogo estadunidense Robert Weiss descreveu dois tipos principais de solidão. A solidão emocional ocorre quando faltam vínculos próximos e íntimos, como um parceiro ou amigo de confiança. Já a solidão social está relacionada à ausência de uma rede mais ampla de relacionamentos e de oportunidades de participação comunitária. Essas formas podem existir separadamente, mas muitas vezes se sobrepõem e se intensificam, sobretudo em períodos de perda ou de grandes mudanças na vida.
O fenômeno atravessa todas as idades, contextos e culturas. Entre os mais velhos, porém, tende a estar associada a eventos marcantes, como a morte de cônjuge, familiares ou amigos, e a problemas de saúde que limitam a mobilidade e reduzem as oportunidades de interação social. Pesquisadores destacam que a solidão é multifacetada e não pode ser medida por um único parâmetro. Enquanto al-
guns estudos recorrem a escalas padronizadas, outros utilizam perguntas diretas sobre a frequência com que a pessoa se sente só. Essa diversidade de métodos contribui para a variação dos resultados encontrados nas pesquisas.
A intensificação dessa “epidemia silenciosa” reflete mudanças nos arranjos familiares, enfraquecimento de vínculos comunitários, transformações no trabalho e uso crescente de tecnologias. Polarização política, preconceitos e desigualdades estruturais fragilizam a coesão social e aumentam o risco de solidão, sobretudo entre grupos historicamente marginalizados. A menor participação em espaços coletivos e a cultura do individualismo reduzem as oportunidades de apoio mútuo. O chamado paradoxo da conectividade evidencia que o uso passivo e excessivo de redes sociais está associado a maior isolamento, enquanto o uso ativo e intencional pode fortalecer autonomia, bem-estar e até saúde cognitiva. Videochamadas, grupos virtuais e atividades online podem enriquecer vínculos, mas, quando substituem o contato presencial ou se tornam compulsivas, tendem a intensificar a desconexão.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a solidão como problema emergente de saúde pública. Evidências mostram que ela aumenta o risco de ansiedade, estresse e depressão. Pessoas idosas solitárias têm mais chances de desenvolver transtornos mentais, ideação suicida e morrer prematuramente.
A pandemia de Covid-19, ao impor distanciamento social, reforçou esse quadro, evidenciando a relação entre solidão e sofrimento psíquico em diferentes grupos, incluindo profissionais de saúde.
Revisões internacionais indicam que os impactos físicos da solidão podem ser tão prejudiciais quanto os do tabagismo, da obesidade ou do sedentarismo, incluindo maior risco cardiovascular, comprometimento do sistema imunológico, distúrbios do sono, maior vulnerabilidade a infecções, declínio cognitivo e risco elevado de demência. Uma revisão sistemática com meta-análise, publicada em 2025 e reunindo estudos de diferentes países, identificou maior prevalência de solidão entre mulheres idosas e entre aquelas que vivem em instituições de longa permanência.
Na área da saúde, a “prescrição social” vem ganhando força, permitindo que médicos encaminhem pacientes para atividades culturais, grupos de interesse e ações de voluntariado
No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde e do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos mostram que praticamente metade das pessoas com 50 anos ou mais relata sentir solidão pelo menos ocasionalmente, e aproximadamente uma em cada seis enfrenta solidão frequente. Fatores como sexo feminino, baixa escolaridade, morar sozinho, apresentar problemas de saúde ou depressão aumentam a probabilidade de solidão contínua. Esse conjunto de evidências deixa claro que a solidão não é apenas um estado emocional incômodo, mas um fenômeno complexo, com repercussões diretas sobre a longevidade. Combatê-la exige tanto ações individuais quanto políticas públicas capazes de fortalecer redes de apoio e promover conexões humanas significativas.
O reconhecimento desse fenômeno tem inspirado ações no mundo. O Reino Unido criou uma Estratégia Nacional e um Ministério da Solidão; o Japão adotou políticas para enfrentar as “mortes solitárias” e investiu em projetos intergeracionais. Em uma visita ao Japão, conheci uma instituição de longa permanência integrada a uma escola, com refeitório e atividades compartilhados, promovendo vínculos e reduzindo barreiras etárias. A atmosfera era de solidariedade entre as diversas gerações: crianças e adolescentes ajudavam as pessoas idosas nas refeições, enquanto elas, por sua vez, ensinavam jogos e compartilhavam histórias. Fiquei com a nítida impressão de que aquele espaço não era apenas um lugar de cuidados, mas de vida em comunidade.
Na área da saúde, a “prescrição social” vem ganhando força, permitindo que médicos encaminhem pacientes para atividades culturais, grupos de
interesse e ações de voluntariado, reconhecendo que conexões humanas podem ser tão terapêuticas quanto intervenções medicamentosas. No Brasil, embora ainda incipientes, há iniciativas promissoras, como grupos de convivência em unidades de saúde, programas de visitas domiciliares, atividades promovidas pelo Sesc, cursos de inclusão digital e universidades abertas ao público 60+. Esses espaços fortalecem redes de apoio e oferecem o sentimento de pertencimento.
Mas combater a solidão exige mais do que políticas públicas e programas formais. É também um convite a uma mudança de hábitos e de cultura. Significa resgatar a importância de estar presente de forma genuína, escutando, olhando nos olhos e partilhando momentos sem pressa. Significa criar e conservar laços que resistam às distâncias físicas e emocionais. Pequenos gestos, como visitar um vizinho, ligar para um amigo ou convidar alguém para um café, podem parecer simples, mas constroem pontes invisíveis capazes de fortalecer o sentido de viver.
Se a solidão é uma epidemia, o antídoto não está apenas na presença física, mas na conexão com sentido: sentir-se visto, ouvido e valorizado. Essa é uma responsabilidade coletiva. No fim, o que nos mantém vivos não é apenas o ar que respiramos, mas os vínculos que cultivamos. E talvez a pergunta mais urgente seja: quantas vidas poderíamos salvar hoje apenas nos fazendo presentes?
Deusivania Vieira da Silva Falcão é professora associada da Universidade de São Paulo (USP),com pós-doutorado na área de psicogerontologia pela University of Central Florida, nos Estados Unidos. Psicóloga e mestra em psicologia social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), palestrante e podcaster do Viver Podcast. Presidente (2024-2026) da Associação Brasileira de Psicogerontologia. Publicou vários artigos científicos em revistas nacionais e internacionais, além de livros na área de psicologia do envelhecimento, sendo A família e o idoso: desafios na contemporaneidade (Papirus, 2010), laureado com o Prêmio Jabuti.
Nutrir
RAÍZES
Chef Aline Guedes defende valorização dos saberes das comunidades quilombolas, da culinária afrodiaspórica e da cultura alimentar brasileira
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Quando criança, Aline Guedes subia no banquinho do balcão da cozinha para pilar o alho, enquanto observava os movimentos rápidos e precisos da mãe, dona Benedita, no preparo da comida, em casa, na Cidade Tiradentes, zona Leste de São Paulo. Na época, a chef tinha apenas sete anos, mas já começava a nutrir afeto e admiração por aquela mãe que preparava com tanto cuidado, pelas noites, a marmita que a família iria comer no dia seguinte. Essa recordação de cheiros, sabores, ervas e histórias maternas a acompanha até hoje em suas receitas e pesquisas sobre cultura alimentar e culinária afrodiaspórica.
O encanto pela comida materna, no entanto, logo foi confrontado com a realidade fora de casa. Fosse na faculdade de gastronomia ou nos restaurantes onde trabalhava, a chef notava, repetidas vezes, que
pratos e ingredientes estrangeiros ditavam o cardápio tido como apropriado e sofisticado. Mesmo quando participou de programas de televisão de gastronomia –The Taste Brasil (2005), exibido pelo canal GNT, e Mestre do sabor (2021), pela TV Globo –observava a resistência de jurados e participantes ao defender uma cozinha afro-brasileira. Passados 20 anos desde que se formou, Aline Guedes observa que essa herança colonial, presente nas culinárias europeias que aportaram no Brasil, não é mais uma unanimidade. Cada vez mais, profissionais, pesquisadores, escolas e espaços comerciais voltam-se para técnicas, preparos e ingredientes de diferentes regiões do país.
Mestre em hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi, especialista em vinhos, pós-graduada em administração
e organização de eventos pelo Senac São Paulo e graduada em tecnologia em gastronomia pelo Centro Universitário Senac, a chef ainda se dedica à pesquisa sobre a alimentação de comunidades quilombolas no estado de São Paulo, e escreve uma coluna para o canal Nossa, do portal UOL. Neste Encontros, Aline Guedes compartilha momentos de sua trajetória profissional, sua postura em defesa da valorização da culinária afro-brasileira, bem como dos saberes e fazeres quilombolas.
ARROZ
Meu início na cozinha se dá quando eu tinha sete anos, na minha casa, quando fiz o primeiro arroz. Acho muito difícil descolar a minha trajetória profissional de tudo que vivi antes. A minha mãe é minha grande inspiração na cozinha. Sempre foi funcionária de casas de família, onde também começou, muito nova, a trabalhar – com sete anos, mais ou menos, minha avó a colocou para trabalhar numa dessas casas, onde ela começou a cozinhar. Ela chegava em casa sempre muito tarde e entendi que, se eu fizesse arroz, ela descansaria. Naquela noite, ela sentou-se à mesa com a família e agradeceu, muito feliz. Eu sei que não estava tão bom, senti sal demais e estava duro, mas ela falou que estava perfeito. Então, foi uma forma de perceber o que minha mãe já fazia conosco: tratar o alimento como um cuidado também. A partir daí, passei a cozinhar: pegava os livros de receitas dela e fazia todas para que ela tivesse um respiro.
Wolas Salviano
PRIMEIRA
Comecei na faculdade de gastronomia aos 17 anos. Na verdade, queria fazer jornalismo, porque eu tinha como grande inspiração a [jornalista e apresentadora] Glória Maria (1949-2023). Ela era uma referência enquanto mulher negra. Aí, minha mãe virou para mim e falou: “Não, você vai fazer gastronomia, porque a doutora Adriana e a dona Lúcia combinaram comigo que, se você fizer gastronomia, elas pagam sua faculdade”. Sou a primeira da minha família a fazer um curso de graduação. É sempre meio chocante quando falo que eu não tinha intenção de fazer gastronomia, mas eu sei que, conscientemente, o meu receio era de que eu tivesse que ser uma substituta da minha mãe nesse lugar que ela ocupava nas casas onde trabalhava. Depois de um tempo na faculdade e no meu primeiro estágio, a gastronomia realmente se tornou uma paixão na minha vida, porque eu enxerguei outras possibilidades. Foi um momento, também, em que conheci uma chef de cozinha incrível, a Benê Ricardo (1944-2018), uma mulher negra, a primeira mulher no Brasil a ter uma formação profissional voltada para a gastronomia e a ser chef de cozinha. Então, eu me inspirei muito nas mulheres que eu passei a conhecer.
REVIRAVOLTA
Eu achava que, para ser uma boa chef em qualquer restaurante, eu precisaria dominar as técnicas que me foram ensinadas, sempre muito bem executadas. E que aquela cozinha baseada em técnicas clássicas francesas era a melhor, que eu precisava me
desenvolver, enquanto profissional, para que eu fosse reconhecida e valorizada. Demorou muito tempo para entender que o que me faria feliz seria me reconectar com as minhas raízes e para que eu entendesse essa possibilidade de me conectar com essa cultura que é minha, de recuperar essa identidade que foi perdida.
MESTRADO
Trabalhei em muitos restaurantes, ingressei na faculdade enquanto
professora, mas depois do meu mestrado, que é um marco na minha vida, foi quando comecei a enxergar a gastronomia de uma forma diferente. Começo estudos mais aprofundados e me reconecto com essa ancestralidade. Minha cozinha sempre esteve ligada ao afeto que eu sempre tive pela minha mãe e pelas histórias que ela me contava. Sempre gostei muito de pirão, por exemplo, sem saber que o pirão tem uma raiz africana muito forte. Eu gostava porque minha mãe contava que minha avó, que tinha 12 filhos, ia no final da
Wolas Salviano
feira pegar uma cabeça de peixe, que alguém dava para ela, e com aquela cabeça de peixe, ela fazia pirão para a família inteira. Era essa a relação que eu tinha com o alimento: uma relação de histórias que me eram contadas, de entender o que a minha avó fazia, logo, minha mãe fazia também. As minhas memórias mais emblemáticas são aquelas que eu tenho com a minha mãe e aquelas que eu produzo hoje, na minha casa. Na minha cozinha, eu tenho um pilão, colheres de pau, um galho de louro pendurado, a imagem de São Benedito.
RECONEXÃO
Hoje a minha cozinha tem cara, cheiro e sabor. Me libertei de amarras. Essa cozinha se torna algo que tem relação com a minha pesquisa, tem relação com a terra, porque a primeira vez que eu pisei no quilombo, senti uma energia completamente diferente. Depois de começar a estudar sobre as comunidades quilombolas e comunidades africanas, entendi essa questão da cozinha afro-brasileira, uma cozinha diaspórica. Percebi que tinha relação com quem nós somos, enquanto afro-brasileiros, enquanto esse povo que teve, de alguma maneira, esse elo cortado. Porque, no período de escravidão, a gente perde nossos nomes, nossas famílias, nossos elos com a terra África, a terra mãe. Então, eu acho que, de alguma maneira, nesses estudos, eu percebi que eram possíveis algumas reconexões.
QUILOMBOLA
O Brasil é um país quilombola. Essa é uma frase que eu levo, carrego e defendo. Então, eu acho que as
comunidades quilombolas e os quilombolas hoje, as comunidades tradicionais, têm um papel fundamental na preservação da nossa própria história enquanto brasileiros. Além de nós termos uma série de ingredientes que são típicos do nosso país, que são consumidos e utilizados nessas comunidades, que trabalham sempre com a sustentabilidade, respeitando o solo, entendendo que da terra a gente tira o nosso alimento e que é para a terra que a gente vai voltar de alguma forma. Ou seja, existe esse respeito pela terra, que carrega também esse potencial de levar adiante essa cultura e de realmente fazer com que a cultura alimentar no nosso país, as culturas alimentares se mantenham vivas – ainda que a gente siga, muitas vezes, valorizando o que vem de fora.
PRATO FEITO
Quando a gente pensa em restaurantes de alta gastronomia, pensa numa comida que tem mais valor e que é mais bonita, principalmente. Pensa em restaurantes que têm uma perspectiva europeia, em ingredientes que vêm de fora ou em técnicas que fazem com que aquele prato não se pareça um prato brasileiro, da nossa alimentação cotidiana. Os nossos pratos em casa, normalmente, são pratos em que a gente traz generosidade. Quando se diz que a farofa, o pirão, ou que a farinha de mandioca e a própria mandioca são ingredientes direcionados para pessoas mais pobres, ou para uma cultura de escassez, se fortalece o que chamamos de racismo alimentar. Consequentemente, a gente deixa de ver beleza nos nossos
ingredientes, nos nossos fazeres, nas nossas técnicas ancestrais africanas, afro-brasileiras e indígenas, porque outros não os consideram belos o suficiente para serem comercializados em pratos considerados de alta gastronomia. Por isso, uma das vertentes do meu trabalho é entender o potencial dos nossos alimentos.
EDUCAÇÃO
A alimentação tem um papel fundamental na educação de crianças. Quando a gente enxerga uma comunidade onde as crianças consomem ingredientes que já vêm cortados do supermercado, numa bandejinha de isopor, embalados, enlatados, a criança não tem a oportunidade de pegar aquele ingrediente in natura e saber de onde ele vem, saber como ele é, qual o sabor real que ele tem. Quando a gente não dá condições para as pessoas viverem bem dentro das comunidades quilombolas, de viverem dignamente, plantando e colhendo o que é possível para consumirem e que possam, além disso, fazer a comercialização do que acaba sobrando, a gente percebe que essa identidade vai se enfraquecendo. E por consequência, a comunidade vai enfraquecendo também. Eu acho que o alimento é um caminho importante e que é possível fazer com que haja essa relação de conexão, conscientização e de pertencimento.
A chef e pesquisadora Aline Guedes participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E, no dia 28 de agosto de 2025. A mediação do bate-papo foi de Débora Cravo, que integra a equipe da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo.
SINAL DE FAX
POR JÚLIA MEDEIROS
ILUSTRAÇÃO BRUNO DE SOUZA
A balança enorme, na sessão de ensacados do mercado. Milho, arroz, canjiquinha, feijão e a gente. O vô tira e coloca os contrapesos no equipamento: 23 quilos uma e 25 a outra, praticamente iguais. Falta um bocado pra completar dois sacos de milho — ele diz. Vovô, você vai vender nós duas de verdade? — a gente quer saber, mas só uma que pergunta. Vamos ver se alguém quer comprar. Mas antes tem que nos engordar na padaria, esqueceu, vô? Ele leva uma de cada lado, de mãos dadas. Arruma dois pães de queijo pra essas gêmeas — o vô pede no balcão. E iorgute também. Um pra cada — as duas falam.
A gente come e bebe até pingar a última gota e lambe a garrafinha por dentro e apaga o bigode cor-de-rosa passando o beiço de baixo lá em cima. Estão vendo como elas estão magrinhas? Ainda falta um bocado bom pra dar dois sacos de milho — vovô explica a comilança pras meninas da padaria, elas riem, e ele resolve ir lá na frente da loja, quase na caixa registradora, pra levar o amaciante que o cliente tinha procurado e não achou.
Daí pra frente, ele não engorda mais a gente. Sobe as escadas de dois em dois degraus, até chegar na administração pra contar dinheiro, molhando os dedos numa espuminha de contar dinheiro e amarra cada maço de nota com elástico amarelo, fazendo uma cruz, com a cara séria. A gente então pede à Marcinha secretária uns papéis partidos e uns elásticos e treina fazer a cruz e finge molhar os dedos na espuminha e escreve qualquer coisa muito importante na máquina de escrever e bate carimbo fazendo, sobretudo, barulho e gira na cadeira giratória pra pegar mais elástico, muito sérias, e volta a fingir os dedos na espuminha, que não está na nossa mesa, mas lá na outra sala, que é só dele, com uma mesa também dele, e cadeira de couro acolchoado que, numa girada só, te deixa perfeitamente de frente pro fax. Ele não vai usá-lo agora. Agora, ele bate nas teclas da calculadora fazendo, sobretudo, barulho, que a gente combina com o dos nossos carimbos, enquanto espera a hora, está chegando, ele vai sair pro banco com
um pacote de pão cheio de dinheiro, debaixo do braço. Estou indo levar o “saco de milho”, ele diz pra Marcinha, preocupado e apressado, sem reparar se a gente está mais gorda ou não, e tudo bem, a gente nunca viraria saco de milho comendo pão de queijo, que é de polvilho.
As gêmeas, sempre de olho no avô, esperam que ele desça os degraus, um de cada vez, e dizem à Marcinha secretária que ela pode ir tomar café, sim, que elas vão ficar ali só batendo carimbo. A Marcinha faz soar a escada e as meninas correm pra sala do avô, com mesa enorme de madeira e vidro por cima.
Prensados entre o tampo e o vidro estão São Cosme e Damião de papel e uma foto do mercado no dia da inauguração. As gêmeas dividem a mesma cadeira disputando o couro que gruda e desgruda das pernas na medida em que se ajeitam: duas cotoveladas e elas cabem. Enquanto uma faz conta com qualquer número na calculadora, a outra desenha no risque e rabisque uma balança que ficou parecendo quebrada. As netas tinham assistido ao tio ensinar o avô como se passa fax, no dia em que o aparelho chegou, e naquela manhã traçaram um plano para usá-lo.
Tio, avô, mãe, Marcinha, mais uns três funcionários e as gêmeas querendo aprender o milagre, todo mundo amontoado entre a mesa e o aparador encostado na parede, que agora seria o Móvel do Fax. O tio liga pra Belo Horizonte e pede pra darem o sinal. Sinal de fax – ele diz. Todos esperam e, ninguém sabe como, do outro lado da linha, o fornecedor era capaz de dizer tim-tim por tim-tim o que havia viajado no papel. Nem mesmo o tio sabia explicar. Ele só repetia que era assim que funcionava: você podia colocar texto, desenho, número — qualquer coisa rabiscada ou escrita à máquina — que o aparelho da outra pessoa, não importava que ela estivesse no Japão, imprimia o que o fax tinha engolido ali, em São João del-Rei, Minas Gerais. Óbvio que era mágica — as gêmeas concluíram.
inéditos
Com o desenho da balança arrancado do risque e rabisque, elas decidem procurar na agenda telefônica alguém de Belo Horizonte, Minas Gerais, e, embora até que se chegasse à letra R todos os nomes viessem acompanhados apenas de sobrenomes, ali, quase no final, havia um “Roberto — Belo Horizonte”. Talvez por ter sido aflitivo não encontrar nada até o R, talvez porque Belo Horizonte fosse um lugar de alto prestígio e telefonar pra lá, mesmo que fosse pra dizer “sinal de fax”, exigisse certa imponência, o fato é que ao se lembrarem do momento em que encontraram o dito cujo, as gêmeas até hoje fazem uma pausa e repetem “Roberto — Belo Horizonte”. O nome inscrito no ar, como uma cidade no mapa.
Será que é ele mesmo que compra o milho? E se não for?
É só dizer que foi engano, que era pra outro Roberto. De Belo Horizonte. Isto, de Belo Horizonte. Então tá.
Tá – uma diz à outra. Elas dão pulinhos e risinhos e quem ditou o número foi a gêmea, quem ligou foi a outra gêmea, elas sempre fazem questão de frisar. O aparelho chama três vezes e uma voz muito redonda diz “Alô”. Pálida e com o desenho já engatilhado na boca do aparelho, a gêmea diz “Sinal de fax” com uma voz tão grossa, tão entalada com um sabugo de milho na garganta, que a outra cospe uma risada que deve ter chegado no Japão sem precisar de fax nem nada. A gêmea arregala os olhos com toda a força, esperando que deles saiam raios exterminadores, e segue repetindo “Sinal de fax, sinal de fax”, sem mudar nadinha a voz de sabugo, enquanto a outra ri. Então a gêmea solta o papel e tapa a mão na boca da outra gêmea, que ri, ri, ri até o Roberto, lá de Belo Horizonte, desistir da voz redonda e mandar as duas caçarem mais o que fazer, Suas diaba! — ele completou, antes de bater o telefone.
Claro que a gente saiu na porrada. A que continuou rindo muito mais do que batendo foi salva pelo trim do telefone da Marcinha secretária. Pausa. A gente se olha com a cumplicidade de quem não tentava matar a outra e escuta, lá de longe, degrau por degrau, os tamancos de madeira e couro, com tachas douradas, que a gente sempre quis ter, mas eram da Marcinha. Esconde, esconde! Esconde! Esconde rápido! Esconde, vai, esconde! Aquele barulhão de tamanco, a gente ofegante debaixo da mesa do vô, o telefone, o telefone, o tamanco, o telefone, o tamanco, o tamanco, tamanco, É do banco? — a Marcinha atende. Minha Nossa Senhora, mas como ele está? No hospital? Sei. Hum-hum. Tá bem, vou avisar pros filhos dele agora, pode deixar que já chegam lá. Tamanco, tamanco, tamanco, tamanco, Marcinha, sem pensar em degrau, escada abaixo.
A gente também desce e Seu Nilso, dos frios, diz que diz que não precisamos nos preocupar, que nossa mãe precisou sair, mas já vai voltar. A Marcinha também saiu – ele diz. Que não estava sabendo nada de hospital não, que deve ter sido engano e que era pra gente ajudar lá nos ensacados, pois quem mais vai vender o milho?
Já fazia uma semana que o avô estava no hospital quando as gêmeas chegam pra visitá-lo. A mãe tinha avisado que ele andava muito fraquinho, que precisava ter delicadeza pra estar com ele e as duas entram no quarto quase andando pra trás, de tanto receio. A mãe ri — não é pra tanto – mas vai ajudar as filhas a completarem o trajeto até a cama. O avô deitado, olhando fixo pela janela. Olha só quem veio te visitar, papai! — a mãe fala alto, animada, como quando chegava um amiguinho no aniversário das gêmeas e ela queria enaltecer o convidado.
Ninguém nunca tinha precisado avisar ao avô que as netas estavam por perto — ele sempre soube de longe.
O avô olha. Viu só como a gente engordou, vô? — uma diz. Ele olha. A gente trouxe milho pra você ver se está com bicho ou se pode vender. Foi Seu Nilso que
mandou – a outra completa. A cabeça enrolada numa faixa, nenhum cabelo liso e preto e tão brilhante de creme Trim. O gato deve ter comido a língua dele — a gêmea arrisca uma gracinha e a mãe concorda –Comeu mesmo! — e ri enxugando umas lágrimas que ela nem tinha rido o suficiente pra que caíssem.
O vovô ficou mudo, mãe? Não, meu amor, a gente ainda não sabe. Mas o que ele teve? Chama isquemia. Faltou combustível no cérebro e agora ele não está querendo funcionar direito, entende? Mas então por que não abastece de novo? Não funciona bem assim, meu amor.
Ele olha a gente por um bom tempo, mas não vê dois sacos de milho, nem inventa que vai nos vender só pra gente comer e ficar forte. Sequer está sério, com cara de quem conta dinheiro sabendo que o saco só anda esvaziando. Nem morder o grão com o dente canino, pra ver se estava oco, ele soube! Nosso avô na nossa frente, lá no Japão. Vontade de desenhar a balança, o pão de queijo, Seu Nilso e a Marcinha, de escrever iorgute e passar tudo pelo fax pro cérebro dele.
São Cosme e Damião esmagados no vidro, sem poderem fazer nada.
Júlia Medeiros é de São João del-Rei (MG). Escritora, atriz, dramaturga, roteirista, compositora e gestora cultural há mais de 20 anos. Seu primeiro livro, A avó amarela, foi vencedor dos prêmios Jabuti 2019; FNLIJ - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; catálogo “White Ravens” - Biblioteca Internacional da Juventude, Munique; Catálogo Emília e “30 Melhores Livros do Ano”, da revista Crescer. Seus dois últimos livros, Temporina e Zalém e Calunga (ÔZé/Ponto de Partida; 2022/2023) são adaptações de obras dramatúrgicas de sua autoria. Em 2025, compôs o Conselho Curatorial da Flipinha, na 23ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Bruno de Souza é artista plástico e arquiteto urbanista, nascido em 2001, no bairro Tejuco, de São João del-Rei (MG). Em sua pesquisa atual, Território: entre o corpo e a paisagem, investiga relações entre ancestralidade, memória e pertencimento. Recentemente, participou de exposições coletivas e individuais nos estados de MG, RJ e SP.
DESCONECTAR PARA SONHAR
Neurocientista Sidarta Ribeiro alerta sobre o uso desenfreado de redes sociais e a necessidade de criar um pacto transgeracional de moderação
POR LILIAN SILVA
Otrabalho desenvolvido pelo neurocientista
Sidarta Ribeiro pode ser encontrado em publicações, palestras e entrevistas, mas não só. A pesquisa do fundador do Instituto do Cérebro e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) também transita por palcos, museus e cinemas. O livro Sonho manifesto: Dez exercícios urgentes de otimismo apocalíptico (Companhia das Letras, 2022) inspirou a montagem da peça Sonho elétrico, da Companhia Brasileira de Teatro. Com sessões esgotadas e protagonizado pelo ator Jesuíta Barbosa, o espetáculo ficou em cartaz no Sesc Vila Mariana de junho a agosto.
Já sua obra O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho (Companhia das Letras, 2019) deu origem à exposição Sonhos: história, ciência e utopia, realizada no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, de dezembro de 2024 a abril deste ano. Com curadoria do próprio cientista, a mostra apresentava de que modo os sonhos têm sido aplicados por diversos povos e em diferentes épocas como ferramenta de criação, aprendizado e, inclusive, de decisão.
Recentemente, o neurocientista também participou do documentário Criaturas da mente (2025), do diretor Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus, Elisa
2005), que pode ser assistido nas plataformas de streaming. Relacionando conhecimentos científicos com saberes ancestrais, o longa-metragem investiga este estado mental do sono – misterioso e coletivo –, que consiste na nossa capacidade de sonhar.
Dedicado a essa e outras temáticas, como os avanços do uso terapêutico da cannabis, discussão presente em seu último livro, As flores do bem (Fósforo, 2023), Sidarta Ribeiro se consolida como um cientista e pensador brasileiro da contemporaneidade. Neste Depoimento, ele chama atenção para o uso excessivo das telas, principalmente entre crianças e jovens.
jovens. A gente está causando um mal muito grande porque fomos nós, adultos, que deixamos isso acontecer e não pensamos direito nas consequências. A gente precisa fazer uma discussão sobre isso assim como discutimos a respeito de qualquer fármaco. Qual é a quantidade, qual é a dose e qual é a qualidade desse uso de tela? Se nós, mães, pais, avôs e avós, continuarmos a nos entregar dessa forma na frente das nossas crianças, como é que elas vão escapar disso?
saídas
Como é um almoço de domingo típico hoje em dia? Você vai a um restaurante e está cada um com a sua tela, não é? Parece tudo muito bem desenhado para a chegada triunfal dos robôs. Precisamos de um pacto transgeracional de moderação. Se a gente conseguir baixar o nosso tempo de tela e aumentar o nosso tempo offline, em sintonia, em conexão, aí fica muito legal. Ver filmes incríveis, ouvir música... é ótimo. Em família, temos que buscar promover um tempo com todos
longe das telas para conversar, jogar jogos de tabuleiro, fazer capoeira, cantar junto, sair para brincar. Coisas que nós, quando crianças, tínhamos, que eram tão gostosas e que, hoje em dia, estão em risco de extinção. A gente lembra como era o mundo [sem as telas], nossos filhos não. Eles nem sabem o que estão perdendo, e essa é a grande dificuldade.
risco
A gente tem um desafio enorme aí. Esse mundo em que as redes sociais mandam e desmandam, fazem o que querem e não prestam contas à sociedade é um absurdo completo. E a única razão pela qual elas estão conseguindo, em muitos locais do mundo, estar nesse lugar indefinido é por causa da “força da grana que ergue e destrói coisas belas” [referência ao verso da música Sampa, composição de Caetano Veloso]. A gente precisa dar um limite para isso, pois o risco é muito alto. Se as novas gerações continuarem do jeito que estão, a gente vai ter – aliás, já tem – uma grande descontinuidade cultural em relação às gerações passadas.
SE AS PESSOAS ESTIVESSEM USANDO AS TELAS
I.A.
Ver um monte de conteúdo dá a sensação de que você sabe tudo aquilo, mas não sabe. Só vai saber mesmo quando escrever, falar sobre aquilo, quando alguém te der um feedback dizendo: “isso aqui está correto; isso aqui não”. Há uma ilusão de aprendizado, o que é muito perigoso. Poucos são os jovens que estão se dando conta do tamanho do problema, e eles estão cada vez menos capacitados, ao mesmo tempo em que as inteligências artificiais estão se capacitando em tudo. Onde isso vai dar? A gente vai ficar obsoleto, os seres humanos vão ser colocados para fora do mercado de trabalho. O Goldman Sachs [banco de investimento multinacional estadunidense] fez um estudo estimando em 300 milhões de empregos perdidos, e a McKinsey [empresa global de consultoria], um número maior.
mudar
O mundo das telas ganha do livro de 7 a 0. Eu estava conversando com o professor de português do meu filho, aí ele fez uma citação do Guimarães Rosa (1908-1967) e eu falei: “Tá, mas quando ele vai ler Guimarães Rosa?”. O professor, então, parou e me disse: “É, ninguém ali [da turma] vai ler, né?”. Se as novas gerações não vão ler nada do que a gente leu, não vão escutar nenhuma música que a gente escutou, não vão conhecer a história do mundo, se vai ser tudo totalmente mediado por telas, e sem história, isso é um prato cheio para a dominação. A gente precisa se posicionar e mudar os hábitos. Se mães e pais querem que os filhos tenham outras relações com as telas, também têm que estabelecer outras relações.
ALMANAQUE
Vinil para ouvir e celebrar
Conheça espaços na região central da capital paulista onde os discos convidam curiosos e colecionadores para apreciar lançamentos e raridades
POR ADRIANA TERRA
Ozum-zum-zum nas galerias do Centro de São Paulo é de gente atrás de discos de vinil. Inventado nos anos 1940 e vivendo seu auge de popularidade entre 1950 e 1990, o vinil segue como um objeto de interesse em pleno 2025, atraindo um público diverso em busca de raridades e lançamentos. Desde os anos 1970, essa região da cidade concentra o “ouro” que faz brilhar os olhos de quem ama música.
A retomada do interesse pelo vinil também impulsionou o Sesc São Paulo a investir nesse formato. Focando no valor cultural dos projetos, já foram quatro os lançamentos desde então: o LP duplo Donato Elétrico, de João Donato, o LP triplo Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998), além dos LPs Língua Brasileira, de Tom Zé, e Nana Tom Vinicius”, de Nana Caymmi. O Selo Sesc tem acompanhado a mudança de espectro no consumo de música em formato físico pelo público e considera que esses produtos abrem espaço para uma experiência mais tangível do que o streaming. As pessoas podem manuseá-los, ler o encarte, contemplar a arte gráfica, e no caso do LP, virar o disco para seguir ouvindo no rito que o momento de comunhão com a música merece.
Embora nunca tenha saído de circulação entre colecionadores e DJs, o disco de vinil consolidou seu lugar nos últimos anos em harmonia com o mercado digital, com novas lojas, feiras, bares de audição e fábricas. Sem contar o número de músicos lançando novidades no formato LP – segundo relatório produzido pela associação Pró-Música, o mercado nacional registrou um aumento de 45,6% nas vendas de vinis em 2024.
Na capital paulista, são muitos os lugares em que o “bolachão” toca sua história. Além da comercialização, muitas lojas também recebem DJs aos finais de semana. Neste Almanaque, conheça espaços dedicados à cultura do vinil para ouvir e celebrar o lado B e o lado A.
Selo Sesc. Mais informações em sescsp.org.br/selosesc
Desde 2016, o Selo Sesc já lançou quatro projetos em vinil. Entre eles, o LP triplo Relicário:
João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998), em 2023.
Fotos Matheus José Maria
Inaugurada em 1962, a Galeria do Rock se consolidou no bairro da República como um dos destinos favoritos de quem busca por vinis em São Paulo.
GALERIA DO ROCK
Construída em 1962, e originalmente chamada de Shopping Center Grandes Galerias, a Galeria do Rock chegou a abrigar 84 lojas de discos nos anos 1980, quando era conhecida como Galeria 24 de Maio. Atualmente, ela tem cerca de 15 lojas e a mais antiga é a Baratos Afins, que aportou por ali em 1978. Luiz Calanca, seu fundador, conta que o cenário era bem diferente na época, com muitas lojas vazias, aluguel barato e outros serviços no local – de mágico a alfaiate. Poucos anos depois, a venda de vinil dominou. “Toda a adjacência aqui era de lojas – sem contar
as Casas Bahia, Mesbla, Casas Manon –que vendiam discos”, recorda. Ao lado da Barato, está a London Calling, loja que antes funcionava na Galeria Presidente, na mesma rua. Hoje, embora a concentração de vinil na Galeria do Rock seja bem menor, a busca por discos se mantém e se renova, com clientes que há seis décadas frequentam o espaço e jovens curiosos atrás de discos.
Galeria do Rock. Entrada pela rua 24 de Maio, 62, e avenida São João, 439, República. São Paulo – SP.
Nilton Fukuda
ALMANAQUE
DISCOTECA ONEYDA ALVARENGA
A Discoteca Pública Municipal de São Paulo foi criada em 1935 pelo escritor e musicólogo Mário de Andrade (1893-1945), quando chefiava o Departamento de Cultura e Recreação da cidade. Esse é o maior acervo público de música do país, com 50 mil discos em 78 rpm (formato mais antigo, feito de goma-laca), 26 mil em 33 rpm (o vinil atual), livros, partituras e hemeroteca. Leva hoje o nome da musicóloga que a conduziu por mais de três décadas, Oneyda Alvarenga (1911-1984). “A discoteca começa embaixo do Theatro Municipal de São Paulo, vai para a avenida Brigadeiro Luís Antônio, depois Lapa e, em 1982, vem para o Centro Cultural São Paulo (CCSP). Oneyda foi aluna de Mário de Andrade e a vida dela todinha é na Discoteca”, conta Aloysio Nogueira, cuja trajetória profissional também está muito atrelada ao local, onde trabalha há mais de quarenta anos. Por ali, há vinis que podem ser manuseados nos toca-discos, outros colocados por técnicos – os de 78 rpm devem ter audição agendada. Ainda há, no acervo, versões digitalizadas que mantêm a sonoridade original.
Discoteca Oneyda Alvarenga, Centro Cultural São Paulo (CCSP). Rua Vergueiro, 1000, Liberdade. São Paulo – SP.
GALERIA METRÓPOLE
Quando começaram a comprar discos nos anos 1990, os DJs Marcio S e Mimi esbarraram no Centro da cidade com artistas que viam nos clubes. “Era o momento de criar um nível de abordagem com o cara que você viu tocar no fim de semana”, relembra DJ Marcio S. Essa frequência não mudou tanto graças à paixão de outros aficionados pelo LP. Neste ano, a dupla de DJs e o também DJ e colecionador Marcio Martinez criaram a loja Collectivinyl, no térreo da Galeria Metrópole. O espaço reúne os selos de cada um: Acerola Discos, Oca Records e Show Me Your Case. A junção não é só de acervos, mas também da bagagem de vida que trazem, seja do trabalho em outros locais (como a Patuá Discos), ou tocando e pesquisando. Aos sábados, a Collectivinyl costuma receber convidados. Inaugurada em 1960, a Galeria Metrópole também recebe, sazonalmente, a Feira de Discos de Vinil & CDs, organizada pela loja Locomotiva. Galeria Metrópole. Avenida São Luís, 187, República. São Paulo – SP.
Na República, a Galeria Metrópole dispõe de loja e uma feira sazonal dedicada ao vinil.
GALERIA NOVA BARÃO
Inaugurada em 1964, a galeria é um dos principais lugares do vinil hoje em São Paulo, com mais de 30 lojas. A mais antiga é a Disco Sete, desde 2001. Na sequência, veio a Lado C Discos. “Antes tinha muito cabeleireiro, depois as lojas de discos foram entrando. Atuo no ramo há 40 anos: comecei com vinil, aí veio o CD, LD, blu-ray. Trabalhei em todos esses segmentos e agora estou de novo no vinil”, conta o DJ Maurício Rocha, vendedor da Lado C Discos. Para Eduardo Brechó, fundador da Petróleo Music, aberta em 2023, essa concentração forma uma comunidade solidária. A Petróleo costuma fazer pequenos eventos com DJs, inspiração que veio da loja do produtor de house Joe Claussell, que conheceu quando trabalhou na Human Head Records, na cidade de Nova York (Estados Unidos). “Eu queria um espaço onde você pudesse dançar, e onde pudesse ficar bastante gente”, conta.
Galeria Nova Barão. Entrada pelas ruas Barão de Itapetininga, 37 e Sete de Abril, 154, República. São Paulo – SP.
Aberta em 2023, a Petróleo Music promove eventos com discotecagens na Galeria Nova Barão.
O vendedor DJ Maurício Rocha, da Lado C Discos, uma das lojas mais antigas da Galeria Nova Barão.
Do prato ao planeta
Comer, além de um ato biológico, cultural, agrícola e ecológico, é um ato político.
O que e como se come determinam, em grande parte, como será o futuro do planeta.
Michael Pollan
Tive o primeiro contato com a sustentabilidade em 1995. Na ocasião, fui apresentada ao Programa Mesa São Paulo, iniciativa que hoje, com 31 anos, se chama Sesc Mesa Brasil, uma ação que reforça o compromisso com a sustentabilidade por meio da distribuição de alimentos próprios para consumo e que seriam desperdiçados. Presenciar o resultado desse programa na vida de milhares de pessoas reforçou, ao longo de minha jornada, meu compromisso diário com escolhas conscientes.
Ser uma das coordenadoras de alimentação nas unidades do Sesc me fez perceber que a alimentação é muito mais do que nutrir e servir refeições: envolve o educar, inspirar e transformar a relação das pessoas com o alimento. O dia a dia do trabalho nas Comedorias não é sinônimo apenas de pensar na produção de refeições equilibradas e saborosas. Também visamos à redução do desperdício, ao armazenamento correto dos insumos e ao planejamento dos cardápios. Isso se traduz em uma responsabilidade com a economia, a saúde pública e o impacto ambiental.
A sustentabilidade também está presente nas ações educativas que desenvolvemos, como no projeto Experimenta! Comida, Saúde e Cultura, programação da qual é gratificante fazer parte e que gera um aprendizado coletivo. Por meio de oficinas, palestras, intervenções, bate-papos e feiras agroecológicas, dentre outras ações, o
público descobre novas formas de lidar com os alimentos e compreende que cada escolha no prato tem um impacto cultural, social e sustentável.
Outra iniciativa marcante nos últimos tempos foi a implantação do gerenciamento de resíduos sólidos urbanos na unidade do Sesc Belenzinho, onde incorporamos a triagem dos materiais para o aproveitamento integral e a compostagem dos orgânicos. Aqui, os materiais recicláveis passaram a ser transportados e doados à Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis, a 20km da unidade, fortalecendo a comunidade local. No primeiro mês, o nosso trabalho resultou na preservação de 64 árvores, na economia de quase 20 mil litros de água, na redução de 6.303 KWh de energia e de emissão de 3.066kg de CO2. Para mim, trabalhos como esse dão a sensação de missão cumprida.
Essas histórias são resultantes de aprendizados e trocas nesses 30 anos de jornada no Sesc São Paulo. São experiências que me mostram que é possível construir um futuro mais saudável, justo e sustentável a partir do que colocamos no prato e do cuidado com tudo que deixamos nos espaços por onde passamos.
Adriana Iervolino da Cunha é formada em hotelaria, pós-graduada em padrões gastronômicos e gestão de restaurantes de coletividade. Atua na área de alimentação do Sesc Belenzinho.