Revista Jornalismo e Cidadania Nº 21/2018

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1 Jornalismo Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE | ISSN 2526-2440 | e cidadania Jornalismo conectado Comunicação na Web Educação Chinesa OPINIÁO E mais... nº 21 | MARÇO 2018

JORNALISMO E CIDADANIA

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Articulistas |

PROSA REAL

Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE

MÍDIA ALTERNATIVA

Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE

NO BALANÇO DA REDE

Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

JORNALISMO E POLÍTICA

Laís Ferreira

Mestre em comunicação

JORNALISMO AMBIENTAL

Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

PODER PLURAL

Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI

CIDADANIA EM REDE

Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE

JORNALISMO INDEPENDENTE

Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE

MÍDIA FORA DO ARMÁRIO

Rui Caeiro

mestre em Comunicação UFPE

MUDE O CANAL

Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

Colaboradores |

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Luiz Lorenzo

Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE

Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

Auríbio Farias Conceição

Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas  da UFPB

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NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva Índice Editorial Prosa Real Comunicação na Web Jornalismo Independente Jornalismo Ambiental Opinião | Marcos Costa Lima Opinião | Mariana Yante Opinião | Rubens Pinto Lyra Opinião | Pedro de Souza Opinião | Rômulo Almeida Opinião | Camilo Soares | 3 | 4 | 6 | 8 | 10 | 14 | 16 | 18 | 20 | 24 | 26 Arte da Capa: Designed by Freepik.com Acesse: facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania
Internacional | Marcos
Lima Pós-Graduação
Revisão |
Ferreira Mestre
COMUNICAÇÃO
Editor
Costa
em Ciência Política/UFPE
Laís
em Comunicação

Editorial

Por Heitor Rocha

ARevista Jornalismo e Cidadania nº 21 oferece uma série de artigos sobre acontecimentos nacionais e internacionais relevantes para compreensão da nossa contemporaneidade. Neste contexto está inserido o artigo do professor Camilo Soares aplicando conceitos do cineasta Pier Paolo Pasolini para compreensão dos bárbaros assassinatos políticos de Marielle Franco e Anderson como uma persistência da herança fascista da ditadura militar, entre outras evidências da onda de obscurantismo e intolerância que atinge o país, a exemplo do genocídio de jovens negros nas periferias das metrópoles. Segundo ele, o recrudescimento desse “neofascismo” não é particularidade brasileira, pois atinge inúmeros outros países como a Itália de Berlusconi e os Estados Unidos de Donald Trump. Assim, considera que esta crise revela o apodrecimento cultural da sociedade moderna, “uma aculturação erguida em torno da ideia de progresso econômico e material, impondo um padrão moral mais preocupado em atacar minorias do que lutar contra a corrupção que sustenta tal modelo de desenvolvimento.”

A investida autoritária sobre a universidade pública no Brasil é objeto do artigo de Rubens Pinto Lyra “Torquemada redivivo: a liberdade acadêmica posta em cheque”, que compara o momento nacional ao do grande inquisidor espanhol. Para ele, ao contrário da defesa da autonomia universitária e da liberdade de cátedra, o então ministro da Educação Mendonça Filho acionou a AGU, TCU, a Controladoria Geral da União e a Procuradoria Geral da União para apurar possível improbidade administrativa de professores que ofereceram curso sobre o recente golpe perpetrado contra a República no Brasil. “Todos os democratas – ponderou o professor Rubens Pinto Lyra - têm obrigação de defender o direito de integrantes da Academia de atuarem de acordo com suas convicções político-ideológicas. O único limite é o respeito à lei: não é lícito o ensino servir de instrumento a pessoas ou grupos para a violarem ou promoverem o seu descumprimento. Não se pode fazer nenhuma restrição à liberdade de pensamento e de opinião os quais, nas instituições universitárias, têm um nome: liberdade de cátedra”.

O alto interesse que a imigração europeia e sua importância na formação do campesinato brasileiro tem para os estudos acadêmicos no País, evidenciado no grande número de teses sobre o assunto, é analisado por Rômulo Almeida, que observa as dificuldades enfrentadas pelos novos imigrantes para se radicar no

País, especialmente por parte dos latifundiários que, na época, ainda mantinham o trabalho escravo legal. Por fim, o mestre em sociologia chama a atenção para complexidade da importância do campesinato que não é compreendida pela visão do agrobusiness, que tem “os camponeses, imigrantes ou não, de um ponto de vista meramente “modernizador”, gerando o desconhecimento da diversidade de condições de integração da força de trabalho. Essas visões preconceituosas não reconheciam o papel econômico e político desses agentes produtivos na constituição e na reprodução da sociedade brasileira na sua luta por melhores condições de vida”.

O desafio científico assumido pelos pesquisadores nordestinos e de outras regiões na Rede Ecolume, realizando estudos em busca da soberania energética, alimentar e hídrica no Sertão, é o tema do texto de Robério Coutinho. A Rede Ecolume é um consórcio de pesquisadores de várias instituições nacionais e estaduais de pesquisa e de tecnologia, constituído como o mais novo laboratório em atividade no Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), para investigar as questões das mudanças do clima e a vegetação regional numa perspectiva socioeconômica e ambiental. Estes cientistas asseguram que “plantar água” é um dos benefícios possíveis deste trabalho.

A violência de gênero na educação chinesa é abordada por Mariana Yante, que observa que está tendência tem sido agravada pelo fim da política do filho único, com o objetivo de resolver algumas questões relativas ao déficit demográfico previsto para breve, com consequências específicas para as mulheres. Segundo a pesquisadora, esta política representa uma tentativa de recuperar os papeis femininos de mãe e esposa através de ações na área educacional. Como exemplo deste estímulo para que as mulheres priorizem a seara doméstica e se dediquem à maternidade e à família, com repercussões na formação das crianças e jovens, Mariana Yante cita que escolas de bons modos apenas para garotas ganharam espaço e se somam a outras medidas legais e políticas públicas que sutilmente transmitem essa mensagem.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto

Cronograma editorial do livro-reportagem envolve processo criterioso

Opublisher da editora Companhia das Letras, Otávio Costa, explica, em entrevista para o autor desta coluna, que o cronograma típico de um grande projeto de não ficção hoje normalmente nasce muito antes de haver um original produzido. “Ou nós apresentamos uma ideia para algum jornalista, que então se entusiasma e decide escrever um livro a respeito, ou então uma ideia surge numa conversa que nós temos com o autor, ou então o autor nos apresenta uma ideia que vai sendo modificada”. A partir desse contato preliminar, no qual nasce o esboço do tema central de um livro-reportagem, o jornalista, segundo esclarece Otávio Costa, é convocado a produzir um projeto detalhado, esboçando em vários aspectos o que pretende com a sua obra. “O autor apresenta um projeto escrito, longo, alentado, detalhado, que contém sumário, introdução e, muitas vezes, até uma tentativa de escrita de capítulo. Chega a ter 20, 30 páginas e serve de parâmetro do que vai ser o livro”. Um projeto como esse deve conter uma justificativa da força do tema ou do personagem central. Não podem faltar, também, uma projeção de “quais serão as fontes, como se pretende estruturar o livro, o que incluir, o tempo que eu vou levar, se posso prever um prazo de entrega”. Aceito o projeto, a Companhia das Letras apresenta uma proposta financeira, como detalha Otávio Costa. “E daí se assina um contrato pelo qual se prevê um adiantamento de direitos autorais. E hoje em dia, mais do que tudo, também uma verba de pesquisa”. Como o jornalista terá que fazer muitas viagens pelo país ou para o exterior para realizar entrevistas e devassar documentos, a editora considera interessante “prever uma pequena verba além do advanced para pagar viagens do autor e con -

tratação de assistentes de pesquisa”. Quando finalmente o jornalista acredita que seu livro está pronto para a edição, tem início um processo de dois a três meses de pós-produção. Primeiro com o editor, que consolida seus comentários gerais e chega a um acordo com o escritor sobre a forma final do livro. Na sequência, entra em ação um personagem im -

portante nas editoras de hoje, o fact checker, ou checador de fatos. “É alguém que tem por atribuição checar nomes próprios, datas, veracidade de informações, fidedignidade de fontes. Então é um chato, ali, que fica pegando os problemas, procurando cabelo em ovo”, esclarece o editor Otávio Costa. A obra ainda passa pelo olhar criterioso de quatro pessoas diferentes que vasculham o livro em busca de equívocos relacionados à língua portuguesa.

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Autor do mês: Eduardo Bueno

O jornalista gaúcho Eduardo Bueno é quem mais aparece na lista de mais vendidos organizada pelo pesquisador Eriberto Catalão (2010), que levou em conta uma linha histórica de 1966 a 2004. Bueno consolidou a tendência do olhar jornalístico sobre a história com livros de reconstituição, como A viagem do descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral (1998, 2º lugar na lista, 24 meses entre os mais vendidos). Manteve a fórmula em Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições do Brasil – 15001531 (1998, 6° lugar, 15 meses) e em Capitães do Brasil (1999, 12º lugar, 12 meses), no qual trata das desventuras dos primeiros representantes da coroa portuguesa, responsáveis por colonizar o território, e em Brasil: uma história – a incrível saga de um país (2003, 17º lugar, 10 meses). História do Brasil apresentada de forma clara e simples, com fartas ilustrações em edições cuidadosas em termos estéticos e muitas vezes pelo viés dos seus aspectos mais pitorescos, o que desperta críticas dos pesquisadores acadêmicos ortodoxos. Eduardo Bueno voltou à ativa em 2010 e o seu Brasil: uma história teve 5.070 compradores segundo o site Publishnews.

Iluminando conceitos: Charaudeau e os princípios para um jornalismo democrático

Tomando por base que o ato da linguagem é intersubjetivo ou marcado por uma cointencionalidade, Charaudeau (2015, p. 72) frisa que a comunicação midiática envolve instâncias de produção e de recepção. Em um “contrato de comunicação” com o público, o papel de um jornal (e, por que não, do livro reportagem?) seria o de “fazer saber” e propulsionar o “desejo de consumir as informações”. Mas não se trata de uma simples transmissão de saberes, e sim de “confrontar com os acontecimentos que se produzem no mundo ou inteirar-se de sua existência, e de construir, a esse respeito, um certo saber” que, ainda assim, tem que se encaixar nas representações imaginadas sobre o seu público. Muitas vezes os leitores não coincidem com tais mapas de significado, “não se deixando atrair nem seduzir com facilidade, seguindo o seu próprio movimento de ideias”. Para conservar sua credibilidade e legitimidade em um cenário democrático e diante de uma aguda crise de sentidos, os produtores da mídia, segundo

Charaudeau (2015, p. 276), deveriam se esforçar por ter por base os princípios da modéstia e da coragem. Os agentes, como, por exemplo, os jornalistas autores de livros-reportagem, poderiam assumir que lançam mão de uma linguagem fragmentária e que não podem pretender a transparência. Não se posicionar como transmissores de notícias “que se apagam diante do mundo percebido”, ou “simples escrivães que registram”, ou um “espelho fiel dos fatos”, assumindo a construção de uma “realidade do mundo social” como “representação imaginada”, mas ter coragem de propor uma “inventividade”, ou seja, “encontrar fórmulas de tratamento da informação que não satisfaçam nem à ilusão de autenticidade dos fatos, nem à pretensão de querer revelar tudo, nem a corrida à emoção”.

Referências:

BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

________. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições do Brasil – 1500-1531. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

________. Capitães do Brasil: a saga dos primeiros colonizadores. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

________. Brasil: uma história – a incrível saga de um país. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

CATALÃO Jr., Antônio Heriberto. Jornalismo best-seller: o livro-reportagem no Brasil contemporâneo. Araraquara, 2010. 252 f. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

COSTA, Otávio [18/09/2016]. Entrevistador: Alexandre Zarate Maciel. São Paulo: sede da editora Companhia das Letras. 1 arquivo .mp3 (1h).

Elaborada pelo professor doutor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Comunicação na Web

Jornalismo, Sociedade e Internet

Redações, jornalistas e notícias no cenário digital conectado

Aweb tem mudado a organização das redações jornalísticas nos quesitos técnico, com o uso de modernos equipamentos digitais, e humano, com a presença de profissionais jornalistas e não jornalistas. Este cenário renova também as rotinas produtivas e a própria notícia, numa perspectiva condizente com as principais características da internet, tais como tempo real, liberdade espacial, hipertextualidade, multimidialidade e interatividade.

As redações contemporâneas estão mais aparelhadas com dispositivos capazes de produzir e difundir conteúdos com efetividade e rapidez. São utilizados desde smartphones até potentes computadores para elaboração de produtos multimidiáticos. Em relação aos softwares, são cada vez mais comuns os programas e aplicativos de gravação e edição audiovisual, de

animação gráfica, de manuseio fotográfico e de atualização de portais. Tudo isso conectado à internet. Alves (2017) relata experiências em que o jornalista é substituído por robôs para escrever notícias –geralmente ricas em dados, que são articulados com mais facilidade por robôs ou aplicativos. Ele menciona o teste realizado pelo programa “Planet Money”, da rádio pública dos Estados Unidos NPR. Na ocasião, um jornalista e um computador disputaram quem escrevia um texto mais rápido. A vitória foi da máquina, que concluiu o material em dois minutos, contra os sete minutos do ser humano. No entanto, uma enquete com o público no site do programa revelou que a matéria feita pelo jornalista foi considerada melhor do que aquela elaborada pelo robô.

Para além dos dispositivos técnicos, Canavilhas (2017) aponta a emergência dos “tecnoatores” nas redações, que o autor define como os profissionais não jornalistas hoje fundamentais às atividades de produção noticiosa, a exemplo de pessoas com formação na área de informática, designers e gestores de redes sociais. Eles trazem pontos de vista diferentes na condução da atividade jornalística, de acordo com a área de formação: o profissional de informática busca um

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carregamento mais rápido dos produtos; o designer importa-se com a forma de apresentação da notícia; e o jornalista preocupa-se com o conteúdo das matérias.

Um ponto interessante da pesquisa liderada por Canavilhas (2017) diz respeito à influência que o gestor de redes pode ter na agenda midiática. Isso porque esse profissional pode indicar pautas a partir de gráficos que identificam os principais assuntos em debate na internet, dando a um não jornalista uma tarefa tradicionalmente atribuída a um jornalista. De qualquer maneira, nem essa nem outras ações dos “tecnoatores” retiram do jornalista o papel central na redação.

“A grande conclusão é que existem dois mundos nas redações: o dos jornalistas e o dos tecnoatores. São, definitivamente, duas culturas que olham a realidade em perspectivas diferentes mas têm um objetivo comum: responder as expectativas do usuário. Isso é fundamental para a empresa onde trabalham porque, embora por caminhos diferentes, eles procuram chegar exatamente ao mesmo objetivo” (CANAVILHAS, 2017, p. 31).

O pesquisador também aborda a formação do jornalista contemporâneo multiplataforma e multimídia. “Os novos profissionais não podem ficar agarrados à divisão tradicional do jornalismo em imprensa escrita, rádio e televisão, mas estar preparados para trabalhar em qualquer meio. Isso significa dominar diferentes linguagens, o que não tem nada a ver com tecnologia. Trabalhar com a tecnologia é a coisa mais simples. Há manuais, é só lê-los. Pode demorar mais ou menos tempo, mas acabamos por perceber como fazer. Quando falo nessa questão das multiplataformas, falo, na verdade, da necessidade de trabalhar a linguagem jornalística adaptada a cada dispositivo de recepção” (CANAVILHAS, 2017, p. 27).

Ainda sobre a formação, Canavilhas (2017) sugere que o jornalista se prepare para trabalhar em ambientes on-line. Assim, saberá integrar o usuário ao processo de produção da notícia – no papel de fonte, por exemplo – e estará apto a assumir novas funções – como moderador de espaços interativos e gestor de conteúdos informativos. É importante frisar, no entanto, que a formação multifacetada não deve sobrecarregar o jornalista e consequentemente fragilizar o seu trabalho. O perfil multitarefa deve ser visto como uma releitura da atividade profissional focada em acompanhar demandas atualizadas pela união entre tecnologia e sociedade, visando a uma melhor qualidade.

Esta conjuntura transcende a organização das redações e modifica também a forma de fazer, apresentar e distribuir a notícia. A convergência midiática, amplificada pela digitalização e pela internet, integra plataformas e linguagens, formatando produtos mais

completos aos sentidos do público. A estruturação textual via hiperlinks permite uma fruição não linear e personalizada. E a emissão multidirecional torna possível a descentralização e valoriza a coletividade.

Canavilhas (2017) ressalta a necessidade de o jornalismo saber trabalhar o conteúdo multimídia para uma geração que nasceu neste ambiente e que desenvolve diversas atividades ao mesmo tempo. Ele também destaca a importância da contextualização da notícia como forma de aproveitar as potencialidades dos dispositivos de recepção e, assim, aprofundar as informações, com resultados mais efetivos junto ao público. Vale lembrar que a contextualização é uma característica diretamente ligada à qualidade noticiosa independentemente da plataforma utilizada.

Uma outra habilidade a ser lapidada no ambiente digital diz respeito ao manejo dos dados disponibilizados na internet, algo que os computadores e softwares fazem com destreza. Os atos de coletar, colecionar e processar dados são essenciais para ampliar o poder de alcance da informação, inclusive com ganhos para a contextualização. “O uso de dados é o que está por trás do sucesso de Google, de Facebook etc. Como usar algoritmos para conhecer melhor o leitor, para chegar melhor ao leitor. O negócio é matemática, é o casamento do jornalismo com a ciência da computação. Obviamente virão muitas outras coisas por aí que terão um impacto cada vez maior” (ALVES, 2017, p. 41, 42).

Adequar as redações, os profissionais e as rotinas de trabalho ao ambiente digital on-line tem se mostrado relevante para manter a profissionalização e a credibilidade do jornalismo. Além disso, a atualização dessas práticas sustenta o caráter social e evolutivo que alicerça o jornalismo como atividade de interesse público.

Referências:

ALVES, Rosental Calmon. Performance em Ciberjornalismo: tecnologia, inovação e eficiência. IN: MARTINS, Gerson Luiz; REINO, Lucas Santiago Arraes; BUENO, Thaísa (Orgs). Performance em Ciberjornalismo. Tecnologia, inovação e eficiência. Campo Grande: Editora UFMS, 2017.

CANAVILHAS, João. Novos atores na redação: como muda o jornalismo? IN: MARTINS, Gerson Luiz; REINO, Lucas Santiago Arraes; BUENO, Thaísa (Orgs). Performance em Ciberjornalismo. Tecnologia, inovação e eficiência. Campo Grande: Editora UFMS, 2017.

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).

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Jornalismo Independente

Jornalismo e financiamento coletivo

Biodança no SUS

Incluída na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Ministério da Saúde, em 2017, a biodança tem mostrado ser uma excelente aliada na promoção da saúde humana. Ela atua na diminuição de crises de transtornos mentais e controle de doenças - a exemplo de diabetes e hipertensão arterial -, na prevenção de diversas patologias e na melhoria da qualidade de vida, uma vez que potencializa os aspectos ainda saudáveis das pessoas que a praticam.

Definida como um sistema de aceleração de processos integrativos a nível celular, metabólico, neuroendócrino, imunológico e existencial, a biodança – dança da vida – faz uso de música, carícias, comunicação e movimentos corporais que possibilitam a conexão com o corpo. No início da vivência, ou seja, da experiência formatada sempre em grupo e facilitada por um pro-

fissional capacitado, os participantes são estimulados a falar sobre as sensações sentidas na semana anterior. A psicóloga especialista em Saúde Coletiva, facilitadora de biodança e terapia comunitária Luciana Castro considera essa prática um processo de grupo com efeitos terapêuticos e enfatiza serem inúmeros os seus benefícios, entre os quais: “aumento da energia vital e disposição para a ação; resistência ao estresse; estímulo ao processo de autoconhecimento; melhoria da autoestima; capacidade de substituir sintomas depressivos por novas motivações para a vida; melhoria da capacidade de comunicação e estabelecimento de vínculos afetivos mais saudáveis; regulação do sono e da pressão arterial; além do impulso à criatividade e aumento da resposta imunológica”. A facilitadora ressalta, no entanto, que para sentir os efeitos de forma mais ampliada é necessária a frequência regular de, pelo menos, um ano.

A biodança age em cinco áreas já existentes no ser humano, chamadas também de potenciais de vida: vitalidade, sexualidade, afetividade, criatividade e trans-

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cendência. Ela foi criada pelo psicólogo e antropólogo chileno Rolando Toro, na década 1960, quando o mesmo trabalhava em um hospital psiquiátrico público do Chile.

De acordo com Luciana, que tem uma trajetória na área da ação social, em comunidades do Recife, o criador da biodança considerava importante a ampliação do acesso aos menos favorecidos, não apenas em termos financeiros, mas no sentido afetivo. “Toro ressaltava a relevância da humanidade, da generosidade, do resgate da amorosidade, da compaixão e da solidariedade em detrimento desse mundo que estimula o conflito, a guerra e a falta de cuidado com a natureza”, acrescentou.

A partir da disseminação dessas práticas, o acesso tem sido possível às pessoas das mais diversas classes econômicas. No Recife, por exemplo, é possível participar de grupos de biodança pelo SUS no Engenho do Meio, no Serviço Integrado de Saúde (SIS), e nos bairros do Cordeiro e Alto de Santa Terezinha, no Compaz.

A usuária do SIS, Adriana Souto, conta que conheceu a biodança após ser diagnosticada com a síndrome da fibromialgia, a qual ocasionava dores fortes por todo o seu corpo. “Eu recorri a medicina convencional e o tratamento era tomar ansiolítico e antidepressivo. Então, eu comecei a procurar outras atividades que, pelo menos, aliviassem as dores. A princípio, eu iniciei meu processo em outras práticas do SIS e passei a observar que o pessoal que saía de biodança estava muito feliz e sorridente. Logo, resolvi participar também. Após cada vivência, eu estava sem dor, com vontade de viver, alegre e, progressivamente, fui sentindo melhoras consideráveis, não apenas físicas, mas no meu jeito de conduzir a vida. Além de mim, meu pai tinha uma depressão profunda e crônica, há anos, e eu o convidei para fazer a biodança. Ele aceitou o convite, vem fazendo e a resposta tem sido rápida e, continuamente, está cada vez melhor”. Adriana relata que está fazendo a formação de facilitadores dessa prática.

No entanto, apesar dos vários benefícios citados, há ainda um longo caminho a ser percorrido. É preciso sensibilizar mais gestores para que a oferta seja maior e para que haja um reconhecimento e valorização dos profissionais que atuam nessa área, pois apesar dessa prática ter sido incluída na PNPIC, estados e municípios decidem as normativas sobre como será desenhada a política local. Castro acredita que agora, com a implementação da biodança no SUS, é possível que sejam alcançados alguns avanços positivos. Ela argumenta que há uma grande aceitação e interesse por parte das pessoas e falta, em alguns espaços, infraestrutura ao citar o exemplo do SIS. “São dois grupos no SIS, o da quarta e o da sexta, com aproximadamente 50 e 25 pessoas, respectivamente. No Compaz não é diferente, eu estou com um grupo de 35 pessoas; e no Compaz Alto de Santa Teresinha, uma média de 15 a 20 pessoas”.

Luciana Castro enfatizou que, não apenas é importante sensibilizar gestores e governantes, bem como, os próprios profissionais da área da saúde. Ela ressalta que práticas como as implementadas pelo SUS devem ser facilitadas por profissionais de saúde: psicólogo, biomédico, fisioterapeuta, educador físico, médico, entre outros. Esses profissionais, segundo ela, precisam estar mais sensíveis à política, pois o atual modelo médico não resolve, de forma integrativa, os problemas físicos e emocionais das pessoas. “A gente precisa continuar sensibilizando para dar continuidade, ampliar e fortalecer esse trabalho, para que mais pessoas tenham acesso e possam se corresponsabilizar também, porque existe uma relação de dependência, uma relação de poder. A fala do médico é considerada a única certa. Sendo que a pessoa é corresponsável também pela própria saúde, pela prevenção e pela promoção da própria saúde. Essa é uma grande ideia que a gente estabelece dentro da Política de Práticas Integrativas, dando autonomia para a pessoa se cuidar e se responsabilizar pela própria saúde”.

A biodança entre outras práticas podem ser encontradas de maneira gratuita e integrada em diversos municípios brasileiros, pois são frutos da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares implantada pelo governo federal em 2006 e ampliada em 2017 e 2018. Ao todo, são 29 recursos terapêuticos implementados pelo Governo Federal.

As PICs foram reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde e, em paralelo, uma nova cultura de cuidados para com a saúde tem surgido no Brasil. “A OMS convida a gente a agir de maneira preventiva e trabalhar em prol de práticas que possam atuar nos determinantes sociais da saúde. Além disso, estimula o incentivo a atividades associativas para que as pessoas diminuam o isolamento e promovam a capacidade de enfrentar os problemas do dia a dia, bem como estabelecer boas relações sociais, boas amizades e rede de apoio solidários. Por fim, nos encoraja a apoiar ações que favoreçam o sentimento de pertencimento. Nesse sentido, a biodança atua de forma direta, quanto mais participação e pertencimento, mais valorização de si e das relações afetivas; e tudo isso promove saúde, diminui doenças e crises”, finalizou Luciana Castro.

Karolina Calado é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta coluna, proponho uma discussão acerca das questões que envolvem a economia política dos meios de comunicação, especialmente a partir da internet e dos modelos de financiamento coletivo.

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Jornalismo Ambiental

Sociedade, natureza e mudanças climáticas

Por Robério Daniel da Silva Coutinho

É possível ‘Plantar água’?

Com o sol e a Caatinga é sim!

Envolvidos na rede chamada de Ecolume, pesquisadores nordestinos e de outras regiões brasileiras decidiram assumir o desafio científico de realizar estudos e ações de campo na busca de uma simultânea e sinérgica soberania energética, alimentar e hídrica diante do contexto de vulnerabilidades e oportunidades em uma região que já está se tornando árida, como no caso do Sertão local, e que se acentuam frente aos efeitos da mudança do clima. Na região, o índice pluviométrico é historicamente baixo, com solos secos, já possuindo diversas áreas já desertificadas e outras mais em processo. Ainda assim, o grupo decidiu que vai ‘plantar água’.

O desafio foi encarado por um consórcio de pesquisadores de várias instituições nacionais e estaduais de pesquisa e de tecnologia, liderado pelo mais novo laboratório em atividade no Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), voltado para as questões das mudanças do clima e a vegetação regional numa perspectiva socioeconômica e ambiental. Em até três anos, no Sertão do Moxotó, contarão inclusive com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No local, receberão a ajuda da unidade educacional do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), que possui uma escola na cidade de Ibimirim.

O aparente problema é uma oportunidade, como afirma a coordenadora técnica do laboratório do IPA, Francis Lacerda, responsável pelo projeto. Para as adversidades se tornarem benéficas à sociedade e à natureza, em especial na região semiárida onde a vegetação nativa

da Caatinga já é adaptada ao clima local, a pesquisadora explica que é necessário existir um outro tipo de racionalização sobre a potencialidade energética do sol e de forma integrada com uso racional da água atenta ao solo e ao clima em sintonia com os cenários de mudanças climáticas. Lacerda, que é doutora em Recursos Hídricos e climatologista do IPA há 26 anos, diz que “plantar água” é um desses benefícios possíveis. Ela fala em plantar água metaforicamente, a fim de dar sentido material e objetivo a um processo complexo entre solo, água, vegetação, clima e sobretudo o “comportamento humano”- seu estilo de vida. “Nos últimos 300 anos, o humano tem destruído o seu habitat de forma sistemática. Ele desmata, emite poluentes e promove mais maneiras de degradações ambientais”, diz a pesquisadora, frisando que tais questões predatórias foram as causadoras do advento das alterações do clima no planeta.

Quando essas questões são pensadas de forma integrada e sistêmica, considerando ainda a farta matriz energética solar, hoje só discretamente utilizada com tal objetivo racional, a climatologista garante que é possível “plantar água”. Para isso, deve-se focar também no reflorestamento das plantas da Caatinga (recaatingamento), as quais têm grande potencial alimentar e fim econômico, oportunidades estas também perseguidas pela Rede Ecolume.

O grupo é formado pelo IPA, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Instituto Nacional do Semiárido (Insa), Instituto Federal do Sertão e também pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).

O recaatingamento de plantas nativas, adaptadas há séculos ao clima semiárido e ao solo seco do local, a exemplo

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do umbu, o qual está em processo de extinção diante da falta de informação às populações sobre seus benefícios, mesmo tendo grande potencial alimentar e, inclusive, para os negócios locais através do seu aproveitamento econômico até com atrativos farmacêuticos, pois suas árvores continuam sendo cortadas largamente. O desmatamento da vegetação tem inclusive ampliado o processo de desertificação na região, trazendo prejuízo para o solo e os recursos hídricos. Sem vegetação, eleva-se também a temperatura, com consequências diretas para as populações.

Já com o reflorestamento, com algumas oportunidades já expostas, acaba-se por auxiliar na manutenção da umidade do solo, o que também contribui para a regulação do microclima local, fundamental para a redução do calor com efeitos no ciclo pluviométrico e na retenção da água no solo. Portanto, ao se plantar uma vegetação nativa, é como se estivesse plantando água e outros benefícios socioeconômicos e ambientais. Portanto, a valorização da Caatinga, em princípio, por conta dos desafios postos pelas mudanças climáticas, acaba potencializando o cenário de oportunidades, mas somente quando observadas através de um novo paradigma voltado para a soberania hídrica, alimentar e energética.

Os pesquisadores e colaboradores farão seus experimentos no Sertão, na unidade do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), em Ibimirim, local onde já vem acumulando expertise em sintonia com o projeto. Ademais, o Ecolume continua crescendo. E já vislumbra uma parceria internacional com a Universidade de Oxford, pois a Rede busca consolidar também outro projeto correlato com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.

Desde janeiro, os trabalhos começaram. Já há duas frentes de atuação, ambas voltadas à pesquisa e ações práticas quanto ao reflorestamento do umbu. Parte dos 120 alunos do Serta criaram um grupo chamado Guardiões da Caatinga e estão coletando mudas de plantas da região, e cada um em suas casas está montando os seus viveiros “abertos”. Os estudantes são de cidades da região. Em outra frente, há uma parceria com o setor de Germoplasma do IPA, que tem o banco de plantas

nativas geneticamente estudadas e suas qualidades descritas. E devem ser entregues mil mudas de umbu para o replantio até o fim do ano. Por outro lado, o Departamento de Bioquímica da UFPE está fazendo o trabalho de prospecção genética da planta para listar as suas potencialidades.

Em relação ao eixo energético com o foco na matriz solar, abundante no Sertão, o Ecolume já vem buscando parcerias com a iniciativa privada, a exemplo da Celpe, Sunew, entre outras startups, a fim de conseguir os painéis fotovoltaicos, mas sobretudo a transferência do conhecimento dessa tecnologia para as comunidades da região sertaneja. Lacerda espera contar com alguns desses parceiros, ou até mesmo com a ajuda do BNDES, que também já foi procurado pela climatologista. Ela é uma das pesquisadoras do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas.

Assim, nos próximos três anos, está lançado pelo Ecolume o desafio de “plantar água”. Neste sentido, todos os seus esforços de estudos, através de pesquisas realizadas em diversas áreas científicas afins, estarão focados com este intuito prático, associando a tecnologia com os setores de educação e comunicação. Tudo isso a fim de demonstrar a viabilidade e potencialidade do projeto diante da necessária adaptação dos arcaicos paradigmas socioeconômico e ambiental - padrões estes que estão e continuam desconexos aos desafios colocados pelas mudanças do clima.

Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.

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Opinião

Segurança Alimentar e as Sistemáticas Contradições do Capitalismo

Um entendimento mais abrangente da crise que hoje fustiga o capitalismo - ilustrado pelo quadro 1 abaixo - evidencia que é incorreto destacar apenas as questões industrial, tecnológica e financeira (1) como capazes e suficientes para estabelecer a sua compreensão global.

O declínio das economias avançadas acontece desde 1973. O ciclo de 2001 até 2007 foi o mais débil desde o pós-Guerra, apesar do maior estímulo econômico público da história dos EUA em tempos de paz. A crise é financeira, dos bancos e dos mercados acionários, mas foi muito além. Houve queda dos investimentos, incapacidade de retomar a taxa de lucros e forte queda dos salários. Houve um excesso de oferta que ficou crítico com o aumento das exportações asiáticas, produzindo mais baratos os mesmos produtos dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, as grandes corporações investem pesado em novas tecnologias, o que gera mais desemprego.

Fonte: Gail Tveberg, https://ourfiniteworld.com/author/ gailtheactuary/ acessado em 23 /o3/2018

O objetivo deste breve artigo é de evidenciar que o setor agrícola global, hoje regulado pelo grande capital, pelas grandes corporações do setor, representa uma imensa e complexa rede e cadeia, que articula o grande varejo como a Cargill (EUA); Tyson Foods (EUA); Green Giant (EUA); Archer Daniels Midland (EUA); Wal Mart (EUA); Tesco (Reino Unido); Ahold (Holanda) e Carrefour (França). O setor de sementes, como Monsanto (26% do mercado mundial); Du Pont Pioneer (18,2%) e

Syngenta (9,2%), mas também o setor produtor de máquinas agrícolas, como a AGCO (EUA); a New Holand(EUA), a Case IH (EUA), a John Deere(2) (EUA), a Lindsey Corporation (EUA), a Kubota (Jap); a CNH (RU); a Mahindra (India) e a Shifung

Segundo François Chesnais (1996) (3), os países centrais, aqueles da Europa Ocidental, os Estados Unidos da América e o Japão, já haviam estabelecido, no final da década de 1970, o mercado mundial, através de suas corporações transnacionais, englobando o setor da indústria de máquinas agrícola; mas são as corporações dos EUA, que através de fusões e aquisições, acabaram conformando o imenso oligopólio no setor, também identificado como “monopólio concentrado e diferenciado”.

O sociólogo McMichael, em um de seus artigos (4), reproduz a questão feita pelo Mahatma Gandhi: “Se o Reino Unido precisou explorar metade do globo para ser o que é hoje, quantos globos a Índia precisaria?”

O fato é que a provocação equivale dizer que o colonialismo ainda continua a moldar a desigual distribuição de recursos e seria um lugar comum substituir os EUA pelo Reino Unido e a China pela Índia.

Quando o Reino Unido implantou a sua “oficina do mundo”, ele dependeu de um experimento radical e sem precedentes que foi a terceirização de sua agricultura para as colônias. Os EUA e a Europa continuam a proteger seus setores agrícolas, dando prosseguimento ao padrão de terceirização, que, pelo visto, está sendo intensificado; à medida em que os custos crescentes das fazendas no hemisfério Norte exigem subsídios vultosos por parte dos estados centrais. Ao mesmo tempo, a reconstrução corporativa das relações de consumo de alimentos substitui cada vez mais as culturas de alimentos tradicionais no Sul global, onde grande parte da população

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rural reside e consome em torno de 60% dos alimentos que produzem. Para 4 bilhões de pessoas excluídas do mercado global acessarem a terra, representaria competir com as pressões das Corporações Multinacionais (CMs) do setor de agrobusiness, incluindo os supermercados globais. O Sul agrário é o núcleo da globalização do setor, mas totalmente dirigido pelas CMs.

Hoje, a exportação de alimentos se transfere para os países de renda média como a China, o Brasil, a Argentina, Tailândia, Indonésia, Malásia e México. Ou seja, as colheitas de proteínas domésticas da Europa foram dizimadas pela importação de soja barata da periferia e de outros grãos, que reforçam a apropriação de terras sob a forma de monocultura extensiva. Como diz o sociólogo de Cornell, “as projeções de lucro e as tecnologias da bioeconomia dependem do acesso à produção externa de biomassa para prover as economias ricas” (5).

Com a evolução da reestruturação agrícola mundial, sobretudo a partir dos anos 1990, a criação de gado, a produção de soja, de óleo e rações foram transferidas para os países de renda média, sendo que as empresas transnacionais passaram a controlar estes setores. As políticas neoliberais passaram a dar prioridade ao comércio internacional e não à produção de alimentos para a população. Verifica-se, portanto, dois regimes de produção, aquele voltado e orientado para e pelas corporações transnacionais, articulado ao grande negócio e às bolsas de valores, e um outro, de base camponesa e familiar, descentralizado e dirigido aos mercados internos. O regime alimentar corporativo acaba por definir uma ampla espoliação dos pequenos proprietários de terras que se transformam em trabalhadores informais das cidades, conformando um imenso exército mundial de reserva no Sul Global.

Daí decorre um quadro assustador explicitado no excelente livro de Mc Michael (2016), onde afirma que em 2005 “70% dos países do Sul Global eram importadores líquidos de produtos alimentares” e explica que “a dependência alimentar foi a contrapartida de um processo de centralização dos estoques globais de alimentos – 60% sob o controle de corporações, seis das quais controlando 80% do comércio global de trigo e arroz e três países produzindo 70% do milho exportado” (Mc Michael, 2016, p.82).

Quatro das corporações do agronegócio de grãos – ADM, Bunge, Cargill e Dreyfuss, também conhecidas como ABCD -, controlam a movimentação da soja brasileira, mas também aquela dos EUA e da Argentina, para a China, que representa a liderança do processo de crédito e insumos ao processamento e expedição.

O Brasil nos anos 1990 duplicou suas exportações de alimentos. Em 2010, o país já havia superado o Canadá, se tornando terceiro maior exportador de produtos agrícolas do mundo. Hoje, apenas Estados Unidos e União Europeia vendem mais alimentos no planeta que os agricultores e pecuaristas brasileiros. Segundo

relatório OCDE-FAO de 2016, o Brasil já é o 2º maior exportador de alimentos do mundo (a relação dos 10 maiores exportadores é a seguinte: EUA, Brasil, China, Canadá, Argentina, Índia, Indonésia, Austrália, Tailândia e Malásia).

Para Mc Michael, o conceito de regime alimentar define uma ordem mundial capitalista dominada, hierarquizada e estruturada sobre a produção e o consumo de alimentos em escala mundial. É um regime que diz respeito à projeção de poder político e econômico do capitalismo mundial, que organiza a produção agrícola reduzindo os custos salariais e aumentando a lucratividade e estabelecendo o abastecimento com preço mundial administrado. Nesta direção, o papel dos estados nacionais que são grandes aliados e capturados pelo grande capital, ao ampliar a lucratividade dos grandes grupos nacionais e internacionais, seja pelos imensos subsídios, pelo descaso com a legislação ambiental e com as condições de trabalho no campo, além da invisibilidade de grandes aquisições de terras por estrangeiros no Sul global.

A segurança alimentar, portanto, é uma ampla reflexão política que nos apresenta a possibilidade de alterar as regras do jogo exercido pelo grande capital agrícola, que destrói, como nos ensinou Polanyi, o meio ambiente e a natureza humana, e que faz com que uma boa parte da humanidade sofra de fome, de insegurança, de precarização ou mesmo da possibilidade de usufruir dos frutos de seu trabalho.

Notas

1 Costa Lima, Marcos (2008), “As mutações da Mundialização ou quando o capitalismo financeiro direciona o capitalismo cognitivo: desafios para a América Latina”. In: Costa Lima, Marcos (Org.), Dinâmica do Capitalismo Pós-Guerra Fria, São Paulo: Editora Unesp, 167:209.

2 Silva, Rodrigo Peixoto da (2015), A Indústria de Máquinas Agrícolas: formação de oligopólio internacional e poder de mercado. Dissertação defendida na USP – Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiróz”, Piracicaba.

3 Chesnais, François (1996), A Mundialização do Capital. São Paulo: Editora Xamã.

4 McMichael, Philip (2007), Globalization and the Agrarian World. Published in George Ritzer, ed, The Blackwell Companion to Globalization.

5 Mc Michael, Philipe (2016), Regimes Alimentares e questões agrárias. São Paulo, R.G do Sul: editora Unesp/Editora UFRGS, p. 164.

Marcos Costa Lima é professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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Opinião

A violência de gênero na educação chinesa

Ofim da política do filho único na China, com o objetivo de resolver algumas questões relacionadas ao déficit demográfico que o país sofrerá em breve, vem tendo consequências específicas para as mulheres. O foco que gostaríamos de dar no momento diz respeito à tentativa de recuperar os papeis femininos de mãe e esposa e como isso tem se relacionado à educação. Em outras palavras, esse estímulo a que as mulheres priorizem a seara doméstica e que se dediquem à maternidade e à família vem tendo repercussões na formação das crianças e jovens, na medida em que, no país, as escolas de bons modos apenas para garotas ganharam espaço e se somam a outras medidas legais e políticas públicas que sutilmente transmitem essa mensagem.

A ideia de dar suporte a espaços institucionais nos quais valores tradicionais relacionados às “virtudes” femininas são reforçados não é exclusiva à China. No Brasil, algumas franquias privadas, como a Escola de Princesas, em Minas Gerais e São Paulo, sob o logo de que “o sonho de toda menina é tornar-se uma princesa”, também visam a fortalecer “habilidades” que seriam intrínsecas às mulheres. Na escola, cursos de curta duração sobre estética (maquiagem e arrumação de cabelo) e etiqueta são combinados a classes de culinária e organização da casa.

Na China, algumas controvérsias recentes relativas a práticas em escolas para meninas movimentaram as redes de notícias no país. As aulas de educação moral e cívica existem como parte do currículo escolar primário e secundário regular no país, introduzida em 2001 como um dos quatro pilares da reforma educacional chinesa. No entanto, existe um aporte próprio adotado para as garotas em algumas escolas que são exclusivas para elas. No início do último mês de dezembro, a notícia de que aulas de castidade ministradas apenas para garotas na província de Liaoning, nordeste da China, finalmente iriam ser banidas foi recebida com surpresa por parte da comunidade internacional que sequer conhecia sua existência.

De acordo com a notícia reportada pela mídia doméstica, as autoridades em Fushun, cidade a aproximadamente 45 km da capital Shenyang, anunciaram que a aula “tem alguns problemas com a moral social”, assinalando que haviam sido iniciadas sem autorização. As aulas eram oferecidas pela Fushun Traditional Cultural Research Association – uma associação criada desde 2011 e devidamente aprovada

pelo bureau de assuntos civis de Fushun. No entanto, as primeiras investigações oficiais deram conta de que o curso foi aberto em uma localidade não autorizada. O caso veio à tona depois que um vídeo se popularizou nas redes sociais chinesas e ganhou milhares de comentários no Weibo, equivalente ao Facebook na China. Entre as lições, constava que as “mulheres devem falar menos, fazer mais trabalho doméstico e fechar suas bocas”, bem como que as “mulheres não devem lutar para ascender socialmente, mas devem sempre permanecer no extrato inferior”. As gravações incluíam, também, a crítica às mulheres que não cozinham em casa.

Em outro excerto de aula veiculada pela plataforma Pear Video, as estudantes eram ensinadas a não resistirem quando fossem espancadas e não responderem nas situações em que fossem repreendidas; além disso, em hipótese alguma deveriam se divorciar. Além das aulas de moral, as estudantes também tinham que participar de sessões de confissão em grupo e reverenciar uma estátua de Confúcio. De acordo com a declaração de uma ex-aluna de Changsha, cidade no sudeste chinês muito próxima a Wuhan, as ideias de que as garotas seriam ou já teriam sido amaldiçoadas por terem relações sexuais antes do casamento ou traíram alguém eram amplamente difundidas e faziam parte das questões a serem confessadas na escola.

O curso oferecido de virtude feminina durava vinte dias e tinha quarenta alunas por turma de todas as idades e em diversas cidades chinesas, e, de acordo com a agência estatal de notícias Xinhua, teve suas atividades suspensas em dezembro em razão de violar valores centrais do socialismo (3).

É importante lembrar que a equidade era uma das bandeiras de Mao Tse-Tung quando implementara as reformas comunistas na China. Em linhas gerais, isso vinha, por um lado, da negação dos valores confucionistas e da sociedade monárquica, e, por outro, da necessidade que o regime em ascensão tinha de ampliar o número de indivíduos simpáticos à revolução – razão pela qual a população campesina também fora um dos alvos principais àquela época. No Livro Vermelho (escritos ou registros de Mao que reúnem alguns apontamentos reputados estratégicos para a revolução), por exemplo, o ex-líder chinês ressaltava – com uma clara influência leninista – que a ideologia e o sistema feudal-patriarcal repousavam nas autoridades política, familiar, religiosa e masculina.

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Enquanto os homens estavam subjugados pelas três primeiras, as mulheres ainda lidavam com a dominação em relação à última.

Na década de oitenta, as reformas econômicas ocorreram em detrimento da ênfase inicial na equidade social, própria da retórica revolucionária, trazendo impactos imediatos sobre as questões de gênero. Isso aliou-se a um câmbio na ideia preconizada pelas políticas de Mao de que o aumento na população chinesa seria positivo. Tal política deu lugar ao controle de natalidade (implementação da política do filho único) que, se por um lado tinha potencial de estimular o ingresso feminino no mercado de trabalho, por outro revelou uma faceta da repressão aos seus direitos sexuais e reprodutivos, com registros não oficiais e ainda pouco explorados sobre esterilização forçada e feminicídios.

Mapear a institucionalização da restrição dos direitos das mulheres no curso da história recente chinesa é importante para entender como a escola detém um papel crítico em reafirmar valores e papeis sociais. Essa relação entre gênero e educação na China ganhou outra nuance com o fortalecimento da campanha internacional contra violência, na medida em que, no país, tanto os movimentos de resistência e luta pelo direito à integridade do corpo, quanto as vítimas que têm se manifestado, são majoritariamente pertencentes às universidades. Nas últimas semanas, uma das consequências mais impactantes para os debates de gênero foi a campanha #Metoo (#Eutambém), que alcançou uma nova repercussão internacional após seu lançamento, em outubro/2017, a partir do ato mundial promovido pela Marcha das Mulheres no dia 21 do último mês de janeiro.

A campanha, que visava sobretudo estimular a denúncia de abusos e de assédio sexual, chegou à China sob uma tradução finalística da expressão em inglês – eu também sou/estou –, mas tem sido fortemente coibida entre os meios de comunicação e em atos voltados para a visibilidade dos crimes sexuais. Em contraste, alguns casos ganharam repercussão e respostas institucionais, como o da ex-doutoranda da Beihang University, Luo Xixi, assediada treze anos atrás por seu então supervisor, Chen Xiaowu. Quando, no ano passado, Xixi decidiu requerer providências à universidade e começar um grupo de discussões sobre abusos no Wechat (aplicativo de mensagens mais popular na China), foi recebida com o silêncio da administração e com ataques midiáticos do seu abusador, que advertia acusadores para não se tornarem “agentes das forças estrangeiras do mal” (4).

Após criar, este ano, um perfil no Weibo (rede social chinesa similar ao Facebook) e dar mais publicidade à violência sofrida por ela, a Doutora Luo finalmente teve a resposta da universidade, com a suspensão do abusador no dia 11 de janeiro, e a ordem

do Ministério da Educação para que lhe fosse retirada uma importante bolsa acadêmica, com a devolução dos valores já recebidos. Inspirada pelo impacto da iniciativa, a estudante Qiqi Xiao postou em sua conta do Weibo 在 (#MeToo na China) e alcançou em poucos dias mais de 2 milhões de visualizações. A partir disso, ela iniciou uma petição na Universidade de Sichuan, com 265 assinaturas em um dia, dando ensejo a uma cadeia de petições – aproximadamente setenta – assinadas e enviadas a centenas de universidades chinesas com um clamor para que providências contra o assédio sexual na academia sejam tomadas (5).

A mobilização em face das diversas formas de assédio sexual tem ganhado corpo na China, sobretudo no ambiente acadêmico, onde mais episódios são narrados ou ao menos chegam a domínio público. No final do último mês de janeiro, uma nova carta aberta, redigida por estudantes e acadêmicas chinesas que vivem fora do país e destinada aos membros do Congresso, ao Ministro da Educação e a todas(os) as(os) reitoras(es) das universidades chinesas, pleiteia que mecanismos sejam criados a fim de garantir um compromisso expresso das universidades e do Ministro da Educação com o combate ao abuso sexual.

Nesse contexto, entender o papel da educação e a escola, independentemente do nível formativo a que estejamos nos referindo, mostra-se crítico para identificar lógicas que perpetuam inequidades e reforçam velhos papeis sociais e, sobretudo, encontrar ferramentas e espaços reivindicatórios contra todas as formas de subjugação e violência femininas.

Notas

1 FREITAS, Hyndara. Escola de Princesas ensina etiqueta, culinária e organização de casa a meninas de 4 anos. O Estado de São Paulo. 12 out. 2016.

2 The Associate Press. Rise of ‘Morality Schools’ for Chinese Women Sparks Outcry. New York Times, 01/02/2018.

3 Xinhua.net.com (versão em inglês). Chastity class for women ordered do stop in northeast China.

4 Sexual harassment: #ChinaToo, veiculada pelo Wechat em 24 jan. 2018.

5 Informações da organização feminista Chinese Feminists, newsletter de janeiro/2018.

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Mariana Yante é doutoranda em Relações Internacionais na Universidade de Wuhan/China.

Opinião

A liberdade acadêmica posta em cheque

Redivivo, o Grande Inquisidor da Espanha encontra agora alguém capaz de desempenhar o seu papel: ninguém menos do que o atual ministro da Educação, Mendonça Filho. Lídimo representante da fina flor do liberalismo brasileiro (econômico, bem entendido, pois o político de há muito foi para as cucuias), Mendonça partiu para o ataque. Apostando no vendaval autoritário que assola parcela influente do Ministério Público e do Judiciário, nos quais fundamentalistas têm mostrado a que vieram, resolveu investir contra um professor de Ciência Política da Universidade de Brasília, Luis Filipe Miguel, por ter organizado um curso de extensão optativo sobre “o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.

O ministro do Partido Democratas, justamente da pasta a quem compete a defesa da autonomia universitária e da liberdade de cátedra, sequer se deu ao trabalho de designar preposto para assumir o ônus da iniciativa. Ele mesmo solicitou à Advocacia Geral da União, ao Tribunal de Contas, à Controladoria Geral da União e ao Ministério Público Federal (ufa!) a apuração da possibilidade dos criadores do curso sobre o golpe terem cometido “improbidade administrativa” por, supostamente, fazer proselitismo político e ideológico de uma corrente política utilizando uma instituição de ensino (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018).

Não pode o ínclito ministro da Educação, jejuno em matéria de educação e de democracia, deslembrar-se de que a Lei da Mordaça (inconstitucional) só existe em um Estado da Federação - Alagoas - não havendo lei federal na matéria. Portanto, não cabe a nenhuma autoridade universitária interferir no conteúdo de disciplina, ainda mais optativa, para censurá-la e determinar como deve ser ofertada.

Como vivemos em tempos de retrocesso, sob crescente insegurança jurídica, devemos nos lembrar do óbvio: as liberdades de pensamento e de opinião são os fundamen -

tos em que se assentam a autonomia universitária. A intervenção da autoridade universitária ou ministerial para acionar a Justiça somente teria sentido se ocorresse o contrário: um docente proibido de definir o conteúdo de sua disciplina, pouco importando, para esse efeito, que se parta do pressuposto de que houve um golpe branco, ou de que a deposição da presidenta Dilma se deu em plena conformidade com a lei.

Todos os democratas têm obrigação de defender o direito de integrantes da Academia de atuarem de acordo com suas convicções político-ideológicas. O único limite é o respeito à lei: não é lícito o ensino servir de instrumento a pessoas ou grupos para a violarem ou promoverem o seu descumprimento. Não se pode fazer nenhuma restrição à liberdade de pensamento e de opinião os quais, nas instituições universitárias, têm um nome: liberdade de cátedra.

Várias universidades se solidarizaram com o professor investigado, assim como destacadas associações científicas e de pesquisa do país, condenando a censura ministerial. Ademais, diversas instituições têm se proposto a realizar cursos com as mesmas características, e centenas de alunos a neles se inscrever – inclusive no exterior. Mas raras manifestações foram registradas na grande imprensa, criticando as medidas autoritárias tomadas pelo MEC contra o curso ofertado pelo professor Luiz Miguel. Exceção à regra, a Folha de S. Paulo repeliu a tentativa de controlar o conteúdo do ensino acadêmico visto que “o princípio da autonomia universitária confere às instituições de ensino superior a liberdade de investigar o que lhe pareça relevante”.

Mas esse posicionamento, coerente com a tradição liberal, foi acompanhado de equívocos, sendo o mais primário o que se estabeleceu entre o conteúdo do curso em questão com o “alinhamento partidário” ao PT, pelo que seria “mais prático consultar as notas oficiais do partido, reservando o tempo em sala de aula para conhecimentos mais técnicos” (???) (EDITORIAL, 2018).

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Ao emitir essa opinião, o jornal paulista revela a debilidade de sua análise política, deixando aflorar viés maniqueísta. Com efeito, nela, as concepções sobre o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, que qualificam o golpe de golpe, são reduzidas à visão de um partido, ou de uma corrente política.

Mas será que todo o leque de posições das esquerdas cabe dentro de uma só corrente? Todas qualificaram de golpe a deposição de Dilma. Mas não apenas as que compõem as esquerdas.

Diversos expoentes da sociologia, da ciência política e do direito, no Brasil e no exterior, consideram que Dilma foi afastada do poder em virtude de um golpe branco, de viés parlamentar-midiático, com amplo respaldo na parcialidade do Poder Judiciário e na inabilitação moral do Poder Legislativo.

Aliás, é de se perguntar que condicionamentos ideológicos conduzem a Folha de S. Paulo a desconhecer que a definição da natureza do impeachment não se reduz ao componente jurídico, e que mesmo nesse aspecto não existe análise unívoca. Portanto, a pluralidade – absolutamente legítima – na conceituação do ato que a depôs é a regra, sendo inescapável que cada analista o qualifique de acordo com suas posições político-ideológicas. Negar esse fato é compartilhar de uma visão totalitária, ou, no mínimo, idealizada das ciências sociais.

Cristovam Buarque – insuspeito na matéria – corrobora essa tese, além de achar plausível a possibilidade de golpe. Mas em seguida, ao defender a posição que assumiu em 2016, favorável ao afastamento da então presidenta, faz proposta descabida: cobra da UnB que ela organize disciplina unicamente voltada para a crítica do governo petistaapesar dele ter sido um dos mais conspícuos integrantes. Ora, isso significaria instrumentalização partidária, com sinal trocado (BUARQUE, 2018).

Enredada em seu limitado horizonte ideológico, a crítica meia-sola dos liberais à censura do MEC parece mais o cumprimento de uma obrigação desagradável que firme denúncia das veleidades autoritárias do novo Torquemada, que se irradiam por todos os poros do governo ilegítimo de Michel Temer. Destarte, nenhuma crítica do gênero cuidou de analisar as consequências dramáticas que podem derivar da iniciativa do Torquemada instalado no comando da edu -

cação e da cultura.

Sentença judicial, condenando o professor que ofertou a disciplina sobre o golpe de 2016 por improbidade administrativa, faria com que a área de intervenção da justiça alcançasse, como nunca antes, o domínio da liberdade de expressão e autonomia universitária, gerando insegurança jurídica sem precedentes. Os docentes não saberiam mais ao certo o que lhes seria permitido dizer ou organizar - situação característica de uma ditadura. Enquanto isso, novas tentativas de limitação de liberdade de pensamento vêm à tona. Na UFBA, o prof. Carlos Zacarias, que decidiu organizar um curso semelhante sobre o golpe de 2016, foi intimado a depor em virtude de pedido de liminar protocolado por vereador, também do DEM, que pretende a revisão da sua disciplina referente ao golpe (PASTORI, 2018).

É necessário se condenar com veemência a utilização das prerrogativas do cargo de ministro de Estado para intimidar e ameaçar. E mostrar que a disseminação do denuncismo só pode ser enfrentada conscientizando a universidade e a sociedade sobre a necessidade da firme defesa da autonomia universitária e da liberdade de expressão, pilares da democracia.

Referências:

BUARQUE, Cristovam. Liberdade acadêmica plena. Correio Brasiliense 28.02.2018.

FOLHA DE SÃO PAULO. Editorial: Golpes de insensatez. São Paulo, 12.2.2018.

FOLHA DE SÃO PAULO. Poder: Ministério da Educação pede apuração de disciplina da UnB sobre “golpe de 2016”. 22.02.2018

PASTORI, Matheus. UFBA: professor é intimado a depor por ministrar “disciplina do golpe”. R7 Notícias. 28.03.2018

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política.

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Opinião

A União Europeia entre os blocos continentais

As eleições na Alemanha não nos trouxeram a última derrota da social-democracia europeia. Na Itália, o Partido Democrata, que aglutina tudo o que resta da esquerda italiana, sofreu igualmente uma ampla derrota nas eleições legislativas de março. Mas essa derrota não foi apenas a da social-democracia, o centro direita de Berlusconi teve o mesmo destino. A Itália caiu nas mãos da Lega do Norte, de extrema direita, e dos populistas do Movimento 5 Estrelas, que são uma incógnita. O país continua ingovernável, dando mais um sinal do sismo por que passa o panorama político na Europa. E a democracia.

Uma outra crise, de proporções talvez ainda mais inquietantes, é a que se desenrola na Espanha. O governo Rajoy e os independentistas radicais catalães entraram numa guerra para a qual não se adivinham tréguas. O envolvimento da justiça numa questão que é por essência política é, como bem se sabe no Brasil, parte do problema, não da solução. É fácil fazer intervir a justiça em querelas políticas, difícil é afastá-la depois, sem pôr em causa todo o edifício institucional. Na Espanha temos, de um lado, um governo minoritário dirigido por um partido minado pela corrupção, a quem convém– a qualquer preço - o papel de defensor das instituições, defendidas legitimamente pela maioria do povo espanhol. Do outro, uma nebu -

losa política com uma maioria também de perna curta, reivindicando o desligamento da Espanha a qualquer preço. A primeira vítima dos dois extremos será, provavelmente, a democracia, impotente diante de tanta falta de lucidez, num país onde as sementes do fascismo ainda são férteis.

Iñigo Errejon, ex-número dois de “Podemos”, o movimento espanhol “populista de esquerda” - perdeu a vez porque defendeu uma colaboração com o PSOE -, declarou em recente entrevista que na Europa de hoje os partidos populistas não são mais a exceção, mas a regra. Na Alemanha, dada à incapacidade de Merkel em construir uma maioria com os liberais e os verdes, o partido social-democrata não pôde resistir à necessidade de voltar à grande aliança com a CDU, o centro-direita. O filósofo Jurgen Habermas, tradicionalmente próximo da social-democracia alemã, lamentou, porém, que “o próximo governo alemão vai se inscrever (...) na continuidade da política de austeridade praticada pelos seus predecessores”, mesmo com um social-democrata no comando das finanças. Mário Centeno, o ministro das Finanças português, nomeado presidente do Eurogrupo, terá de conciliar linhas divergentes de política econômica, entre a austeridade alemã, o liberalismo da Europa do Norte, e o seu bem-sucedido keynesianismo em Portugal, reclamado pelos países mediterrânicos da UE.

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A União Europeia continua, como se vê, emitindo sinais contraditórios, os analistas ficando na situação dos técnicos no solo de uma nave espacial que perdeu o rumo, tentando definir se ela vai se esfacelar contra algum planeta, ou se será ainda possível colocá-la num trajeto que dê sinais de alguma espécie de racionalidade.

O primeiro sinal positivo poderia ser o fato de que finalmente a Alemanha tem um governo. Logo que se reinstalou na cadeira de chanceler, Angela Merkel tomou o avião para Paris para discutir com Emmanuel Macron, o presidente francês, as reformas a introduzir na União Europeia, de forma a superar, via uma série de projetos audazes, a austeridade financeira da direita alemã. Porém, mesmo que não duvidemos de que a França e a Alemanha tenham capacidade para, juntas, dar um impulso na boa direção à EU - implantando uma gestão por metas a alcançar e não por privilégios a proteger -, é legítimo duvidar da sua capacidade de levar avante mais do que uma pequena parte desses projetos, até porque os países do Norte da Europa já sinalizaram ser contrários a qualquer incremento da autoridade das instituições da União Europeia.

A imagem do continente europeu é ainda a de uma zona do planeta onde a riqueza anda de mãos dadas com uma ambição de justiça social, consubstancial à democracia. Ora se é certo que o sistema ainda se norteia, pelo menos em teoria, pelos princípios que a prosperidade do período que seguiu à segunda guerra mundial permitiu erigir, a verdade é que os povos europeus, e não só os do sul da Europa, mas também os da Europa tradicionalmente próspera, não estão mais certos de que o atual sistema funcione ainda em seu favor.

Não só se perdeu a confiança na expectativa de que os filhos viverão melhor do que os pais, como muitos dos alicerces do estilo de vida europeu parecem seriamente abalados, devido à globalização e suas consequências sociais, e também aos movimentos de emigração econômica e política, que se traduzem na “invasão” da Europa pelos emigrantes econômicos e pelos refugiados políticos do Oriente Médio.

Talvez não se trate de uma simplificação abusiva avançar que tanto os movimentos populistas de direita como de esquerda, nos vários países europeus, estejam dizendo aos governantes: nós estamos vivendo pior; Rússia, China e EUA se fecham em perigosos campos antagonistas, será que vamos continuar delegando a nossa soberania à União Europeia, uma construção elitista do capitalismo mundial, que não nos protege e não sabemos para onde nos leva? Não seria melhor nos fecharmos também nas nossas fronteiras nacionais e aderir ao campo com quem temos mais afinidades?

Não terá sido essa finalmente a mensagem do Brexit, mensagem de um povo muito cioso das suas tradições nacionais e da sua insularidade mais de uma vez vitoriosa? Mas o Brexit é precisamente o pior exemplo que se pode evocar. Isto mesmo excluindo do raciocínio a manipulação política de que foi objeto, via Facebook. Os defensores do Brexit pretendem recuperar a soberania e gozar de todas as vantagens do mercado único europeu. Ora os primórdios do acordo com a UE que o Reino Unido parece ter sido obrigado a aceitar nestes últimos dias indicam que as negociações se encaminham no sentido inverso: para salvaguardar o acesso ao mercado único, o Reino Unido vai ter de aceitar as mesmas limitações à soberania que observava no seio da UE, mas simultaneamente perder a influência política de que aí dispunha, sem ganhar nenhuma outra vantagem. Tudo isso contra o quê, se o desinteresse de Trump ou da Commonwealth pelas proclamadas afinidades históricas do Reino Unido é patente?

Tudo indica que a eleição de Trump não foi apenas uma vitória de um conservadorismo retrógrado, mas sobretudo uma clara manifestação de que no mundo de hoje há cada vez menos espaço para projetos de autonomia no âmbito de grupos de afinidades ideológicas, como o “Ocidente” ou os BRICS, mas apenas alinhamentos em zonas de interesses e de poder. Afinal, isso é uma consequência lógica da globalização do capitalismo, a economia funcionando como um “prolongamento da guerra por outros meios”.

Isso nos leva a acreditar que, se fechamento tiver de haver, se o apelo das nações europeias tiver de ser ouvido, ele só poderá se realizar a nível europeu e não a nível nacional. Essa contradição é difícil de aceitar, e está longe de ser consensual. Mas a verdade é que as nações europeias não podem prescindir do mercado único, onde estão já indissoluvelmente interligadas.

Resta saber se a médio prazo, e dependendo do resultado da corrida das várias tendências contraditórias em jogo, teremos uma União Europeia fiel à suas raízes ou teremos um mercado único cooptado por um dos grandes blocos capitalistas, russo, chinês ou americano. Como se o capitalismo nos tivesse conduzido a uma nova guerra fria vinculada não mais a campos políticos, mas aos interesses econômicos de quatro ou cinco blocos continentais.

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Pedro de Souza é pesquisador, editor e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

Opinião

Imigração europeia e campesinato brasileiro

Nos últimos anos presenciou-se um número significativo de teses acadêmicas sobre a formação do campesinato no Brasil. Algumas dessas análises se debruçam nos impactos da imigração europeia, ocorrida com mais ímpeto no século XIX e início do século XX. Considerando a importância para a compreensão atual de determinadas dinâmicas sociais, políticas e econômicas do meio rural, incluindo os movimentos sociais no campo, faz-se necessário elucidar sua pertinência como objeto de reflexão sociológica. De início, é preciso entender que os fluxos migratórios de camponeses europeus para o Brasil não ocorreram de maneira homogênea e unilinear, mas de forma heterogênea e concentrada mais fortemente nos estados das regiões Sul e Sudeste. De acordo com Giralda Seyferth (2009), entre os anos de 1824 e 1930, sobretudo nos estados do Sul do país, a imigração no Brasil era frequente e impulsionada pelo Estado, que antes mesmo da independência política já incentivava a implementação de uma política imigratória. Em 1808, por exemplo, com a abertura dos portos, foi permitido o estabelecimento de estrangeiros no Brasil, seguindo-se até o ano de 1818, quando o rei D. João VI autorizou a fundação de duas colônias: uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro.

Após a independência, foram feitos vários atos legislativos, os quais demonstraram o interesse do governo na imigração, permitindo aos presidentes das províncias promoverem a colonização de estrangeiros. Os colonos eram normalmente atraídos pela propaganda de agenciadores e recebiam subsídios. Eram incentivados por parte do Estado brasileiro a ocupar o território e trabalhar a terra, quase sempre sob péssimas condições de trabalho. Também eram movidos por uma política governamental que procurava a todo custo “branquear” a população e restringir o acesso ao solo, de forma que apenas pequenos grupos estavam autorizados a ocupá-lo.

A ocupação do território brasileiro pelos novos imigrantes não foi algo fácil. É importante considerar tantos os aspectos da topografia brasileira, bastante acidentada, quanto a deficiência das acomodações, a fragilidade dos meios de comunicação com os centros urbanos, a ausência de uma administração eficaz e o receio de muitos latifundiários

de implantar no Brasil o trabalho assalariado, pois nessa época ainda se convivia com o trabalho escravo. Muitos dos imigrantes europeus que vieram ao Brasil descobriram depois de algum tempo que o sonho brasileiro era na verdade um pesadelo (CARNEIRO, 2009). Essa tendência se acentua depois da abolição da escravidão, em 1888, forçando parte dos recém-libertos a ocupar os bolsões de miséria nas grandes cidades (SEYFERTH, 2009).

Em 1850, mesmo ano da aprovação da Lei de Terras, criava-se um decreto que evidenciava que a forma de exploração agrícola das colônias não deveria se basear no trabalho escravo, o que acabou por opor dois modos de produção: o da pequena propriedade de mão de obra familiar e o da grande fazenda escravista. O intuito da nova lei era regular a propriedade e estabelecer que a aquisição das terras devolutas (públicas) só poderia ser feita por compra. Dessa maneira, o Estado não poderia mais conceder terras aos colonos, que a partir de então precisavam comprar a terra para possuí-la. Isso acabou por criar a chamada “dívida colonial”, pois a maioria dos colonos não tinha condições de pagar à vista e contraíam uma dívida a ser finalizada em cinco anos (com juros), muitas vezes com os subsídios acrescentados à mesma dívida (SEYFERTH, 2009).

Para aqueles que defendiam o modelo de imigração promovido no Brasil, fazia parte de uma necessidade pública povoar os campos com agricultores contidos, ativos e submissos às leis e autoridades. Porém, nem todos obedeciam a esses critérios e foi possível ver o surgimento de movimentos sociais locais. Apesar das críticas dirigidas à política imigratória do império, poucas mudanças foram feitas após 1889. Mesmo na década de 1930 ainda observava-se a existência de diversos empecilhos nos dispositivos legais, que permitia apenas algumas modificações e adaptações na regulamentação do direito ao solo. Levando adiante uma política predatória que beneficiava cada vez mais a concentração fundiária, o governo brasileiro resolveu colonizar as matas, intensificando a expulsão e eliminação das populações indígenas com o intuito de “civilizar” o território com “gente branca”, isto é, com as colônias de imigrantes europeus. Não obstante distintas, possuíam elementos em comum, os quais derivavam da forma de ocupação por meio do

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controle do Estado (SEYFERTH, 2009).

Cada colônia, fosse ela de origem italiana ou alemã, guardava entre si fortes laços identitários. Todas surgiram do interesse político voltado para um tipo de exploração agrícola que mais recentemente ficou conhecida como “agricultura familiar”. Como já foi dito, na legislação que surge a partir de 1850 e se estende até o começo da república, impulsionou-se a vinda de grupos familiares, os quais tinham prioridade para a aquisição de terrenos. Outra característica desse povoamento é a unidade produtiva. Nos períodos de grande fluxo migratório ela tinha uma média de tamanho de 25 hectares, o que para as autoridades parecia apropriado. Entretanto, as más condições de trabalho enfrentadas pelos imigrantes também geraram um ambiente instável. Surgiram revoltas e movimentos sociais que reclamavam a falta de assistência ao colono por parte das autoridades e das elites (SEYFERTH, 2009).

Para além dos aspectos legais, outras características desse tipo de imigração devem ser observadas, incluindo os debates sobre a alimentação e a posse do território. Ao analisar os hábitos alimentares dos imigrantes de descendência europeia na região serrana do estado do Rio de Janeiro, Maria José Carneiro (2009) parte da hipótese de que entre eles a produção agrícola ainda ganha sentido tanto pelo seu significado econômico, de onde se extrai a renda para as famílias de produtores, como também por seu conteúdo social, ou seja, as redes de sociabilidade que garantem a coesão social e a garantia da segurança alimentar. Na busca de terras mais férteis, muitos imigrantes povoaram a região de Lumiar e São Pedro da Serra, ambos no estado do Rio de Janeiro. Alguns continuaram com a agricultura rudimentar e outros formaram unidades produtivas mais rentáveis, fundando um processo de diferenciação social que, embora atuante, não era forte o bastante para gerar grandes conflitos. Como defende Almeida (2010, p.128), as unidades camponesas são terras de uso comum, não representam totalidades homogêneas e de caráter igualitário como se poderia imaginar, mas o seu grau de diferenciação interna não é forte o bastante para fazê-las eclodir em antagonismos insolúveis.

Para terminar, vale a pena ressaltar os efeitos da recente mecanização do campo, decorrente da revolução verde, que afetou vários camponeses no Brasil e no mundo. A concepção de que o campo tem que se modernizar, tem que comprar maquinários e produtos químicos para produzir mais, gerou consequências catastróficas. Muitos camponeses foram obrigados a substituir os métodos tradicionais de cultivo, como o pousio de terras, pelo uso abusivo de agrotóxicos, o que acabou por criar um ciclo vicioso entre produção e degradação. Parte

dessa catástrofe foi embasada por um olhar preconceituoso em relação ao meio rural. Enxergava-se os camponeses, imigrantes ou não, de um ponto de vista meramente “modernizador”, gerando o desconhecimento da diversidade de condições de integração da força de trabalho. Essas visões preconceituosas não reconheciam o papel econômico e político desses agentes produtivos na constituição e na reprodução da sociedade brasileira na sua luta por melhores condições de vida (MARTINS, 2001; NEVES, 2009). Por isso, os verdadeiros estudos sobre imigração e campesinato no Brasil foram aqueles que tornaram o exótico familiar, ou seja, aqueles que diante do modo de vida e organização dos camponeses souberam entender sua importância com a devida complexidade.

Referências:

ALMEIDA, Alfredo W. Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum e conflito. In: DELGADO, Nelson Giordano (Coord.). Brasil Rural em Debate. Brasília: CONDRAF/MDA, 2010.

CARNEIRO, Maria José. De “produtor” a “consumidor”: mudanças sociais e hábitos alimentares. In: NEVES, Delma Pessanha (Org.). Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil: formas dirigidas de constituição do campesinato. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.

MARTINS, José de Souza. O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural. Scielo Brasil, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010340142001000300004&script=sci_arttext>. Acesso em: 21/03/2018.

NEVES, Delma Pessanha. Constituição e Reprodução do Campesinato no Brasil: legado dos cientistas sociais. In: NEVES, Delma Pessanha (Org.). Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil: formas dirigidas de constituição do campesinato. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.

SEYFERTH, Giralda. Imigrantes Colonos: Ocupação territorial e formação camponesa no sul do Brasil. In: NEVES, Delma Pessanha (Org.). Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil: formas dirigidas de constituição do campesinato. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.

Rômulo Almeida é sociólogo e mestre em Sociologia pela UFPE.

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Opinião

Marielle e os refletores de uma densa noite

Por Camilo Soares

Um perigoso espectro, que mostra as presas contra valores republicanos, plurais e humanistas, ronda o Brasil. A execução da vereadora Marielle Franco em plena intervenção militar no Rio de Janeiro não revela apenas a crise institucional da democracia brasileira (fenômeno corroborado pelo atentado a tiros contra a caravana de Lula e as ameaças a um ministro do Supremo), mas também uma cultura obscurantista que, incrivelmente desinibida, tenta desmerecer a trajetória de uma mulher pobre e negra que conseguiu se fazer ouvir para, assim, minimizar o abominável assassinato. O mais estarrecedor é que muitas desses ataques saíram ou passaram pelas redes sociais de pessoas públicas ou entidades políticas, como a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Marilia Castro Neves e o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), além do MBL (Movimento Brasil Livre), que divulga inadvertidamente esses fake news em seu perfil do facebook (para depois responder cinicamente, depois de dezenas de milhares de compartilhamentos, que nunca afirmou que as informações vinculadas eram verdadeiras). Em meio a tempos sombrios, tal discurso repleto de preconceitos e intolerância ganha força, meio se aproveitando de uma sociedade descontente e pouco informada, meio escondendo plataformas políticas maquiavélicas.

Tal momento lembra um artigo publicado em 1 de fevereiro de 1975 pelo escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini, sobre o vazio do poder na Itália. Observando o desaparecimento dos vaga-lumes em Roma diante da poluição e destruição dos novos tempos, o autor relata uma crise institucional e humana ocasionada pelo regime democrata-cristão que “era ainda a continuação pura e simples do regime fascista”. Para ele, o processo foi marcado primeiramente pela violência policial e o desprezo pela constituição, isso tudo sustentado por um “atroz, estúpido e repressivo conformismo de Estado” que acabava destruindo uma cultura genuína e

combativa do povo, seja pelas vanguardas intelectuais e artísticas, seja pela irreverência e sagacidade popular. Essa latência revolucionária cultural tinha, como no desprendimento da dança dos vaga-lumes (metáfora de humanidade, para o poeta), a capacidade de se opor à rigidez de estruturas impostas, no entanto, vem sendo, como o brilho desses simpáticos pirilampos, apagada pela densa noite de um fascismo triunfante; uma noite escondida pela luz feroz de seus refletores. Nessa alusão poético-ecológica, Pasolini levanta uma crise terrivelmente profunda na sociedade moderna, um apodrecimento cultural, uma aculturação erguida em torno da ideia de progresso econômico e material, impondo um padrão moral mais preocupado em atacar minorias do que lutar contra a corrupção que sustenta tal modelo de desenvolvimento. Arquiteta-se, assim, um sistema que preza uma lógica puramente funcional, prescritiva, amoral, tecnicista (o tal do imperativo hipotético, como dizia Kant), que, claro, acaba não sendo tão funcional para a maioria da população, pois não tem originalmente esse intuito benéfico e altruísta. Qual o problema de ter um presidente do Detran (como o indicado em Minas Gerais) com a carteira de motorista apreendida por má conduta no trânsito ou nomear uma ministra do trabalho contra a qual pesam várias ações trabalhistas? Nada parece ser injustificável tecnicamente: a destruição do patrimônio histórico de uma cidade, o desmatamento de nossas florestas, a expulsão de índios de suas reservas, a matança de jovens negros na periferia. Assim como uma intervenção militar (mais uma) tirada da cartola depois do fracasso político da reforma da previdência, jogando no lixo meses de discussão para a elaboração de um verdadeiro projeto contra a violência, em favor de um espetáculo midiático, uma cortina de fumaça, um refletor violento e ofuscante sobre uma população que se acostumou a aceitar.

Acostumou-se, lembro mais uma vez, a um genocídio em nossas periferias. A uma

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população de “matáveis”. E quando essa violência chega às portas da classe média, espera-se uma ação pirotécnica sem incomodar quem realmente ganha com esse modelo corrompido. Afinal, o importante é não ver metralhadoras nem sangue, para esquecer que essa dura realidade existe fora de bairros nobres. E a morte da vereadora Marielle, líder comunitária e defensora dos direitos humanos é prova dessa crise institucional, física e moral. Faz parte da tentativa de um genocídio também cultural, que revelava, para Pasolini, a face verdadeira do fascismo, que é aquela “que se atém aos valores, às almas, às linguagens, aos gestos e aos corpos do povo”. É tal cultura que faz as pessoas comuns, segundo Hannah Arendt, aceitarem perseguições e violências contra minorias, “na criação de um mundo onde o postulado se tornará um axioma”.

E tais perseguições não vêm sem uma grande dose de conformismo, um apagar de vaga-lumes que para Pasolini era uma consequência da perda da dignidade civil diante de um espetáculo mercadológico. São tais refletores da midiatização da vida que investem nos espaços sociais sua violenta luz, apagando o brilho de possíveis resistências e fabricando a impressão de uma visão única e plena de uma realidade montada por e para grupos econômicos poderosos. Tal imposição, antes de puramente física, é legitimada por um autoritarismo do sensível, o que Jacques Rancière chama de polícia que, controlada por uma cultura dominante ou por um regime autoritário, participa de configurações de poder, da aceitação de fatos e valores a partir de apreciações de dados sensíveis ou objetivos. O pior, como lembra Didi-Huberman, é que todos contemplariam com ar satisfeito tal narrativa unilateral e tendenciosa, iluminada, como nos estúdios de tv, sem sombras, sem contrastes misteriosos e ambíguos para forjar uma aparente legitimidade, da qual “ninguém mais escapa a seus ferozes olhos mecânicos”.

O próprio Didi-huberman já falava em termos de profecia de Pasolini, e relação ao neofascismo televisivo da Itália de hoje, encarnado sobretudo pela figura de Silvio Berlusconi. Sem falar nas vitrines iluminadas ainda mais astutas e presentes na sobrexposicão diária de pessoas e valores pelas redes sociais, cuja aparente democracia está sendo desmascarada pelo atual processo do facebook nos EUA, por sua suposta

participação manipuladora na campanha de Donald Trump. As redes sociais não apenas divulgam fake news, mas espelham também o processo ardiloso de aceitação de ideia preconceituosas e intolerantes, reduzindo e confundindo princípios básicos de convívio social civilizado, até mesmo no que se refere aos direitos humanos. E é nessa aparente contradição, de uma tolerância generalizada a posições fascistas, que se fabrica o terreno subjetivo da total intolerância, onde brotam hordas homofóbicas, racistas ou contra grupos políticos e sociais. Tal indiferenciação cultural é o apagar dos vaga-lumes, ou seja, da cultura “onde Pasolini reconhecia até então uma prática – popular ou vanguardista – de resistência, ela mesma transformada numa ferramenta da barbárie totalitária, confinada atualmente no reino mercadológico, prostitucional, da tolerância generalizada”.

Uma cultura que nos torna coniventes a mensagens denegrindo Marielle, ou um discurso misógino e racista de um presidenciável bem posicionado nas pesquisas, ou da vereadora Michele Collins (a mais votada do Recife) que prega abertamente pela intolerância religiosa e contra a diversidade sexual. Mais do que por uma ideologia, tal violência parece obedecer sobretudo a uma lógica comercial, usada por astutos mercadores que colhem o fruto de suas vendas, como Didi-Huberman observa ao costurar os escritos de Pasolini com a crítica à sociedade do espetáculo de Guy Debord: “Mas os vaga-lumes desapareceram nessa época de ditadura industrial e consumista onde todos acabam por se exibir como uma mercadoria em uma vitrine, de maneira a, justamente, não aparecer. De maneira a trocar a dignidade civil contra um show indefinidamente vendável”. Marielle era um desses vaga-lumes que saiu do escuro e incomodava, com seu brilho, olhares habituados à invisibilidade de uma humanidade mais plural e justa. Que essa luz não apague; continue clareando o caminho de consciências combativas e sãs em tempos tão turvos.

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Camilo Soares é fotógrafo e professor de Cinema da Universidade Federal Pernambuco.
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