Revista Jornalismo e Cidadania Nº 29

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1

Jornalismo e cidadania nº 28| Março/Abril de 2019

| ISSN 2526-2440 |

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE


JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Expediente Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Colaboradores |

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Revisão | Laís Ferreira / Bruno Marinho Mestre em Comunicação / Mestrando em Comunica;áo

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Articulistas |

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel Doutor em Comunicação

Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni Doutora PPGCOM/UFPE

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira Mestre em Comunicação

Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz Doutora em Comunicação JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro Doutorando em Comunicação MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

Índice

PODER PLURAL Rakel de Castro Doutora PPGCOM/UFPE e UBI

Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

Editorial

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Prosa Real

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Comunicação na Web

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Opinião | Antonio Jucá

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Opinião | Pedro Bocayuva

| 10

Opinião | Suranjit Saha

| 12

Opinião | Rômulo Almeida

| 14

Opinião | Maria Britto

| 16

Opinião |Abdias Vilar

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Opinião |Luís da Cunha

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Opinião |Joca Souza Leão

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COMUNICAÇÃO NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja Mestre em Comunicação

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Editorial Por Heitor Rocha

A

questão ética/moral é sempre imprescindível para uma compreensão maior da política, ao contrário do que defende a concepção de ciência tradicional com a sua veneração do cálculo utilitarista e da racionalidade instrumental individualista, sem reconhecer que a vinculação obrigatória do dever ser une e cria solidariedade entre os cidadãos mais que seus interesses particulares. O critério ético/moral, em alguns momentos históricos, especialmente, torna-se a chave explicativa para revelar as motivações e interesses que fundamentam os posicionamentos político-ideológicos. Isso pode ser aplicado à atualidade política brasileira, em que predomina a defesa da integração completa e incondicional à ideologia hegemônica, do neoliberalismo na economia e suas “reformas”, que buscam manter e aprofundar os privilégios seculares, e na política de governança ultraconservadora e autoritária, que pretende esmagar com mão de ferro os conflitos decorrentes da absurda desigualdade existente na estrutura social. Não há como dissociar este posicionamento da extrema direita da visão ética excludente expressa pelo atual presidente, quando afirma, sem nenhum constrangimento, que “os direitos humanos são só para a gente e gente como a gente”, ou seja, a elite do sistema financeiro, do agronegócio, do empresariado – setores todo dia com maiores isenções fiscais -, dos altos cargos da República e seus assessores burocráticos e na repressão, os novos feitores e capitães do mato, os milicianos. Evidentemente, a universalidade jurídica, elemento imprescindível para o Estado de Direito Democrático que caracteriza a sociedade moderna, é descartada com indisfarçável descaso ao princípio da igualdade perante às leis. Essa postura descaradamente discricionária está estribada num ceticismo completo quanto à capacidade da coletividade, como comunidade moral, de produzir, nas interações mediadas pelo jogo de linguagem moral e pelo discurso normativo, conteúdos epistêmicos/conhecimentos capazes de afirmar a autoridade do público no tribunal da opinião pública das deliberações políticas. Independentemente da consciência ou inconsciência do cidadão, o princípio kantiano é insofismável: ou a liberdade é um imperativo categórico para todos os seres humanos, ou não é um direito cuja legitimidade tenha validade intersubjetiva para ninguém. Afinal, o sentimento de pertencimento à comunidade jurídica de direitos e deveres iguais que fundamenta o sentimento ético universalista da concepção cosmopolita da humanidade não se deixa compartilhar e ser usufruído pelas pessoas que fazem opção pelo oportunismo individualista, desfazendo-se de qualquer solidariedade para com os outros semelhantes, acreditando conseguir, com isso, tirar vantagem egoísti-

ca e amealhar fortuna e poder. Não se pode atribuir sentido à vida isoladamente, pelo mero solislóquio solitário. Claro que a falsa consciência não torna ninguém inimputável da condenação de trair a humanidade ao negar o interesse coletivo, mas a extraordinária maquinaria de manipulação ideológica da grande mídia cumpre um papel criminoso na crise estrutural de sentido, alimentando a alienação e o ceticismo nos ideais democráticos e desonerando moralmente os que os transgridem. Um terrível exemplo disso é o editorial da Folha de São Paulo, logo após uma repórter dos seus quadros conseguir autorização do STF para entrevistar lula, reafirmar convicção na prova material de corrupção passiva do ex-presidente na apropriação de um imóvel, cuja real proprietária, uma corporação declaradamente ré confessa em casos de corrupção ativa, pede autorização para vender a tal propriedade. Contudo, a conquista de gradativos patamares de aproximação do ideal republicano do autogoverno da sociedade só pode ser alcançada aos poucos, como uma semente que vai germinando sempre, a cada dia, para que se cumpra a promessa da reconciliação da espécie humana, mesmo que esta seja quase sempre vista como algo inalcançável se não for realizada de uma vez e não como construção lenta, mas com a capacidade de possibilitar, a cada novo nível civilizatório, uma vida menos ameaçada, a despeito de momentos de retrocessos como o que vivemos atualmente. Esta utopia abriga as pessoas de boa vontade no compartilhamento da ética universalista, fora da qual não há como compartilhar o sentido do mundo da vida e só resta a solidão absoluta da miserabilidade da consciência fragmentada, coisificada e atomizada pela barbárie tecnológica da ideologia capitalista consumista. Ou seja, por conseguinte, como já dizia antigo movimento francês, a alternativa ética é “socialismo ou barbárie”!

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel

O

processo de produção de um livro-reportagem envolve prazeres, mas as angústias são inevitáveis, como revelaram jornalistas escritores entrevistados pelo autor desta coluna para a sua tese de doutorado, como Fernando Morais, Ruy Castro, Caco Barcellos, Daniela Arbex e Zuenir Ventura, entre outros. O erro pode estar escondido na imensa massa de informação e passar incólume por diversos revisores. E, mais uma vez, o equívoco, que pode ser grave, parece pesar mais para o profissional sem o escudo de uma instituição que não a do seu próprio nome. Por isso o cuidado dos entrevistados em enviar cópias prévias para a correção de colaboradores de confiança e, até mesmo, no caso de uma entrevistada, Daniela Arbex, a precaução de quebrar um tabu da prática jornalística e ler previamente para os personagens os trechos nos quais serão representados na obra. O livro é simbolicamente mais duradouro do que outras mídias. Por isso o erro dói mais. Outro fator curioso é que a angústia de um segundo livro depois da boa acolhida do primeiro pode ser maior. Em geral, na sua primeira obra, o jornalista não espera tanta repercussão. Está tateando um novo campo, descobrindo seu lugar e, em muitos casos, já procura as editoras com o trabalho pronto. Temas que podem trazer consequências perigosas para o narrador, como o da polícia que mata, redobram os temores sobre o que virá após a publicação. Pesadelos são comuns e envolvem cobranças de prazos, “conversas” ou “repreensões” oníricas dos próprios biografados. É preciso organizar uma rígida disciplina de trabalho diário para dar conta de todas as demandas. Mesmo com a obra pronta, sempre vai restar a dúvida se há algo mais a apurar, preencher.

A voz dos autores: desvendando este ser enigmático que é o leitor E quem, afinal, são esses leitores que dedicarão horas preciosas do seu tempo para se entregar nesse jogo conjunto de interpretação que é a leitura de um livro-reportagem? Alguns entrevistados dizem que são pessoas de um nível escolar mais avançado, com potencial crítico, que procuram informações de contexto para referenciar a sua compreensão do mundo da vida. É preciso que o escritor esteja preparado para as mais diversas reações, que podem ser extremamente díspares. Existe a vantagem, após a publicação do livro, de um contato mais direto com o leitor, em feiras literárias, palestras, entrevistas na mídia, redes sociais ou mesmo na rua. O cui-

Divulgação

Produzir um livroreportagem envolve conflito íntimo de prazeres e angústias


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dado geral é com a elaboração de um material que seja respeitado por especialistas e, ao mesmo tempo, compreendido por um público mais leigo, mas sem nivelá-lo por baixo. Os escritores estão conscientes de que o noticiário do dia a dia com que o leitor se depara, quase um sistema de bombardeio fragmentado, pode gerar munição para conversas triviais. Mas o debate mais profundo sobre os contextos e até a respeito de uma nova identidade nacional pode ser iluminado com mais competência pelo trabalho de reportagem extensiva no suporte livro. Jornalistas que tratam com material histórico ambicionam que seus leitores comunguem com eles a desconstrução de mitos e estereótipos. O mergulho “seguro”, pela leitura, nos perigos de uma selva ou uma comunidade conflagrada contribui para a melhor delimitação de mapas de significado coletivo úteis para nortear a compreensão do presente. Como produto simbólico, o livro-reportagem é encarado por muitas editoras como algo que transcende o lucro comercial. Há a possibilidade de determinada biografia tornar-se um marco para o entendimento de um personagem por longo tempo. Perenidade, contextualização e aprofundamento histórico são vantagens do formato. O livro transcende a periodicidade, mas suas condições de “eternidade” são relativas. Em termos de visibilidade e vendas, os indicativos caem dentro de meses após o lançamento, todavia, certas abordagens são tão aprofundadas que, sem pretensão de apresentar uma verdade inquestionável e imutável, permanecem como referência por décadas, como exemplificado na tese escrita por este colunista. Refletindo sobre a prática: Jornalistas escritores assumem compromissos éticos A defesa da vida, o respeito pelo outro, a divulgação da voz dos menos visíveis, a questão ética, o apoio a pessoas vitimizadas e a lupa nos conflitos humanos em busca de visões menos reducionistas e mais plurais são valores evocados pelos entrevistados. Alguns chegam a expor mais diretamente a sua opinião sobre determinadas situações de opressão nas próprias páginas do livro, enquanto outros preferem se imiscuir no disfarce de um narrador aparentemente onisciente. Há uma certa desconfiança, entretanto, com uma espécie de jornalismo “militante”, que espera reações, com jogos de emoção artificiais em sua narrativa. Como parece ser uma mídia de maior durabilidade, o livro-reportagem é apontado pelos entrevistados como uma contribuição para o debate da memória nacional tão

combalida. Para isso, é preciso superar um objetivo básico de gerar entretenimento na leitura e ambicionar uma pesquisa jornalística que resulte em um melhor entendimento sobre os papéis sociais e as problemáticas brasileiras, assim como suas mutações. Diante da insegurança do boato, cada vez mais flutuante no oceano da internet, assim como o jornal impresso, o livro parece trazer certo carimbo de credibilidade. Retirar temas da sombra da história, retomar grandes narrativas silenciadas, repensar o atual por uma ótica mais processual do que causal são possibilidades do jornalismo contextualizado apresentado nesse formato. Esta coluna e a tese defendida pelo seu autor (MACIEL, 2018) contribuem para indiciar como pensam alguns jornalistas de gerações diferentes, com sólida formação profissional nas redações, que resolveram aventurar-se com consciência por mais essa possibilidade de expressão em tempos severos de crise do significado do jornalismo para a sociedade. Vale ressaltar que se evitou, a todo momento, endeusar o produto como possibilidade única de aprofundamento e contexto em uma selva de informações fragmentadas e boatos. Experiências diárias na mídia brasileira, capitaneadas por jornalistas centrados no seu papel social, nunca com facilidade, merecem atenção pela sua preocupação com o jornalismo como conhecimento.

Referências: MACIEL, Alexandre Zarate. Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil. Recife, 2018. Tese (Doutorado em Comunicação) -Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Elaborada pelo professor doutor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.


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Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet

Pixabay

Por Ana Célia de Sá

Participação e ubiquidade no jornalismo digital

O

jornalismo e a notícia articulados no ciberespaço têm absorvido novas tendências sociais e tecnológicas ao seu modo de produção. Participação, trabalho coletivo e distribuição multidirecional são conceitos centrais neste processo de renovação, que tem cambiado a relação entre produtor e público, a distribuição informativa e os conceitos de espaço e tempo, além de impulsionar a onipresença midiática. A percepção de notícia como produto construído de modo conjunto pelo jornalista, pela fonte de informação e pelo público, a partir da interpretação da realidade social, com aceitação intersubjetiva, é observada desde o surgimento do Construtivismo, no mundo analógico. Porém tem tido ainda mais

impulso com o estabelecimento do cenário digital 2.0, baseado na interatividade e na participação on-line. A quebra da emissão unidirecional, protagonizada pelos meios de comunicação de massa tradicionais (impresso, rádio e televisão), abriu o leque para uma circulação multidirecional, em que o público também produz e difunde conteúdo informativo. Pavlik (2014, p. 159) afirma: “O conteúdo gerado por cidadãos em um mundo globalmente conectado pode ter um papel central para complementar o conteúdo jornalístico e midiático produzido profissionalmente”. Neste sentido, ganha força um modelo de jornalismo global, participativo e conectado, inserido em um panorama de ubiquidade na comunicação, em que a mídia está presente em todos os lugares. “No contexto da mídia, ubiquidade implica que qualquer um, em qualquer lugar, tem acesso potencial a uma rede de comunicação interativa em tempo real. Quer dizer que todos podem não apenas acessar notícias e entretenimento, mas participar e


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fornecer sua própria contribuição com conteúdos para compartilhamento e distribuição global. Além disso, o conteúdo noticioso emana de uma variedade de fontes cada vez mais ubíquas, incluindo câmeras de segurança ou vigilância bem como sensores de muitos tipos e formatos, frequentemente ligados à internet” (PAVLIK, 2014, p. 160). Para esse autor, a ubiquidade conectada traz quatro consequências para o jornalismo no século XXI: a emergência do jornalismo cidadão, em que o “repórter cidadão” oferece contribuições à produção noticiosa mesmo sem formação especializada, promovendo uma quebra hierárquica de estruturas de poder; o crescimento de novas formas narrativas geolocalizadas e imersivas, ampliando o acesso à notícia e promovendo a autenticação e a análise dos produtos com a ajuda de softwares de mapeamento, além da visualização imersiva mediante dispositivos móveis ou sistemas de realidade aumentada; o crescimento do Big Data e do jornalismo orientado por dados, em que softwares e algoritmos computacionais ajudam a filtrar e analisar o grande volume de informações disponíveis no ambiente on-line, favorecendo a contextualização jornalística; e o declínio da privacidade e sua substituição pela sociedade da vigilância, a qual monitora o discurso digital com latente ação limitadora da liberdade dos cidadãos. Embora potencialmente restrinja o discurso livre essencial à democracia, conforme observado na última característica supracitada, vê-se que, em geral, a ubiquidade digital tem perfil positivo. Ela encurta distâncias, acelera a escala temporal, alarga o raio de atuação do jornalista, insere o cidadão ativo no processo produtivo da notícia e alavanca a coletividade em espaços relacionais, como as plataformas de redes sociais. Nesta perspectiva, a ubiquidade conectada é compatível com a conceituação de cultura participativa defendida por Jenkins, Green e Ford (2014): trata-se da interação entre produtores e consumidores de mídia na produção e difusão de conteúdos informativos, com diversos graus de intervenção, que visam ao bem coletivo. Significa que o público tem reivindicado seus interesses (culturais, sociais, políticos, econômicos, afetivos etc.) numa estrutura de “economia moral” na Web 2.0, mesmo que a lógica comercial ainda se sobressaia e imponha controles participativos. Reforça-se, assim, que a adaptação do jornalismo à era on-line passa inevitavelmente pela incorporação de processos colaborativos à sua rotina produtiva, mesmo que as formas ainda não estejam definidas por completo. A cobertura on-line da Primavera Árabe (ocorrida em países africanos) e do Occupy Wall Street (nos Estados Unidos), em 2011,

exemplifica esta dinâmica. Naquelas ocasiões, os cidadãos foram responsáveis pela produção de ricos conteúdos, que circularam primordialmente em redes sociais, como Twitter e Facebook, e foram absorvidos pela grande mídia, numa demonstração de ação participativa. “As salas de imprensa ainda estão se debatendo para tentar entender quais podem ser seus novos papéis nesse ambiente em que a exigência por informação pode ser instigada por afetos e formatada pelo que acontece com as comunidades on-line, em que os cidadãos podem cobrar o que os jornalistas devem cobrir e ainda reunir informações recorrendo a uma diversidade de fontes quando os meios jornalísticos tradicionais de notícias não fornecem as informações desejadas. Embora possa ser rara a relação amistosa entre a mídia genuína e a mídia comercial, as duas podem coexistir no âmbito de um ambiente midiático em camadas, cada qual considerando a outra responsável por eventuais abusos, cada qual escaneando a outra atrás de conteúdos potencialmente valiosos que, de outro modo, poderiam escapar pelas frestas” (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 71). E, nesta busca, é essencial preservar princípios de relevância social na escolha de conteúdos e de qualidade no trato da informação.

Referências: JENKINS, Henry; GREEN, Joshua; FORD, Sam. Cultura da Conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. Tradução de Patricia Arnaud. São Paulo: Aleph, 2014. PAVLIK, John V. Ubiquidade: o 7.º princípio do jornalismo na era digital. Tradução de Ivan Satuf. IN: CANAVILHAS, João (Org.). Webjornalismo: 7 caraterísticas que marcam a diferença. Covilhã: LabCom, 2014. [e-book]. Disponível em: <http:// www.labcom-ifp.ubi.pt/ficheiros/20141204-201404_ webjornalismo_jcanavilhas.pdf>. Acesso em: 25 dez. 2017.

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).


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Opinião

A política habitacional no Brasil Por Antonio Jucá

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este texto, as questões multissetoriais são aquelas que não podem ser abordadas de modo isolado por instituições setorizadas. Isso significa que o planejamento e a execução de ações públicas precisam passar por um processo de integração e corresponsabilidade. Assim, o planejamento não pode segmentar tarefas sem a discussão prévia entre agentes públicos e privados, esclarecendo possíveis consequências das ações sobre comunidades, a sociedade como um todo e o ambiente. O estabelecimento desse diálogo intersetorial pressupõe liderança política, contudo há um pressuposto ético anterior que deve ser intrínseco aos participantes contendores: para além da busca de um interesse comum para estabelecimento de barganhas e acordos, deve-se definir princípios ou valores a serem perseguidos. Tais valores são, muitas vezes, considerados implícitos, mas, na prática, estes são dissolvidos nas disputas por interesses, onde os grupos sociais de todas as naturezas procuram “puxar a sardinha para seu lado”, em detrimento de consequências mais abrangentes. Como a consciência dessa dimensão maior é uma construção social, o desenvolvimento da governança por institucionalização pode absorver e rechaçar processos existentes. No entanto, observa-se, em contextos de boa governança, que isso compreende um alargamento da participação de grupos sociais sobre decisões em políticas públicas, acompanhada de uma maior divisão de responsabilidades. As mentalidades segmentadas, de viés científico, ou por mera racionalização, seguem negando esse processo, seja por argumentos da existência de barreiras políticas e econômicas intransponíveis, seja por argumentos da ilegitimidade e desmerecimento de certos grupos, em geral excluídos. O problema se constitui, então, em como incluir uma maioria em uma dimensão de coletividade, para além do ver o coletivo como torpe ou como bem intangível? Pior, o que fazer quando essa dimensão é demonizada por

um poder político liderado por pessoas de viés radicalmente oposto? Ou quando o princípio motor das iniciativas é enriquecer o mais rápido possível, antes e após uma nova grande falência? Será que a mão invisível do estado, novamente, os salvará? Fala-se na construção de uma resistência, mas como articular uma resistência sem que deixemos de ser excludentes? Somos frutos de uma exclusão histórica velada, descartando os outros para nos sentirmos os privilegiados, os donos da razão ou indivíduos especiais acima dos outros. Assim, a construção da dimensão coletiva começa de dentro, reconhecendo e compreendendo o outro, para incluir o outro, sob a égide da construção de uma ética intergrupal. Os elementos dessa ética apontam para: a) o desenvolvimento de uma autoética que passa a uma autoanálise para uma autocrítica e, posteriormente, para a análise crítica da realidade; b) o encontro da unidade de propósito nas relações grupais, com uma visão de conjunto em oposição a visões fragmentadas deste ou daquele ponto de vista, com a valorização da competência em oposição ao sectarismo e o favorecimento de incapazes, com a abertura para a inclusão e discussão em oposição à estreiteza de espírito, com o fomento à reflexão contra o formalismo ritualista, com o cultuar da consciência coletiva e valores humanos contra a corrupção, a prevaricação, o desperdício e o individualismo; c) com o questionamento de valores nas relações sociais de poder e produção para o desenvolvimento de práticas na elaboração de um projeto de sociedade. O caso da política habitacional A partir da leitura crítica de referências e experiências, pode-se colocar que as políticas habitacionais no Brasil se caracterizam por alguns princípios comuns, como: a) uma subordinação macroeconômica que restringe tais políticas aos objetivos de geração de empregos e crescimento econômico; b) desvio de finalidade: recursos públicos vêm financiando a produção especulativa habitacional privada;


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c) provisão de moradias prontas, enquanto as moradias populares são construídas à medida das possibilidades e necessidades; d) divórcio entre políticas habitacionais e urbanas, ou seja, as políticas nacionais de habitação, em geral, não se inscrevem nas políticas urbanas, aplicando estatutos aprovados ou recomendações do direito à cidade; e) visão parcial da questão social da habitação, fruto da perspectiva produtivista, resultando em inadequação social, projetiva, tecnológica e ambiental dos empreendimentos. Não se considera a necessidade de inserção social e produtiva das populações, levando em conta a criação do lugar do trabalho na habitação (moradia, conjunto ou bairro), o acesso suficiente à educação, à saúde, ao transporte, ao trabalho e ao lazer; f ) projetos inadequados com imprevisão de ampliações, carência de infraestruturas (com impactos ambientais negativos), equipamentos sociais de esporte e lazer, comércio e serviços, inclusive para iniciativas populares. Os empreendimentos apresentam espaços comuns vazios, ou exiguidade de áreas disponíveis para tais fins; g) manutenção precária e abandono de empreendimentos, o que gera, inclusive, a marginalização da juventude, propiciando a criminalidade; h) parca regularização e qualificação socioambiental de comunidades pobres, favelas e cortiços. As experiências de regularização e qualificação de ocupações informais foram parciais, descontínuas e pouco significativas diante dos recursos para novas moradias prontas; i) remoções dos pobres de áreas urbanas centrais, perdurando a prática da remoção para periferias longínquas de populações carentes oriundas de comunidades pobres em áreas centrais, em cortiços ou em áreas informalmente ocupadas; k) ausência de mecanismos preventivos, que se associam, basicamente, ao planejamento do acesso à terra urbana, à moradia e à cidade; l) extremo burocratismo estatal, que imobiliza e subordina a todos com normas pouco inteligentes, como códigos urbanos socialmente inadequados e excludentes, sem a possibilidade de melhorias gradativas de padrões de qualidade e adequações tecnológicas para situações específicas. Os princípios acima expostos, conceptivos, atravessam décadas dessa política, consolidando o caráter segmentado, fragmentado e setorizado de processos de provisão de moradias que se sobrepõem de forma desarticulada por carência de um objetivo social maior. Desse modo, a política habitacional perde seu status de política

social, não podendo alcançar seus objetivos apenas na provisão de moradias, desde que as limitações de renda são causa e efeito do déficit habitacional, inadequações habitacionais, segregação espacial e marginalidade econômica de grande parte da população. Em outras palavras, sem a integração com outras políticas sociais de inclusão social, as necessidades habitacionais não se resolvem. Além disso, na caracterização acima, alguns pontos levantados se justificam, contudo, por não fazerem parte de um projeto coletivo de cidade ou de sociedade, o déficit e as inadequações habitacionais se mantêm, em face às limitações sociais de renda, das desarticulações institucionais, normas e ações inadequadas, resultando ainda em novas depleções ambientais. Breve conclusão Dois desafios se divisam no processo de resistência em um mundo social, propositalmente, idiotizado: a) o desafio interno − gerar um código de conduta para as relações e a prática das relações sociais entre pares e aquelas externas aos mesmos; b) o desafio externo – ressaltar a necessidade do sentido coletivo das práticas sociais dentro de um projeto de sociedade urdido amplamente, orientado não apenas para a eficiência, mas também para a eficácia, sua sustentabilidade ambiental e suas qualidades humanas.

Referências: CARDOSO, A.; ARAGÃO, T.; JAENISCH, S. (Orgs.). Vinte e dois anos de política habitacional no Brasil: da euforia à crise / 1. ed. -- Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2017. KLEIN, Naomi. This changes everything: capitalism vs. the climate. [s. l.]: Penguin, 2014. SWYNGEDOUW, Erik. Losing our Fear! Facing the Anthro-Obscene. Disponível em: https:// umaincertaantropologia.org/2015/03/18/losing-ourfear-facing-the-anthro-obscene-entitle-blog/

Abdias Vilar de Carvalho é Doutor em Ciências Sociais e pesquisador social.


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Opinião

Por que a extrema direita ataca a Universidade Pública? (1) Por Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

A

eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República colocou no centro da vida política brasileira um grupo que afirma a centralidade da guerra contra um suposto “marxismo cultural” e a bandeira da chamada “escola sem partido”. O objetivo dessa articulação discursiva da extrema direita é barrar a forma mais expressiva de mobilidade social de sentido estratégico produzida pela democracia brasileira desde a promulgação da Constituição em 5 de outubro 1988. O embate no âmbito da cultura tem seu alvo principal direcionado para a função da Universidade na estruturação da economia e do poder simbólico, pela força intelectual e moral que representa para a questão do conhecimento no contexto no século XXI. A ideologia fascista Para Norberto Bobbio uma das características mais marcantes do fascismo é a afirmação da ação e a negação da reflexão, o que significa um ataque direto para a centralidade ético-moral da cultura democrática, da inteligência crítica e da autonomia como princípio educativo. O autoritarismo e o totalitarismo fascista restringem a produção de ciência e tecnologia ao processo de inovação dos instrumentos policiais, de controle, vigilância e guerra em todos os níveis, intensidades e escalas. Esta característica de destruição do pensamento e da reflexão elimina a esfera pública e o sentido do social e do comum na vida em sociedade. A destruição da solidariedade se completa com a destruição dos elementos de consenso, reduzindo a política ao poder coercitivo ou formas de exercício de métodos de violência material e simbólica, de uso de dispositivos e aparelhos que funcionam como marca de uma espécie de guerra de aniquilação. O que torna o Estado de Exceção uma regra, fazendo dos campos de concentração e prisões os lugares que marcam a arquitetura e as instituições de um poder que se difunde através da propaganda ideológica contra a cultura e contra a diversidade, contra a diferença e contra o binômio liberdade e igualdade. Atingir os grupos e camadas artísticas, científicas e culturais e controlar as funções de ensino, pesquisa e extensão é decisivo para impor um padrão autoritário de

modo de governar. O primeiro ato do novo governo é destruir todas as formas colegiadas, coletivas, participativas e democráticas de decisão, reproduzindo mecanismos e cadeias de comando verticalizadas que repetem as formas mais antigas de modelos militares ultrapassados. Inadequados para a camaradagem na vida militar e inadequados para a cooperação na vida civil. Esta horizontalidade cega se completa com formas de controle policial e poderes de agências secretas que alimentam o medo e a desconfiança. A via única do mercado se articula com a imposição de uma opção única para o exercício do poder. Transformar o Ministério da Educação numa ferramenta da guerra cultural destrói o esforço de todas as gerações que lutaram para que o acesso ao conhecimento estivesse no centro da transformação do nosso modelo político e do nosso regime de acumulação. O modelo autoritário e a ideologia do governo pela coerção sustentam as formas institucionais de desenvolvimento desigual, espoliativo, predatório e dependente. O discurso da extrema direita vem ganhando corpo no Brasil e no mundo com o uso de um “socialware” perverso, que usa o poder cibernético para uma combinação de mensagens, estruturando narrativas homofóbicas, racistas, machistas e classistas. Os ataques mentirosos e as notícias falsas se tornam máquinas de destruição de vidas e carreiras. Montaram no Brasil nos últimos 9 anos um poder de enunciação que agencia forças subjetivas através de uma rede estruturada de interações maquínicas de tipo celular, que penetrou na linguagem e no senso comum através de uma cadeia de significantes que traduzem preconceitos e afirmações genéricas. Acionando noções como a ameaça a supostos valores compartilhados, como os sobre a família e a sexualidade, administrando o medo através de inversões e inverdades. Uma profusão de formas de falsificação do real é construída pela virtualização através de jogos, de imagens e imposturas repetidas, que funcionam como um mecanismo organizador do poder de comunicação. As máquinas de repetição e difusão de mensagem simplórias penetram através das mídias nos quartéis, nas igrejas e no senso comum dominante, impondo o vazio de ideias e de projetos quanto ao futuro da socieda-


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de brasileira. O deserto do real se alimenta do lixo pseudo-moral que torna a dramaturgia rodriguiana um conjunto de peças de literatura infantil. Extrema direita e impulso punitivo O conjunto das forças sociais mais organizadas da extrema direita se alimentam de processos de retorno de formas de recalque e ressentimento que buscam a compensação para seu desamparo e precariedade na agressividade contra supostos culpados, vizinhos, estranhos, diferentes, rebeldes e estrangeiros. Freud de fato explica as ilusões, os fantasmas e o delírio que geram o mal-estar onde prospera uma cultura da violência contra o outro, onde o racismo e o farisaísmo se combinam com a razão cínica. O narcisismo dos pequenos privilégios coabita com uma inversão da fé cuja base comum é a gestão do medo. A ferida narcísica e a covardia moral se alimentam do medo que se metamorfoseia em ódio e precisa passar ao ato combinando banalidade do mal (cotidiana e industrializada) e crueldade (visível e difusa). A passagem ao ato violento, na forma de clamores fanáticos com a submissão a chefes e líderes que apelam para guerra e a desconfiança se alimenta da gestão do medo e do temor do desamparo. A violência na forma bruta se intensifica com o desejo de matar, com as formas de agressão que penetram na vida privada e destroem o espaço público. O espetáculo do uso da força bruta legitima o genocídio, o linchamento e a tortura na forma excedentária e visível, como crueldade marcada pela inversão dos valores através de impulsos de gozo punitivo, que seguem o passo do abuso e da vontade de poder. Aceitando e naturalizando a injustiça e a desigualdade, o conformismo cresce combinando desvalorização do Outro, com um apelo para a força divina, ao direito de sangue, tentando compensar no ataque ao corpo do diferente e na expulsão do território as perdas geradas pelas forças líquidas do capitalismo pós-moderno, cujo centro parece tão longe e inatingível quer pela sua imaterialidade quer pela sua distância. O falso patriotismo combina com a superficialidade e a retórica da submissão, que exige dos sujeitos apagar a memória da colonialidade escravocrata, da tortura generalizada, da censura, do genocídio e da ditadura. A visão de mundo articulada pelo discurso capitalista se atualiza numa contra-revolução cultural que combina teocracia e fetichismo, valores de dominação patriarcal com mistificação das virtudes do autoritarismo policial-militar-judicial. A brutalidade do fascismo social fortalece a lógica miliciana, o amor pelas armas e o ódio funcionam como fator de manutenção do ce-

nário de medo, destruição e desumanidade. O processo de desconstrução da democracia e de desqualificação dos direitos humanos no Brasil se alimenta do potencial de crueldade desenvolvido no quadro de excesso negativo e exceção que marcam o giro à direita da vida política brasileira. No centro da reafirmação do capitalismo selvagem, que se alimenta do desmonte de regras ambientais e da proteção social vemos uma enorme máquina cibernética, conectada com espaços e grupos ligados ao uso da força apoiando cruzadas morais e ações de extermínio. A criminalização de negros e pobres, a afirmação do machismo e a liberação do direito de matar são parte da chamada guerra cultural contra a inteligência, o ensino público e gratuito, a Universidade e os grandes nomes da inteligência e da cultura nos diversos âmbitos das ciências e das artes. Os ameaçados pela precariedade dirigem seu ódio aos mais fracos e pobres e oprimidos, tentando se salvar pela submissão a uma identificação com os setores dominantes, os ricos e os detentores de monopólios e direitos de uso da força. Não dirigem sua raiva contra as forças que afetam seus interesses e culpam os beneficiários de políticas assistenciais e de portadores de direitos, mesmo quando são protegidos por políticas de diferença de status corporativo que vem como direitos especiais. Vale destruir os direitos universais desde que se mantenham os pequenos privilégios e as vantagens de casta. Vivemos um deslocamento que expressa uma afirmação da barbárie, isto é, do discurso contra a razão, contra o espírito crítico, contra a autonomia como centro do processo educativo com ações voltadas contra o currículo abrangente e as práticas de ensino, pesquisa e extensão que são a força propulsora da democratização do saber e da transmissão que forma a capacidade em matéria de conhecimentos para mudar a vida. Na inversão de ótica atacam as políticas e programas que visam expandir os patamares de bem-estar social e fazer avançar a ciência a tecnologia e a inovação para promover o desenvolvimento sustentável.

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é Coordenador do PPDH do Núcleo de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.


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Opinião

India’s Elections, 2019: whoever wins, will anything change? Por Suranjit Saha

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n the 11th of April, the marathon process of a national election commenced in India which will run for 39 days until the 19th of May and the results will be announced on the 23rd of May. More than 900 million voters will vote to elect 543 members for the Lower House of the Parliament, the Lok Sabha, who will decide which party, or the coalition of parties, will govern India for the next five years. India’s elite, which constitute no more than 15% of the population, never stops boasting to themselves and to the foreigners, that this is the world’s largest democracy in action. To the remaining 85% of the country’s population, let us call them masses, it does not matter, and has never mattered, if this is so, or if it is a democracy at all or just a kleptocracy, a system in which the top elite rules the country for its own benefit by ruthlessly exploiting the rest. None of the issues which concern this majority are finding much mention in the election campaigns which are currently going on across the country in full force. To be sure, garibi hatao (banish poverty) has been the core election slogan of the Congress party ever since Indira Gandhi used it in her election campaign in 1971 and all major political parties have been vowing to improve the lot of the poor during all elections ever since then. But nothing in real terms has ever been done to put this commitment into practice by either of the two parties, the Congress and the Bharatiya Janata Party (BJP), who have taken turns to govern the country since independence. India’s official poverty line is a cruel joke. An official expert committee appointed by the Congress government had determined in 2014 that anyone earning more than 32 US cents per day in rural areas and 46 US cents per day in urban areas is not to be regarded as poor. The succeeding BJP government has not yet revised that definition. At those prices, an Indian cannot buy even one full meal of basic staples. Even on the basis of that non-life sustaining definition of poverty line, the World Bank calculates that 21.9% Indians continue to live in poverty. This will indicate widespread malnutrition, hunger and dehumanising indigence among people who are not regarded as poor by the state. The economic gap between the elite and the masses could not be starker. Neither the Congress nor the BJP, nor indeed any of the political parties who have run governments in the various States, have made any significant investments to build even the rudiments of the fabric of a welfare state, with the exception, to a very limited extent, by the Commu-

nists in Kerala. Public hospitals and health centres, which are supposed to provide free health care to everyone, have never provided this in any meaningful way, and there is no indication that this will change anytime soon. What has happened on the other hand is a rapid mushrooming growth of well-equipped private hospitals and health care hubs in big cities from which the masses are shut out because of the inability to pay the prices they charge even for the treatment of simple ailments. The Indian newspapers and TV channels frequently report the stories of poor women giving birth in the streets just outside these hospitals, because they were denied admission there because they could not pay and because the nearest public facilities were either closed or out of reach. The poor have to sell their assets or just die without treatment if they contract a treatable illness. The elementary and secondary schools in the public sector do not provide quality or even meaningful education to the children whose parents cannot pay the fees that the private schools charge. The universities and the higher institutions of technical and medical education, most of which are in the public sector, are without question the exclusive preserves of the sons and daughters of the elite. The state, instead of investing public money in building a welfare state, is thus spending huge chunks of nation’s resources to guarantee a bright future for the children of the elite and continued misery for the masses. India is probably the only country in the world where the violent deaths by rape of little girls as young as one or two years are so widespread as not to merit print space of more than a line or two in the inside pages of newspapers. In this current election, none of the political parties are projecting this as an issue. Instead of focusing on the issues which affect the lives of the masses, all of the parties are seeking votes by appealing to the far right religious sentiments of the two main religious communities, the Hindus (80% of the population) and the Muslims (15%). The BJP has been appealing to the most obscurantist and misogynist sentiments of the Hindus by, for instance, promising to build a grand temple to Rama at Ayodhya, fanning up traditionalist Hindu sensitivities about cow slaughter, supporting the continuance of the centuries old ban on the entry of women of the menstruating age into a famous Hindu temple in Kerala and providing support to, and deriving support from, the far right extremist organisations like the Rashtriya Swayamsevak Sangh, Vishwa


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Hindu Praishad, Bajrang Dal and others. These organisations are seeking to reengineer Indian society on the basis of a fake doctrine of Hindu nationalism wherein a top elite combine of Brahmins, Kshatriyas and Vaisyas (15% of the population) will exercise permanent supremacy on the OBCs, Dalits and Adivasis (65%) and Muslims will be tolerated as long as they conform. This is a fake doctrine because the core Hindu religious texts like the Vedas and the Bhagavadgita do not provide any basis for such thinking. These organisations are also known to be actively spreading hate and inciting violence against Muslims and Dalits. The main plank of the electoral strategies of the Congress and of the bigger among the regional parties like the Bahujan Samaj Party and the Samajwadi Party of Uttar Pradesh, the Trinamool Congress of West Bengal and the Rashtriya Janata Party of Bihar, on the other hand, is to intensively campaign for the Muslim votes, mindful of the fact that Muslims tend to vote en bloc, heeding the advice of their religious leaders, while the Hindu votes tend to splinter along the caste lines. Most of these religious leaders tend to be obscurantists and misogynists who build their claim to leadership by demanding to protect such rights of Muslim men as of marrying four wives, divorcing them at will by pronouncing the word talaq three times without the obligation of paying any alimony to the divorced wife or assuming any responsibility for the children born in that marriage and of a daughter to inherit only half the value of the estate of the deceased father that a son does. It is these rights that the Congress has been politically fighting to protect to win Muslim votes since the time of Jawaharlal Nehru. When in 1978, Shah Bano, a 62 year old Muslim woman, was divorced by her husband who refused to pay her any maintenance or share of his estate, she went to the Supreme Court for justice and won her case in 1985, after a long litigation. Rajiv Gandhi, the Congress prime minister at the time, instead of standing by the side of this vulnerable woman and in support of the decision of the highest court of the land, passed a new law in the parliament upholding the supremacy of the sharia law which gives the Muslim man the right to divorce his wife without any obligation of financial support. Even in recent years, Muslim Women’s organisations have raised their voices against the continuance of these misogynist and archaic practices, but the Congress has been routinely extending its political support to the Muslim clergy in suppressing the voice of these women. Both the Congress and the BJP are essentially the right-wing parties of the upper caste Hindus, who constitute no more than 15% of India’s population. The principal political mission of both these parties has always been to protect and consolidate the dominance of this section of population on the economy and political system of the country. Both the parties have sought to secure that common mission by selectively co-opting the influential leaders of the other less privileged segments of the society,

e.g. the Dalits, the Adivasis (the indigenous tribes) and the Other Backwards Classes (OBCs) among the Hindus and the Muslims. The OBCs and the Dalits are in turn divided into countless number of castes and the Advasis, in a very large number of tribes. They are therefore easy targets of the divide and rule policy practised by both the Congress and the BJP. The main difference in the electoral strategy of the two parties has been how they have gone about this co-optation process from time to time. During the current election campaign, the Congress and the regional parties are principally concentrating on winning Muslim votes and also contesting with the BJP for the support of the specific castes and tribes among the three underprivileged segments among the Hindus. The BJP on the other hand is trying to consolidate the votes of the Hindu majority in its favour by canvasing a message of Hindu Unity by craftily promoting a narrative of the Hindus being under an existential threat in the face of a rising tide of terrorism led by various Islamic groups like the Taliban, the Al Qaida and the Islamic State, and their Indian surrogates like the Jaish-e-Muhammad, the Lashkar-e-Toiba and the Indian Mujahedeen. With the exception of the small state of Kerala, the Left is conspicuously absent in the Indian political landscape during this election. The Bahujan Samaj Party, which claims to speak for the Dalits and the Samajwadi Party, claiming to speak for the Yadav community, a segment of the OBC group, also have no track record of putting in place pro-poor and pro-women policies during the extended periods in which they governed Uttar Pradesh. None of them are highlighting the issues of poverty, increasing gaps of income and wealth between the rich and the poor, massive unemployment, slave-like labour conditions in farms and factories, widespread child labour and the rapidly spreading epidemic of rape, including of very young girls, much less proposing concrete measures to deal with them. A great country, the inheritor of a noble civilisation, is descending into barbarism. But that is nobody’s concern in this current election. The 85% of the population is effectively disenfranchised. The other 15% are fighting to determine which combination of the various political parties will better protect its privileged position in society and the economy. For the 85%, nothing will change whoever wins.

Suranjit Saha é professor sênior aposentado em Estudos de Desenvolvimento na Universidade de Swansea/País de Gales.


Opinião

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O destino do Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro Por Rômulo Almeida

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política recente de cortes no orçamento público, realizado pelo governo federal, vem afetando áreas estratégicas para o desenvolvimento brasileiro, com impactos nos esforços de preservação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Vale lembrar o catastrófico incêndio do Museu Nacional, ocorrido em 2018, no Estado do Rio de Janeiro, que lançou mais uma pá de cal na incinerada memória brasileira, trazendo perdas incalculáveis para a pesquisa e a ciência no país. Ao lado dos museus e demais monumentos arquitetônicos, prejudicados pelo modelo econômico neoliberal, é necessário alertar o risco iminente de ataques às culturas populares dos povos tradicionais e aos bens culturais imateriais, portadores de saberes e fazeres facilmente descartados pela lógica predatória do mercado. Desde o I Congresso Brasileiro de Folclore, apresentado em carta por Almeida (1951) e revisado em 1995 na cidade de Salvador, iniciou-se um debate mais acurado acerca dos princípios fundamentais, normas de trabalho e diretrizes voltadas para a preservação, divulgação e proteção das manifestações populares. Atualmente, parte significativa dos novos estudos tem como foco a atualização de conceitos e o reforço das práticas de salvaguarda, incluindo não apenas a cultura material, mas também a sua intangibilidade e simbolismo, ou seja, as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo. Tendo em mente, segundo Ortiz (1985, 2006), que as relações entre cultura e Estado são antigas no Brasil, qual será, a partir de agora, com o aprofundamento mais acentuado do neoliberalismo, o destino do Patrimônio Cultural Imaterial? Como garantir respeito e autonomia aos seus produtores? Não sendo possível mensurar, no curto prazo, os impactos que esses questionamentos possam causar, é imperativo ao menos que se discuta os desdobramentos das práticas de salvaguarda e a necessidade de assegurar, sem exotismos pitorescos, o lugar da diferença e do diferente. Compreende-se por Patrimônio Cultural Imaterial as expressões de vida e tradições que comunidades, grupos e indivíduos recebem de seus ancestrais e repassam a seus descendentes. Existem, porém, na acepção de Cunha (2005), pelo menos três premissas básicas na caracterização desse patrimônio. Em primeiro

lugar, ele é composto de processos tanto, e provavelmente mais, do que de produtos. Em segundo lugar, não se compõe de formas fixas, mas de uma recriação permanente que tem a ver com um sentimento de continuidade em relação às gerações anteriores, sendo, portanto, dinâmico e histórico. Em terceiro lugar, suas condições de reprodução dependem, entre outras coisas, de acesso a território e a recursos naturais. Do ponto de vista legal, a proteção do Patrimônio Cultural encontra respaldo na constituição federal de 1988, que prevê nos artigos 215 e 216 o reconhecimento dos bens culturais materiais e imateriais como patrimônio a ser preservado pelo Estado em parceria com a sociedade. O mesmo artigo também define que o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o Patrimônio Cultural Brasileiro, através de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e outras formas de acautelamento. Para viabilizar instrumentos mais adequados à preservação dos bens culturais imateriais, foi promulgado pelo governo brasileiro o Decreto nº 3.551, em 4 de agosto de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, além do PNPI (Programa Nacional do Patrimônio Imaterial), executado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Logo em seguida houve a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, assinada em Paris a 17 de Outubro de 2003. Entendia-se, no entender de Cunha (2005), que as políticas de patrimônio poderiam abordar simultaneamente as dimensões material e imaterial da cultura, isto é, as práticas que ensejam, assim como os efeitos dessas práticas e as histórias particulares que se incrustam no conceito, sobrecarregando suas conotações. No Brasil, cerca de 38 bens culturais imateriais já foram reconhecidos pelo Iphan. Entre estes, 5 estão inscritos pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, incluindo em seu bojo a roda de capoeira, o frevo, o samba de roda, o círio de Nazaré e a arte Kusiwa. O reconhecimento dessas manifestações culturais possui grandes implicações na formulação de políticas públicas de patrimônio, pois dizem respeito à natureza e valor dos objetos a serem preservados, ao mesmo tempo que permitem ver a posição dos agentes sociais envolvi-


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dos. Encarada como uma política recente no plano internacional, a preservação do patrimônio imaterial depende de investimentos governamentais, intelectuais e da participação ativa da sociedade. Sua existência, portanto, é parte de uma agenda interna emergente, mas que se configura no âmbito de uma esfera pública global. Assim, os enfoques nesta direção devem compreender as mediações entre a esfera nacional e a esfera global, já que as prioridades decididas nesta última não repercutem de forma automática e idêntica em cada país (NETO, 2005). Para Cunha (2005) e Neto (2005), a decisão nos últimos anos de ampliar o universo de bens culturais protegidos detém um importante potencial que afeta as práticas institucionais como um todo. O caráter atual, processual e virtual dos objetos a que se referem os planos de ação de salvaguarda, não deve induzir a fixação de formas (tangíveis ou intangíveis), mas estimular e fortalecer as condições de circulação (troca) e a reprodutibilidade (transmissão e mudança) dos bens protegidos, contemplando a natureza mutável e dinâmica de seus objetos. Conservar o patrimônio material é, sobretudo, conservar objetos já produzidos, algo diferente do patrimônio imaterial, que consiste na virtualidade de objetos, com ênfase nos processos de produção e não nos produtos. Consequentemente, ao pensar o imaterial deve-se passar da lógica do produto à lógica do processo, problematizando a sua concepção, o seu plano e o saber sobre ele. Opinião semelhante é compartilhada por Vianna (2005), segundo a qual é preciso fazer circular e inventar novas conexões e encontros. Desse modo, o indispensável não é a preservação das peculiaridades de cada cultura, mas principalmente o afastamento diferencial entre elas, ou seja, a rede que é formada. A simples preservação e proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro, como um exercício institucional isolado, não é suficiente para garantir autonomia aos seus produtores e coibir a assunção de percepções engessadas acerca da cultura. É vital observar, com base em Hobsbawn (1984) e Arantes (1985), que o universo cultural é polissêmico e correlaciona-se com o terreno aberto da (re)invenção e da (re)significação. É possível preservar objetos, gestos, palavras, características plásticas exteriores, mas não se consegue evitar as mudanças de significados. O mesmo paradoxo também se aplica ao conjunto de estratégias mercadológicas que procuram converter a memória em mercadoria ou curiosidade turística. A apropriação capitalista dos bens culturais imateriais é de fato um sério risco, especialmente num contexto político desfavorável, que relega saberes, fazeres e produtores de cultura ao lucro que podem gerar, ou, quando não, a peças descartáveis na maquinaria destrutiva do grande

capital. Uma das muitas maneiras de resistir e avançar na luta pela preservação do patrimônio cultural brasileiro é traçar táticas de mobilização que sejam capazes de abranger a produção, a circulação e o consumo dos bens culturais produzidos. E mais do que isso, como notou Canclini (1982), não haverá políticas culturais realmente populares enquanto os produtores de bens culturais não tiverem um papel de protagonista, por meio de uma democratização radical da sociedade civil.

Referências ALMEIDA, Renato. A carta do folclore brasileiro. In: O primeiro congresso brasileiro de folclore.1., Rio deJaneiro, 1951. ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. 8ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. CANCLINI, Néstor García. As Culturas Populares no Capitalismo. Editorial Nueva Imagem AS, México, DF, 1982. CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Imaterial e Biodiversidade. Brasília, nº 32, p. 15-26, 2005. HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. NETO, Antonio Augusto Arantes. Apresentação. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Imaterial e Biodiversidade. Brasília, nº 32, p. 5-11, 2005. ORTIZ, Renato. Cultura popular: Românticos e folcloristas. São Paulo, PUC-SP, 1985. _____. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006. VIANNA, Hermano. Tradição da mudança: a rede das festas populares brasileiras. In: CUNHA, Manuela Carneiro da(org.). Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, Patrimônio Imaterial e Biodiversidade. nº 32, p. 303-315, 2005.

Rômulo Almeida é sociólogo e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco.


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Paulo Freire e a Revolução 4.0 Por Maria de Jesus Britto Leite

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imensa revolução social provocada pela inteligência artificial será marcada por uma ferocidade muito maior do que as revoluções tecnológicas anteriores. Se a revolução industrial fez nascer uma nova classe proletária e a segunda revolução industrial configurou uma nova classe operária, atualmente, a revolução da inteligência artificial pode fazer surgir uma classe social sem função económica. (Cheng Li, 2017) Em fevereiro deste ano de 2019 o Jornal “Outras Palavras” publicou recente artigo de Aaron Bornstein intitulado “As Máquinas herdarão nossos pré-conceitos?” Nele, a substituição humana pela máquina é algo inquestionável, de modo que a preocupação recai sobre se nossas imperfeições - no caso, ter preconceitos - também poderão um dia ser assimiladas pelas máquinas. Seria possível? Se sim, isso exigiria das máquinas saber refletir. No entanto, modos de pensar a reflexão - fazem parte do campo da experiência; estão ancorados em costumes culturais e, portanto, plenos de subjetividade. Nos dias de hoje, a inteligência artificial com certeza oferece respostas rápidas a perguntas objetivas, de modo que efetivamente permite uma grande agilidade às ocupações humanas; estudos avançam para que a máquina reconheça, pelos traços do semblante, o estado de espírito de uma pessoa: triste, eufórica, etc. Mas, ter experiência exige ter capacidade sensível, entender as subjetividades do mundo, algo, até então, inerente ao ser humano Enquanto a Inteligência Artificial avança provendo algumas necessidades aparentemente cruciais, nosso futuro aparece ameaçador: não cuidamos do Planeta e estamos na iminência de deixar como legado um mundo desmatado, quente, com sérias dificuldades de garantir alimentação saudável, água potável; produzimos máquinas que as aproximam das capacidades humanas sem nos perguntarmos sobre a consequência dessas invenções; estudos científicos avançam na criação de armas letais autônomas. Devemos entender tudo isso como um ganho ou uma ameaça? É verdade que as mudanças nas nossas vidas, em face das novas tecnologias, são avassaladoras. Mas é verdade também que os questionamentos sobre o que vem acontecendo são poucos, comparados aos impactos que causam. E, no entanto, algumas

informações divulgadas são muito graves e tocam individualmente as pessoas. Fala-se em substituição do ser humano em variadas atividades - as profissões de hoje - como um ganho do futuro, mas ainda não se compreende as perdas de espaço de trabalho que isso acarreta. Deslumbrados com nossa capacidade inventiva, percebemos apenas um lado dos acontecimentos e de suas consequências. Com as facilidades que existem já hoje, as novas tecnologias agilizam as ações no cotidiano enquanto aceitamos sem questionamentos sermos substituídos sem que alternativas outras sejam oferecidas. Profissões tendem a deixar de existir, valores humanos acabam também sumindo. Como imaginar que profissões como a de advogado, de arquiteto, podem deixar de existir, por que softwares os mais habilidosos passarão a responder por boa parte do que sabem hoje esses profissionais? As expectativas tornam-se turvas. Uma pergunta que precisa ser enfaticamente feita é a quem serve o direcionamento dos financiamentos mundiais para as pesquisas em Inteligência artificial. Quem se beneficia com a criação de empresas altamente lucrativas e que empregam muito poucas pessoas? Porque a questão que está em jogo é se vamos manter a subserviência em relação à Técnica e nos submetermos aos desmandos de quem a opera - o sistema econômico e seus atores. Em artigo intitulado “A técnica na sofisticada marcha da Humanidade em direção ao precipício”, Márcio Seligmann-Silva alerta que, ao acoplar-se a um modelo de desenvolvimento, a Técnica passou a ter como fim o sacrifício da vida e a destruição da Natureza. Segundo o pensador, desde Goethe, passando por Walter Benjamin, a técnica veio sofrendo críticas que foram alimentadas pela escalada desumana da primeira revolução industrial. No artigo, ele nos informa que já nos Anos 40 do século XX, Walter Benjamin dizia que na história da técnica, as culturas sempre estiveram inter-relacionadas com a barbárie. Sao de Benjamin, os argumentos sobre a Ética da Responsabilidade, de Hans Jonas, como uma possibilidade de garantir a vida futura. Como inverter essa tendência histórica da Humanidade? Como formar cidadãos conscientes de suas responsabilidades para com a Humanidade? Foi querendo se antecipar a esse problema que a UFPE construiu o Documento UFPE Futuro, pro-


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pondo uma reorganização em sua estrutura de formação. Esse parece ser o princípio que norteia o Documento UFPE Futuro: fazer coincidir pedagogia e evolução para a vida das pessoas; uma pedagogia que se paute na existência digna, ao invés de simplesmente correr atrás do desenvolvimento econômico, apoiado em Celso Furtando, Darcy Ribeiro e Paulo Freire. Enfrentar a corrida das inovações tecnológicas e saber responder com produção de conhecimento na mesma velocidade é difícil. Mas, mais ainda é não perder o senso de humanidade e de independência em relação a bem pensar. Mais difícil é manter a consciência de que, para persistir bem evoluindo, a Humanidade precisa se despojar do individualismo que é marcante na sociedade atual, consumista, excludente, e ter a dimensão do outro, a dimensão comunitária como princípio. Esse é um dos porquês de Paulo Freire neste artigo: tudo isso tem a ver com Educação, com uma Formação que enfrente as consequências danosas da evolução da Inteligência Artificial. Como o Documento UFPE Futuro tem em Paulo Freire um dos seus fundamentos, o Instituto Futuro da UFPE buscou saber como ele iluminaria uma re-estruturação pedagógica de modo a formar profissionais em condições de não apenas sobreviver, mas de viver dignamente. Convidamos os pesquisadores da Cátedra Paulo Freire para nos responder sobre o que diria Paulo Freire sobre a Revolução 4.0. Três perguntas nortearam a discussão: a primeira, como garantir a permanência da Consciência e da Ética se com a Revolução 4.0 a maioria de tudo que necessitamos no dia-a-dia parece estar ao alcance de nossas próprias mãos e nos induz a pensar que podemos existir apenas conosco mesmos? Apesar das benesses que as novas tecnologias oferecem - entre elas a rapidez como nos comunicamos, como compramos um remédio em outro continente que não o nosso - muitas pesquisas mostram o adoecimento humano em face da dependência tecnológica: a probabilidade de afetar, inclusive, o desenvolvimento cognitivo das novas gerações se não aprendermos a equanimizar as necessidades humanas quotidianas com aquelas essências à vida (Susan Greenfield, 2019). Daí a segunda pergunta: como termos as condições para formar seres humanos com capacidade de iniciativa, cooperação e criatividade, frente aos riscos, inclusive cognitivos, que podem existir, e como sermos capazes de nos antecipar a esses riscos, afastando-os das gerações de hoje e do amanhã? Paulo Freire revolucionou a Educação ao propor conhecermos os saberes do dia-a-dia como sustentação para o conhecimento e contra as dificuldades que possam vir. Quais seriam as raízes, a existência

cultural dos jovens que passam a ser responsabilidade da Universidade pública, quando a escolhem como lugar de aquisição de Conhecimento? Desprezar esses conhecimentos, aos olhos da pedagogia freiriana seria negar suas próprias vidas. Muitos outros pensadores da Educação apostam na sensibilidade humana, por entendê-la como necessariamente transgressora, capaz de libertações. Mas, numa Sociedade desigual e injusta como a nossa, encontrar esses esteios é tarefa muito árdua, que requer persistência e compromisso por parte das instituições de ensino. E, segundo os estudiosos de Paulo Freire, a resposta não estaria numa disputa entre o ser humano e a máquina, mas sim nas capacidades que são inerentes ao ser humano, na sua mais cara humanidade, no reconhecimento das subjetividades humanas que são próprias de cada estudante como um mundo a ser resgatado para um aprendizado dos conhecimentos futuros, pautados na ética e no compromisso com a vida. As capacidades subjetivas e a dimensão ética da vida, tão próprios do ser humano e não existente na Inteligência Artificial, talvez sejam a luz a iluminar o futuro.

Referências Bornstein, Aaron M. As maquinas herdarão nossos preconceitos?. Jornal Outras Palavras, 27/ 02/2019. Cheng Li. Emprego e bem-estar social na era da inteligência artificial. In Carta Social e do Trabalho 34, CESIT/UNICAMP, p. 13-22, 2016. Greenfield, Susan. O ambiente digital está alterando nosso cérebro de forma inédita. Fronteiras do Pensamento, 12 /02 2019 Seligmann-Silva, Marcio. A Técnica na sofisticada marcha da Humanidade em direção ao precipício. Jornal Folha de São Paulo, 17/02/ 2019.

Maria de Jesus Britto Leite é professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo e do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Coordenadora do Instituto Futuro da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


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Opinião

A política nacional e a proposta da reforma da Previdência Por Abdias Vilar de Carvalho

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Brasil tem a extrema direita dirigindo o país, baseada em uma política de livre iniciativa extremada. Há uma profunda imbricação entre poder presidencial e poder familiar, fato que remete à semelhança de governos medievais, o que não elimina conflitos internos. A indicação de militares para vários comandos de Ministérios e Autarquias possui significados político e ideológico. Só assim será possível compreender o papel e a função da militarização da coisa pública e o aprofundamento por parte da sociedade e de seus adeptos de que militar é sinônimo de honestidade, de saber dirigir, não há política e só técnica e técnicos. Eles surgem como moderados, capazes de conter também os arroubos presidênciais e de sua família. Assim os militares adentram no cenário político como o “tertius”, aqueles que têm, despretensiosamente, o bom cuidado da coisa pública, sabem pensar e agir com sensatez. No fundo, há uma volta de militares que serviram durante a ditadura ou que têm uma visão unilateral das coisas e das pessoas, isto é, são conservadores. A nomeação de um general aposentado para o INCRA nada mais é do que essa confirmação, bem como de intimidação em relação ao MST; antecipação de que esse movimento social possa ser preventivamente contido por ocupar lugares públicos e imóveis e propriedades improdutivas. Não é à toa que a Associação Nacional de Defesa dos Agricultores, Pecuaristas e Produtores da Terra- ANDATERRA- propõe a extinção dessa Autarquia. Nas palavras dessa Associação: “O Incra não serve para ser mais nada. Precisamos extingui-lo e vender toda a estrutura que ele tem nas capitais do país” (https://agroemdia.com.br). A direita sempre negou os horrores da ditadura militar e desejou arduamente a volta dos militares a postos chaves. Não esqueçamos que o atual Presidente da República inocentou o coronel Ustra de quaisquer ações de perseguição, de tortura e de morte e o teve e tem como herói. A visão direitista, militar e de um radicalismo extremado podem ser entendidas nestas declarações do presidente da República, em uma entrevista: “todos os meus filhos atiraram com 5 anos de idade; Encorajo, sim. (respondendo a um jornalista sobre o uso de armas por crianças) - Não podemos ter uma geração de

covardes; - Esse ECA - Lei nº 8.069 de 13/7/1990(Estatuto da Criança e do Adolescente) deve ser rasgado e jogado na latrina”. Quer dizer que as crianças, mesmo de pais da direita, que não aprenderam ainda a atirar farão parte de uma “geração de covardes”? O ECA proíbe (art.81) o uso de armas por parte de crianças e adolescentes. A posição de Bolsonaro, dita em entrevista e transmitida via whatsapp, é que ele (o Estatuto) nada vale. Quanto ao poder familiar, leva a uma intimidação, de medo e de terror, pois membros diretos de sua família são, conforme a imprensa, ligados à milícia no RJ, e usam as redes socias para o medo. Circula na internet uma foto em que estão almoçando juntos Flávio Bolsonaro, Queiroz e o assassino de Marielle, agora preso. Não se trata de um acaso, pois estão juntos e além do mais ninguém vai a um almoço sem antes combiná-lo. Há envolvimento de terceiros em corrupção. Podemos citar o COAF e as unidades federativas com as Procuradorias Eleitorais Regionais ou Estaduais pois, de acordo com esses entes da Administração e da Justiça, teriam eles desvirtuados dinheiro em prol da candidatura do PSL. São os políticos e partidários do PSL portadores de segredo, copiando o termo usado por Arendt sobre Eichamann (Banalidade do Mal, p:39). Quando me refiro a “ação política” penso na capacidade que setores sociais de oposição têm e que possam ser reprimidos de fato e ideologicamente, sobretudo os setores de esquerda, tanto pelas forças da dita “ordem”, quanto por adeptos bolsonaristas. A renúncia de Jean Wyllys foi reveladora desse clima de perseguição. A prática de seus eleitores virou religião, ou seja, questão de fé e de esperança, não tivemos crentes e nem teólogos, mas adeptos cegos. Em vez de cidadãos conscientes, apareceram os fanáticos. Hannah Arendt escreveu em A dignidade da Política (p:47): “uma perda da capacidade de ação política, condição central para a tirania...” Não é isso que ocorre no Brasil atual? Os canais de tv e os rádios a pretexto de mostrar verdades e falácias sobre a reforma da previdência somente entrevistam ou fazem debates com os defensores, como fez o Roda Viva da TV Cultura de SP, sem apontar outros tipos de solução. Sobre a idade para a aposentadoria, defensores e mídia


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aprovaram entusiasticamente a medida governamental. Temo que haja um efeito ideológico por parte da população, nada aceite a pensar e a avaliar o contrário, causado pelo bombardeio da grande dívida da previdência pública, que é enfatizada por questão financeira de curto prazo e pela crise econômica atual com milhões de brasileiros desempregados e outros que vivem na informalidade, portanto, deixando de contribuir para a previdência. Sobre o tempo do valor monetário a ser poupado não seria a curto prazo e demoraria muito para ser sentido. Há versões distintas. Contradições? Propaganda? Fuga das reinvindicações sociais? Ou simplesmente visão de futuro dos governantes? O governo atual escreve na Mensagem ao Congresso Nacional um prazo mínimo de 10 anos. Desfazem os sonhos dos apologistas? A resposta é sempre amarga. A nova reforma da previdência, entregue por Bolsonaro ao Congresso Nacional, tem como balizador o limite de idade e o tempo de contribuição. Há exceções no fator idade e de contribuição, atingindo militares civis e federais, que deverão ter 55 anos de idade e 30 anos de contribuição, se mulher e também para professores que deverão ter a idade de 60 anos, com 30 anos de contribuição, se homem. Chamamos a atenção dos leitores para o adjetivo “nova”, pois foi com ela que o atual presidente afirmou que criaria uma nova previdência e iniciava uma série de reformas e de privatizações. A proposta de reforma é um ato do governo e não de um ministério. Na referida Mensagem presidencial é sublinhada como razão de tudo o grande déficit público federal e dos Estados, pela crescente expectativa de vida dos brasileiros com uma população idosa que alcançará 25,5% da população nacional em 2060. Aponta ainda a referida proposta para um déficit previdenciário em 2019 de cerca de 54% enquanto a receita não atingirá a cifra dos 36%. Elio Gaspari referindo-se ao ministro Paulo Guedes e não ao presidente da República escreveu: “O projeto é engenhoso. Dá R$ 400,00 ao miserável a partir dos 60 anos, o que é um alívio para quem recebe, no máximo, R$371,00 pelo Bolsa Família. Com a outra mão querem tomar pelo menos R$ 598,00 mensais dos miseráveis que têm mais de 65 anos e 70 anos. Eles só terão direito aos R$ 998,00 se, e quando, chegarem aos 70 anos”. (Recife, Jornal do Commercio, 24/2/2019, p:12). Em palavras mais simples, o exemplo citado diz respeito ao Benefício da Prestação Continuada. Milhões de brasileiros, especialmente idosos, conhecerão a escassez e diversidade alimentar, porque seu teto máximo fica congelado ou não aumenta na mesma proporção que os itens alimentícios e remédios ou vitaminas. Os Supermercados e a

indústria farmacêutica rirão à toa. Embora a idade proposta possa parecer sensata, não é na prática. Estudiosos mostram que, em verdade, começando o homem a trabalhar com 16 anos, o que não é novidade no Brasil, passando 50 anos em atividade, e se o “gatilho de idade”, baseado na expectativa de vida, for automaticamente disparado, o que é factível, aumentará a idade para a aposentadoria em um crescendo, e com facilidade se ultrapassaria os 65 anos de idade. Em termos simples, basta levarmos em consideração a idade, o tempo de contribuição e a expectativa de vida para vermos quem se aposentará integralmente no país. Brasileiros que ganham até 2 salários mínimos passariam de 7,5% de desconto no mínimo no seu salário, chegando ao máximo de 11,68%. Ora, se atentamos para a tabela proposta de desconto no salário, veremos que os que ganham acima de R$ 10.000,00, quase 9 vezes o salário mínimo, pagarão somente R$ 12,86%, ou seja, um desconto proporcional bem inferior. Os que ganham o máximo de R$ 39,000,00, que não atinge a maioria dos brasileiros, descontariam tão somente 16,79% do salário. A atual proposta atinge os atuais aposentados e viúvos quando prevê que não mais existirá o acúmulo. Sabemos que no Brasil é muito comum, especialmente aqueles que ganham o teto mínimo, haver um duplo acúmulo. Médicos e professores estão isentos dessa exigência. A reforma proposta pelo atual governo não passa de uma injustiça social. Não concerne à esquerda a pecha de refratária à mudança, por uma defesa ideológica do simplesmente ser contra os governos de direita. Claro que o “mercado”, composto por uma minoria que investe altas somas, iludindo aqueles que fazem pequenos investimentos ou que buscam à poupança, está muito contente e esperançoso. O que dizer da proposta presidencial em relação aos trabalhadores rurais? Ficamos por aqui. Tudo isso - comportamento presidencial e proposta- conduz a uma passividade da população. Assim entre o desejo de mudança e a realidade o que está havendo é uma regressão social e política. A estrutura social está cada vez mais esmilhada. Quanto a seus adeptos, não significa uma inoperância futura em sua defesa.

Abdias Vilar de Carvalho é Doutor em Ciências Sociais e pesquisador social.


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Opinião

Terras indígenas e propriedade Por Luis Emanuel Borba da Cunha

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m 2018, a Constituição Federal de 1988 completou trinta anos de vigência. De uma forma geral, a retomada da regularidade democrático-constitucional no Brasil criou expectativas de conquistas em vários grupos sociais que amargaram perdas relevantes durante o regime ditatorial e outros que, historicamente, permaneceram “invisíveis”, sem reconhecimento e sem autonomia. A situação dos povos indígenas, desde os primórdios de uma configuração inicial de brasilidade, tem sido de uma inclusão social incipiente, quase inexistente, de conquistas esparsas e desafios crescentes. No decorrer do século XX, o rechaço social à cultura indígena, por pouco, não a aniquilou enquanto identidade interpessoal e expressão própria de um conhecimento, crenças, hábitos e costumes. O levantamento presente no Relatório Figueiredo (1) mostrou como os indígenas, em plena metade do século XX, eram vítimas das mesmas práticas violentas de três séculos atrás. O marco do processo de ressignificação

social e jurídica é a luta pelas terras ancestrais indígenas. A terra tem um significado muito especial para os povos indígenas. Além de propiciar os meios de subsistência material, em sentido amplo, a terra é um meio essencial para expressão dessa cultura. Em pesquisa recente realizada no estado de Pernambuco, concluiu-se que o procedimento demarcatório estabelecido pelo Decreto 1.775/1996 gera imprevisibilidade sobre atos futuros e insegurança jurídica para o exercício de direitos pelos povos indígenas. E, evidentemente, o procedimento como um todo não garante a posse tranquila das terras já reconhecidas e até já registradas. As informações sobre a regulação das terras indígenas em Pernambuco fornecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) indicam um estágio avançado de regularização; porém, isso não tem significado de segurança jurídica, pessoal e coletiva, proteção ambiental e condições dignas de sobrevivência e de expressão cultural para os indígenas.


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Segundo a Funai, 72% das terras indígenas em Pernambuco estão regularizadas. Por outro lado, para a sociedade civil especificamente atuante, 63% das terras indígenas estão intrusadas; 27%, ainda em fase de identificação; e 10%, sob a situação de reser va. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos se consolidou em reconhecer a propriedade de terras indígenas a partir do paradigma da coletividade, a terra como meio de expressão de uma complexidade social, econômica, cultural e religiosa. Mais do que algo meramente patrimonial, a terra, para os indígenas, é uma forma de identificação étnica. A moderna sociedade mundial se caracteriza pelo paradigma da complexidade. Suas relações e interações dão, cada vez menos, importância às fronteiras políticas entre os estados. Crises econômicas, financeiras, humanitárias e ambientais; a aplicabilidade dos Direitos Humanos; os eventos midiáticos; lex mercatória; a migração de pessoas são exemplos desse fenômeno transfronteiriço que exige um tratamento político-jurídico-institucional também particular. Daí, emergirem-se locos de governança, redes, organizações internacionais, transnacionais e sistemas jurídicos pontuais (3). As Nações Unidas, o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit) e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos são exemplos dessa emergência. Os casos de relevância jurídica, cada vez mais, têm sido discutidos em mais de uma jurisdição. O entrelaçamento de relações sociais na sociedade globalizada gera casos-problemas, que, por sua vez, conectam mais de uma jurisdição estatal e até se conectam com a jurisdição internacional, principalmente em matéria de direitos humanos a partir das cortes internacionais específicas (europeia e africana). A exaustão jurisdicional estatal não mais é uma realidade. O objetivo da busca de efetivação do direito à propriedade passa por reconhecer o núcleo habitacional do povo indígena, os recursos naturais necessários à caça, à pesca, ao plantio, às práticas de acordo com o período do ano, à realização de cerimoniais, sua religiosidade, seus ritos sociais de passagem, sua organização social e política, suas práticas jurídicas costumeiras a fim de reproduzir a cultura e galgar a uma aspiração de vida. Com efeito, o conceito clássico-civilista de propriedade atinge seu limite e não consegue

ser uma solução adequada ao problema constitucional do direito de propriedade envolvendo povos indígenas. Com isso, a propriedade não se mostra como um fim em si mesma, mas um garantidor de direitos econômicos, sociais e culturais. A propriedade com base na ancestralidade tem de cumprir uma função social de interesse da sociedade democrática e plural e não meramente gerar um ato público de registro imobiliário. Por sua vez, no caso do Supremo Tribunal Federal, a decisão emblemática sobre a Reserva Raposa Serra do Sol centra atenção no artigo 20, XI, da Constituição Federal de 1988. A terra indígena é reconhecida rasamente como um bem de exclusividade da União, garantida a partir do registro cartorial. A questão da propriedade sobre terras indígenas demanda, antes de mais nada, a ouvida das pessoas que mantêm seus projetos de vida sobre essas terras e o reconhecimento de que o direito interno brasileiro e seus órgãos jurisdicionais, sem o apoio da Corte Interamericana de Direitos Humanos e sem essa ouvida, não têm suporte básico necessário para decidir com legitimidade sobre o direito de propriedade de terras ancestrais.

Notas: 1 - Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacaotematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/ violacao-dos-direitos-dos-povos-indigenas-e-registromilitar/relatorio-figueiredo. Acesso em 27 de março de 2019. 2 - Disponível em: https://cadernosdoceas.ucsal.br/index. php/cadernosdoceas/article/view/417. Acesso em 27 de março de 2019. 3 - MASCAREÑO, Aldo. Diferenciación, inclusión/ exclusión y coesión en la sociedad moderna. Revista CIS un Techo para Chile, Vo.17, 2014. Disponível em: http://www.techo.org/paises/chile/ wp-content/uploads/2014/07/Mascare%C3%B1oDiferenciaci%C3%B3n-inclusi%C3%B3nexclusi%C3%B3n-y-cohesi%C3%B3n-en-la-sociedadmoderna.pdf. Luis Emanuel Borba da Cunha é advogado, professor universitário e consultor em Direitos Humanos.


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Opinião À brinca ou à vera? Por Joca Souza Leão

Antes de começar o jogo, a gente declarava se era à brinca ou à vera. À brinca, na brincadeira. Quem vencia ganhava a partida. E só. Já à vera, de verdade, quem ganhava ficava com a bolinha de gude de quem perdia. No jogo político que taí, também tem à brinca e à vera. Difícil é saber qual é o quê. Eles tentam nos fazer crer qu’é tudo à vera. Mas muita coisa é à brinca. Só pra desviar a atenção. “Menino veste azul e menina veste rosa.” À brinca ou à vera? Pelo ridículo da proposta, à brinca. Mas, enquanto a mídia e as pessoas se distraem com a palhaçada, o que é à vera mesmo, de verdade, já está rolando em outras áreas. “Escola sem partido.” Pelo apelido que deram, parece à brinca. Mas não é. “Escola sem política” é o que é. E é à vera. Política se aprende na escola, sim! Democracias, ditaduras, doutrinas, regimes, constituições, estadistas, déspotas, direitos, obrigações, referências históricas e contemporâneas, daqui e d’alhures. É assim que países decentes e democráticos formam cidadãos em salas de aula. Países que conquistaram estágios civilizatórios dignos e decorosos. Distribuição de renda, educação, saúde, segurança, habitação, transporte, saneamento, preser vação ambiental e justiça equânime para todos. Escola que não ensina política forma cidadãos submissos, resignados e passivos. E essa, por certo, é a matriz ideológica do jogo à vera que tá sendo jogado. Formar cidadãos que não

reivindiquem porque não sabem o quê; não exijam seus direitos porque não sabem quais. E louvem a vida miserável que têm (e seus filhos e netos terão) porque lhes foi ensinado que Deus quis fazer o mundo assim, injusto. (Não sou cristão, mas sei que não foi isso que Cristo pregou em nome de Deus.) Em política, à brinca tem nome: diversionismo. E não é brincadeira. É jogo pesado. A meta é desviar o foco do que realmente importa. Teste sua capacidade em discernir o que é à brinca e o que é à vera, caro leitor. O colombiano da Educação quis enquadrar as crianças das escolas brasileiras. Bandeira e hino perfilados. Continências ao final? Fardamentos e bibicos militares? “Sorriam! Vocês estão sendo filmados”. P.S. O MEC recebeu milhares de vídeos. Não com a farsa pretendida. Mas exibindo a penúria em que as escolas se encontram. O colombiano recuou. A “ordem unida” gorou. Virou à brinca.

Joca Souza Leão é cronista e escritor. Email: jocasouzaleao@gmail.com Esta crônica foi publicada no Jornal do Commercio no dia 30 de março de 2019.


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