Contato – Ações para promoção da saúde sexual e prevenção das IST e Aids
Contato
Ações para promoção da saúde sexual e prevenção das IST e Aids
O incentivo ao pensamento crítico é um dos caminhos para a construção de sociedades mais justas e solidárias com as gerações atuais e futuras. Para tanto, é preciso que as informações, saberes e experiências, dispersas entre os inúmeros dispositivos acessíveis atualmente às pessoas, sejam transformadas em conhecimento em prol do bem comum. Nesse ponto, a valorização da memória social ligada à saúde pública, em diálogo com o presente, constitui um valor decisivo para que o conhecimento ajude a tecer redes de proteção social que possam se antecipar aos eventos de crise.
Um aspecto que merece ser sublinhado é a necessidade de ampliar a divulgação e a discussão sobre o atual contexto de enfrentamento às infecções sexualmente transmissíveis (IST) e à Aids como uma questão de saúde pública, bem como à desconstrução das diferentes formas de preconceitos e estigmas. Fomentar esse debate é essencial para a consolidação de novos paradigmas sobre saúde integral e para o aprimoramento das relações sociais, tendo por base informações confiáveis e considerando as diferentes determinantes sociais que afetam as pessoas em seus contextos.
Campanhas e mobilizações ligadas a temas relevantes como esses precisam contar com a corresponsabilidade das diversas instâncias da sociedade. É nesse sentido que se inserem as ativi -
dades do projeto Contato: ações para promoção da saúde sexual e prevenção das IST e Aids, cujos primeiros passos remontam aos anos 1990, momento histórico em que a entidade experimentou abordagens diferenciadas a fim de estimular o debate público sobre HIV/Aids. Tendo em vista o avanço dos métodos de prevenção e dos tratamentos, bem como o amadurecimento de políticas públicas de saúde no país – que se tornaram mundialmente exemplares –, a ação do Sesc passou a focar, a partir de 2018, na quebra de estereótipos e na valorização da potência de vida das pessoas, por meio de ações e reflexões na perspectiva da promoção da saúde de forma expandida.
A presente publicação reúne conteúdos de caráter plural: textos jornalísticos, acadêmicos e artísticos que visam contribuir para a ampliação da percepção corrente sobre saúde sexual e reprodutiva, prevenção das infecções sexualmente transmissíveis e outros fatores relacionados à saúde mental e sexual das pessoas. Para o Sesc, a grandeza que subjaz à palavra contato reside em sua dimensão sociocultural e educativa, somada ao seu potencial afetivo, ao propiciar aproximações as mais diversas, tendo em perspectiva o direito a uma vida digna e saudável para todas as pessoas.
Sesc São Paulo
6 Corpo, cuidado e encontro
9 HIV e vida rimam sim
10 Como se transa na era da informação?
16 Diagnóstico
18 Aquele barulhinho
27 Solidão
28 Aquilo deu nisso: o HIV e a ressignificação de vidas e histórias
36 Eu ainda sirvo pro amor?
37 Amor posithivo
38 O futuro é um presente que se sonha junto
46 Encantamento
47 O HIV não acabou com a minha vida…
48 A euforia que habita
54 Carta à mãe que vive com HIV
60 Sobre o Sesc
Corpo,
cuidado
e encontro
O Sesc São Paulo atua, há 80 anos, para promover a saúde de forma integral, compreendendo o ser humano em sua totalidade, considerando as dimensões biológica, psicológica, social e cultural. Essa abordagem reconhece que o bem-estar não se restringe à ausência de enfermidades, mas resulta da interação equilibrada entre fatores individuais e coletivos que influenciam a qualidade de vida.
Para contemplar esses diferentes aspectos, a instituição atua em diversas frentes, entre elas o programa de saúde bucal, um dos maiores na área de odontologia do país, com mais de 150 consultórios distribuídos por todo o estado, e as ações de educação em saúde, que incentivam o cuidado por meio da promoção do conhecimento, da prevenção e da autonomia. Essas iniciativas abordam temas como saúde bucal, mental, sexual e reprodutiva, além da qualidade de vida.
Parte do grupo de ações de educação em saúde, o Contato: ações para promoção da saúde sexual e prevenção das IST e Aids é um projeto que promove o diálogo, a reflexão e o cuidado em torno
da saúde sexual e reprodutiva. Realizadas em diversas unidades da capital, interior e litoral, as atividades propõem uma abordagem ampliada do tema, reconhecendo a sexualidade como dimensão fundamental da vida humana, atravessada por questões de afeto, prazer, identidade, direitos e responsabilidade social.
Por meio de uma programação diversificada, o Contato busca oferecer espaços seguros e acolhedores para a troca de saberes, o acesso à informação e a valorização da diversidade de experiências e corpos. As atividades contribuem para a prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (IST) e do HIV/Aids, a promoção da autonomia e a construção de relações mais saudáveis.
Desde sua criação, o projeto se consolida como um importante campo de articulação entre cultura, educação e saúde, fortalecendo o compromisso do Sesc São Paulo com a promoção de bem-estar, o enfrentamento de estigmas e a defesa dos direitos humanos. O Contato reafirma que o cuidado com o corpo e com o outro é também um ato de cidadania, diálogo e transformação social.
HIV e vida rimam sim
Por Priscila Obaci
Eu sou mãe
Deusa que alimenta o mundo com seu ventre
Morada da vida semente
Amor que transborda no cuidar
Luz de ser exemplo de caráter
E coragem de não desanimar
Eu sou mãe
E foi nesse território que o HIV me encontrou
E fez o cenário mais antagônico
Um exemplo icônico
De que a morte já não é mais sua parceira
Posso seguir de outra maneira
Pois a vida já te abraçou
Eu sou Mãe
E sigo sonhando futuros
Festejando o presente
Criando memórias
Deixando meu legado
Em artes, sonhos e filhos
Escrevendo novas histórias
Potentes pedaços de mim
Que celebram e honram
Que HIV e VIDA rimam SIM
Como se transa na era da informação?
Por Vinícius Borges
Sou médico infectologista há oito anos e criei o Doutor Maravilha em 2015, com a intenção de traduzir a saúde sexual com ciência e leveza. Desde então, tenho vivido uma jornada entre a história do HIV, os avanços da medicina e a vida real das pessoas.
Se hoje falamos em PrEP (Profilaxia pré-exposição) diária ou sob demanda, PrEP injetável, PEP (Profilaxia pós-exposição), Doxi-PEP e antirretrovirais modernos que transformam o HIV em algo controlável, é porque houve uma geração que carregou o fardo mais pesado da epidemia. Nos anos 1980 e 90, milhares morreram em silêncio, muitas vezes abandonados pela família, pelo Estado e pela própria medicina. Quem sobreviveu traz no corpo e na memória as cicatrizes do preconceito e da perda. Foi graças à coragem dessas pessoas que hoje podemos pensar o sexo com menos medo e mais liberdade.
Mas será que estamos realmente livres?
Vivemos na era da informação. Nunca estivemos tão hiperconectados. Temos acesso a testes rápidos, vacinas, tratamentos de alta eficácia e uma multiplicidade de formas de prevenção. E, ainda assim, vejo no consultório algo que os números não mostram: as pessoas nunca estiveram tão carentes de diálogo, de afeto e de sentido no prazer.
A prevenção se transformou em ciência de ponta, mas o afeto ainda tropeça em velhos fantasmas: a sorofobia que insiste em tratar pessoas vivendo com HIV como ameaças, a desigualdade que impede milhões de acessarem tecnologias que deveriam ser universais e o silêncio em torno da sexualidade das minorias (nem tão minorias assim).
Nos anos mais duros da Aids, ser diagnosticado significava preparar-se para a morte. Havia medo, mas havia também resistência. Pessoas trans, gays, negras, trabalhadoras do sexo e ativistas criaram redes de solidariedade, lutaram pelo direito de viver e obrigaram governos a responderem a uma crise que preferiam ignorar. A conquista do SUS como sistema público e gratuito de saúde está diretamente ligada a essa história.
É impossível falar das tecnologias de hoje sem reconhecer esse legado. O comprimido único que garante a supressão viral, o cabotegravir injetável que previne novas infecções, a vacina de hepatite B ou a possibilidade de pegar a PrEP no posto de saúde são frutos da luta de quem morreu cedo demais, mas abriu caminho para tudo isso. Lembrar dessa memória é um ato político. Sem ela, corremos o risco de acreditar que o prazer de hoje é mérito apenas da ciência e não da resistência de corpos marginalizados que se recusaram a desaparecer. Para contextualizar, é importante trazer as definições formais (Ministério da Saúde, 2022):
TARV (Terapia Antirretroviral): tratamento indicado para todas as pessoas vivendo com HIV, que mantém a carga viral indetectável e, portanto, intransmissível (ou seja, indetectável = zero transmissão).
PEP (Profilaxia Pós-Exposição): uso de antirretrovirais por 28 dias após uma situação de risco (sexo desprotegido, violência sexual, acidente ocupacional). Deve ser iniciada em até 72 horas após o evento.
PrEP (Profilaxia Pré-Exposição): uso contínuo de antirretrovirais antes da relação sexual, que reduz em mais de 99% o risco de infecção pelo HIV.
PrEP sob demanda: esquema 2+1+1, com duas doses antes da relação e mais duas depois, eficaz em homens que fazem sexo com homens e mulheres trans sem uso de estradiol, quando o sexo não é frequente, com proteção de até 97%.
PrEP injetável (cabotegravir de longa duração): aplicada a cada 2 meses, dispensa o uso diário de comprimidos e melhora a adesão, com proteção acima de 99%.
DoxiPEP: uso de 200 mg de doxiciclina até 72 horas após o sexo, reduzindo em até 70% a chance de sífilis e clamídia.
Prevenção combinada: estratégia que integra métodos biomédicos (PrEP, PEP, preservativos, vacinas), estruturais (políticas públicas de acesso à saúde) e comportamentais (diálogo, redução de danos, negociação de práticas sexuais).
Essas ferramentas mudaram radicalmente o panorama da epidemia. Mas, como costumo dizer, sexo não é só protocolo.
E os jovens?
No Brasil, seguimos tratando a educação sexual como ameaça. Em muitas escolas, o silêncio é a regra: adolescentes aprendem biologia, mas não aprendem a nomear o próprio corpo, a negociar o uso de preservativo, a reconhecer situações de violência ou a falar sobre consentimento.
Essa ausência custa caro. Jovens LGBTQIA+, que muitas vezes não encontram referências dentro de casa, ficam mais expostos às IST, à gravidez indesejada e ao abuso. A falta de informação não protege; pelo contrário: condena ao medo, à culpa e à repetição de ciclos de exclusão. São o grupo que mais se infecta com HIV no Brasil: jovens do sexo masculino entre 14 e 24 anos (Ministério da Saúde, Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2024).
No consultório, atendo jovens que chegam com uma IST e se sentem fracassados, envergonhados, como se a infecção fosse punição. É preciso dizer com clareza: tudo faz parte da vida, não diminui ninguém, e saúde não deve ser um espaço de julgamento, mas de acolhimento.
E os idosos?
Outra fronteira que ainda não atravessamos é a da sexualidade na velhice. A crença de que o prazer expira aos 60 anos é uma violência silenciosa. Idosos continuam amando, se relacionando, desejando. Mas são tratados como se a intimidade fosse algo indevido. A função sexual não se extingue com o passar dos anos, apenas se modifica.
O resultado é claro: aumento de IST nessa faixa etária (Ministério da Saúde, Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2024), não porque a medicina inventou a pílula azul que mantém um órgão ereto, mas porque nunca oferecemos diálogo honesto sobre prevenção, afeto e cuidado na maturidade.
A invisibilidade da sexualidade do idoso não é neutra: é mais uma forma de negar dignidade.
O maior desafio, porém, continua sendo o preconceito contra pessoas vivendo com HIV, que representam mais de 1 milhão de brasileiros (Ministério da Saúde, Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2024). Ainda recebo pacientes que, mesmo com carga viral indetectável há anos, sofrem rejeição, olhares tortos e até a quebra de sigilo em serviços de saúde. Vazamentos recentes de dados em cidades brasileiras expõem não só a falha do sistema, mas a crueldade de uma sociedade que insiste em punir os corpos que mais resistiram.
Quando alguém pega a PrEP no SUS ou toma uma vacina de prevenção, deveria se lembrar: essas conquistas só existem porque uma geração inteira pagou com a própria vida e dignidade. Honrar essas pessoas significa combater a sorofobia.
Ao longo da minha prática, aprendi que atender alguém não é só ajustar esquemas de PrEP ou prescrever antibióticos. É acolher histórias atravessadas por desigualdade, solidão, luto e desejo.
A verdadeira revolução não é apenas técnica, mas humana: transformar a sexualidade em direito humano. Assim como você vai no profissional de saúde para cuidar do coração, do cérebro, por que não cuidar da sua função sexual?
Podemos ser, sim, a primeira geração que vive seu prazer sem medo. Mas só seremos, de fato, se além de medicalizar o sexo, também humanizarmos nossas relações. No fim, a pergunta que fica: como se transa na era da informação?
Entre protocolos e diretrizes, talvez a resposta seja simples: com muita proteção. Mas também com afeto, dignidade e diálogo.
Nos encontros – de alma e de corpos.
Diagnóstico
Por Priscila Obaci
Agora parece que tudo se foi de pessoas especiais à vontade de continuar aqui
Mas já parou pra pensar que a vida e a morte são amigas?
Às vezes uma parte se vai
E o Todo se faz
Todos os dias é tempo de recomeçar
O Sol nasce após a noite
E da noite que brota o dia
Ser um Corpo-Planta
Pernas-Raízes
Tronco-Caule
Cabeça flores coloridas em sonhos
Em amanhã
Toda morte é necessária para o novo
Ser semente – enterrar
Morrer – brotar
Na escuridão da lua o grão vira fruto
Não tenha medo do escuro
Ele é o abraço da semente
A morada dos bebês no ventre
Um instante antes da luz
O que a vida precisa para não ter fim
Se convide a renascer
Viemos da água e iremos para terra
Enraize, ramifique sonhos
Veja a vida brotar diante dos seus olhos…
Poros
Poesia de viver
Se alimente da natureza
Se ofereça água e amor
Se plante
Germine o HIV
Floresça Vida
E nunca se esqueça que a viagem precisa continuar…
Aquele barulhinho
Por Leandro Noronha da Fonseca
Todo mundo carrega alguma coisa. Nas mãos, cabem moedas, pedras e beijos.
No coração, cabem palavras, buracos e desejos. Em uma mochila, também cabem muitas coisas, e Sofia bem sabia disso. Não era o caso naquele dia. Carregava apenas uma agenda, uma nécessaire com objetos de higiene pessoal e sua carteira com documentos e as chaves de casa. Embora a carga fosse mínima, vasculhou novamente o interior da mochila para se certificar de que não havia se esquecido de nada. Logo mais, sabia também que outras coisas iriam caber ali dentro. Logo mais.
Por sorte, conseguiu um lugar na janela. Era o primeiro lugar que Sofia procurava ao entrar em um ônibus. Naquele horário, de manhãzinha, era realmente sorte. Mal sentou-se, acomodando a mochila no colo, e logo não cabia mais gente em pé. Pálpebras caídas, bocejos reprimidos, cochichos e sons abafados por fones de ouvido: rostos sonolentos sacolejavam no decorrer do trajeto, como se a vida já estivesse preparada para acontecer, mas as pessoas não.
Sofia pensava, com a cabeça encostada no vidro que tremelicava, o porquê daquele sacrifício todo. Poderia ter se poupado daquele longo trajeto, longo e cansativo, escolhendo um lugar mais próximo de sua casa. Se assim fosse, não precisaria acordar tão cedo, antes do sol despontar no horizonte, tampouco precisaria ficar por tantas horas naquele ônibus que parecia dar a volta
em toda a cidade antes de chegar ao seu destino. Ela pensava nos motivos, mas já sabia de antemão todas as suas respostas. E, assim que se lembrou delas, deu um longo e profundo suspiro, ajeitando o corpo na poltrona dura.
Quase duas horas de viagem. Antes de desembarcar, ela imaginou o que poderia ter feito durante aquele tempo. Poderia ainda estar dormindo, no aconchego de seu edredom e dos travesseiros. Poderia já estar de pé, preparando o café e o cuscuz quentinhos, botando de molho as roupas para lavar, ou até mesmo poderia aproveitar o tempo para fazer uma breve caminhada pelo bairro. Ou poderia ter aproveitado aquelas duas horas para ir à praia. Há quanto tempo Sofia não ia à praia? Nem eu me lembro. Ela também não sabia. Mas, durante aquele tempo, poderia até mesmo ir para outra cidade. Aquela cidade era tão grande que parecia várias cidades dentro de uma só.
Do ponto de ônibus até o seu destino era um quarteirão de distância. Com alguns passos, já podia vislumbrar a fachada do serviço de assistência especializada.
Algumas pessoas já se encontravam ali na frente, em fila, algumas encostadas nas paredes de tinta descascada. Prostrou-se no final da silenciosa fila, conferindo o horário no celular. Há alguns anos, fazia aquele ritual: acordar antes do sol nascer, tomar o ônibus sonolento e sacolejante, viajar por quase duas horas para, enfim, chegar ao final daquela fila. Há alguns anos, sim, e nem todo dia, nem todo mês, mas Sofia tinha a impressão de que não havia se acostumado.
Um homem, por volta dos 50 anos, mais ou menos, fumava um cigarro de palha, mais distanciado da fila. Uma criança de colo era embalada pelos braços tranquilos de uma mulher baixinha. Um jovem, com cabelos de mechas azuis, folheava uma revista em quadrinhos. Um homem, portando uma mochila nas costas, olhava distraidamente para o crachá do trabalho, pendurado ao pescoço. Uma mulher curvava-se sobre o celular, segurando o carrinho de feira encostado ao corpo. E Sofia observava todas
aquelas pessoas com certa curiosidade, imaginando o que estariam fazendo ali, de onde vinham e para onde iriam depois dali, quais seriam seus nomes e os seus planos para o fim de semana. Ela tinha dessas: criar mil e uma ficções diante do desconhecido, como uma brincadeira que a distraía e a livrava de desconfortos. Mas aquilo não durou muito, pois soou o tilintar do molho de chaves e o segurança do serviço abriu as portas para que todos da fila pudessem entrar.
Demorou. Passou um tempo desde o momento da entrega de documentos no guichê até sentar-se em uma das cadeiras diante de uma televisão muda e ouvir seu nome proferido do interior de uma das salas do corredor. Sofia não sabia quanto tempo exatamente, mas eu sei que demorou bastante. Já no interior do consultório, sentou-se novamente, agora diante do doutor que a acompanhava há anos. Era um homem à beira dos seus 70 anos, que sempre carregava os óculos pendurados no nariz. Embora educado, quase não mantinha contato visual com Sofia. Preferia curvar-se sobre os muitos papéis do prontuário, conferindo exames, analisando históricos, molhando carimbos e escrevendo com uma letra sempre incompreensível. Nada de novo nas notícias: a saúde de Sofia estava ótima, exames em dia indicando boas taxas de colesterol e glicemia, e vírus indetectável. Indetectável. Indetectável. Indetectável. Essa palavra estranha já não era mais estranha para Sofia, há algum tempo. Era sempre bem-vinda, inclusive, e Sofia ficava muito feliz de ouvi-la todas as vezes que passava nas consultas.
“Você continua indetectável, muito bom”, dizia o doutor, sempre olhando a papelada. Indetectável: aquilo que não se pode detectar.
Pensou em seu ex-marido. Lembrou-se do dia em que se conheceram naquela festa, do primeiro beijo, da primeira transa. Do
casamento, da lua de mel, dos milhares de planos que construíram. Lembrou-se também de quando ele começou a adoecer, idas e vindas de hospitais, noites em claro e angústias diurnas. Até o diagnóstico, que chegou tarde demais para que eles pudessem colocar em prática todos aqueles planos. Ele não sabia e não buscou saber. Sofia soube só depois que ele partiu, mas nunca guardou rancor ou nutriu culpas contra ele.
A vida é mais leve quando nas mãos cabe tudo aquilo que não seja pedra. Não havia raiva. Não havia culpas. E Sofia preferiu viver daquele modo, sem um fardo para arrastar pelos dias.
A vida era outra, mas também era a mesma. Outra, porque, em sua rotina, agora estavam aquelas consultas periódicas, a cada seis meses, que lhe custavam o longo trajeto até o serviço de assistência especializada; porque precisava tomar seu medicamento todos os dias – um único comprimido – para manter a boa saúde; porque não se sentia segura para falar de sua condição para todas as pessoas. Sofia podia ter se acostumado ao tratamento, mas ainda incomodava o silêncio com que decidiu se cobrir, a fim de proteger-se de ideias, discursos e atitudes que pudessem vir a lhe ferir. Mas a vida também era a mesma, porque não deixou de fazer as coisas que sempre fizera: ir a festas, namorar, sair com os amigos, estudar e trabalhar, estar com a família. Viver, enfim.
Enquanto Sofia pensava no ex-marido e em sua vida, havia saído do consultório e se dirigido à farmácia que ficava no próprio prédio do serviço. Entregou as receitas médicas, dobradas no interior de sua agenda, recebendo, em seguida, algumas caixas de medicamento, quantidade suficiente para alguns meses. Colocou rapidamente os remédios na mochila, retirando-se dali em direção
à saída. Enquanto caminhava, pensou no quanto pareceu destrambelhada ao guardar as caixas com tanta rapidez e de maneira tão desajeitada, e riu sozinha. Riu, mas aquele ímpeto nada mais era do que o medo de ser vista com seus medicamentos. O medo era outra coisa com que Sofia não havia se acostumado.
Durante o percurso até o ponto de ônibus, ouviu ruídos. Não eram os ruídos da cidade, com seus carros e buzinas, gritos dos feirantes anunciando promoções, latidos dos cães de rua. Era um barulho. Aquele barulhinho. A cada passo dado, ele se anunciava no interior de sua mochila. Se Sofia apertava os passos, ele aumentava. Se diminuía, ele também aumentava. E ia aumentando assim, desmesuradamente, e Sofia chegou, por um momento, a acreditar que todos naquela rua conseguiam também ouvir o barulhinho dos seus comprimidos, agitados dentro das caixas, dentro de sua mochila. É óbvio que ninguém estava ouvindo, pensou ela, que naquela situação se sentia menos desconfortável por estar longe do lar. Foi por isso que ela havia escolhido aquele serviço de assistência especializada tão distante de sua casa: para não ter que encontrar ninguém conhecido por ali. Sim, ela não havia se acostumado com aquele medo. O medo que transformava o som dos comprimidos em uma algazarra de grandes proporções.
Já no ponto de ônibus, avistou uma das pessoas que estavam na fila ao lado do fumante, da mulher baixinha com a criança de colo, do jovem com cabelos de mechas azuis e da mulher com o carrinho de feira. Era o homem com a mochila nas costas, de crachá do trabalho no pescoço. Sofia não sabia se lhe desejava bom dia ou se mantinha-se distante de tudo, suportando o barulhinho dos medicamentos. Esboçou um sorriso, talvez como forma de disfarçar o nervosismo. Para o seu espanto, ele retribuiu o sorriso, ensaiando um passo em sua direção. Antes de ele se apresentar, Sofia viu no crachá que o seu nome era Davi. “Você também faz tratamento lá?”, perguntou ele, segurando uma sacola. E, naquela sacola estavam os remédios. Remédios como os de Sofia.
Pensou: como ele tem coragem de sair assim, mostrando as caixinhas? Ele tinha uma mochila, poderia muito bem colocá-las lá dentro. Mas foi mais do que pensamento: pensamento alto, verbalizado. Ele sorriu e respondeu: “Eu acho mais fácil carregar assim”. Após um instante de silêncio, ele continuou: “Na verdade, não é fácil, né? Mas eu tento levar de boa”. Outro silêncio. Sofia teve dúvidas se deveria continuar a conversa com ele. Ela apertou a mochila contra o peito, o que fez soar o barulhinho. Engoliu em seco, como se tivesse acionado, sem querer, o estridente alarme de um carro. Davi notou o desconforto dela, achou graça e riu baixinho. Sofia sentiu-se novamente destrambelhada e também riu. Talvez o barulhinho nem tivesse sido tão alto dessa vez.
Meses se passaram até a próxima consulta. Naqueles dias, Sofia levou a vida como sempre. A sua condição era algo de que quase não se lembrava, exceto quando engolia, todos os dias e no mesmo horário, aquele único comprimido com um grande gole d’água. Era nesses momentos que se lembrava de que a sua vida era a mesma, com algumas exceções. E também, é claro, quando ia ao serviço de assistência especializada – lembrava-se durante o trajeto, com a cabeça encostada na janela do ônibus que tremelicava, ao se pôr no final da fila para aguardar a abertura do prédio, ao entregar os documentos no guichê, ao sentar-se diante do médico e sua papelada, ao enfiar rapidamente as caixas de medicamento na mochila. Ela se lembrava, é claro, mas apenas nessas ocasiões. E depois, a vida seguia como todas as outras.
Já fim de ano, a cidade dominada pelo clima natalino estampado nas lojas e nos prédios, e Sofia retornou à sua saga. Ônibus lotado, quase duas horas de viagem, aquela fachada de tinta descascada despontando no horizonte, o final da fila. Entretanto, daquela vez foi diferente. Lá encontrou alguém que a conhecia. Não, não sentiu insegurança. Era Davi, com a mesma mochila nas costas e o crachá do trabalho pendurado ao pescoço. Daquela vez, também foi diferente, porque Davi não estava olhando fixamente para o seu crachá, como da outra vez, mas mantinha-se de cabeça erguida, como se esperasse pela sua chegada.
Depois da consulta e da retirada de medicamentos na farmácia, conversaram. Conversaram por tanto tempo que ambos decidiram não tomar o ônibus rumo ao trabalho. Chegaram atrasados, sem dúvida, mas também chegaram no tempo certo um na vida do outro. O papo se transformou em troca de telefones, em saídas para festas e almoços, em idas ao cinema e ao museu. Transformou-se, lentamente, em algo que somente meses depois eles iriam dar o nome de amor e amizade. No ano seguinte, Sofia pediu transferência para um serviço de assistência especializada em seu bairro, mais próximo de sua casa. Foi difícil, no começo, ter de lidar com as próprias inseguranças de ser vista por pessoas conhecidas, mas o saldo positivo foi muito maior. Já não precisava acordar tão cedo para ir às consultas e buscar os medicamentos, tampouco sujeitar-se a tão longo trajeto. E o barulhinho… Bem, ele continuou, mas já não feria mais os ouvidos de Sofia. Tornou-se um barulhinho como outros tantos barulhinhos que a vida faz e que a gente ouve.
Daí em diante, não tive mais notícias dela. Só sei que, nas mãos, no coração ou na mochila, todo mundo carrega alguma coisa. Imagino que ela esteja bem. Que, em suas mãos, ainda caibam moedas e desejos – as pedras, há muito tempo, ela havia largado pelo chão. Que, em seu coração, ainda caibam palavras e desejos – os buracos, cada vez mais rasos e menos amedrontadores. Que, em sua mochila, ainda caibam muitas coisas, para além das caixinhas de medicamento.
A última coisa que fiquei sabendo foi que Sofia havia conseguido ir à praia, depois de tanto tempo, e ouvir o barulhinho do mar.
Solidão
Por Priscila Obaci
Tem dia que o choro vem
O coração aperta e cada minuto vira uma eternidade
Sinto medo de não ser tocada
Tenho medo de não ser admirada
Tenho medo do HIV ser uma muralha entre mim e o mundo
Mergulho em um buraco de solidão
Sinto gosto distante de uma mão me fazendo cafuné
O cheiro de uma pele que não é a minha
E que não está ao meu alcance
Sinto que não tenho mais nenhuma chance
E vem o medo
Ele me abraça com força
Me deixa imóvel
Me sento como na infância
Aquela menina do canto
Do credo
Do nojo
O medo sussurra no meu ouvido:
‘Você nunca mais será Amada’
Aquilo deu nisso: o HIV e a ressignificação de vidas e histórias
Por Roseli Tardelli
Início de janeiro de 1989. Aeroporto Internacional de Guarulhos em São Paulo. A Espanha me esperava. Era a primeira vez que eu saía do Brasil, rumo à Europa. Jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, já trabalhando na Rádio Eldorado e, no jornal O Estado de S.Paulo, como repórter da editoria de política, concorri e ganhei uma bolsa de estudos concedida pelo Programa de Graduados para os Latino-Americanos (PGLA), que levava jornalistas da América Latina para estudar na Universidade de Navarra.
Nos despedimos no aeroporto. Lembro que abracei meu irmão Sérgio e disse a ele: “Cuide de nossos pais e cuidado também com essa doença nova que está chegando no Brasil, cuidado com a Aids”. Naquele momento, eu não tinha ideia do que a vida e o destino nos reservavam e de tudo o que aconteceria depois, por conta “dessa tal de Aids”, a doença que corrói o sistema imunológico de uma pessoa infectada pelo vírus HIV, se ela não estiver em tratamento com os antirretrovirais. Atualmente, eles existem. Naquela época, porém, essa combinação de medicamentos que segura a replicação do vírus no organismo ainda não havia sido descoberta.
Depois de passar um tempo estudando, viajei muito, conheci e absorvi costumes e culturas na Europa. De volta ao Brasil e ao batente, me tornei âncora, apresentadora na Rádio Eldorado. Apresentei “Jornal Eldorado” e “O Espaço Informal”. Depois, recebi o convite para trabalhar na TV Cultura. Vieram o “Em Português nos Entendemos”, “Opinião Nacional” e fui a primeira mulher a apresentar o “Roda Viva”. Carreira caminhando muito bem, obrigada! Nesse meio tempo, veio a notícia que o Sérgio havia se infectado com o HIV.
Primeira década, a da tragédia: sem medicamentos, sem saber o que fazer, sem muita informação, sem saída, sem atendimento pelos convênios médicos e seguros-saúde. Receber um diagnóstico HIV positivo era praticamente uma sentença de morte. Questão de tempo. Assim foi. Na primeira internação, no Hospital Nove de Julho em São Paulo, final de 1993, Sergio começando a adoecer, a representante do convênio entra no quarto. Sem nenhuma cerimônia explica: “O convênio não atende esse tipo de doença”. Meu irmão me olhou e perguntou: “E agora”?
Eu já havia me informado sobre as questões e possibilidades jurídicas. Desci, fiz um cheque caução. Acionamos a Justiça. A partir daquele momento, tudo começou a mudar e nunca mais a pauta e o tema HIV e Aids deixariam de fazer parte da nossa história.
Tornamos a nossa dor pública. Denunciamos. Realizamos manifestações. A mídia entendeu a relevância de trazer o assunto para as manchetes. Se o nosso SUS atendia as pessoas que haviam se infectado, por que os convênios médicos e seguros saúde se negavam a isso? Ganância, preconceito. Se a gente se encolhe, particularmente ele, o preconceito, ganha corpo e força. Fizemos o contrário. Meu irmão passou a dar entrevistas, denunciar o descaso dos convênios. Muitos amigos e integrantes da família souberam que o Sérgio havia se infectado ao ler o jornal ou ao assistir a alguma reportagem na TV. Na primeira audiência, Sérgio passa mal na frente do juiz. Parecia ter sido a primeira vez que ele se deparava com uma pessoa que havia contraído o HIV tal foi o seu espanto. A urgência e delicadeza da situação fez com que o juiz nos desse ganho de causa em primeira instância.
Cada vez mais meu irmão se debilitava. Por conta do citomegalovírus Sérgio ficou sem enxergar. No dia em que entrei no quarto e disse que ele havia ganhado, na primeira instância, o direito de ser atendido, na ação contra o convênio – então uma das mais importantes seguradoras de saúde do Brasil – ele respondeu algo marcante. Muito magro, já meio confuso, andando pouco, e com ajuda, falou: “Legal, e os outros”?
Sérgio morreu em novembro de 1994. (década da tragédia, lembra?). Quando a pessoa deixa de existir fisicamente entre nós, fica um vazio que só quem já perdeu alguém muito amado e importante em sua biografia afetiva sabe do que estou falando. O Sérgio foi uma pessoa gentil, ponderada, elegante, inteligente e afável. Culto, havia lido grande parte das obras clássicas. Gostava de música, estudou piano. Fomos amigos e muito unidos. Parceiros mesmo de jornada, sabe?
Em 1995, o Sesc São Paulo criou o projeto Contato. Um funcionário da instituição teve a ideia de trazer o assunto para o público através da arte. Artistas plásticos foram convidados a criar obras sobre o tema HIV/Aids. Quebrar o silêncio, expor, falar, mostrar. Tomie Ohtake, Aldemir Martins, Adélia Toledo, Maria Bonomi, Emanoel Araújo, Siron Franco, Ivald Granato, Silvio Dworecki e vários outros responderam ao chamado.
Até então, nenhuma instituição do porte do Sesc São Paulo havia aberto suas portas para falar sobre o assunto. As obras produzidas em quadros foram transformadas em outdoors e ganharam as ruas. Também foram expostas em cidades do interior de São Paulo. Com o projeto Contato fomos para Araraquara, Ribeirão Preto, Rio Claro, Campinas, São José do Rio Preto, várias cidades com shows e apresentações artísticas.
Algumas obras causaram polêmica. O que foi bem importante para iniciarmos uma conversa franca sobre a prevenção e a importância do uso de preservativo. Passávamos um abaixo-assinado solicitando a inclusão de doenças pré-existentes no atendimento dos convênios médicos e seguros saúde. Meus pais,
já idosos, chegaram a ir em algumas dessas ações. Com o Sesc São Paulo e Parceiros de Vida Contra Aids, ONG que criei, fomos construindo uma relação de parceria, carinho, profissionalismo, confiança, acolhimento e respeito tendo a arte como instrumento para fomentar conversas e trazer o assunto para a vida das pessoas. Falarmos sobre acolhimento, inclusão e prevenção, o quanto podemos ser vulneráveis a um vírus que, quatro décadas depois de seu surgimento, ainda infecta 1,3 milhão de pessoas anualmente, segundo o UNAIDS, Programa Conjunto das Nações Unidas que coordena a resposta global contra a pandemia.
Em 1998, fui curadora de um projeto organizado pela Revista Imprensa, o I Fórum Aids Imprensa & Cidadania. Durante dois dias, pela primeira vez no Brasil, médicos, gestores, ativistas, jornalistas e pessoas vivendo com o HIV se reuniram para conversar sobre o tema. José Serra era Ministro da Saúde, Dr. Pedro Chequer, diretor do Programa de DST/Aids do Brasil. Nosso querido e saudoso Danilo Miranda presidiu a abertura e as obras do Contato foram exibidas em Brasília. Assim fomos aprofundando nossa parceria.
Um tempo depois, em 2003, fundei a Agência de Notícias da Aids (agenciaaids.com.br), um portal noticioso que produz informações diárias sobre o assunto. De lá para cá, a maioria das nossas ações envolvendo a arte como caminho para falar sobre prevenção foram apoiadas pela Fecomércio, particularmente pelo Sesc e o Senac de São Paulo. As duas entidades foram pioneiras em escancarar suas portas para quebrar o silêncio sobre o HIV e a Aids. Assim, produzimos Depois Daquela Viagem, que o dramaturgo e jornalista Dib Carneiro transformou em espetáculo teatral, baseado no livro consagrado da escritora e ativista Valéria Polizzi, infectada pelo vírus ainda adolescente em sua primeira relação sexual. Com a sensibilidade e competência da diretora Abigail Wimer, preparação de elenco de Sílen Clair e um time de primeiríssima qualidade de jovens atores, estreamos no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação. Casa cheia, muitos jovens assistindo ao espetáculo receberam preservativos, perceberam sua vulnerabilidade. A informação chegando com emoção e propriedade antes que o HIV se instalasse.
É disso que se trata, naquela época como ainda hoje: levar a informação até os jovens, até as populações vulneráveis, antes que o HIV chegue e roube a cena.
Passamos a produzir documentários e webséries nacionais e internacionais: “HIV, Aids: as respostas das ONGs do Mundo”, “Youtubers e HIV”, “HIV 40 anos: Aids e suas histórias” (exibida pela Globoplay), “Transmissão Vertical, um assunto proibido”. A parceria com o Sesc São Paulo nos facultou lançar as produções no CineSesc e licenciá-las para o SescTV. Passamos a coproduzir conteúdo com o SescTV e recentemente lançamos “Global Village 20 anos”, um panorama internacional sobre a atuação de ONGs do mundo inteiro, com depoimentos colhidos durante a conferência realizada em Munique, na Alemanha, em 2024. Temos mais projetos em mente, para seguir com o trabalho e a parceria.
Desde 1981, o HIV infectou 82 milhões de pessoas, com 42,3 milhões de mortes. Existem atualmente 39,9 milhões vivendo com o vírus, 1,3 milhão se infectam a cada ano.
Século XXI é um outro momento: temos medicamentos, temos testagem rápida, temos as profilaxias pré e pós-exposição, PREP e PEP, disponíveis no SUS, que impedem a entrada do vírus na corrente sanguínea. A ciência comprovou: uma pessoa que se infectou com HIV em tratamento contínuo por seis meses zera a carga viral em sua corrente sanguínea e não passa mais o vírus em relações sexuais sem o uso de preservativos, o conceito de que I = 0. Em breve, teremos medicações injetáveis de longa duração que, aplicadas a cada dois meses e de seis em seis meses, quebrarão a cadeia de transmissão do HIV. Quer coisa mais importante do que isso?
Utilizando esses medicamentos injetáveis, quando forem disponibilizados, será possível quebrar a cadeia de transmissão do HIV! Mas se o jogo da prevenção mudou, o enfrentamento do preconceito e da discriminação ainda exige muita informação e consciência para mudar.
Precisamos não silenciar sobre esse tema e pauta. Nesse contexto, ações fomentadas por uma instituição da relevância do Sesc São Paulo são muito bem-vindas. Em projetos como o Contato, jovens artistas ressignificam paradigmas e barreiras onde antes a desinformação e a ignorância alimentavam novas infecções.
Para finalizar quero dizer a vocês que aquilo tudo que vivenciamos lá atrás, deu nisso. Nossa “Filadelfia Tupiniquim” tem contribuído para que muita gente que vive com o danado do HIV não se sinta mais rejeitada, não tenha vergonha e medo.
Quero dizer a vocês que, cotidianamente, com o apoio da Fecomércio, Sesc e Senac de São Paulo, mantemos nosso trabalho, nossa independência editorial, nossa missão de, através do advocacy em comunicação, tentar contribuir para que menos pessoas se infectem e para o acolhimento das que vivem com o vírus.
Quero dizer a vocês que tenho uma profunda gratidão pelo empresário Abram Szajman, presidente da Fecomércio, pelo Ivo Dall’ Ácqua Júnior, presidente executivo da Fecomércio, pelo economista e educador em saúde pública Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor regional do Sesc São Paulo. Uma profunda gratidão por todo o grupo de colaboradores do Sesc São Paulo que em seu cotidiano, nas ações e fomento a arte, cultura e educação nos ajuda a responder à pergunta que meu irmão me fez, em 1994: “E os outros?”.
Os outros estão sendo acolhidos. Os outros têm remédios disponíveis no SUS. Os outros estão sendo atendidos pelos convênios médicos e seguros-saúde. Os outros estão também ressignifi-
cando suas histórias e vidas com o aprendizado que temos tido esse tempo todo. O HIV continua por aí. Mas temos gente do bem e com compromisso pelo bem-estar humano. Temos a esquadra de amor e respeito, de resistência, acolhimento e solidariedade representada pelos responsáveis dos trabalhos das unidades e direção do Sesc São Paulo que escrevem e produzem novos e melhores capítulos no enfrentamento do HIV, do preconceito, do estigma e da discriminação que ele simboliza no mundo. Temos o Contato e a arte como um lúdico instrumento de prevenção e toque sutil de respeito à vida e o tudo de bonito que ela representa, que ela é, e o que significa para todos nós.
Eu ainda sirvo pro amor?
Por Priscila Obaci
Depois do HIV eu nunca sei se o fora é por causa de mim ou dele…
Nunca sei se os olhos atravessaram o diagnóstico
Se me viram como um destino possível
Ou se só foi falta de ponte entre os corações
Se foi falta de mapa pra entender que o caminho é seguro
Ou se é só uma questão de não ser um sentimento maduro
Só sei que essa dúvida sempre me deixa sensível
e remexe as emoções
Parecendo que tudo se tornou impossível
Eu ainda sirvo pro amor?
Amor positHIVo
Por Priscila Obaci
Que hipocrisia
Transa com todo mundo sem camisinha
Aí quando me encontra indetectável
Diz que tem medo de ser infectado
Não se esconde
Não abaixa a cabeça
e deixa o olhar sei lá onde
É com você mesmo que eu estou falando
Você que já tirou a camisinha no meio do negócio
sem a mina dizer que podia
Fez quando ela tava de costas, bem na covardia
E agora você vem me falar de medo, de respeito
Nem parece que é a mesma pessoa
Essa ideia aqui no meu ouvido não ressoa
Age como se uma pessoa positHIVa fosse nojenta
E agora escuta meia verdade, diz que sou grossa, que tudo isso não aguenta
O cuidado aqui é de comprimido em comprimido
Palavra falada, fé cultuada para que o caminho seja menos dolorido
Arejo minha cabeça pra não me meter
Com qualquer coisa que possa me adoecer
De aids sei que não vou morrer
Mas a rejeição atravessa
Produz doença à beça
Se você já deixou de amar alguém que vive com HIV
É com você mesmo que eu estou falando
O futuro é um presente que se sonha junto
Por Ronaldo Serruya
Cena 1: Abertura
Um foco de luz se acende.
No espaço recortado por essa luz, vê-se um pedestal com microfone.
Um ator, uma espécie de mestre de cerimônias, entra no espaço iluminado, aproxima-se do microfone, se posiciona diante dele e começa a falar para a plateia.
MESTRE DE CERIMÔNIAS Boa noite!
Eu queria contar uma história que já foi contada, mas que ainda não terminou.
Uma história que tem passado, presente e futuro.
Uma história que todo mundo conhece, mas que foi contada de um jeito.
E vocês sabem: existem muitos jeitos de se contar uma história.
E o jeito que contaram esta história não foi bom.
Então eu quis contar ela de um outro jeito.
Porque essa história aconteceu comigo.
Não só comigo.
Também comigo.
E com muitos “como eu”.
Aconteceu com eles.
Antes de mim.
E depois de mim também.
E continua acontecendo.
E não só com os “como eu”.
Com outros e outras também.
Diferentes de nós.
Talvez com vocês.
E com outros diferentes de vocês.
Mas não precisava MAIS acontecer. Embora continue acontecendo.
É como uma falha na origem dessa história.
Que faz com que ela aconteça eternamente no passado, e continue acontecendo da mesma forma no presente: silêncio, vergonha e medo se replicando malignamente, como um erro do sistema que faz com que o futuro não se atualize.
Então eu quis recontar esta história.
Reescrevê-la.
Eu quis sonhá-la diferente.
Quis inventar outras formas de sonhar esta história.
Eu, não.
Nós.
Porque esta história é coletiva.
Ela é nossa herança.
A dívida e a dádiva do legado.
Porque não podemos mais recusá-la.
Porque recusar essa história já nos custou caro demais.
E porque ainda estamos aqui. Vivos.
Cena 2: O sonho dentro do sonho
Outro foco de luz se abre em outra parte do palco. Vemos outros dois atores. Na parede, ao fundo, uma projeção com a seguinte frase: O FUTURO É UM PRESENTE QUE SONHA JUNTO.
ATOR 1 Essa noite eu tive um sonho. Era um sonho muito louco.
ATOR 2 Você acredita nessa coisa de sonho?
ATOR 1 Eu acredito até em duende, não vou acreditar em sonho?
ATOR 2 Não. O que eu quis dizer é: você acredita no sonho como uma coisa realmente concreta?
ATOR 1 Explica melhor.
ATOR 2 Para os indígenas, por exemplo, o sonho é assim como uma espécie de brecha, de portal por onde os espíritos da floresta sopram o futuro, mostrando outras possibilidades de existir. Para eles, o sonho é concreto como a medicina.
ATOR 1 Bonito isso...
ATOR 2 Né? Mas vai, conta teu sonho, fiquei curioso.
ATOR 1 Eu sonhei que uma cidade inteira sonhava o mesmo sonho... Era isso... Uma cidade inteira que dormia uma noite e sonhava em coletivo... O mesmo sonho visitando todo mundo... Na manhã seguinte foi uma espécie de epifania... Todas as pessoas comungando aquela sensação que o sonho causa assim que você acorda, sabe?
ATOR 2 E vem cá, eu estava nesse sonho?
ATOR 1 O quê?
ATOR 2 Não era a cidade inteira? Eu estava lá, você lembra?
ATOR 1 Sei lá... Devia estar, afinal era a cidade inteira! Não te vi, não cruzei contigo mas você estava sim, sonhando o mesmo sonho, igual todo mundo.
ATOR 2 E que sonho era esse?
ATOR 1 Ué, não tô te contando?
ATOR 2 Não, o sonho que toda cidade sonhava junto. O sonho dentro do teu sonho, qual era?
ATOR 1 Ah tá! Era um sonho sobre a possibilidade de encontrar de novo alguém e fazer diferente. Sobre uma segunda chance. Sobre uma outra oportunidade de encontrar de novo alguém, sem medo e sem vergonha.
A partir desse momento o sonho se instaura, e é narrado/ vivido em primeira pessoa, o sonho encenado. Enquanto o sonho é narrado/encenado várias palavras são projetadas. Elas estão grafadas em negrito ao longo do texto)
ATOR 1(continuando)
E de repente eu tinha esse encontro de novo, essa segunda chance, com você.
E por incrível que pareça, dessa vez, eu não tive medo.
200 MIL CÓPIAS!!!
Dessa vez, eu não fiquei mais ali diante de você calado, sem nada para dizer.
As palavras, dessa vez, foram saindo da minha boca, e eu tinha tanto para te dizer, era tanta vida que jorrava das palavras que saíam da minha boca, tanta vida!
Eu lembro de sentir uma espécie de gozo pela delícia de estar vivo!
150 MIL CÓPIAS!!!
E essa vida toda que pulsava em mim foi te contagiando também, foi invadindo você, invadindo seu corpo tão diferente do meu, mas que habitava o meu.
Você contido em mim.
Era isso? Ou o contrário? Não importa.
Porque esse novo encontro era, sobretudo, uma oportunidade de te encarar de novo.
E aí eu pude te mostrar o clichê que fizeram de nós, da nossa história...
40 anos de clichês...
Muitas histórias contadas sobre nós, todas elas feitas de medo e silêncio. Eu e você, sempre envolvidos nesse manto de silêncio, nessa impossibilidade de nos dizer.
Numa coisa envergonhada e triste, nunca assumida publicamente...
100 MIL CÓPIAS! BAIXANDO!!!
E agora, dessa vez, eu podia te dizer tanta coisa, e disse: do quanto tiraram de você toda presunção de inocência, do quanto foram costurando a sua vilania em manchetes sensacionalistas, em campanhas desonestas, em verdadeiras cruzadas morais. E o quanto você e eu fomos virando uma coisa só para que toda essa culpa e medo fossem também por mim e de mim.
50 MIL CÓPIAS!!!
E eu pude te dizer que foi uma estratégia, uma política, um plano meticulosamente arquitetados, financiado e posto em prática à nossa própria revelia. E que tudo isso era como um beco sem saída, uma ausência de futuro, uma sentença de morte, ainda em vida: eu e você fadados ao aniquilamento!
25 MIL CÓPIAS!!! CD4 REAGE!!!
Mas agora, no sonho, eu estava ali diante de você pela segunda vez. E, dessa vez, não para te recusar, não para “fazer diferente se eu pudesse voltar atrás”, não para te evitar, porque tudo isso só aumentaria aquilo que foi posto em prática para nos tirar a humanidade. Eu não estava ali de novo diante de você para saber quem foi que te largou dentro do meu corpo, para continuar com essa obsessão improdutiva, estéril, que nos transforma todos em culpados.
CD4 VOLTANDO!!! VOLTA! 5 MIL CÓPIAS, BAIXANDO!!!
Não!!! Agora era carnaval de novo, e tudo isso não seria mais sobre silêncio ou vergonha. Era sobre dar voz ao tesão da vida, sobre rir, sobre os fluídos, sobre isso tudo que brota dos poros de quem deseja. Era um encontro de cura.
1 MIL CÓPIAS!!! CD4 SUBINDO!!!
E a gente dançou ao som de uma guitarra, estridente como a vida, linda e triste como a vida, e dessa vez sem óperas, sem hospitais, sem o fedor da morte espreitando tudo, num cenário menos branco, sem o vermelho do sangue, sem o roxo das feridas, sem éter, sem choro, sem velórios diários, sem desculpas.
430 CÓPIAS – EU TE AMO!
E dançamos pelo tempo, espiralados, vendo a cada rodopio o passado do que fomos, o presente do que ainda teimamos e o futuro do que poderemos, todos eles contidos em nós. E enquanto dançávamos, o mundo tentava articular sua cura: para a Aids, para o câncer, para todos os vírus respiratórios, para todos os vírus coloniais, para a fome, para os genocídios, para as queimadas, para...
INDETECTÁVEL!!!
Cena 3: Epílogo
O foco de luz volta a se acender sobre o ator que faz o Mestre de Cerimônias. Ele continua a falar para a plateia.
MESTRE DE CERIMÔNIAS Senhores, eu quis contar uma história que já foi contada. Mas de um outro jeito.
Eu quis reescrevê-la.
Para a frente.
Porque essa história tem sido muito reescrita para trás. Então eu quis tentar fazer diferente.
Uma história que se reescreve sempre para trás é uma história morta.
E nós estamos vivos.
Não faz sentido.
Essa história reescrita não tem nada de novo.
Ela já está acontecendo.
O futuro é hoje, mas o hoje sempre pode ser melhor amanhã se estivermos presentes e atentos.
Eu não estou inventando uma história nova.
Como eu disse no início, essa história já existe há algum tempo.
Eu só estou olhando para ela de um outro ângulo, de um outro ponto de vista.
Nada na vida é uma coisa só.
A vida é tridimensional.
Estávamos vivos antes, mesmo quando morríamos.
Estamos vivos hoje.
Vocês, por acaso, têm alguma dúvida de que estaremos vivos amanhã?
Eu, não.
Encantamento
Por Priscila Obaci
Sabe o que mais me deixa na sua?
É que sua íris me vê nua
Sem nenhum estigma
Quebrando meu maior paradigma
Será que do amor ainda serei digna?
Todo seu cuidado e gentileza
Me trazem a certeza
De que o HIV não é uma barreira
Me derreto com essa sutileza
De seus olhos me enxergarem por inteira
Me convocar ao mergulho
Assim me permito ao encanto
E só por isso, já tenho muito orgulho
Virei a página
Deixei pra trás o receio de despertar o meu pranto
O vírus não é mais um escudo ou proteção em forma de manto
Nosso encanto é enraizado
Em terra firme e profundidade
Não semearia em um vaso
Recheado de magia e grandeza
Não tem nada de raso
Tem respaldo na ancestralidade
Em nossos Oris coroados de realeza
A força de Ire e Elekô
A guerra que em amor se transformou
Estamos cumprindo nosso destino
De ser amor nesse momento
Agradeço a fartura em cada gesto
De apenas ser sentimento
De doar o seu melhor sem ser modesto
E alimentar o meu encantamento
O HIV não acabou com a minha vida…
Por Priscila Obaci
O HIV não acabou com a minha vida
Ele me trouxe mais vontade de viver
Um olhar amplo para as possibilidades
A delicadeza de perceber cada pessoa
Pelo seu coração e não pela sua aparência
Ele me trouxe a chance de errar
Acertar
Cair e levantar
Ele me deu vida
Gás para sorrir
Voz e escuta
O HIV não acabou com a minha vida
O que acaba com a minha vida
É a ignorância
A falta de informação
E propagação de ódio ao corpo positHIVo
O HIV não acabou com a minha vida
Ele me fez mais forte
Mais dona de mim
Mais presente
Já que o passado e o futuro
São construções fictícias
O HIV não acabou com a minha vida
Ele me deu de presente
Pessoas incríveis
Sensíveis
Que me enxergam para além da minha sorologia
Ele me trouxe magia
A magia de viver sem mediocridade
Com reciprocidade
E prazer
O HIV não acabou com a minha vida
Ele me faz quebrar tabus todos os dias
Principalmente aqueles que associam o HIV à morte
Eu estou viva e voando
Não venha querer cortar minhas asas
Pra mim
Nem o céu é o limite…
A euforia que habita
Por Pisci Bruja Garcia de Oliveira
É bastante comum que comecemos pela dor. Parece que a história exige isso de nós – um inventário das feridas, dos caminhos tortos onde se acumulam corpos, contando relatos minuciosos de tudo aquilo que ainda nos falta.
As marcas da violência colonial e da supremacia branca cisheteronormativa ainda se inscrevem em nossas peles como uma cartografia do sofrimento, desse não lugar que, desobedientemente, insistimos em trilhar.
Aqui, contudo, ainda que em subterfúgio, o que nos move é outra vontade. Não porque conseguiremos evitar dialogar com as dores, mas porque ao escolher caminhar pelas incertezas, aprendemos com as rotas de fuga que inventamos – transcestralmente, entre uma norma e outra – que mesmo os caminhos mais tortuosos são também os únicos preenchidos pelas belezas das flores mais autênticas, aquelas que só brotam diante de quem ousa atravessar.
Há um exercício histórico da matriz cisgênera em catalogar os corpos que transitam por trajetos desviantes e desobedientes, tentando capturá-los no léxico da falta ou da patologia, impedindo que firmem suas raízes em sua autodeterminação. O discurso biomédico, ainda impregnado de uma moral moderna que busca purificar o corpo e o gênero, produz um tipo de pureza impossível, um “gênero de laboratório”, isolado e binário dentro da ideia de masculino e de feminino hegemônico, em contradição
direta com o mundo sensível e múltiplo que habitamos. Nem a cisgeneridade carrega os símbolos e signos do que é masculino e feminino, ou do homem e da mulher hegemônicos que eles desejam ser. Rematerializar o gênero, portanto, é reencontrar o corpo como matéria viva, relacional, em constante negociação entre o biológico, o social e o espiritual.
Dizem que estamos no corpo errado, que não nos reconhecemos no espelho. Mas há algo profundamente equivocado nessa narrativa: talvez o espelho nunca tenha sido feito para refletir nossas formas. Talvez seja o espelho o corpo errado.
E se saúde fosse, antes de tudo, o exercício de habitar o corpo possível, de reconhecê-lo não como ausência ou falha, mas como território de invenção, casa em constante reforma, abrigo e festa?
O resultado seria um corpo que entende a disforia não como adoecimento, mas como possibilidade de reinvenção e de florescimento. Um corpo em euforia – em movimento e em constante descoberta de sua autopercepção. A euforia que habita é o contrário da disforia que diagnosticam em nós. Não porque ela anula a dor, mas porque a desloca desse lugar normativo. Assim, a euforia se faz como o instante em que o corpo vibra por se perceber vivo, mesmo entre ruínas. É o momento em que a travesti sorri diante do espelho e, por um segundo, o mundo inteiro se reorganiza em torno do seu gesto de cuidado.
Mas essa euforia não é apenas experiência íntima, mas sobretudo uma tecnologia coletiva de cura; um cuidado ancestral que é também um agenciamento atemporal e vital que articula corpo, afeto e território, com ensinamentos do passado para projetar no futuro a materialidade do presente. Nos caminhos desviantes das transgeneridades, o cuidado é compartilhado em rede: nas casas, nas famílias reinventadas, nos terreiros, nas festas…
Cada toque, cada troca, cada compartilhamento de estratégias de autoinvenção, cada tecnologia criada nas esquinas é também uma produção de existência que firma este lugar no mundo. São tecnologias transvestigêneres; é ciência travesti, pois articula autoexperimentação com método de produção, produzindo resultados e evidências que são incontestáveis. Hackeamentos forjados nas oralidades das ruas, criando uma fissura na autoridade biomédica e fazendo deste corpo coletivo um campo fértil de conhecimento e de produção de vida, daquela que é possível de ser fabricada, com toda sua complexidade e dor.
Ao longo de todo o ciclo de vida trans, o acesso à saúde segue condicionado pela produção social da vulnerabilidade, essa engrenagem moderna e colonial que naturaliza o gênero, biologiza a diferença e transforma a vida trans em campo de gestão e controle. As violências que nos atravessam não são acidentes, mas produtos de um projeto histórico de exclusão social. O cis-tema, como estrutura de poder, opera pela negação da nossa dignidade e pela captura de nossas existências em protocolos e diagnósticos. Por isso, falar em direito à saúde é falar também em despatologização: em romper com a ideia de que a travessia é doença, e afirmar que ela é potência, é vida em expansão.
Pensar a saúde das pessoas trans e travestis é também pensar o tempo e o modo como ele se inscreve nos corpos e como esses corpos o desafiam.
O ciclo de vida não é linha reta; é curva, dobra, retorno. A infância, a juventude, a maturidade e a velhice não se sucedem como etapas previsíveis, mas se enredam em nossos modos de existir. Somos crianças e anciãs ao mesmo tempo, habitando simultaneamente o passado, o presente e o futuro. Há em nós uma transcestralidade viva, que cura as feridas do agora com as memórias das que vieram antes.
Nas nossas infâncias trans, a violência frequentemente se disfarça de zelo. As expressões de gênero são vigiadas, corrigidas, enquadradas. É nesse tempo inicial que se formam as primeiras feridas do silenciamento, da vergonha, do medo de nomear o que se sente e o que se é, colocando nosso direito de existir como somos para depois, como se isso fosse sinônimo de cuidado.
Na juventude, por sua vez, o corpo passa a negociar sua presença no mundo e a disputar o território do desejo. É quando a saúde sexual se revela não apenas como dimensão biológica, mas como exercício de liberdade e de prazer. Contudo, esse também é um momento em que a sexualidade trans é sequestrada pela lógica do desvio e atravessada pelas experiências traumáticas do abandono familiar e da prostituição compulsória.
Na maturidade e na velhice, o desafio muda de forma: o problema já não é apenas o reconhecimento, mas a permanência. Envelhecer em corpos dissidentes é um ato de insubmissão, uma recusa à lógica da descartabilidade. É fazer do tempo um aliado, não um inimigo. É existir apesar das estatísticas, das violências e das invisibilizações. O envelhecer trans é político, porque desafia o projeto de mundo que não nos prevê vivas o suficiente para envelhecer.
A saúde, nesse sentido, não é um ponto de chegada. É travessia.
Ela se constrói nas redes de apoio, nas trocas entre pares, nos cuidados cotidianos que escapam à burocracia institucional. Está nas casas que abrigam, nas festas que celebram, nas cozinhas onde se compartilham remédios, hormônios e receitas; nos corpos que se tocam e se protegem mutuamente. Cada gesto, cada cuidado, cada troca de saberes é parte de uma medicina coletiva, intuitiva, encantada, uma prática de cura que emerge da experiência e da solidariedade.
Essas práticas fazem parte de outra racionalidade do cuidado que não separa corpo e espírito, ciência e afeto, política e vida. É o que se aprende nas encruzilhadas, onde a clínica se mistura à mandinga e o conhecimento se produz no corpo vivido. É aí que a saúde se torna integral, porque reconhece o corpo em sua complexidade, na soma de dimensões que o atravessam: biológica, emocional, social, espiritual e comunitária. Integral não como completude, mas como interdependência, como teia viva de relações que sustentam a existência.
No encontro entre cuidado e insubmissão, o corpo trans se faz território de invenção política. Cuidar de si e das outras é, antes de tudo, um gesto de resistência frente à lógica do descuido institucional que nos quer vulneráveis. Nas frestas do sistema, criamos modos de existir que subvertem a autoridade biomédica e reencantam o ato clínico, recolocando o afeto e a escuta como princípios terapêuticos. Essa clínica travesti, feita de voz e presença, de improviso e confiança, desloca o eixo da cura da intervenção técnica para a partilha da experiência: o toque que afirma, a palavra que nomeia, a escuta que acolhe.
É nessa micropolítica do cotidiano que a saúde deixa de ser um direito abstrato e se torna prática encarnada, um gesto de reciprocidade, reconhecimento e construção coletiva de legitimidade.
Essas práticas de cuidado são também insurgências epistemológicas: desafiam a cisgeneridade como regime de verdade e propõem uma outra ética da vida, fundada na escuta, na circulação dos saberes e na euforia como política. A euforia, aqui, não é fuga nem anestesia, mas força vital que recusa o confinamento da dor à patologia e faz da voz um instrumento de cura. Falar de saúde de pessoas trans e travestis é, portanto, afirmar a potência desses corpos em produzir conhecimento, narrativas e caminhos de legitimidade. É entender que a saúde se faz quando nossas histórias são contadas, quando nossos gestos e palavras ganham espaço e autoridade. É afirmar que o cuidado não cabe no protocolo: ele se faz nas encruzilhadas, onde ciência e magia se tocam, e onde a vida – dita em nossas próprias línguas – pode finalmente florescer em sua potência plena.
Carta à mãe que vive com HIV
Por Priscila Obaci
São Paulo, 1º de dezembro de 2025
Espero que esta carta te alcance com serenidade, saúde, recheada de alegria e certeza de que ainda há beleza em seus passos, mesmo diante de tantos desafios.
Escrevo para te dizer que a vida continua, sem a firula da ficção internauta, mas com imperfeição da realidade, que agora se fez matéria viva nas frestas dos seus dedos chorando e sorrindo pela sua presença.
A vida agora é pele, toque, é abraço no meio da tarde, é beijo com gosto de milagre de ter gerado continuidade.
Você se multiplicou. E esse simples fato grandioso te faz ser divina.
Quero compartilhar que minha caminhada também teve espinhos e nem tudo foi sempre flores. A segunda gravidez chegou sem aviso, sem planejamento. Fui pega de surpresa, e na primeira consulta de pré-natal, recebi o diagnóstico positivo para HIV.
O chão se abriu. Pensei na criança, no estigma, no amanhã. Será que viria ao mundo com essa herança?
Disseram que não, e então respirei e segui com esperança.
Mas a maior dor ainda estava por vir: a impossibilidade de amamentar.
A amamentação, para mim, é mais do que nutrir. É política. É cura. É uma reconexão ancestral. É reparação histórica já que as mulheres negras, por séculos, foram impedidas de alimentar seus próprios filhos.
Negar esse gesto, mesmo por razões médicas, foi uma ferida. E meu coração se desmanchou em dor.
O corpo reagiu. O leite veio, mas não pôde ser doado. O peito inchou, ardeu, inflamou. A febre subiu e a tristeza escorria por dentro, silenciosa, como uma navalha que passa sem fazer barulho e deixa um rio de sangue escoando pela pele.
Mas hoje, Mãe, te escrevo pra dizer que passou. A dor não ficou e muito menos impediu o nosso laço, o amor que entre nós brotou e se fez infinito como o mar.
Amor de mãe e filho. Sempre grudados, feitos de afeto e presença. Conexão em essência.
Fiz o melhor que pude por ele e por mim. Não o coloquei em risco. E, talvez por isso, me mantive de pé.
Quero te lembrar, com todo o carinho e verdade que carrego, que você continua sendo o melhor lugar do mundo para a sua criança.
Você é terra fértil. E tudo o que for regado com amor florescerá.
Caso ainda tenha pensamentos sombrios, se perdoe. A culpa é um labirinto sem saída. Ela não ensina, não cura, não leva a lugar algum. É apenas uma areia movediça que nos engole em lugar sem nenhum sentido.
O cuidado verdadeiro exige inteireza.
E a inteireza só é possível quando você não se abandona.
Todos os dias, refaça seu pacto consigo mesma. Cuide da mulher antes da mãe.
Do corpo antes da culpa. Da alma antes da ferida.
Você já é imortal. Porque quando deixamos uma criança no mundo, nossa história não morre. Nos tornamos sombra fresca e semente de amanhã.
Com coragem e amor.
Leandro Noronha da Fonseca
Jornalista, pesquisador e escritor. Doutorando em estudos literários, mestre em Letras e especialista em mídia, informação e cultura. É autor do livro O verso do vírus: a poesia brasileira contemporânea e o HIV/Aids (Appris Editora, 2023).
Ronaldo Serruya
Ator e dramaturgo conhecido por seu trabalho no Grupo XIX de Teatro e no Teatro Kunyn. Desde 2014, tem se envolvido em projetos artísticos que relacionam arte, homofobia e HIV/Aids, incluindo o curso Como eliminar monstros: discursos artísticos sobre HIV/Aids e as peças Desmesura e A doença do outro.
Pisci Bruja
Travesti biológica e fármaco-possuída vivendo com HIV/Aids. Antropóloga e educadora, vem desenvolvendo tecnologias sociais em diversas áreas, e mais recentemente no SUS. Trabalha com pesquisas clínicas e participou de um consórcio internacional de pesquisa de cura do HIV (HOPE Collaboratory) e de estudos de PrEP. Atualmente, codesenvolve uma linha de cuidado integral para pessoas trans e travestis no Instituto de Infectologia Emílio Ribas; além de atuar em um projeto de caracterização de hepatites virais com o Hospital Albert Einstein, bem como managing editor na Revista Global Public Health.
Priscila Obaci
Atriz, dançarina, poeta e artista educadora. Bacharel em comunicação das artes do corpo, com formação em teatro e estudos em dança, integrou grupos como Trivolim de Expressões Populares e Abieié, dedicados às danças afro-brasileiras e à dança negra contemporânea. É cofundadora da Capulanas
Cia. de Arte Negra e do coletivo Umoja, ambos criadores de obras que unem teatro, dança e música inspiradas nas culturas de matriz africana. Desde 2005, atua como educadora, com experiências que dialogam com maternidade, corpo e movimento –especialmente após o nascimento de seu filho, que inspirou sua pesquisa sobre a dança materna.
Roseli Tardelli
Jornalista e irmã do Sérgio. Com mestrado em ciências da comunicação, atuou em veículos como Rádio Eldorado, O Estado de S. Paulo, TV Gazeta, Rádio Cultura, Rádio USP e TV Cultura, onde foi a primeira mulher a ancorar o programa Roda Viva. Desde os anos 1990, dedica-se à comunicação sobre HIV e Aids, tendo fundado, em 2003, a Agência de Notícias da Aids. É autora de dois livros, diretora de seis documentários sobre o tema e idealizadora do Camarote Solidário da Parada do Orgulho LGBTQIAP+, que arrecada alimentos para pessoas vivendo com HIV em São Paulo.
Vinícius Borges
Conhecido no universo digital como Doutor Maravilha, é médico infectologista especializado no atendimento a pessoas vivendo com HIV, Aids e outras IST. Ativo na comunidade LGBTQIA+, destaca-se pela escuta acolhedora, pela defesa dos direitos LGBT e pela divulgação de informações de saúde com linguagem acessível e empática.
Sobre o Sesc
O Serviço Social do Comércio é uma entidade privada com finalidade pública, criada em 1946 por iniciativa do empresariado do setor de comércio de bens, serviços e turismo, e que tem como missão contribuir para a qualidade de vida dos trabalhadores dessas categorias, seus dependentes e da sociedade em geral.
No estado de São Paulo, o Sesc conta com uma rede de 44 unidades, incluindo centros culturais e esportivos, bem como unidades especializadas. Oferece programações em diversas linguagens artísticas, atividades físico-esportivas e de turismo social, programas de saúde, educação para sustentabilidade, para a diversidade e para acessibilidade, alimentação, programas especiais para crianças, jovens e pessoas idosas, além do Sesc Mesa Brasil – programa institucional de combate à fome e ao desperdício de alimentos.
O Sesc desenvolve, assim, uma ação de educação não formal permanente com o intuito de valorizar as pessoas ao estimular a autonomia, a convivência e o contato com expressões e modos diversos de pensar, agir e sentir.
Como se credenciar
A Credencial Plena é um direito das pessoas com registro em carteira, que são estagiárias, temporárias, se aposentaram ou estão desempregadas há até dois anos em empresas do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes familiares.
Com a Credencial, você tem acesso prioritário a diversos benefícios, entre eles descontos na compra de ingressos e serviços pagos do Sesc, como tratamento odontológico e cursos. Além disso, quem tem Credencial Plena pode usufruir de viagens, passeios e hospedagens em hotéis e pousadas do Sesc pelo Brasil.
Saiba mais em sescsp.org.br/credencialplena
IMPRESSO EM NOVEMBRO DE 2025 ILUSTRAÇÕES: ESTÚDIO LASCA