Revista Jornalismo e Cidadania nº 18/2017

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1

Jornalismo e cidadania nº 18 | Dezembro 2017

| ISSN 2526-2440 |

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE

Prosa Real

Entre a Fição e a Realidade

Opinião

Cidade, um espaço de direitos

E mais...


JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Expediente

Arte da Capa: Designed by Freepik.com

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Colaboradores |

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Articulistas |

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE

Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE

Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

PODER PLURAL Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI

COMUNICAÇÃO PÚBLICA Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

Índice

CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE

Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

Editorial

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Prosa Real

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Comunicação na Web

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Opinião | José Augusto Spinelli

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Opinião | Daniel Lamir

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Mídia Alternativa

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Opinião | Maria Luiza Carvalho

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Mídia Fora do Armário

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Jornalismo Ambiental

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Caio Barros Melo

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COMUNICAÇÃO NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE

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Editorial Por Heitor Rocha

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018, por ser uma ano eleitoral, pode vir a ser um ano de definições e superação de algumas tragédias impostas pelo golpe parlamentar-midiático retirando direitos da população brasileira para satisfação dos donos do dinheiro, das elites nacionais e internacionais, em nome da acumulação capitalista, do equilíbrio da balança de pagamentos, do combate ao deficit fiscal, mas com enorme renúncia de arrecadação e perdão de dívidas e multas fiscais, para as grandes corporações, bancos (o Itáu é um bom exemplo) e enfim, do programa neoliberal. Assim, o congelamento dos investimentos necessários ao desenvolvimento do país, como em educação, saúde, pesquisa, infraestrutura, etc, a regressão nas relações de trabalho e as maldades pretendidas na reforma da previdência poderão receber um tratamento diferente no Congresso Nacional, onde os representantes políticos, diante da proximidade do julgamento popular nas urnas, estarão mais sensíveis às reivindicações da sociedade e menos coagidos pelas chantagens da estrutura de poder e das cooptações pecuniárias das grandes corporações do mercado, como as que se fizeram presentes nas eleições d 2014 (estima-se que dez grandes corporações, especialmente as envolvidas como corruptoras na operação Lava a Jato, elegeram 360 congressistas). A mídia, também dependente da credibilidade do público, mesmo diante do tremendo subdesenvolvimento educacional, cognitivo, e da fragmentação das consciências operada pela própria indústria cultural sobre as pessoas, precisa abrir espaço para algumas versões que estavam completamente vetadas na discussão pública articuladas pelos veículos de comunicação. Desta maneira, começam a surgir espaço para argumentações como as contidas no parecer da Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Tesouro Nacional (ANFIP), provando que não existe o propalado “rombo” nas contas da previdência social. Segundo o presidente da ANFIP, Vilson Romero, o que existe é a manipulação dos cálculos das contas fazendo com que deixem de ser contabilizadas receitas, ao mesmo tempo em que são acrescentadas despesas ao orçamento. Uma evidência da falácia do “rombo” da Previdência são as constantes renúncias fiscais para as grandes corporações, ruralistas e outros setores dos donos do dinheiro (para esta “festa” com o dinheiro público não existe déficit fiscal!), bem como o aumento do percentual de 20 para 30 por cento no volume dos recursos arrecadados pela previdência social que podem

ser desviados para outros gastos, conforme a Desvinculação das Receitas da União (DRU) criada no Governo Fernando Henrique Cardoso. Os auditores fiscais do Tesouro Nacional estimam que, através da DRU, foram retirados 66 bilhões de reais da seguridade em 2015, recursos que garantiam um superavit de 11, 2 bilhões. Outro argumento que contesta o alardeado “rombo” da previdência social é o de que se não existisse superavit não haveria motivo para a criação (e agora com a ampliação) da Desvinculação das Receitas da União. Portanto, é diante de tantos sofismas mal elaborados que os veículos de comunicação são obrigados a suspender um pouco o rolo compressor do pensamento único em prol das reformas do governo Temer como uma panaceia que vai curar todos os males do País, ao abrir espaço para versões contestadoras com o intuito de não comprometer mais a sua credibilidade. Também neste processo de preocupação com os danos que o alinhamento com as condutas do governo Temer podem causar à reputação pública, podem-se identificar algumas decisões da Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, ao se posicionar contra a utilização de recursos públicos da publicidade institucional do governo para fazer propaganda, de forma unilateral e sem nenhum compromisso educacional, da reforma da previdência, assim como de contestar o incentivo à impunidade em que se constituía o famigerado indulto de natal de Michel Temer. Por fim, é lamentável o espetáculo de subalternidade da mídia e do governo diante das arrogantes manifestações das agências de classificação de riscos, como a Standard & Poor’s, que rebaixou a “nota” de crédito do Brasil de BB para BB-, ficando o país três patamares abaixo no grau de segurança para os investidores, devido às dificuldades enfrentadas para realização das reformas preconizadas pelo programa neoliberal. Estas instituições (e parece que o governo e a elite nacional também), certamente, gostariam que o Brasil ainda estivesse exclusivamente restrito ao modelo agrário-exportador implantado pelos colonizadores em 1500. Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel

Romance-reportagem: um flerte da ficção com a realidade

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enômeno editorial principalmente nos anos 1970, o romance-reportagem experimenta uma interessante fusão de jornalismo e elementos de ficção. A editora Civilização Brasileira criou, em 1975, uma série com esse nome para abrigar narrativas híbridas, tendo como livro de estreia O caso Lou (assim é se lhe parece), do jornalista Carlos Heitor Cony (1926). Na orelha da obra, os editores explicam, frisando certas palavras, que a série Romance-reportagem se propõe a “dar sentido à realidade”, convocando escritores e jornalistas de renome que “nos darão aqui, depois de serena pesquisa, as múltiplas verdades que explicam episódios controvertidos da crônica policial, da atividade política, da vida econômica”. Outro propósito ali relatado é o de apresentar “os dramas e as comédias do cotidiano” em “livros escritos, a um só tempo, em linguagem literária e jornalística”. A intenção declarada é que a leitura dos romances-reportagem da série enriqueça a “capacidade humana” dos leitores e “muito poderá ajudá-los no difícil exercício de viver”, já que a “realidade é composta de incongruências, de paradoxos e de eventos inesperados que, muitas vezes, somente são explicáveis à custa de múltiplas re-invenções”. Estudioso do fenômeno dos romances-reportagem, Cosson (2007, p. 246) reforça que o embate contra a ditadura fez da literatura “uma das válvulas de escape das manifestações culturais do período”. O pesquisador acredita (2007, p. 253) que o romance-reportagem é habitante “das fronteiras do jornalismo com a literatura”, chamando para si “a condição de gênero e um estatuto próprio”. Para ele, o romance-reportagem é ambíguo, porque não permite uma definição que se “incline indubitavelmente para um ou para outro dos discursos” (COSSON, 2007, p. 252). Seja qual for o seu enqua-

dramento na fronteira muitas vezes confluente entre o jornalismo e a literatura no caso da reportagem em livro, o romance-reportagem, que continuou revelando novos autores não só nos anos 1970, foi um movimento importante para consolidar um mercado editorial brasileiro para o livro-reportagem.

Autor do mês: José L ouzeiro O maranhense José Louzeiro (1932) é o mais citado representante do gênero romance-reportagem. Tomando por base casos verídicos, principalmente no território do jornalismo policial, mas ficcionalizando a narrativa, Louzeiro é autor de livros de sucesso editorial, como Lúcio Flávio, passageiro da agonia (1975), a respeito do famoso criminoso; Aracelli, meu amor (1976), sobre uma menina seviciada e


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morta por membros da elite do Espírito Santo, e Infância dos mortos (1977), tratando de meninos de rua, que inspirou o filme Pixote, a lei do mais fraco, de Hector Babenco. Explicando o seu propósito no prefácio pioneiro, Louzeiro (1975, p. 6) esclarece que quis “aplicar no texto literário tudo o que o jornalismo havia me ensinado”. Assim, “procurava revalorizar a fabulação, recorria à forma simples de dizer”. Em entrevista ao caderno Folhetim do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 13 de janeiro de 1980, José Louzeiro pondera, a princípio, que “na literatura, como em qualquer outra atividade artística, predomina sempre o fator invenção”. Na sua visão, ao recolher material para uma reportagem, o repórter vai “reinventar, dar uma ordem ao que viu, ao que coletou”, sendo que o mesmo aconteceria na sua literatura, tomando por base fatos pulsantes da “realidade”. Louzeiro conclui que “hoje a sociedade está fornecendo uma gama de elementos de tal ordem” que, se ele tivesse condições, escreveria “um livro de 400 páginas por semana”.

que ele direciona mais para o noticiário fragmentado do dia a dia, aponta questões que também ajudam a entender as formas mais aprofundadas da reportagem e da sua ampliação no livro-reportagem. Em sua proposta metodológica, Motta (2009, p. 98) considera que o pesquisador das narrativas jornalísticas contemporâneas deve integrar elementos das análises narrativas histórica e literária, a fim de “reordenar a selvagem cronologia jornalística, encontrar os antecedentes, identificar e reposicionar as personagens, seus papéis e funções no desenrolar dos episódios”. Pondera, ainda, que a “recorrente presença de personagens, conflitos e cenários de um assunto nas páginas e telas confere a eles certa unidade e continuidade, e nos autoriza a unir as partes, recompor o acontecimento-intriga temático, como o leitor faz”. Pode-se dizer até que o jornalista que se debruça sobre os fatos algo distantes e dispersos na cobertura midiática para construir um todo coeso no livro-reportagem está agindo também como o pesquisador das narrativas jornalísticas deveria se portar.

Iluminando conceitos: Gonzaga Motta e a narrativa das reportagens Ao analisar a narrativa jornalística, o professor Luiz Gonzaga Motta (2013, p. 95) menciona um tipo de reportagem que é ampliada no caso do livro, mas que também é praticada em algumas redações e experiências na web, “cuja estrutura fechada se assemelha à do conto”, adquirindo maior dramaticidade. Ele reconhece que, para produzi-la, “o jornal e seus editores concedem ao repórter uma liberdade maior para criar, relatar e contar em uma linguagem quase literária ou quase ficcional”. As vantagens, asseguradas no caso do livro, permitem que o repórter se desvencilhe dos “rigores da linguagem enxuta e objetivada, do compromisso de se manter próximo ao referente empírico” e ganhe liberdade para “imaginar, criar e sugerir no texto efeitos estéticos de sentido”, o que incluiria até mesmo a narração em primeira pessoa. Assim, segundo Motta (2013, p. 95), esse tipo de reportagem ou livro-reportagem apresentaria questões estéticas próximas da análise literária e pode ser “estudado conforme qualquer outra narrativa de ficção, porque sua intenção é menos produzir efeitos de veracidade que efeitos estéticos próximos da ficção”. No entanto, o método detalhado de análise pragmática dos acontecimentos noticiosos sistematizado por Motta,

Referências: CONY, Carlos Heitor. O caso Lou: assim é se lhe parece. São Paulo: editora Civilização Brasileira, 1975. COSSON, Rildo. Fronteiras contaminadas. Brasília, Distrito Federal, 2007. LOUZEIRO, José. Lúcio Flávio: o passageiro da agonia. São Paulo: editora Abril, 1982. __________, José. Aracelli, meu amor. Rio de Janeiro: Record, 1979. __________, José. Infância dos mortos. Rio de Janeiro: Record, 1977. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília, editora da UnB, 2013. Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.


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Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet Por Ana Célia de Sá

Resgate histórico do jornalismo na web

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internet revolucionou a comunicação social, a partir do século XX. A cultura do tempo real, a virtualização espacial, a convergência midiática, a difusão multidirecional de conteúdos e o uso do hipertexto ajudaram a formatar novas perspectivas e novos modos de produção da notícia. Um resgate histórico sobre a criação da internet mostra como essa tecnologia foi absorvida pelo jornalismo. A história da internet remete à chamada Arpanet, concebida em 1969 pela Advanced Research Projects Agency (Arpa) – Agência de Pesquisa e Projetos Avançados, uma organização do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Tratava-se de uma rede nacional de computadores, com fins militares, a qual garantiria a comunicação emergencial caso uma guerra atingisse o solo estadunidense (FERRARI, 2006). Após a realização de inúmeros testes de conexão entre estados norte-americanos, a Arpanet passou ao controle da Agência de Comunicações e Defesa, no ano de 1975, para facilitar a comunicação com o Departamento de Defesa. Sem perder o foco militar, nesse período, a rede estendeu-se à comunidade acadêmica, com a transferência de dados entre pesquisadores centrados em estudos na área de segurança e defesa. A partir daí, novas redes surgiram para conectar universidades e centros de pesquisa, como a Bitnet (Because It’s Time Network), CSNET (Computer Science Network – Rede de Ciência da Computação) e NSFNET (desenvolvida pela National Science Foundation (NSF) – Fundação Nacional de Ciência). Esta última expandiu-se para mais de 80 países, no início da década de 1990 (FERRARI, 2006). Paralelamente à expansão das redes acadêmicas, um grupo de pesquisadores, liderado por Tim Berners Lee, criava a World Wide Web, rede mundial baseada em hipertextos e recursos para a internet. A proposta teve início ainda em 1980, quando Lee escreveu o Enquire, programa que organizava informações, inclusive com links. Somente no ano de 1989, ele propôs a WWW, que foi lapidada nos anos seguintes com a contribuição de outros desenvolvedores até chegar ao modelo atual (FERRARI, 2006).

O jornalismo deu seus primeiros passos na web 1.0, na última década do século XX. Nos primeiros anos de atividade, houve majoritariamente a reprodução de material noticioso publicado ou veiculado pelos meios de comunicação tradicionais, com pouca ou nenhuma adaptação. O ambiente digital era generalizado como uma ferramenta de expansão e distribuição de conteúdos produzidos em outras plataformas, atualizados de acordo com a periodicidade das edições tradicionais. Esta visão foi alimentada por aspectos como o acesso ainda limitado à internet pelo grande público, as conexões lentas e a precariedade inicial do ambiente gráfico da web. Ademais, os primeiros sites de notícias estavam ligados a conglomerados de comunicação cujos enfoques estavam nas mídias tradicionais, fontes garantidas de lucro. A tendência acompanhou o próprio padrão da web 1.0, marcado pela predominância dos grandes sites; pela baixa intervenção do público sobre o conteúdo da comunicação – predomínio do emissor; pela pouca interatividade entre emissor e receptor; e pelo baixo grau de personalização (BORGES; BUZALAF, 2011). Esta geração da web ainda tateava formas de uso da rede mundial de computadores, que acabara de sair do meio acadêmico para ganhar o grande público e assumir um modelo comercial. Passado o período da simples reprodução e reconhecidas as especificidades da web, o jornalismo inicia uma trajetória mais concreta no ambiente virtual. Neste segundo momento produtivo, as notícias quentes (hot news) começam a ganhar espaço no modelo de portal, evolução do site que reúne conteúdos diversificados, a exemplo de jornalismo, entretenimento, serviços, comércio eletrônico, comunidades, ferramentas de busca e personalização. Conforme explica Ferrari (2006), esta última característica é facilitada por portais verticais, especializados em um único assunto ou em um conjunto de assuntos correlacionados. Na segunda metade da década de 1990, surgem novas iniciativas na rede. O norte-americano The Wall Street Journal é considerado o pioneiro no jornalismo interativo e personalizado na web. No mês de março de 1995, ele lança o Personal Journal, espécie de jornal com conteúdo e formatação personalizados pelo leitor-assinante, de acordo com suas preferências de leitura, e recebido por mensagem eletrônica (FERRARI, 2006). No mesmo ano, o UOL lança o Brasil On-line, primeiro portal em tempo real do país; e em 1996, esta empre-


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sa põe no ar o portal UOL. Em novembro de 1999, o portal iG inova com o noticiário “Último Segundo”, cuja proposta de atualização contínua nasce na própria rede com redação exclusiva para a internet, algo até então inédito no Brasil (PRADO, 2011). A tendência inovadora da produção noticiosa na internet continua sua ampliação, embora sofra percalços impostos pelo estouro da bolha digital nas bolsas de valores mundiais, em fins de 1999 e começo do ano 2000. Naquela ocasião, inúmeras empresas on-line sentiram os efeitos da especulação publicitária na rede e decretaram falência. A crise marca o início da segunda fase da WWW: a web 2.0 (termo cunhado por Tim O’Reilly), que impulsiona a interatividade entre emissor e usuário, numa reconfiguração de papéis. “A tônica dessa geração pode ser resumida nos seguintes atributos: ruptura do predomínio do pólo de emissão, criação de canais de informação e conversação independentes das fontes formais, alto grau de envolvimento e personalização por parte dos usuários, alto grau de articulação coletiva, coincidência ‘proposital’ entre as ferramentas de comunicação e as formas de participação” (BORGES; BUZALAF, 2011, p. 9). Se a primeira fase da web é dedicada à publicação de informações pelos responsáveis por grandes sites, a segunda enfoca a cooperação por meio de redes sociais, blogs, conhecimento coletivo e jornalismo participativo. A popularização de Sistemas de Gerenciamento de Conteúdos, o aumento da velocidade da conexão e a convergência midiática também passam à linha de frente na web 2.0. O discurso fluido e a instantaneidade do tempo real articulam novas alternativas do fazer jornalístico amparadas pela organização em redes de informação e pela distribuição em fluxo contínuo. Para Primo (2007, p. 2), a web 2.0 “[...] caracteriza-se por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os participantes do processo”. Refere-se, então, a uma combinação de técnicas informáticas, estratégias mercadológicas e processos de comunicação mediados pelo computador. A produção 2.0 de conteúdo atualiza a relação com o público, alçado ao posto de produtor coadjuvante, no caso de portais jornalísticos institucionalizados, e protagonista, quando considerados sites pessoais, redes sociais e iniciativas de jornalismo-cidadão. O internauta passa a interatuar no ciberespaço e demonstrar sua capacidade produtiva com diferentes graus de interferência, forçando o jornalismo a inserir o usuário direta ou indiretamente no processo produtivo da notícia. Cabe advertir, contudo, que o trabalho conjunto não significa a construção de discursos legítimos, igualitários e polissêmicos, capazes de suprir as necessidades de todo o grupo social. Como lembra Primo (2007), a organização grupal tanto pode revelar múltiplas vozes quanto mascarar confusões, erros de informação e relações de

poder. A dinâmica (inter)ativa do público impõe ao jornalismo uma releitura de suas atividades, traduzida em segmentação de conteúdo, uso de ferramentas participativas e diversificação de fontes de informação. Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos da segunda geração da web fortalecem o uso de recursos multimidiáticos, efetivado pela integração de diferentes plataformas de mídia; qualificação espacial baseada em hiperlinks; e formação da memória por meio de bancos de dados. Em meio a este cenário, surge uma proposta de jornalismo 3.0, conduzido pelo que seria a web 3.0. Esta concepção é abordada por Borges e Buzalaf (2011, p. 9) ainda no campo das ideias: “[...] os computadores passarão a entender de semântica, eles compreenderiam o significado das palavras que usamos na rede. Fariam associações de ideias a partir delas”. Em suma, tratar-se-ia de uma internet dotada de inteligência e capaz de vincular-se ao usuário, promovendo um alto grau de personalização. A anatomia da web e as formas concomitantes de atuação jornalística abordadas neste artigo não pretendem dissociar as gerações da WWW umas das outras, como se retratassem etapas finalizadas. Na verdade, as características coexistem, misturam-se e interagem de maneira contínua e inacabada. Significa que o ambiente web ainda está em evolução e busca caminhos para consolidar seu papel perante a sociedade mediada por computador. Referências: BORGES, Rosane da Silva; BUZALAF, Márcia Neme. Espaço e design do jornalismo impresso na contemporaneidade: confluências com o jornalismo digital na web 3.0. IN: Anais do I Congresso Mundial de Comunicação Ibero-Americana – Confibercom. ST 08 – Jornalismo. São Paulo: USP, 2011. Disponível em: <http://confibercom.org/anais2011/pdf/317. pdf>. Acesso em: 02 out. 2013. FERRARI, Pollyana. Jornalismo Digital. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006. (Coleção Comunicação) PRADO, Magaly. Webjornalismo. Rio de Janeiro: LTC, 2011. PRIMO, Alex. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. E-Compós, Brasília, v. 9, p. 1-21, 2007. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/ index.php/e-compos/article/view/153/154>. Acesso em: 30 set. 2013.

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).


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Opinião

Teoria política e realidade brasileira - r e s e n h a Por José Antonio Spinelli

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coletânea objeto dessa resenha é dividida em duas partes. A primeira delas aborda, em dois capítulos, temas relativos à atual conjuntura jurídico-política. O primeiro tem como foco a politização da Justiça, que coloca sob suspeita a sua isenção, constituindo-se no principal fator para o possível estabelecimento de um Estado de exceção, não previsto na Constituição brasileira. O autor nos fornece preciosos subsídios para a compreensão do ativismo judicial em voga, e, conseqüentemente, para os perigos da judicialização da política e de sua politização. Esta apresenta maior gravidade porque coloca em risco o próprio Estado democrático de direito, cuja arquitetura institucional não pode prescindir da isenção de juízes, pro-

curadores e promotores. Rubens Pinto Lyra mostra que não se pode sucumbir à tentação de substituir a política pelo aceno salvacionista dos que concebem o Poder Judiciário como se fora um deus ex machina, única instituição capaz de conduzir o país a porto seguro. Nas suas conclusões, o autor aponta para a necessidade de plataformas e agendas inovadoras susceptíveis de aglutinar todos que acreditam na importância da defesa do Estado de Direito, no aprofundamento da democracia e na busca de estratégias inovadoras que possibilitem a renovação de práticas políticas e concepções teóricas que têm, historicamente, engessado as chamadas “forças progressistas”. Já o segundo capítulo estuda as ouvidorias judiciais, examinando o seu desenho, suas atribuições


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e o que necessita incorporar para servir, como instrumento democrático de controle social, na contenção do corporativismo e do ativismo judicial que impregna fortemente o Poder Judiciário. Esse estudo parte de uma importante crítica ao modelo de ouvidoria subordinada prevalecente em nosso país, destacando o que, nas ouvidorias judiciais, aproxima-se e distancia-se desse modelo e apontando a necessidade de sua abertura à sociedade, mediante a constituição de conselhos consultivos. Esse é um dos temas mais fortes e originais do livro: a defesa de ouvidorias autônomas, dialógicas e participativas. A segunda parte de Teoria Política e Realidade Brasleira - a mais longa - examina os quatro grandes clássicos da Ciência Política (Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau) e os dois expoentes do marxismo dos séculos XIX e XX (Kautsky e Gramsci). O autor se esmera na análise de como as teorias políticas mais influentes da história foram arquitetadas e de que maneira elas determinam a vida política atual. O leitor se surpreenderá com uma abordagem inovadora que apresenta Maquiavel como precursor da democracia, aponta os estreitos limites das veleidades libertárias do pensamento de Locke, associa a teoria rousseauniana a conquistas democráticas insculpidas na legislação atual de vários países e demonstra que a teoria de Marx não moldou, como pretende o senso comum, os regimes do Leste Europeu, que desabaram com a queda do Muro de Berlim. As teorias abordadas nesta obra são indispensáveis para o conhecimento da democracia e do socialismo, o que significa dizer, para o enfrentamento de nossos problemas sociais e políticos, mediante estratégias de contra-hegemonia, que resgatam não apenas reivindicações corporativas, mas alcançam a sociedade como um todo, inclusive a esfera ideológica-cultural. Um traço característico dessa coletânea consiste na relação que o autor procura estabelecer entre as formulações dos teóricos por ele estudados com as realidades vividas nos tempos atuais, no aqui e no agora, sobretudo no Brasil. Para Rubens Pinto Lyra, o conhecimento da teoria só tem utilidade na exata medida em que possa servir para iluminar a práxis concreta dos atores sociais. Nas palavras do Professor Luiz Eduardo Soares, prefaciador de Teoria Política e Realidade Brasileira, “Trata-se de obra notável pela abrangência e profundidade, pela qualidade das reflexões e pelo tempero forte: as posições políticas que o autor afirma com clareza, desassombro e honestidade. Nada de meias palavras que disfarcem, sob a máscara da neutralidade, a adesão a valores históricos cujas ra-

ízes remetem às tradições republicanas, socialistas e democráticas. E, em cada capítulo, a combinação virtuosa da erudição e inteligência criativa fertiliza a primeira e municia a segunda, superando-se dessa forma a postura escolástica que encerra a hermenêutica em seu próprio círculo”. Em Teoria Politica e Realidade Brasileira é perceptível a marca do militante, que ao longo de quarenta e cinco anos exercitou íntima e ininterrupta convivência com as teorias aqui expostas, e com os institutos de democracia participativa, para cujo estudo dedicou o melhor de suas energias – temas imprescindíveis ao entendimento de sua práxis política, e a de toda a sociedade. Ressalte-se a preocupação do Professor Rubens Pinto Lyra com a clareza e a objetividade de seus textos, ainda mais levando-se em conta o caráter fortemente analítico de sua obra, que não prima por truísmos nem por concessões a uma abordagem superficial, meramente descritiva. Essas características valorizam a linguagem didática, sem preciosismos teóricos, citações ininteligíveis e questões complexas, expostas, mas não devidamente explicadas. Teoria Política e Realidade Brasileira não se destina apenas aos professores e estudantes de Ciência Política. Interessa igualmente a um público ilustrado, atento ao que acontece no país e a nível internacional, mas carente de ferramentas eficazes para conferir maior profundidade e senso crítico à compreensão da política, e aos meios de transformá-la. As ciências sociais, em particular a Ciência Política, carecem de textos como os que nos são oferecidos agora, associando, sempre, o compromisso apaixonado de um vida de luta pela transformação democrática da sociedade com a abordagem crítica das mazelas da política brasileira. Pois que, de sua superação, depende a possibilidade de se instituir uma nova “legalidade libertária”, concretizando os sonhos de uma progressão contínua, lastreada no desenvolvimento econômico, na democracia, na ética e na justiça social.

Referências: LYRA, Rubens Pinto. TEORIA POLITICA E REALIDADE BRASILEIRA. CAMPINA GRANDE: EDITORA DA UEPB, 2017, 284 p. O livro está disponível nas livrarias e mediante encomenda ao autor, ao preço de 30 reais, já incluído o porte, pelo email: rubelyra@uol.com.br. José Antonio Spinelli é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, professor titular de Teorias Sociológicas e docente do Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN.


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Opinião

A cidade enquanto espaço de direitos

Mele Dornelas/Terral Coletivo

Por Daniel Lamir de Freitas Ferreira

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cidade é uma versão miniaturizada dos processos sociopolíticos e econômicos de uma sociedade. A forma de organização desse espaço é um importante termômetro da democracia e/ou dos processos de segregação existentes. Não à toa, o tema do direito à cidade tenha voltado com tamanha força à agenda dos movimentos sociais e se tornado emblemático da luta anti-capitalista nas duas últimas décadas. Essa bandeira de luta, em geral, convoca o Estado a cumprir o seu papel de prover as condições dignas de existência individual e coletiva, principalmente dos grupos mais vulneráveis, dentre esses, as crianças, os(as) adolescentes, os(as) jovens, mulheres e negros(as).

No Brasil, a disputa pelo direito à cidade acontece num cenário urbano bastante fragmentado, com distribuição desigual de serviços e acesso a direitos. As diferentes faces da gestão pública se apresentam de acordo com as segmentações das classes sociais dos bairros. A ausência de equipamentos públicos nas comunidades periféricas é um exemplo das políticas e programas de desenvolvimento urbano que não atendem a população de forma equitativa. Assim, entre ruas e avenidas, há uma distorção na disponibilidade e condições de acesso humano à água, energia elétrica, iluminação pública, transporte, lazer, educação e saúde. Outro exemplo disso é a cobertura da rede de educação infantil. Segundo dados da Fundação


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Abrinq, em 2012, as unidades de ensino com oferta para crianças entre zero e três anos atendia apenas a 22,53% da demanda brasileira. Ao lado dos cuidados da família, as creches são equipamentos públicos essenciais para o desenvolvimento de meninos e meninas na primeira infância (de zero a seis anos). Além disso, as creches possibilitam o acesso das mães ao mundo do trabalho e à qualificação profissional, elementos indispensáveis para o empoderamento econômico das mulheres. O direito à cidade engloba uma dimensão de democracia participativa que prevê a participação popular nas decisões políticas, o menor distanciamento possível entre as instâncias burocráticas da gestão pública e a sociedade civil, a formulação de estratégias que permitam o bem viver coletivo por meio da criação e manutenção de equipamentos e espaços públicos acessíveis a todas as pessoas. Como ressalta David Harvey, o direito à cidade é inseparável da pessoa que desejamos ser e deve ser visto como um dos direitos humanos mais preciosos. Precisamos de um modelo de desenvolvimento urbano frontalmente contrário às lógicas de exclusão. Tal modelo é indispensável para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes e para a diminuição das brechas de desigualdades baseadas nas relações de gênero, raça/etnia e classe social. Tais características a tornam uma causa a ser perseguida por todos os segmentos sociais, em especial os socialmente excluídos, assim como, por outro lado, é uma causa abominada pelo capital imobiliário e uma rede de agentes que lucram com a verticalização das cidades e com os processos de gentrificação. Dentre as diversidades culturais, sociais e religiosas das cidades, vale destacar a desigualdade no desenvolvimento urbano como um vetor para as intolerâncias e a segregação entre bairros que, algumas vezes, estão lado a lado no cenário das cidades. Um recorte desta realidade em disputa política é a comunidade de Passarinho, na Zona Norte do Recife. Seus/as moradores/as resistem ao modelo capitalista de periferização da pobreza, reivindicando direitos sociais básicos negados pelo poder público, como áreas de lazer, postos de saúde, regularização fundiária, preservação ambiental, ampliação do serviço de transporte público, entre outros. A comunidade de Passarinho foi formada no início da década de 1980 e pelos dados oficiais da Prefeitura do Recife possui cerca de vinte mil habitantes em 406 hectares. Porém, o bairro comporta ainda mais cinco mil famílias que ocuparam um terreno e fundaram a Vila Esperança, mas não constam nos registros oficiais porque aguardam a regularização fundiária e vivem sob ameaça de despejo. A organização coletiva e as mobilizações popu-

lares na comunidade de Passarinho contam com a participação efetiva de mulheres negras, sobretudo organizadas no Grupo Espaço Mulher, organização social da localidade. Uma das bandeiras de reivindicação do grupo é a criação de equipamentos voltados para a primeira infância, como as creches. Estima-se uma demanda de mais de 150 crianças de até três anos sem estarem matriculadas, influenciando também na diminuição da inserção feminina no mercado de trabalho e na geração de renda. Segundo o Grupo Espaço Mulher, a falta de espaços públicos de lazer e cultura também impacta na vida de adolescentes e jovens, e, consequentemente, das suas mães. Vale abordar o vínculo indissociável entre as oportunidades de desenvolvimento e proteção infantil e o empoderamento das mulheres. Em uma sociedade machista como a nossa, na qual o cuidado das crianças pesa mais sobre os ombros de suas mães, investir em políticas urbanas que façam a intersecção entre democratização do espaço público, que beneficiem crianças e adolescentes (não só as creches, mas também parques e praças) também colaboram com as possibilidades de melhoria das condições de vida das mulheres, não apenas financeiramente, mas também de participação política e comunitária. Além disso, corroboraria com a execução de leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual, a partir de um olhar holístico, ressalta a responsabilidade compartilhada entre família, Estado e comunidade com o desenvolvimento das crianças e adolescentes. O direito à cidade se apresenta então como catalisador de demandas cidadãs, as quais beneficiam prioritariamente os grupos sociais mais vulneráveis. A perspectiva cidadã nos espaços urbanos inclui a liberdade de monitorar os espaços públicos e exigir as políticas e os equipamentos adequados, na proposta de equilibrar o desenvolvimento comunitário nos vários fragmentos das cidades. Trata-se de uma via de mão dupla: as pessoas precisam transformar a cidade em espaços para pessoas; e as cidades, estruturadas para a coletividade, precisam transformam e assegurar a vida das pessoas.

Daniel Lamir de Freitas Ferreira é bacharel em Rádio e TV pela Universidade Federal de Pernambuco e em Jornalismo pelo Centro Universitário Uninassau, integrando atualmente as equipes do periódico Brasil de Fato Pernambuco e do Coletivo de Jornalistas Independentes Terral, fazendo parte também da produção do programa radiofônico Fora da Curva, veiculado pela Rádio Universitária FM.


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Mídia Alternativa Jornalismo de oposição e resistência Por Xenya Bucchioni

Robert Darnton: entre protestos, poesia e canais de comunicação

S

e nos dias de hoje os memes tornaram-se o veículo privilegiado para a expressão do descontentamento político, na Paris do século XVIII coube à poesia ocupar esse lugar. Distantes no tempo e espaço, ambas expressões têm em comum uma aposta crítica feita no cruzamento de caminhos entre o humor e a política. Decidido a lançar-se sobre o curioso cenário francês do Antigo Regime, o historiador Robert Darnton debruçou-se em tais poemas munido pelo interesse em compreender os sistemas de comunicação e circuitos de informação através dos quais

circularam as críticas populares. Poesia e política: redes de comunicação na Paris do Século XVIII, foi publicado pela Companhia das Letras em 2014 e mantem-se como rica leitura para os pesquisadores ávidos por compreender como se formulam redes de comunicação complexas, bem como os modos possíveis de circulação da informação. Trata-se, portanto, de mais uma obra do autor construída nos meandros do cenário da crise moral e política que rondou o reinado de Luís XV, culminando no episódio cravado e, até hoje, relembrado na história da França – a Revolução Francesa. Ao seguir a trilha de seis poemas sediciosos, de teor satírico e ousado, Darnton traz à tona a “mais abrangente operação policial” da Paris de 1749. Revela, pouco a pouco, uma rede na qual a cultura letrada funde-se à experiência oral, num contexto marcado pela semi-alfabetização da população. Isso porque, os poemas eram copiados em pedaços de papel e transmitidos das mais variadas formas – ditados de pessoas a pessoas, declamados para plateias pequenas e, ainda, inseridos em músicas e melodias populares. Os poemas disseminavam-se, assim, a uma velocidade maior do que os olhares policiais podiam acompanhar. Devido à oralidade, representavam por si só um desafio as autoridades, já que eram repassados, sobremaneira, pela memorização do conteúdo. Escritos tanto por integrantes da Corte como das camadas mais baixas da população, eles eram recitados por trabalhadores, artesãos, filhos de professores, clérigos, estudantes. À polícia, em todos esses casos, coube a tarefa semelhante ao que vimos no Brasil nos tempos da ditadura, isto é conter o avanço da difamação perante a ordem estabelecida, preservando o regime estabelecido. Em suma, o que a obra de Darnton assinala, para além de revelar o descontentamento social com o Antigo Regime e os sistemas de comunicação franceses daquela época, é que os poemas constituem-se enquanto um canal possível para a expressão política daqueles que permaneciam excluídos das benesses da Corte. Converteram política em poesia, demarcando protestos populares potentes passíveis de serem realizados via uma rede complexa de comunicação. Desvenda, portanto, um universo


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no qual a sociedade da informação – tal qual visualizada nos marcos do avanço tecnológico propiciado pela conectividade da internet – já dava mostras de sua existência antes mesmo do surgimento dos primeiros computadores. Do papel à gráfica: os meandros da impressão Aos olhos de hoje, se existe uma etapa da produção dos jornais alternativos da década de 1970 que carrega o espírito da ousadia e da irreverência esta, talvez, seja a de prepará-lo e encaminhá-lo para impressão. Isso porque boa parte do processo referente à montagem acontecia de modo artesanal, sobretudo se comparado às facilidades adquiridas com a evolução das tecnologias digitais. Naquela época, chegar ao resultado esperado envolvia um processo feito à mão. As publicações eram montadas no estilete, em um trabalho que se estendia às dependências da gráfica. Um processo no qual cada página publicada passava pela composição, feita em lâmina à base de tesoura e cola. Desenhadas no lápis, as páginas passavam pela revisão ao longo dessa etapa – momento no qual escolhia-se a tipografia adequada para dar vida à títulos, subtítulos e olhos, aproveitando-se, também, para corrigir as falhas nessa formulação. Por isso mesmo, esse processo de edição e diagramação manual, mais conhecido pelo nome de past up, feito em conjunto com a gráfica, representava, assim, a possibilidade de arriscar novas propostas. Acompanhando a dinâmica dessa confecção manual, os títulos eram feitos letra por letra por meio da Letraset, que nada mais era do que letras plásticas decalcáveis com diferentes famílias tipográficas, vendidas em tamanhos variados e cujo uso estendeu-se até meados da década de 1990

(GARFIELD, 2012). Segundo Simon Garfield, as cartelas de Letraset foram revolucionárias para o universo impresso, acarretando mudanças, também, no meio da impressão pessoal, pois podiam ser aplicadas em convites de festas. Nos Estados Unidos, observa o autor, elas foram aplicadas na maioria dos fanzines punk e na imprensa estudantil dos anos 1970 e do início dos 1980. Por ser um sistema acessível ao cidadão comum, seu potencial foi transformador para a tipografia. Afinal, possibilitou a ampliação do número de fontes disponíveis. Para se ter ideia, a composição de um alfabeto inteiro em Letraset podia demorar seis semanas até que tivesse qualidade suficiente para ser reproduzida no tal plástico adesivo e ganhar asas em projetos gráficos mundo afora. O período de treino para tornar-se um cortador profissional das revolucionárias letrinhas era de cerca de dois anos e, ainda assim, a depender do ornamento usado em uma família tipográfica, uma única letra podia levar dois dias para ser cortada. Lançada em 1961, a Letraset, sem dúvida, fez história. Dois anos depois de sua chegada, elas estavam disponíveis em 35 fontes padrão e, dez anos depois, presentes em 96 países, já com 120 fontes padrão. Em 73, de modo a ampliar, ainda mais, a oferta de fontes, um concurso levou 2.500 participantes a inscreverem suas ideias na Competição Internacional de Design de Tipos. Iniciativa na qual dezessete novas fontes foram selecionadas para produção, fomentando projetos gráficos inovadores. No saldo dos tempos, métodos e processos de outrora, vistos em conjunto, revelam uma complexa teia artesanal na qual as ideias empregadas nesse tipo de diagramação surgiam em sintonia fina com o próprio ambiente da gráfica, em um trabalho no qual a criatividade envolve não apenas um esforço braçal, mas, antes de tudo, coletivo. Referências: GARFIELD, Simon. Esse é meu tipo: um livro sobre fontes. Tradução Cid Kipnel. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2012 Escrita pela jornalista Xenya Bucchioni, doutoranda em Comunicação na UFPE e fundadora do Mezclador, estúdio de cultura contemporânea desenhado para realizar projetos de impacto social, a coluna Mídia Alternativa aborda a produção jornalística feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um raio-x das publicações alternativas marcantes na história do jornalismo e do país, além de entrevistas e debates.


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Opinião Violência e Cidadania

Por Maria Luiza Carvalho de Lima

E

m relação ao perfil epidemiológico no Brasil, as violências se constituem na segunda causa de morte até o início da década de 1980, sendo os acidentes de trânsito a principal causa. A partir da segunda metade de 1980 os homicídios passam a superar os acidentes de trânsito, mantendo uma tendência crescente. Considerando o ano de 2015, e tomando o conjunto dos estados brasileiros, o Estado de Pernambuco ocupou o 8° lugar no ranking de homicídios, apresentando uma taxa de 40,54 homicídios por 100.000 habitantes enquanto a média nacional foi de 27,99, (DATASUS,2017). O Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que de

janeiro a agosto de 2017 ocorreu um número de 15 homicídios por dia, em Pernambuco, contabilizando cerca de 4000 homicídios neste período, o maior número de assassinatos nos últimos 5 anos, dados publicados no portal de notícias da Globo G1. Apesar da violência ser um problema mundial e presente na história da humanidade, sua magnitude e suas formas de manifestação variam segundo condições temporais e locais. Portanto, não se deve aceitá-la como um aspecto inevitável da condição humana, uma vez que do ponto de vista da sua determinação não há causas biológicas. Além disso, é impossível pensar um fenômeno tão complexo sem considerar a violência como um problema social, cultural, histórico político, institucional etc., e que se


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manifesta de diversas formas, dependendo de cada estrutura social e do grau de cidadania alcançada. Assim sendo, a violência é passível de prevenção em várias dimensões: individual, nas relações interpessoais, na comunidade e no nível societário. Essa última dimensão, constituída, entre outras, pelas políticas socioeconômicas, é a que apresenta maior impacto na redução da violência, contrariamente ao pensamento hegemônico preconizando apenas inter venções em segurança pública. Isto pode ser demonstrado pelo impacto do Programa Pacto pela Vida, com linhas de atuação em: prevenção social do crime e da violência, repressão qualificada da violência, aperfeiçoamento institucional, informação e gestão do conhecimento, formação e capacitação e gestão democrática nos índices de violência no estado durante os anos de 2007 a 2013, ano que o programa sofreu mudanças de gestão. No tocante à saúde pública, a violência torna-se um problema pelos altos investimentos decorrentes dos índices alcançados, demandando cuidados na rede de ser viço de saúde nos seus vários níveis; primário, secundário e terciário. No nível primário a porta de entrada se dá através das unidades de saúde da família, as quais, para identificar os casos de violência, devem possuir equipes de saúde devidamente qualificadas para identificação e notificação dos casos, assim como o encaminhamento para os devidos níveis de atenção à saúde e demais órgãos do governo. No nível secundário a porta de entrada se constitui das unidades de emergência ou pronto atendimento, ambulatórios especializados que requerem cada vez mais equipamentos sofisticados e profissionais especializados, demandando maior investimento do governo. O nível terciário se compõe da rede hospitalar de grande porte, com tecnologias avançadas e médicos especialistas em áreas que exigem uma formação extensiva, fundamental para garantir a sobrevivência do indivíduo. As abordagens de prevenção deverão ser desenvolvidas de acordo com a competência de cada nível e segundo a necessidade de investimento requerido pela rede de atenção. No contexto social, as vias oficiais (governamentais) tratando da violência se mostram incapazes de fazer distinção entre os determinantes inerentes à condição de vida das

comunidades desfavorecidas, e as causas inerentes ao estado de degradação da sociedade em geral, quais sejam os desequilíbrios nos investimentos públicos em políticas sociais e nas infraestruturas comunitárias. Some-se a isso a incapacidade de promover mudanças de funcionamento institucional permitindo a alteração de paradigmas no que concerne à percepção coletiva das desigualdades sociais. A percepção de que a classe mais desfavorecida da sociedade e a classe mais abastada se opõem no que tange às necessidades básicas de investimento público, incita ao embate constante que se obser va no dia a dia das grandes cidades do pais. Essa temática nos leva à uma reflexão quanto as responsabilidades de outros atores na modificação da percepção coletiva da violência como problema social generalizado e não como eventos isolados. Os meios de comunicação de massa têm tido um papel relevante na determinação da percepção coletiva da violência segundo a sociedade em questão, notadamente quanto ao grau de cidadania atingido. Uma diferença marcante entre as abordagens da violência em países com mais ou menos desigualdades socioeconômicas consiste da forma como episódios de violência são noticiados à população. Nos primeiros a abordagem se concentra na vitimização versus agressão, enquanto que no segundo as causas conjunturais da violência tomam um lugar mais importante na análise dos fatos. Essa incapacidade de apresentar a violência em suas causas se reflete então na promoção de um ciclo de desinformação junto às diversas camadas sociais que levam a uma percepção de “nós contra eles” entre os grupos segundo as classes econômicas representadas, o que incita a perpetuação do conflito. Outrossim, os setores de comunicação na sua grande maioria bombardeiam diariamente a população ao noticiar números assustadores de assassinatos, acidentes de trânsito, entre outros, sem uma análise crítica da sua gênese, ser vindo para banalizar a violência a ponto da população se sentir impotente e amedrontada. Maria Luiza Carvalho de Lima é pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães/ FIOCRUZ/PE e Coordenadora do Laboratório de Estudos da Violência em Saúde/LEVES.


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Mídia Fora do Armário Jornalismo e construções identitárias Por Rui Caeiro

“I

N T E R SE XO S qu a n d o v a m o s s a i r d o e s c u ro d a qu e l a s a l a [ m é d i c a ] fria e fazer barulho em meio a pr a ç a s , h o s pit a i s , m e s a s , ro d a s d e c onv e r s a e out ro s e s p a ç o s , qu a n d o v a m o s v e n c e r o f r i o e bu s c a r o s o l e s e u s r a i o s qu e l i b e r t a m e a d e nt r a r o s e s p a ç o s qu e n o s f or a m f e c h a d o s ? ” Ta l q u e s t i on a m e nt o p o d e re s u m i r, e m m e u e nt e n d i m e nt o, u m p ou c o d a lut a qu e é c omu m a t o d a s a s ( ap e l i d a d a s ) « m i n or i a s » : a n e c e s s i d a d e d e s e c on s t itu í re m e n qu a nt o g r up o s q u e p a r t i l h a m v i v ê n c i a s , s i g n i f i c a d o s e d e m a n d a s s u f i c i e nt e m e nt e próx i m a s , q u e s e or g a n i z e m , s e t or n e m v i s í v e i s e ou v i d o s . E s s e « t or n a r » , e s s a mu d a n ç a , n ã o é , n atu r a l m e nt e , f á c i l d e c on c re t i z a r, pr i n c i p a l m e nt e qu a n d o out ro t or n a re s j á ( ou a i n d a ) n ã o s ã o c ompre e n d i d o s c om o t a l , m a s c om o v e rd a d e s a nt e r i ore s a o Hom e m ( e s s e Hom e m , s up o s t o s i n ôn i m o d e hu m a n i d a d e , t a m b é m e l e u m a f i c ç ã o – e n e m p or i s s o

i r re a l ) . Tor n a re s q u e pre c i s a m s e r n om e a d o s – n ã o ap e n a s a q u e l e s q u e c ont i nu a m a s e r s i l e n c i a d o s ( a i nt e r s e x u a l i d a d e , f or a d o s p a r â m e t ro s d o s f r i o s c on s u lt ór i o s m é dicos – e não serão todos ?), mas aqueles q u e apre n d e m o s d e f or m a t ã o pre m at u r a , c ont i nu a d a e i nt e n s a q u e , m e s m o l h e s i g n or a n d o o n om e ( ou p or c au s a d i s s o ) , a c e i t a m o s c om o u n i v e r s a i s , n atu r a i s , ó bv i o s , s au d áv e i s ( p e s s o a s d i á d i c a s – ou s e j a , n ã o - i nt e r s e x u a i s – s ã o, at u a l m e nt e , a s s o c i a l m e nt e e n q u a d r áv e i s n e s s e s a dj e c t i v o s ) . A m i e l Vi e i r a , h om e m t r a n s , i nt e r s e x o, s o c i ó l o g o e d out or a n d o e m bi o é t i c a p e l a U F R J f oi o aut or d a prov o c a ç ã o q u e d e u i n í c i o a e s t e t e x t o. P u b l i c a d o n o s it e Tr a n s a d v o c at e B r a s i l ( http : / / br a z i l . t r a n s a d v o c at e . com/intersexo/cade-o-intersexo-mundo/), e i nt itu l a d o d e “C a d ê o i nt e r s e x o, mu n d o ? ”, o t e x t o d e i x a - n o s p a r a re f l e x ã o u m a s é r i e d e p e r g u nt a s s o bre e s s a i nv i s i bi l i d a -


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d e , at é m e s m o n o s e s p a ç o s on d e e l a s e r i a , à p a r t i d a , m a i s n ot a d a ( c omu n i d a d e L G BTQ IA + ) . “Lut a r p a r a qu e i n d i v í du o s p o s s a m t e r a op or tu n i d a d e d e d e c i d i r s u a c i r u r g i a g e n it a l c om i nt e i r a c on s c i ê n c i a , d e v e r i a s e r u m a c au s a a br a ç a d a p or v o c ê s [ L G BT ’s ] [ … ] p orqu e n ã o v e n c e r a g u e r r a e nt re bi o l o g i a e i d e nt i d a d e e or i e nt a ç ã o e ju nt a r- s e a n ó s n e s s a lut a ? ” “Nã o s om o s pro b l e m a , s e n h o re s , s om o s re s p o s t a à qu e s t ã o d e g ê n e ro, h á m a i s n o d e g r a d ê e nt re h om e m e mu l h e r q u e o s e r hu m a n o p o s s a i m a g i n a r, o c up a m o s o d e g r a d ê , d e u pr a p e rc e b e r ? ” “S e a bi o l o g i a at e s t a a d i v e r s i d a d e c om o n e c e s s á r i a p a r a o e qu i l í br i o d o p l a n e t a , p orqu e n ã o d a r b e m - v i n d a a c or p o s d i v e r s o s e e n f i l e i r a r- s e n a lut a p or u m mu n d o d e re s p e it o a d i v e r s i d a d e ? At é q u a n d o v ã o c ont i nu a r [ c l a s s e m é d i c a ] c om o D e u s e s , Ju í z e s e of i c i a i s d e j u s t i ç a p a r a at e s t a r u m a m e nt i r a qu e a própr i a n atu re z a at e s t a d e qu e a i nt e r s e x u a l i d a d e n ã o é u m e r ro e n e m u m ap a r at o d e e s c á rn i o a o s o c i a l i mp o s t o p e l a c u ltu r a , m a s v i d a s q u e s ã o ú n i c a s e i mp or t a m ? ” Nu m a bre v e c onv e r s a c om o aut or d e s t a c o lu n a , A m i e l f a l ou u m p ou c o s o bre e s t e a s s u nt o, q u e i n c lu s i v e c ont i nu a , m aj or it a r i a m e nt e , a f a s t a d o d a s p aut a s m i d i át i c a s , j or n a l í s t i c a s ou n ã o, e m u m m om e nt o m a rc a d o p e l o q u e p a re c e s e r o au m e nt o d a s n a r r at i v a s d e / s o bre s e x u a l i d a d e s , g ê n e ro s e c or p or a l i d a d e s c on s i d e r a d a s t r a d i c i o n a l m e nt e f or a d a n or m a . É t a mb é m p or a í , a c re d it o, q u e i n e v it av e l m e nt e t e r ã o d e p a s s a r a s n a r r at i v a s qu e c o l o qu e m e m qu e s t ã o a ( a ) n or m a l i d a d e d o s c or p o s / i nt e r s e x u a i s . Po d e s d i z e r, bre v e m e nt e , o qu e p o d e m o s e nt e n d e r p or i nt e r s e x u a l i d a d e ? A i nt e r s e x u a l i d a d e s e mpre f oi e nt e n d i d a p e l o s a b e r m é d i c o c om o u m a a n om a l i a bi o l ó g i c a d o d e s e nv o l v i m e nt o d o c or p o hu m a n o, s e j a p or d e s e n c ont ro s c rom o s s ô m i c o s ou h or m on a i s . C om o m ov i m e nt o s o c i a l , nu n c a n o s v i m o s c om o u m a a n om a l i a : é a l g o pre s e nt e e c omu m n a bi o l o g i a . Nã o s om o s u m e r ro, s om o s p a r t e d a d i v e r s i d a d e d a v i d a . A i nt e r s e x u a l i d a d e é a l g o qu e a própr i a bi o s f e r a p e rc e b e c om o ord i n á r i o… S e a l g o t ã o c omu m é a c e it o p e l a própr i a n atu re z a , p orq u e o h om e m n o s v ê c om o a n ôm a l o s ? No s e g u i m e nt o d a p e r g u nt a a nt e r i or, p o d e m o s f a l a r d e u m m ov i m e nt o or g a n i z a d o d e p e s s o a s i nt e r s e x u a i s ? C om o e l e c om e ç ou e qu a i s s ã o o s pr i n c ip a i s d e s a f i o s qu e e n f re nt a ?

No B r a s i l é b e m re c e nt e , c om e ç ou n o a n o d e 2 0 1 5 c om a c r i a ç ã o d a p á g i n a v i s i bi l i d a d e i nt e r s e x o n o f a c e b o o k ( http s : / / w w w. facebook.com/visibilidadeintersex/?ref = br _ r s ) e u m g r up o p a r a p e s s o a s i nt e r s e x o s . No s s o m a i or d e s a f i o h oj e é n o s t or n a rm o s a l g o m a i s i n s t itu c i on a l , c om o O N G n o p a í s e m d e f e s a d a proi bi ç ã o d a c i r u r g i a d e c r i a n ç a s i nt e r s e x o s e e m bu s c a d e u m o l h a r m e n o s m e d i c a l i z a nt e d a m e d i c i n a e d a s o ciedade para nós. Hoj e é c omu m f a l a r- s e d e re pre s e nt at i v i d a d e q u a n d o f a l a m o s d e m i n or i a s . . . c om o e s t a m o s e m re l a ç ã o a i s s o n a s q u e s t õ e s re f e re nt e s à ( s ) i nt e r s e x u a l i d a ( s ) ? Q u a l t e m s i d o, e q u a l c on s i d e r a s qu e d e v e r i a s e r, o p ap e l d a m i d i a e d o j or n a l i s m o n e s s e q u e s it o ? Ac h o qu e a q u e s t ã o n o p a í s s e mpre f oi d e s e r m o s ap a g a d o s e i nv i s i bi l i z a d o s , j á q u e s om o s “c or r i g i d o s” n a i n f â n c i a e a e s f e r a d e s e g re d o e s i l ê n c i o i mp o s t o p or e s s a c or re ç ã o m é d i c a ap a g a n o s s a re pre s e nt at i v i d a d e n a m a i or i a d a s v e z e s . As re f e rê n c i a s n a m í d i a s e mpre s ã o d e e s p e t a c u l a r i z a ç ã o e p on tu a i s , a l g o m a i s s é r i o s ó é m a i s b e m t r at a d o e m d o c u m e nt á r i o s f or a d a re a l i d a d e br a s i l e i r a , a q u i a i n d a s ã o i r r i s ór i o s e t e n d e m a o s e n s a c i on a l i s m o. É c omu m ou v i r d e p e s s o a s c om g ê n e ro e / ou s e x u a l i d a d e n ã o n or m at i v a s a f r a s e “n a s c i a s s i m / b or n t h i s w ay ” p a r a f a l a r s o bre a l e g it i m i d a d e d e s s a s v i v ê n c i a s / i d e nt i d a d e s . A n í v e l m a c ro, p o l it i c o, c om o av a l i a s o re t or n o a e s s e e s s e n c i a l i s m o ? No c a s o d o s c or p o s i nt e r s e x o s e t r a n s e x u a i s , n ã o v e j o c om o e s s e n c i a l i s m o. Ve m o s c om o e x i s t ê n c i a s q u e f o g e m à e s c r it a h e t e ro c i s n om a d a s o c i e d a d e e m q u e i n f e l i z m e n te vivemos. É engraçado pensar que quando f a l a m o s s o bre c or p o s d e e s c r it a s a d v e r s a s a h e t e ro c i s n or m at i v i d a d e n o s at a c a m d i z e n d o q u e s om o s e s s e n c i a l i s t a s , h á a l g o m a i s e s s e n c i a l i s t a d o q u e a i mp o s i ç ã o h e t e ro c i s nu m a s o c i e d a d e c om o a n o s s a ?

Assinada pelo jornalista Rui Caeiro, mestre em Comunicação pela UFPE, a coluna ambiciona instigar reflexões que se debrucem sobre as relações que se estabelecem entre produção midiática/jornalística e a construção e vivência de identidades consideradas abjetas em nossa sociedade. O foco será em sexualidade e gênero.


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Opinião

Estado de exceção? A Universidade sob ataque Por Rubens Pinto Lyra

O

s sucessivos ataques à universidade pública, com proibição de reuniões, condução coercitiva e prisão de dirigentes, além de processos judiciais abertos sob o menor pretexto contra seus integrantes, que se acentuaram no segundo semestre de 2017, acendem o sinal vermelho. Desde a revogação do Ato Institucional nº 5, em 1978, com o retorno, apenas mitigado, do Estado de Direito, as instituições de ensino - com destaque para a universidade, templo do saber e bastião das liberdades democráticas, da tolerância e do pluralismo - não sofre tão severo processo de desestabilização. Selecionamos alguns episódios dessa verdadeira onda repressiva que sobre ela se abate. Em 2015, na UFMG, numa atitude insólita, uma juíza de direito, imiscuindo-se em programação do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito, impediu a livre manifestação do pensamento e o exercício do direito de reunião, vetando a realização de debates sobre o impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Em 2017, A UFPR e a UFRGS foram objeto de ações da Polícia Federal, semelhantes às que ocorreram agora na UFSC. Na UFRGS, o pretexto foi a suspeita de fraude em programa de extensão. Já na UFPR, uma legião de 180 agentes da PF cumpriu 73 mandados judiciais,

sendo 29 de prisão temporária e oito de condução coercitiva contra simples suspeitos em operação destinada a apurar desvio de recursos públicos destinados à instituição. Dessas incursões policiais, a da UFSC foi a mais grave, pela tragédia que ela originou. O seu Reitor, Luiz Carlos Cancillier, se suicidou quinze dias após ser submetido a diversas humilhações, sem ser réu em nenhum processo, sequer denunciado pelo Ministério Público. Algemado, desnudado, teve seus pés acorrentados, foi submetido à revista íntima, vestiu uniforme de presidiário. As consequências de tamanho arbítrio deveriam ter ser vido de advertência ao ativismo judicial imperante, em relação à exorbitância das medidas tomadas – e não por coincidência - contra a universidade, de onde mais emanam críticas ao desmonte do Estado de Bem-Estar em curso e às políticas neoliberais que o patrocinam. Não foi, porém, o que ocorreu. Mais uma grave agressão registrou-se no dia 6 de dezembro desse Ano da Graça de 2017, desta feita contra a Universidade Federal de Minas Gerais, mediante condução coercitiva – mesmo com parecer contrário do Ministério Público - do Reitor Jaime Ramirez, do Vice-Reitor e de mais de uma dezena de quadros da instituição. Como disse seu dirigente má-


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ximo, protestando contra o abuso de que foi vítima: “se tivéssemos sido intimados antes, viríamos, de livre e espontânea vontade”. Nesse episódio, sem qualquer justificativa consistente, a direção da UFMG, tal como ocorrido na UFSC, foi tratada como uma quadrilha de assaltantes, com 84 policiais destinados a capturá-los. Mas não é apenas a nível das ações policiais e das medidas judiciais espetaculosas que vêm intimidando a instituição universitária e os que as representam. Surgem novos e inquietantes indícios de que se quer impor limites à própria liberdade de expressão quando o objeto de crítica são os integrantes do stablisment judicial e ministerial. Em 2016, a emissora de rádio CBN, logo após programa onde um professor da UFPB, José Artigas, acusou o juiz Sérgio Moro de ilegalidades e arbitrariedades, foi informada por um magistrado, Euler Jansen, que seria intimada a entregar o áudio contendo a entrevista do referido professor para que “medidas legais e cabíveis” fossem tomadas contra ele. Em 2017, artigo de minha autoria, publicado no semanário paraibano Contraponto, suscitou forte reação de Procurador de Justiça, ouvidor do Ministério Público Estadual, pelo simples fato de conter críticas ao comportamento corporativista de integrantes da instituição ministerial. Em resposta, veiculada em relatório da Ouvidoria, aquele que tem como função precípua zelar pelos direitos fundamentais – como o da liberdade de expressão - qualificou de “absurdas” e de “exercício de libertinagem” análises fundamentadas em autoridades do próprio MP. E concluiu sinalizando para “reações naturais” dos criticados, que se considerarem “legitimados à cobrança de excessos eventualmente cometidos”. A desenvoltura com que agem setores não desprezíveis da Magistratura e do Parquet faz com se evoque, à tort ou à raison, em muitas dessas ações, semelhanças com o regime militar. Lembram que nem mesmo sob esse regime – salvo durante os anos de chumbo - assistiu-se à irrupção midiática, ostensiva e desproporcional do aparato repressivo nas universidades, ou atos de cerceamento aberto da liberdade de expressão pela Justiça nos seus campi. Existe um segmento influente de magistrados, imbuído de uma missão salvífica, mas atuando, na prática, como operador da “elite do dinheiro” que nos governa. Espelhando-se no exemplo da Lava Jato, coloca em xeque as garantias individuais e o próprio processo legal,

embora permaneça, esvaziada do seu conteúdo, a “casca” da legalidade. Destarte, os processos judiciais seguem, paradoxalmente, regidos por atos sucessivos de agressão a essa mesma legalidade. Trata-se de mecanismo insidioso e ambivalente, pois tudo é feito no sistema de justiça, ora dentro dos seus limites, ora ultrapassando-os. Atente-se para a dificuldade de “deslegitimar” o arbítrio, pois ele se pratica com o beneplácito dos tribunais superiores – precisamente encarregados de velar pela sua legalidade! Para um número não desprezível de juristas, está em gestação um Estado Policial, para outros, ele já se encontra vigente. A maioria não reconhece, todavia, a sua existência, embora todos se preocupem com a instabilidade jurídica e os “excessos” das operações policiais. Nem sempre é de fácil caracterização o Estado de Exceção. Além da falta de transparência e de contornos definidos, o que supostamente existe no Brasil distingue-se do “modelo clássico” por não assumir essa condição, já que não há suspensão formal das garantias constitucionais. Esse pano de fundo dramático requer dos setores mais conscientes da sociedade civil esforço inaudito para a constituição de diversas frentes, sem restrições a priori, entre estas a da defesa do Estado de Direito democrático e a da universidade pública. Frontalmente atacada, ela e os meios científicos já esboçam vigorosa reação. Como disse o cientista político André Singer, “se a sociedade não se unir na defesa da universidade, os danos serão irreparáveis, não só na educação, mas também na democracia”. P.S. A proibição preliminar de conduções coercitivas, sem se intimar o convocado para depor, com antecedência, concedida pelo Ministro Gilmar Mendes, caso se converta em decisão do Supremo, constitui uma barreira a certo tipo de arbitrariedade muito cara aos juízes da Lava Jato. Segundo a abalizada opinião do jornalista da Folha de São Paulo Jânio de Freitas, “a proibição pedida pelo PT e pela OAB federal não reduziu a margem de ação da Lava Jato. Reduz o desmando e impõe respeito à Constituição e à própria lei regulamentadora das delações”. Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política.


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Jornalismo Ambiental

Sociedade, natureza e mudanças climáticas

Crédito: SEMAS

Por Robério Daniel da Silva Coutinho

A mídia e a construção participativa da Política de Educação Ambiental de Pernambuco

H

á dois anos, a mídia pernambucana já vinha dando certa visibilidade pública, através da sua representação noticiosa da realidade social, sobre uma importante agenda ambiental articulada diante da possibilidade da construção participativa da Política Estadual de Educação Ambiental. O jornal Diario de Pernambuco publicou uma matéria destacando no título “Pernambuco deverá ter uma política estadual de educação ambiental” (2015). Tal legislação estava sendo elaborada pela Comissão Interinstitucional de Educação Ambiental (CIEA), instituída por Decreto Estadual (23.736) desde 2001 e formada por setores dos governos estadual e federal e por entidades da sociedade civil numa interação iniciada antes do decreto e resultado sobretudo da luta dos movimentos ambientalistas pioneiros no estado, a exemplo da Sociedade Nordestina de Ecologia

(SNE). Pernambuco, no entanto, ainda não concluiu o processo de elaboração da sua lei específica para Educação Ambiental, mas, neste período, vêm sendo alcançadas condições para sua viabilização, como a elaboração participativa do Programa Estadual de Educação Ambiental (PEA-PE). Neste programa foram definidos os princípios, as linhas de ação e a concepção geral para intervenção estratégica na área com base na Agenda 21 Global e nacional, mais especificamente no Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Tendo ainda como referências a lei federal 9.795/99, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) e o Programa Nacional de Educação Ambienta (PRONEA). Dentre as linhas de ação, o PEA-PE (2015) reconhece inclusive a importância dos meios de comunicação e de outros setores sociais, quando são capazes de promover, através das suas informações, “a percepção ambiental da sociedade civil e do poder público como parte integrante do seu cotidiano, tendo, assim, corresponsabilidade na qualidade ecológica e condição social”. Para divulgar estas iniciativas foi promovido, na Rádio Universitária FM, no Programa Jornalismo


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e Cidadania, um debate com as representantes da CIEA Genilse Gonçalves, pelo governo estadual, e Elisabete Braga, pela sociedade civil, analisando a etapa final dessa construção participativa da Política de Educação Ambiental de Pernambuco, que teve início em outubro de 2017 e deve terminar em abril de 2018. O debate ainda contou com o doutorando em Educação da UFPE, Laudiélcio da Silva, autor do livro “A Educação Ambiental de Pernambuco”, que teve a oportunidade de exaltar a importância da SNE e de outros movimentos ambientalistas pioneiros no estado, entidades estas essenciais na atual construção participativa da política em questão. Na ocasião, a professora Elisabete, representante do SNE na CIEA, recordou ainda as várias construções sociais desenvolvidas ao longo do tempo que vieram viabilizar a legislação com a configuração que vem sendo vislumbrada agora. A professora Genilse, como presidente da CIEA e gestora de Educação Ambiental da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), anunciou o calendário dos eventos previstos por região para formatação da lei. Ao todo, serão 17 encontros e oficinas em todas as regiões do estado (Semas, 2017). O anúncio foi feito em um evento da Semas e do CIEA em outubro na Universidade Federal Rural de Pernambuco. A intenção desses eventos em cidades de diferentes regiões é coletar as contribuições dos setores públicos e da sociedade para serem sistematizadas pela Semas, com apoio da CIEA, e incorporadas à minuta de projeto de lei que o governador enviará para Assembleia Legislativa. “A construção de tal política tem sido objeto central da Semas desde a criação da secretaria, em 2011. Desde então, tem fortalecido a CIEA, tanto que estruturou a gerência de Educação Ambiental da Semas, e juntamente com a CIEA, trabalha para efetivação da referida lei, destacou Genilse Gonçalves. A consolidação da proposta de lei deve ocorrer em seminário de integração, após todas atividades previstas, que será realizado em abril de 2018. Infelizmente, apesar da relevância socioambiental do evento na UFRPE e das suas metas, quase nada foi publicado pela mídia, exceto em alguns blogs e sites governamentais, reduzindo potencialmente a visibilidade desta agenda pública. A Rádio CBN/ Recife, uma das poucas da grande mídia que divulgou tal pauta, chegou a afirmar através da reportagem de Nathalia Alesse que, “diante de tantos debates político-econômicos em foco na sociedade brasileira, as questões ambientais acabam ficando escanteadas” (2017). Até agora, pouco foi noticiado pela mídia so-

bre os eventos da Semas/CIEA já realizados para a construção da referida lei. O encontro em Surubim, promovido em dezembro/2017, quebrou um pouco tal invisibilidade. O Portal de Comunicação do Grupo JCPM (NE10) destacou que “Surubim sedia seminário sobre política de educação ambiental (2017)”. A matéria convocava a população para se inscrever e participar desta construção coletiva da legislação. O Correio do Agreste, jornal mais antigo em circulação nesta região, também publicou matéria a respeito Contudo, no geral, constatamos até o momento, ampla marginalização noticiosa do tema, que, embora se constitua em assunto de grande relevância social, tem recebido pouca atenção na agenda jornalística, sendo, portanto, considerado pauta de pouca noticiabilidade. Consequentemente, o tema alcança baixa visibilidade pública e problematização social. Se assim continuar na cobertura dos próximos eventos previstos, a mídia pode estar contribuindo intensamente para a redução do potencial da participação esperado pelo planejamento que vem sendo desenvolvido para a construção da política de Educação Ambiental. Referências: ALESSE, Nathalia. PE realiza seminário para início da construção de política de educação ambiental. CBNRECIFE. Recife. 2017. CORREIO DO AGRESTE. Surubim recebe seminário sobre política de educação ambiental de Pernambuco. Surubim, 2017. NE10. Surubim sedia seminário sobre políticas de educação ambiental. Recife. 2017. Disponível em: http://noticias. ne10.uol.com.br/interior/agreste/noticia/2017/12/11/ surubim-sedia-seminario-sobre-politicas-de-educacaoambiental-721925.php. Acesso em: 23 de dez 2017. Programa de Educação Ambiental de Pernambuco - PEA/ PE / Semas – Recife, 2015.

Este espaço apresenta abordagens críticas e interdisciplinares relativas à produção da representação noticiosa da realidade social (jornalismo) sobre as mudanças climáticas e a sua influência na constituição do sentido social sobre a questão. É escrito pelo jornalista Robério Coutinho, mestre em Comunicação pela UFPE, com formação básica em Meteorologia pelo INPE/CPTEC, exassessor de imprensa do Laboratório de Meteorologia de PE, bolsista pesquisador da Rede Brasileira de Mudança Climática e autor de livros sobre o temática.


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Opinião

Quarto de Despejo e as “sobras humanas do Sistema” Por Caio Barros Melo Pinho e Souza

Q

uarto de Despejo não é uma história qualquer, restrita a um passado distante. É, sim, um retrato realista, incômodo, que tanto persiste ao longo do tempo na constituição do povo brasileiro. A história da periferia brasileira ou, de modo mais fiel à autora, da favela. Para além da descrição dos elementos que parecem tão distantes de uma realidade observável do centro urbano, tais como a falta absoluta de infraestrutura básica de saneamento, saúde, energia e o provimento mínimo da cesta alimentar, encontra-se um mundo que, por negligência quer do Estado, quer da sociedade (que não reconhece vida humana em quem se aproveita da sobra do lixo), perdura, geração após geração, reproduzindo as mesmas preocupações, ausências e misérias da vida; conhecendo os mesmos rostos que se modificam apenas em idade, pois preservam as mesmas promessas eleitorais, saindo de uma geração para outra, de pais políticos para filhos políticos. Uma classe hermética do e para o centro urbano. Carolina Maria de Jesus (Sacramento, 14 de março de 1914 — São Paulo, 13 de fevereiro de 1977), mãe de José Carlos, João e Vera Eunice, era moradora da extinta favela do Canindé-SP, que até meados de 1960 abrigava o caos semiurbano e subumano, onde hoje passa a Marginal do Tietê. Traz em formato de diário sua história, de forma simples e contundente. Escrito com uma educação restrita ao segundo ano do primário, apresenta uma gramática defeituosa para a norma culta, mas rica em representatividade dos ditos marginais e primorosa para retrato de uma realidade por vezes distanciada dos polos de debate. Passagens mais delicadas do livro trazem a caracterização da forma humana presente na realidade de Carolina (só dela?), sendo fundamental notar o padrão de reprodução das ações que passam de geração para geração, de morador antigo para os recém-chegados. O conflito cultural, a constituição familiar, o machismo, a religiosidade, a falta e descrença na educação, a interiorização da insalubridade como decorrência da falta de saneamento básico, a criminalidade. Não se trata de um núcleo que está restrito a

quem foi ao longo do tempo herdando seu espaço na favela, mas também daqueles que vão chegando à procura de melhores condições de vida. Vindos do interior, de outras regiões, de outros países. Segundo o estudo Reflexões sobre os deslocamentos populacionais no Brasil (2011), do IBGE, o período de 1960-1980 configurou-se como uma forte urbanização, com áreas específicas de expulsão populacional, como o Nordeste, e áreas de forte atração populacional, como os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. O impulso era dado pela alta taxa de fecundidade (número médio de filhos tidos nascidos vivos por mulher ao final de seu período fértil, que era de 6,28 em 1960) e um declínio na taxa de mortalidade infantil (que em 1960 era de 128,2%), onde a migração se dava principalmente do campo para a cidade. De acordo com o trabalho A Inserção Internacional da Economia Brasileira – 1960-2000 (2010), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), outro incentivo foi dado pelo plano de metas de Juscelino Kubitschek (19561961), que almejava a instalação de um conjunto amplo e diversificado de setores industriais, modificando radicalmente a estrutura produtiva do país. Metas realizadas através do investimento em empresas estatais, companhias de capital privado nacional e das corporações multinacionais. Numa sociedade ainda enraizada em preceitos de uma família tradicional, a figura paternalista era fundamental para a interpretação da mulher como sendo um ser humano. Não era possível admitir que um ser desprovido do homem tivesse respeito. Desta forma, o machismo pontua não somente a violência doméstica, que de tão comum só gera comoção em caso de morte ou quase morte, como também o próprio desrespeito em relação às mulheres solteiras, divorciadas, viúvas. Uma mulher não é considerada mulher se não tem um homem ao lado, como se para ser mulher fosse preciso, antes de qualquer coisa, um homem para qualificá-la como tal. A esposa de fulano. O lamento de Carolina não toca apenas o ponto da agressão e da desmoralização, mas, fundamentalmente, a reprodução dos atos pelas crianças. Ao presenciarem os atos de desrespei-


Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 23

to, de agressão cotidianamente, absorvem aquele comportamento e tão cedo reproduzem. Muito se deve à falta de diálogo, de estímulo, de feedback das suas ações – principalmente considerando que seus pais não tiveram tal educação. De acordo com o professor de psicologia social da Universidade de Stanford Albert Bandura (2005, p. 18), “geralmente, as habilidades são aperfeiçoadas com repetidos ajustes corretivos na igualação de concepções durante a produção do comportamento. A ação controlada, com feedback instrutivo, serve como um veículo para converter concepções em desempenhos proficientes. O feedback que acompanha as ações proporciona as informações necessárias para detectar e corrigir diferenças entre concepções e ações. Dessa forma, o comportamento é modificado com base nas informações comparativas, de maneira que as competências desejadas sejam dominadas”. O planejamento familiar, tão discutido nos dias atuais (onde a mulher participa mais do mundo público e o homem é mais colaborativo no ambiente doméstico, ambos decidindo o número de filhos, por exemplo), é dado como algo nem mesmo imaginável. Até porque o fato do sustento da família de Carolina ser da matriarca não é uma escolha, é uma necessidade. A dificuldade material para manutenção básica da vida implica em não ser possível antever situações de penúria, armazenar recursos ou dispor de tempo para tal planejamento. A imprevisibilidade de renda influi diretamente no estado de espírito sempre perturbado ao tentar dormir com fome e tonto ao acordar sem ter o que comer. Ser mãe solteira não se configurou apenas como uma escolha para Carolina, mas principalmente pelos homens fugirem do compromisso com seus filhos e, quando se mostrarem presentes, ser através de uma pensão rasa que vez ou outra é depositada para a sua filha, Vera Eunice. Longe de ser insignificante, a favela é intencionalmente excluída das pautas políticas, sociais e econômicas. A desestabilização familiar, a falta de coesão social, o entrave educacional, os vícios adquiridos a partir daí, como álcool, pornografia, jogatina, criminalidade, são os elementos chaves para a transformação de pessoas em objetos que representam, ao fim e ao cabo, apenas massa eleitoral, masturbação de ego social, lucro pela mão de obra barata e o quintal de despejo dos centros urbanos. A obra Quarto de Despejo data de 1960, mas ultrapassa a barreira do tempo como mostram os dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE, onde cerca de 6% da população brasileira está localizada em favelas. Isto significa que aproxima-

damente 11.425.644 pessoas estão localizadas, de acordo com a definição do órgão, em locais com ausência de serviços públicos essenciais, que ocupam, ou que tenham ocupado, até recentemente, terreno de propriedade alheia, dispostas de forma desordenada e densa. Bauman, em seu livro Vidas Desperdiçadas (2003), viria a tratar como refugo humano, o indivíduo que se torna uma espécie de sobra do sistema, sendo considerado um excesso, uma pessoa redundante. Atende a necessidade de um sistema que, sempre precisando de inovação, acaba por gerar um lixo excessivo, não somente do ponto de vista material, como humano. De forma que as mercadorias que aparecem nas vitrines do amanhã, elaboradas para a surpresa, para o consumo diário, produzissem inexoravelmente o descarte do velho, o de ontem, aquilo que não consegue participar da esteira capitalista de produção e só se adequa ao descarte. Trata também daqueles que eram ativos nestas sociedades de consumo, mas que se tornaram baixas colaterais do sistema, onde o excesso de participação também implica em um descarte aleatório de personagens. O aspecto cultural é marcante no livro. A fuga da realidade para um mundo particular, onde não se tem tanta dor, tanta falta de tudo, tanta violência física e psicológica, possibilita ao ser humano uma vida menos tortuosa. Visto a falta de providencia estatal para tais equipamentos de cultura e lazer, tem-se a fuga imediata para entorpecentes, primordialmente o álcool. Em abertura de um show dos Racionais Mc’s, Mano Brown, expoente da cultura de resistência da favela, do RAP, expõe uma visão que é recorrente e possibilita interpretações: “Desde cedo a mãe da gente fala assim: - Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor. Aí passado alguns anos, eu pensei: - Como fazer duas vezes melhor se você tá pelos menos cem vezes atrasado... pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos trauma, pelas psicose, por tudo que aconteceu. Duas vezes melhor como?” A passagem se dá numa interseccionalidade geográfica, de cor da pele e de renda que se mantém ao longo das gerações, formatada na periferia dos centros urbanos. Carrega não só o peso do hoje, da falta de assistência básica do Estado em seus mais variados graus, como saneamento básico, segurança pública, saúde, educação, equipamentos de cultura e lazer, mas também a carga histórica de populações marginalizadas no processo de desenvolvimento, em que seus elementos constitutivos não condiziam com os


JORNALISMO E CIDADANIA | 24

detentores da cultura sociopolítica dominante. Isto é, populações que tiveram seu direito à cidadania e ao exercício pleno da vida cerceados num mito de democracia racial, onde se mascarou toda uma construção histórica pautada na exploração arbitrária de uma classe sobre outra que perdura desde a formação do Brasil aos dias atuais. Para além de uma análise genérica, Darcy Ribeiro (1986, p. 114-115), em América Latina – A Pátria Grande, analisa que a formação dos centros urbanos brasileiros e latino-americanos se constitui assim por “milhões de lavradores desalojados por força de uma política socialmente irresponsável de modernização capitalista de agricultura que se veem lançados em cidades tão despreparadas para recebê-los como eles estão despreparados para nelas viver. [...] Posta nas favelas das grandes cidades ou em vilas detritárias que só comportam velhos, crianças e desempregados, essa população se urbanizou conservando-se rurícola. Sua cultura tradicional, não sendo desempenhável ali, não pôde ser transmitida aos filhos. Estes, não tendo também escolas apropriadas onde aprendam o modo urbano de viver, caem na marginalidade e sua formação é feita na delinquência. O que se pode esperar disso senão uma futura guerra das forças armadas contra delinquentes juvenis em nações onde as massas marginalizadas se contam por centenas de milhões como na América Latina e em todo o Terceiro Mundo?” Sabe-se da história, das injustiças, do que ocorre nos ambientes esquecidos pelo poder estatal e pela sociedade em geral. Sabe-se da condição desumana que ainda é grave e aguda no país, mesmo após avanços significativos obtidos através de políticas públicas como os programas Bolsa Família e Fome Zero para mitigar tais situações. Tanto que segundo relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês), o Brasil reduziu em 75%, entre 2001 e 2012, o número de pessoas que vivem com menos de US$1 ao dia. Reduziu em 65% a pobreza, contando ainda com 16 milhões de pessoas, cerca de 8,4% da população brasileira, vivendo com menos de US$2 por dia. O que mais incomoda à autora talvez não seja a condição em si, mas a inércia dos que tem o poder de mudar tal condição ou de amenizar de alguma forma o sofrimento. Em dado momento quem vai à delegacia, conversa com o delegado e expõe o raciocínio de que, se ele sabe disso [que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas têm mais possibilidades de delinquir do que tor-

nar-se útil à pátria e ao país], porque não faz um relatório e envia para os políticos? “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.” O sentimento de pertencimento e de identificação com a sujeira, com a pobreza, com a insalubridade, com a violência, com a marginalidade é o que caracteriza a expropriação do direito à vida dessas pessoas. Não se identificam nem mais como humanos, muito menos acreditam que gozam de direitos. Sobreviver é a luta deles, ser reconhecidos enquanto gente é luxo. Carolina Maria de Jesus morreu em 1977, na periferia paulista. Dizia que com os homens e as mulheres tinha o olhar frio, mas o sorriso e as palavras ternas reservava às crianças. “Os homens e as mulheres fazem o hoje. As crianças farão o amanhã”.

Referências: BANDURA, A. The evolution of social cognitive theory. In: Smith, K.G.; Hitt, M.A. Great minds in management. Oxford University Press, 2005. p. 9-35. BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Editora Zahar. Brasil. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. Edição Popular. 1960. p. 26-33. OLIVEIRA, Antonio Tadeu Ribeiro et al. (2011) O panorama dos deslocamentos populacionais no Brasil: PNADs e Censos Demográficos. Reflexões sobre os deslocamentos populacionais no Brasil. RIBEIRO, Darcy. América Latina: a pátria grande: Fundação Darcy Ribeiro, - Rio de Janeiro 2012. p. 114-115. MC’s, Racionais. A Vida é desafio. Álbum: Nada como um Dia após o Outro Dia. Gravadora: Boogie Naipe. 2002. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=52NT9cSWC_8

Caio Barros Melo Pinho e Souza é graduando no Curso de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.


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