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CRÔNICAS

Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século XX – se não o maior – catalogou a história mundial de 1789 a 1991 em quatro grandes eras, que coincidem com os títulos de suas obras: Era das Revoluções (1789 a 1848), Era do Capital (1848 a 1875), Era dos Impérios (1875 a 1914) e Era dos Extremos (1917 a 1991). Penso muitas vezes em que nome que Hobsbawm daria à “nossa” era. Se 2020 e esse início de 2021 fossem uma era em si mesmos – e certamente parecerem ser –, não tenho dúvidas de Hobsbawm lhe daria o título de Era do Negacionismo.

Era do Negacionismo

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É claro que o negacionismo não é um fenômeno único de nosso tempo. Inclusive, já foi de certa forma responsável pela queda de um reino: Maria I, Rainha de Portugal, proibiu seu fi lho mais velho de ser vacinado contra a varíola, e ele sucumbiu à doença, deixando Portugal nas mãos despreparadas e covardes de Dom João VI, que fugiu para o Brasil em 1807, dando início a uma série de eventos que terminaria com a independência da colônia em 1822. O medo e as incertezas que nos acompanham diariamente desde que a Covid-19 se tornou uma pandemia mundial propiciaram um terreno absurdamente fértil para a disseminação de ideias anticientífi cas e negacionistas, que já vinham crescendo exponencialmente. Há quem acredite que a Terra é plana; que não existe aquecimento global; ou até mesmo que a evolução das espécies é um mito, apesar dos mais de cem anos de evidências científi cas que comprovam a evolução humana através da seleção natural das espécies. Mas nenhuma ideia anticientífi ca é tão perigosa quanto as disseminadas pelo movimento antivacina. Na primeira metade do século XX, a epidemia da poliomielite causou terror semelhante à Covid-19. Naquela época, pouco se sabia sobre doenças infectocontagiosas e a penicilina só viria a ser decoberta em 1928. 87% das pessoas que apresentavam problemas respiratórios por conta da pólio vieram à óbito nos estágios iniciais da epidemia, a grande maioria crianças. Aquelas que sobreviviam muitas vezes precisavam passar o resto da vida dentro dos chamados “pulmões de aço”, conforme o retratados ao lado: No auge da doença, os Estados Unidos registravam mais de 57 mil casos e 3 mil mortes anuais pela doença, além de 15 mil paralisados anualmente. Em comparação aos números da Covid-19, parece pouco – mas, à época, a população dos EUA era de 157,6 milhões de habitantes, menos da metade dos 333,5 milhões atuais. Em 1955, Jonas Salk de-

senvolveu a vacina da poliomielite, que em menos de 7 anos diminuiu em 90% todos os casos da doença no mundo. Por que precisamos falar disso? Porque é muito fácil ser contra vacinação quando vivemos em uma época em que a grande maioria das doenças contagiosas e endêmicas já foram praticamente erradicadas: varíola, sarampo, poliomielite, difteria, rubéola. É muito fácil ser contra vacinação quando não vemos nossas crianças presas em enormes máquinas pulmonares para conseguirem se manter vivas. A baixa prevalência dessas doenças infectocontagiosas pode dar a falsa sensação de que não precisamos de vacinas. Não podemos nos enganar: essas doenças só não se fazem mais presentes em nossas vidas, acometendo nossas famílias e amigos, exatamente em razão das vacinas. É também por causa das vacinas e do desenvolvimento da medicina que hoje a expectativa de vida é tão alta e a mortalidade infantil tão baixa. Em 1950, antes da vacina da poliomielite e tantas outras, a expectativa de vida média do brasileiro era de 48 anos, e a taxa de mortalidade infantil no país era de aproximadamente 136 óbitos de crianças menores de um ano para cada mil nascidos vivos. Hoje, a expectativa de vida média do brasileiro é de 76,7 anos e a taxa de mortalidade infantil é de 12,4 óbitos de crianças menores de um ano para cada mil nascidos vivos. O advento da vacina contra a Covid-19 em apenas dez meses após o primeiro caso reportado é um feito científi co extraordinário. O desenvolvimento de vacinas normalmente demora de 10 a 15 anos, outras muito mais – no caso do HIV, vírus causador da Aids, já se foram quase quarenta anos desde que o vírus foi identifi cado, e a vacina ainda é uma ilusão distante. As vacinas contra a Covid-19 só puderam ser desenvolvidas em um período tão exíguo, salvando inúmeras vidas, graças ao trabalho incansável de cientistas e do desenvolvimento tecnológico na biomedicina ao longo das décadas, proporcionado pelos investimentos em pesquisa e em ciência. A vacina da Pfi zer, por exemplo, funciona através de uma técnica que utiliza o RNA mensageiro para replicar o processo de infecção viral, técnica esta que vem sendo desenvolvida há mais de duas décadas. Em seu poema “Los enigmas”, Pablo Neruda fala em viver “investigando as estrelas sem fi m”. Para mim, “investigar as estrelas sem fi m” sempre signifi cou que devemos ter uma sede de conhecimento única, investigar o homem, suas ações e seu mundo, sem respostas prontas. Mas não podemos ser levianos de acreditar no que queremos, no que convém nossa narrativa, contra evidências científi cas. As vacinas contra a Covid-19 representam o melhor da ciência. Elas representam o verdadeiro progresso, a verdadeira evolução do conhecimento e da medicina. Acima de tudo, elas representam a esperança e a promessa de um futuro melhor – que desesperadamente precisamos.

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