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De filho para mãe

Fios de cabelos que unem e transformam corpos pretos

Texto: Helder Carvalho

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Ilustração: Victória Amorim e alisados. O primeiro choro ao ouvir a de escola, não foi amparado por ela por alguém que também não foi?

Foi aos cinco anos que comecei a sentir o que era ser menosprezado pela minha cor, que, na época, eu nem considerava! Meu cabelo sempre foi cacheado, com uma curvatura 3C/4A, muito volume, frizz e pontas ressecadas, além do conhecido fator encolhimento. Lembro de ver na foto minha mãe com cabelo curto, crespo, poroso. À minha frente uma mulher, com cabelos longos, pretos e alisados. O primeiro choro ao ouvir a textura do meu cabelo ser comparado a um “bombril”, por parte de um colega de escola, não foi amparado por ela que desde nova negou suas origens. Como eu seria amparado por alguém que também não foi?

“ruim” e tudo de pejorativo me intrigava, é que não era só não-branca que acreditava

Além de tentar ignorar, ela negava o cabelo “pixaim”, “ruim” e tudo de pejorativo que a sociedade assume de um crespo-cacheado. O que me intrigava, é que não era só sobre cabelo, era sobre quem ela era, uma pessoa de pele não-branca que acreditava nesses estereótipos. Relembro que sempre questionei quem eu era ou o que significava ser quem sou, como pessoa no geral. Hoje, aos 25 anos, eu sei essa resposta? Não, mas já entendi algumas questões. Te conto no decorrer do texto. A primeira vez que ouvi o termo ‘pardo’ foi no ensino fundamental, por conta de um cadastro para uma corrida de atletismo. As opções eram: preto, pardo e branco. Demorei alguns minutos para escolher branco, com medo de entregar a ficha e a professora rir. Não riu, mas me chamou de canto, disse que eu era pardo e me mandou mudar. Então foi assim que alguém me declarou pardo mesmo sem eu saber do que se tratava. Talvez aquela professora nem tenha noção que deu início a questões que me assombraram boa parte da minha vida. Chega a ser absurdo o que eu já pensei e verbalizei até aqui. Como você reagiria se o seu filho chegasse te perguntando se ele é papel? É, minha mãe riu e só. Até porque, naquele momento, nem ela havia entendido a sua cor. mãe riu e só. Até porque, nalação consciência racial dificultou meu auto-entendimento. Nunca ouvi falar sobre raça nas reuniões de família. Mas ouvi inúmeros e diferentes comentários ofensivos destinados às minhas primas e primos retintos. Ao ouvir, tive medo de ser direcionado a mim, mas até o racismo algumas vezes me negava como pessoa preta. Exceto quando se tratava do meu cabelo. tive a ideia de passar por isso junto com ela, raspei minha cabeça e ela passou pelo conhecido “BC” ou Big Chop, o “grande corte” e tirou grande parte da química do cabelo. Começamos juntos esse processo doloroso e demorado. Foi por ela, mas mesmo que de forma inconsciente, me entendi. Hoje, além de aceitar meu black, usar tranças e abusar de inúmeros penteados, meu cabelo virou minha marca registrada.

Meu cabelo, que hoje é o símbolo crucial da minha reafirmação negra, já foi extremamente negado e alisado. Em casa, acompanhava as mudanças de cabelo de minha mãe. Eu sempre fui uma criança observadora e, um dia, ao assistir a vizinha alisar o cabelo de minha mãe, a questionei o porquê do cabelo sempre liso. Ela fazia aquilo, religiosamente, a cada três meses. “É para eu me sentir bonita, filho”. Essa frase ecoou na minha cabeça por um bom tempo. Até que, quando minha mãe foi retocar novamente o cabelo, eu também pedi para alisar. Queria me sentir bonito também.

Engraçado pensar que foi o meu Eu-acadêmico que teve o maior papel nesse processo de autodeclaração. Comecei três cursos e em nenhum deles me inscrevi em sistemas de cotas. Afinal, qual era minha cor? Após inúmeras pesquisas sobre colorismo, assunto esse que ainda não domino, comecei a compreender e me autodeclarar e, assim, me inscrevi em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), pelo sistema de cotas.

Não, eu não posso me enxergar família com pouca

E o papel? Te explico. Desde esse episódio, passei a me questionar sobre a relação da cor da minha pele e um rolo de papel pardo deixado no canto de uma sala. Não, eu não posso me enxergar desta forma, pensava. Talvez este seja um dos motivos por ter negado ser alguém não-branco. Além do peso de ser uma criança afeminada e já ouvir comentários homofóbicos, eu ainda era uma criança não-branca?

Muitos pesos em uma pessoa só.

Eu não conseguia ver beleza em mim e achei que alisando meu cabelo conseguiria. Não aconteceu. Chorei para minha mãe. Raspei o cabelo. Anos se passaram sem que eu conseguisse me sentir bonito. Ao entrar para as forças armadas, meu cabelo estava limitado a ser raspado e curto. Quando pedi desligamento, decidi experimentar, pintei meu cabelo de todas as formas possíveis, alisei de novo e ainda assim não me reconhecia.

Crescer em uma família com pouca

Aos 20 anos encorajei minha mãe a passar pela transição capilar. Mas ela tinha medo de novamente odiar seu cabelo natural. Foi aí que

Me entender, me sentir e me pertencer, foi um processo complicado até aqui. As vezes eu me sinto barrado em “wakanda”, como se não me encaixasse. Mesmo tendo pouca representatividade na minha infância/adolescência, sou rodeado de pessoas negras em meu círculo, e isso me influenciou no meu autoentendimento. Hoje sei que meu corpo se tornou - ou sempre foi - político e que meu cabelo e meus traços sempre foram a potência de uma pessoa negra. E minha mãe? Finalmente, se sente orgulhosa da sua história e do processo que a levou a se tornar a mulher preta e empoderada que tanto amo.

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