Jornalismo e Cidadania Nº 16/2017

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Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1

Jornalismo e cidadania nº 16 | Outubro 2017

| ISSN 2526-2440 |

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade | PPGCOM/UFPE

Opinião

A atual conjuntura

Opinião

Mercosul

E mais...


JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Expediente

Arte da Capa: Designed by Freepik.com

Editor Geral | Heitor Rocha professor PPGCOM/UFPE

Alunos Voluntários | Lucyanna Maria de Souza Melo Yago de Oliveira Mendes José Tarisson Costa da Silva

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Colaboradores |

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Alfredo Vizeu Professor PPGCOM - UFPE

Articulistas |

Túlio Velho Barreto Fundação Joaquim Nabuco

PROSA REAL Alexandre Zarate Maciel doutorando PPGCOM/UFPE

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

MÍDIA ALTERNATIVA Xenya Bucchioni doutoranda PPGCOM/UFPE

Luiz Lorenzo Núcleo de Rádios e TV Universitárias/UFPE Ada Cristina Machado Silveira Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

NO BALANÇO DA REDE Ivo Henrique Dantas doutorando PPGCOM/UFPE

Antonio Jucá Filho Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

JORNALISMO E POLÍTICA Laís Ferreira mestranda PPGCOM/UFPE

Auríbio Farias Conceição Professor do Departamento de Letras e Humanidades – DLH/ UEPB

JORNALISMO AMBIENTAL Robério Daniel da Silva Coutinho mestre em Comunicação UFPE

Leonardo Souza Ramos Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

PODER PLURAL Rakel de Castro doutoranda PPGCOM/UFPE e UBI

COMUNICAÇÃO PÚBLICA Ana Paula Lucena doutoranda PPGCOM/UFPE JORNALISMO INDEPENDENTE Karolina Calado doutoranda PPGCOM/UFPE MÍDIA FORA DO ARMÁRIO Rui Caeiro mestre em Comunicação UFPE MUDE O CANAL Ticianne Perdigão doutoranda PPGCOM/UFPE

Índice

CIDADANIA EM REDE Nataly Queiroz doutoranda PPGCOM/UFPE

Rubens Pinto Lyra Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

Editorial

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Prosa Real

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Opinião | Rubens Pinto Lyra

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Comunicação na Web

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Opinião | Antonio Manoel et al.

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Mídia Alternativa

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Opinião | Mariana Vazquez

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Opinião | Pedro Lapa

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Opinião | Amanda Tavares de Melo

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Opinião | Pedro Souza

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Opinião | Heitor Scalambrini Costa

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COMUNICAÇÃO NA WEB Ana Célia de Sá Doutoranda em Comunicação UFPE NA TELA DA TV Mariana Banja mestranda em Comunicação UFPE

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Editorial Por Heitor Rocha

O

s conceitos de verdade, objetividade e imparcialidade são fundamentais na vida social, de uma maneira geral, para viabilizar o entendimento nas interações linguísticas, sempre desafiado pelo caráter ambíguo da linguagem em face da incompletude do processo de construção de sentidos (semiose). No jornalismo, porém, assume uma dimensão especial por conta da necessidade da indústria das notícias, quase sempre um monopólio do grande capital e, portanto, das elites, de superar a desconfiança do resto da sociedade e conquistar credibilidade para a sua representação simbólica da realidade. Assim, a verdade, superada a sua concepção absoluta decorrente da filosofia da consciência de um sujeito transcendental fora da história e do mundo (teoria da verdade como correspondência perfeita entre a representação da realidade e a própria realidade), não pode deixar de ser concebida como o que é considerado verdadeiro, lógico/racional e legítimo/justo pelo consenso da comunidade de comunicação (teoria consensual da verdade); o que pressupõe um caráter provisório e relativo, pois está sempre passível de mudança de acordo com as transformações vividas pelas pessoas que compõem a sociedade. Da mesma maneira, a objetividade não é o que se opõe dicotomicamente à subjetividade individual, mas aquilo que faz sentido intersubjetivamente por expressar o consenso da comunidade de comunicação. Portanto, o conceito de objetividade precisa ser humanizado, destranscendentalizado como algo perfeito, para se tornar uma referência que precisa ser verificada permanentemente como passível de transformação de acordo com as mudanças vividas pelo mundo social. A imparcialidade, por sua vez, indica a necessidade do jornalismo assumir o compromisso exclusivo com o interesse coletivo/público e o bem-comum, princípio que todo veículo de comunicação tem que manifestar publicamente, para não se mostrar refém de interesses particulares de grupos, embora se saiba que, quando a audiência não está atenta e consciente, os interesses corporativos poderosos subvertem essa norma e se tornam instrumento da dominação da estrutura de poder (grupos que controlam o parelho de Estado e as grandes corporações do mercado). Com estes pressupostos sobre a verdade, a objetividade e a imparcialidade, pode-se compreender melhor as recentes discussões que apontam para o início de uma era do reino da pós-verdade, onde a verdade deixa

de ser pressuposta e o entendimento é tido como impossível para fundamentar uma ação coletiva racional por causas que almejem o bem-comum. Na tradição iniciada pela Teoria Matemática da comunicação há a dissociação entre informação e sentido, reduzindo a comunicação, exclusivamente, ao âmbito da racionalidade instrumental, onde só é reconhecido o interesse utilitarista do indivíduo isolado, atomizado e com a consciência fragmentada pelo fetichismo da mercadoria. É o reino da ideologia capitalista consumista que pretende desqualificar qualquer esforço de conferir significado ao mundo e ser inteligível ao fazer sentido intersubjetivamente para as outras pessoas, sem ser só a busca frenética para produzir e consumir recursos escassos. Neste contexto fantasmagórico, a reflexão crítica é combatida como utópica, sendo a utopia entendida como alguma aspiração impossível de ser alcançada e não como a busca pela emancipação de tutelas e superação de sofrimentos e opressões, devendo, assim, se pressupor que é chegada a era da pós-verdade, como antes já se pretendeu o fim da ideologia ou o fim da história. Todos esses esforços compõem uma engenharia ideológica para negar as concepções republicanas democráticas da soberania popular e de auto-governo da sociedade, ou seja, para tentar evitar que os cidadãos percebam que fazem parte de uma comunidade de comunicação que precisa, de forma fraterna, livre e igualitária, construir uma vida coletiva crescentemente melhor ou menos ameaçada; uma maquinaria ideológica para negar que um outro mundo é possível sem a dominação de uma classe, de uma etnia, de um gênero, sem a exploração do ser humano pelo ser humano, numa perspectiva de universalidade aproximativa. Essas concepções céticas pretendem fazer crer que a humanidade não pode ser mais do que uma alcateia em que os homens-lobos estarão sempre uivando, rosnando e disputando recursos escassos. Porém, esta compreensão mesquinha do ser humano de fetichização/colonização do mundo da vida pelo mercado terá que ser superada para que a humanidade possa alcançar melhores dias.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


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Prosa Real

Livro-reportagem, jornalismo e contexto Por Alexandre Zarate Maciel

Jornalistas e editores de livros-reportagem: uma relação de confiança mútua

T

endo feito parte de uma hierarquia rígida, como a da revista Veja, Laurentino Gomes pondera, em entrevista para a tese de doutorado do autor desta coluna, que a sua relação com a figura do editor, agora de livros, é invertida comparada à que vivia na redação. “Ontem, eu tinha que fazer o que determinava o meu editor, meu diretor de redação. O que ele orientava. ‘Reescreve esse texto’. Eu ia lá e reescrevia. E geralmente ficava melhor do que eu tinha feito. Eu nunca tive nenhum problema”. Laurentino informa que atualmente entrega o livro praticamente pronto para a editora, a Globo, e já o fazia desde a primeira obra, 1808, com a editora Planeta. “Até senti uma certa dificuldade, porque eu percebi que, quando eu estava numa redação, o fato de que o meu texto ia passar por uma segunda, terceira, quarta leitura, por orientações, me fazia algumas vezes desleixado no meu trabalho”. Do alto de sua vasta experiência nas mais importantes redações do país, em épocas diversas e comparando com a sua situação de escritor de livros como 1968: o ano que não terminou, Zuenir Ventura, por sua vez, pondera que editor de editora é diferente do de jornal, pois confere mais “liberdade” ao escritor e respeita mais a “autonomia autoral”. No entanto, isso não impede que várias sugestões aconteçam no processo. O jornalista brinca que a cobrança mais comum do editor de livro é com relação ao prazo de entrega. “O prazo tem aquela coisa, né? Você mente, e o editor finge que está acreditando. Ele diz assim: ‘Como é que está o livro?’ ‘Ah, está praticamente pronto’. Mentira”. Zuenir acrescenta que é preciso que haja uma troca recíproca e constante entre editores e jornalistas no longo processo de produção de um livro. “Alguns editores são ex-jornalistas e têm o cuidado de estabelecer um diálogo, de mostrar que: olha, está faltando isso, está faltando aquilo, vai ser melhor fazer isso”. Os adjetivos “saudável”, “amistoso”, “respeitoso” tam-

bém foram invocados por Lira Neto — autor da biografia Getúlio, sobre o ex-presidente Getúlio Vargas —ao mencionar o trato dos editores de livros com os seus jornalistas escritores, por ele definido como uma “relação absolutamente de confiança mútua”. Um dos principais pontos de respeito no contato entre os editores e jornalistas deve ser justamente, na opinião de Lira, a informação clara e sem escamoteamentos de como serão todos os passos de produção, divulgação e comercialização de uma obra.

Autor do mês: Euclides da Cunha Pela ótica das influências entrelaçadas que o jornalismo brasileiro mantém com a literatura e a história, a obra Os Sertões (1901), de Euclides da Cunha (1866-1909), é marco para o livro-reportagem no Brasil, embora seja um ensaio literário. A matéria-prima do livro nasceu da missão assumida pelo engenheiro, escritor e repórter do jornal O Estado


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(então A Província) de S. Paulo, Euclides da Cunha, de acompanhar a última das quatro expedições do governo republicano que resultou no massacre do arraial de Canudos. Na condição dupla de adido ao Estado Maior do Ministro da Guerra, conforme lembra Galvão (2010, p.10), ele enviou uma série de reportagens ao jornal, nas quais se “lêem o entusiasmo republicano e o fervor sacrificial de que todos estavam possuídos”. De fato, Euclides da Cunha partiu a campo com uma visão favorável ao governo e contra os revoltosos. Mas a experiência visceral do massacre daqueles sertanejos pobres e de um Brasil desconhecido, complexo e remoto com a qual se deparou transformou seu imaginário de repórter. Embora tenha chegado a Canudos nos últimos momentos da batalha e permanecido alojado com os oficiais, Euclides da Cunha ensejou um olhar de repórter menos maniqueísta quanto possível, como analisou Vidal e Souza (2010, p.104): “Circulando pelo acampamento dos soldados, o repórter acompanhou a conversa dos prisioneiros com os militares, de quem registrou trechos de suas falas. A linguagem dos sertanejos foi reproduzida”. Filtrando a experiência e cotejando diversos outros saberes, Euclides da Cunha elaborou, com tempo, o seu livro Os Sertões, diferente do material fugaz publicado originalmente no jornal. No prefácio original, Euclides descreve o seu propósito: “Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil” (CUNHA, 2010, p. 19). O autor acreditava que os sertanejos estavam próximos ao “desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra”. Em seguida, reafirma que o que aconteceu em Canudos foi, “na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (CUNHA, 2010, p. 20). Alcançando êxito de público, Os Sertões serviu, na análise de Galvão (2010, p. 12), como um “vasto mea culpa” para a opinião pública brasileira, que se viu “abalada por ter incorrido num equívoco, escancarando sua sanha sanguinária contra um punhado de pobres que não ameaçava ninguém”.

Iluminando conceitos: Rosalind Gill e as posturas éticas do jornalista escritor Durante a década de 1960, o acirramento do debate promovido contra os pressupostos positivistas da ciência social tradicional e o impacto das ideias estruturalistas e pós-estruturalistas estimularam a busca de um novo paradigma científico: uma perspectiva epistemológica denominada construtivismo. As características-chave dessa nova ótica, apontadas por Rosalind Gill (2002, p. 245), podem ser encaixa-

das, pela clave da Teoria do Jornalismo, para compreender como agem os jornalistas escritores de livros-reportagem que desafiam a lógica positivista. Em primeiro lugar, esses profissionais parecem adotar uma postura crítica com respeito ao conhecimento dado, aceito sem discussão. E ceticismo com relação à ideia de que as observações sobre o mundo revelam, sem problemas, sua natureza autêntica. Também é perceptível, no trabalho desses repórteres, o reconhecimento de que as maneiras como normalmente se compreende o mundo são histórica e culturalmente específicas e relativas. Bem como a convicção de que o conhecimento é socialmente construído, isto é, que as maneiras atuais de compreender o mundo são determinadas não pela natureza do mundo em si mesmo, mas pelos processos sociais. Por fim, os jornalistas que escrevem livros-reportagem podem assumir o compromisso de explorar as maneiras como os conhecimentos – a construção social de pessoas, fenômenos ou problemas – estão ligados às suas práticas.

Referências: CUNHA, Euclides da. Os sertões: volume 1 e 2. São Paulo: Abril, 2010. GALVÃO, Walnice Nogueira. Um livro “vingador” (prefácio). In: CUNHA, Euclides da. Os sertões: volume 1. São Paulo: Abril, 2010. GILL, Rosalind. Análise de discurso. In: BAUER, Martin; GASKELL, George (Orgs.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002. GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Planeta, 2007. NETO, Lira. Getúlio (3 volumes). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, 2013 e 2014. VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2013. VIDAL E SOUZA, Candice. Repórteres e reportagens no jornalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, Alexandre Zarate Maciel, que está cursando o doutorado em Comunicação na UFPE, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, os principais autores, títulos e a visão do leitor.


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Opinião

Problemas e desafios da atual conjuntura Por Rubens Pinto Lyra

N

o Brasil, atualmente, só existe um consenso: o de que vivemos tempos “bicudos”. Não era essa, contudo, a expectativa da ampla maioria dos apoiadores do impeachment de Dilma, que quiseram afastá-la pelas responsabilidades do PT no que se refere à corrupção governamental e pela suposta incompetência da ex-Presidenta na condução do governo. Esperavam uma espécie de “purificação” das instituições e a implementação de políticas que atendessem os anseios do povo brasileiro (não me refiro aqui aos objetivos espúrios dos que arquitetaram o golpe: entidades representativas do grande empresariado e os partidos conservadores no Congresso Nacional, em conluio com a mídia monopolizada). A esquerda, tampouco, imaginava um quadro político tão adverso como o atual. Sabia que sairia politicamente enfraquecida com a deposição da Presidenta e que o atual governo intentaria proceder ao desmonte das políticas sociais petistas, mas apostava na mobilização dos setores atingidos pelas investidas do governo contra seus direitos para reaglutinar-se, dando assim a “volta por cima”. Também não poucos acreditaram que o “mar de lama” envolvendo o governo Temer o alijaria da Presidência da República, inclusive pela mobilização popular. Esta, porém, não ocorreu. Nem mesmo os baixíssimos índices de aprovação do Presidente ilegítimo dissuadiram seus apoiadores no Congresso Nacional de prosseguir na aprovação das reformas trabalhista, previdenciária e também na privatização de empresas estatais, agindo como instrumento consciente do grande empresariado, com vistas ao desmonte do que temos de Estado de Bem-Estar social. O bloco de sustentação do golpe parlamentar rachou, em relação ao governo Temer, mas permanece unido no apoio às reformas por ele propostas. Por sua vez, o “Partido da Justiça”, composto de todos aqueles que apostam no Poder Judiciário como o demiurgo capaz de salvar o país, continua agindo movido pela convicção de que a livre interpretação da lei deve se substituir à Constituição, se considerada insatisfatória. Pensamos, ao contrário, que “o caminho mais curto para se chegar a um Brasil admissível seria seguir com rigor milimétrico a Constituição que nem sequer mereceu, até hoje, ser posta em prática por inteiro”

(FREITAS, 2017). Nesse contexto, preocupa que até Ministros do Supremo Tribunal Federal se esqueçam que, numa democracia, não cabe ao Judiciário “levar a nação a porto seguro”, salvando–a do “naufrágio”, como quer Luiz Fux, e sim aos mandatários eleitos pelo povo, com políticas públicas capazes de conduzi-la ao desenvolvimento com justiça e paz social. O Partido da Justiça funciona, aliás, como mola propulsora de ações obscurantistas de juízes e membros do Ministério Público, convalidando até mesmo a sua arbitrária incursão no âmbito familiar, com vistas à pregação de doutrina religiosa de viés fundamentalista. Foi o que ocorreu em Dourados (MS) quando um Procurador de Justiça obrigou milhares de crianças a comparecer, conduzidas por seus pais, ao estádio de futebol local, sob a ameaça de pesadas multas, para submeter-se à referida pregação, com a justificativa da necessidade de se debater a “prevenção à violência” (TARDELLI, 2017). A parcela hegemônica do Poder Judiciário e do Parquet, encarregada do combate à corrupção, continua investida da mesma “sanha persecutória”, para usar a expressão de FHC, o que deixa muitos confusos quando se trata de avaliar a sua atuação. No balanço final, o que mais contará? Os prejuízos causados à democracia, com a insegurança jurídica causada pela “opção preferencial” pelo PT e com a criminalização da política, ou os resultados obtidos com a condenação daqueles que assaltaram os cofres públicos, se mancomunando com as empreiteiras et caterva? Num contexto marcado pela legítima indignação da sociedade para com os corruptos de todos os matizes, a tendência da maior parte dos cidadãos é aplaudir ações espetaculosas. Eles querem, sem mais delongas, pôr atrás das grades meliantes presumidos como Aécio Neves, com suas malas de dinheiro recebidas dos donos da JBS, assim como os outros Loures e Geddéis da crônica político-policial, que a cada dia se enriquece com mais um graúdo personagem ligado ao Planalto. Contudo, é melhor não acelerar a marcha, pois o andor é de barro: se quebrado, pode “levar a criancinha junto com a água do banho”. Os incautos que hoje festejam o infortúnio de seus adversários, amanhã lamentarão a desenvoltura do Judiciário na interpretação da lei em face de seus correligionários, inter-


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pretação conspurcada, não poucas vezes, em nome do “clamor público” e da salvação da Pátria. Impõe-se evitar que, de conjecturas da prática de crimes, por mais fundamentadas que sejam, decorram consequências claramente punitivas, sendo prudente “inibir efeitos potenciais de um arbítrio judicial estimulado pela sanha da opinião pública” (Folha de São Paulo, editorial, 2017). Por isso, não é pelo fato de interesses corporativos espúrios se insurgirem contra o exercício desmedido de prerrogativas, precisamente por parte do Poder que tem como missão precípua o seu controle, que deixa de ser legítima a contenção da autoridade judicial. Por exemplo: na democracia, o Parlamento goza de autonomia e por isso é ele que deve julgar os seus membros. Cabe aos eleitores pressionarem os seus representantes nas Casas Legislativas a agirem no sentido de votar de acordo com o interesse público. A manutenção, pleno exercício ou suspensão do mandato de um parlamentar, como o de Aécio Neves, deve ser definido pela Casa Legislativa de que faz parte, e não pelas instâncias judiciais. Além das novidades na área do Judiciário, onde se acentua a divisão entre os seus integrantes, notadamente em suas instâncias superiores, com a perspectiva de uma maior contenção dos que querem exacerbar o seu protagonismo, surge uma novidade perturbadora na cena política: a alternativa militar. A manifestação golpista de oficiais generais da ativa, como Antonio Mourão, que apontou para a necessidade de intervenção das Forças Armadas, se malograr a luta anti- corrupção, não suscitou nenhuma punição, e nenhuma autoridade do governo federal a condenou. De quebra, chefes militares de prestígio da reserva, a exemplo do General Heleno, se solidarizaram com o colega insubmisso. O problema é que essa manifestação ocorreu e se fez acompanhar do silêncio ensurdecedor de quem deveria repudiá-la, justamente pela falta de condições éticas e políticas do governo Temer, ele próprio oriundo de um golpe e considerado pelo então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que o denunciou, chefe de uma quadrilha de criminosos. A crescente falta de legitimidade do poder civil, tanto do Legislativo quanto do Executivo, acentua a propensão de um número crescente de cidadãos apoiarem o advento de uma ditadura militar. Essa nova correlação de forças robustece a candidatura de Jair Bolsonaro, que se considera porta-voz das Forças Armadas e pretende, se eleito, conferir caráter militar ao seu governo, com metade de seus integrantes oriundos da caserna. Bolsonaro não contesta a soberania do voto, mas entende que ela pode legitimá-lo para exercer uma “democradura”, espécie exótica de difícil implementação (BLOG DO JAMILDO, 2017). Tais desdobra-

mentos reforçam a necessidade de se colocar a questão democrática como ponto axial da plataforma de lutas contra o governo golpista, conscientizando a população sobre a importância e a necessidade de sua defesa e aprofundamento. Contudo, a tradição autoritária da esquerda não a motiva para um engajamento efetivo nessa matéria, em que lhe falta coerência e solidez. Assim, ao menor arranhão aos princípios ou normas democráticas no âmbito doméstico corresponde indignada reação dos seus porta-vozes. Porém, se algo bem mais grave ocorrer em um regime esquerdista, como, por exemplo, o venezuelano, pode-se estar certo que será justificado como uma atitude em defesa do “socialismo”. O maior desafio das chamadas “forças progressistas” é o de forjar uma consciência democrática, construindo uma contra-hegemonia que contraste com as práticas autoritárias dominantes, à esquerda e à direita, nas quais florescem o personalismo e o corporativismo. Os arautos da igualdade social ainda não assimilaram plenamente as lições da história. Elas demonstraram, com a queda do Muro de Berlim, não existir socialismo sem a plenitude das liberdades democráticas. Trata-se de assumir, de uma vez por todas, um debate consistente para que se construa um conceito de democracia que não seja um mero disfarce para justificar o autoritarismo.

Referências: AMORIM, Filipe. Só o Judiciário pode salvar o Brasil do naufrágio, diz ministro do STF. Folha UOL. 4.9.2017. Acesso em 6.10.2017. BLOG DO JAMILDO. Se chegar lá, vou botar militares em metade dos ministérios, diz Bolsonaro. Site da UOL, 16.10.2017. Acesso em 16.10.2017. FREITAS, Jânio. Já ouviu a última do Supremo? Folha Digital. 8.10.2017. Acesso em 16.10.2017. FOLHA DE SÃO PAULO. EDITORIAL. A vez do Senado. 13.10.2017. Acesso em 16.10.2017. TARDELLI, Breno. Ministério Público do MS coagiu pais a irem a palestra com pregação religiosa. Site JUSTIFICANDO. 27.4.2017. Acesso em 1.5.2017.

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito e Ciência Política (Université de Nancy - França) e Professor do PPGDH da UFPB.


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Comunicação na Web Jornalismo, Sociedade e Internet Por Ana Célia de Sá

O jornalismo e a produção noticiosa de qualidade

A

qualidade da notícia é um ponto central da atividade jornalística. B ons materiais estimulam o debate social em defesa dos interesses coletivos e ajudam a construir um conhecimento crítico, em adequação ao papel social do jornalismo. E como é possível identif icar a qualidade de um produto noticioso? Canavilhas (2003) elenca quatro critérios avaliativos da qualidade do produto jornalístico do ponto de vista do emissor : valor – presença de informações raras e/ou exclusivas; conformidade – harmonia com regras fundamentais do jornalismo, tais como uso de fontes plurais, profundidade, informação complementar e técnicas de redação; regularidade – conser vação de características regulares ao longo do tempo; adequação ao uso – exploração das potencialidades técnicas do meio de comunicação, a f im de oferecer ao público acesso universal e intuitivo. C erqueira (2010) também aborda esta temática. Em estudo realizado por esse autor, a qualidade jornalística mostrou-se ligada à apuração precisa, à abordagem diferenciada dos fatos, à correção gramatical, à precisão das informações, à independência, ao comportamento ético, à responsabilidade social, à pluralidade e ao atendimento às demandas do público. A soma desses fatores fornece as bases para a credibilidade prof issional. Além disso, na sociedade democrática, o jornalismo de qualidade também deve comprometer-se com a promoção dos direitos humanos e aderir a valores como tolerância, inclusão social e acompanhamento crítico das ações governamentais. A compreensão das práticas prof issionais ajuda a nortear princípios de qualidade da notícia. O processo produtivo da informação

jornalística compõe-se de diversas fases, que podem variar de acordo com a organização do trabalho de cada redação e de cada meio de comunicação. Wolf (2008) classif ica três fases principais comuns a todos os aparatos, cujas inf luências são diretamente sentidas na qualidade da notícia. São elas: coleta, seleção e apresentação. O autor detalha as etapas a par tir do exemplo das emissoras de televisão, mas os dados podem ser estendidos aos demais meios em seus principais aspectos. Wolf (2008) atribui às rotinas de coleta de materiais uma possível evidenciação do discurso fragmentado e da super-representação político-institucional na informação destacadamente no uso de materiais produzidos fora das redações, casos das agências de notícias e assessorias de imprensa. Esses materiais são recebidos pelo jornalista, limitado a reestr uturá-los conforme os valores-notícia relacionados ao produto, ao formato e ao meio. Normalmente, estes canais de coleta já estão pré-classificados pelos meios quanto à sua noticiabilidade, conf irmando a circularidade de critérios de relevância. Nestas condições, a coleta e a estr uturação do material acontecem de forma quase simultânea graças à estabilidade das fontes, cujos materiais estão quase sempre adequados aos processos produtivos de uma redação (WOLF, 2008). A fase de coleta também é inf luenciada “[...] pela necessidade de se ter um f luxo constante e seguro de notícias, a fim de conseguir confeccionar, a cada vez, o produto exigido” (WOLF, 2008, p. 231). A estr utura de trabalho e a limitação de recursos implicam um planejamento para garantir um número mínimo de cober turas de acontecimentos noticiáveis. Mais uma vez, o jornalista conta com o apoio das fontes para cumprir esta etapa. Neste ponto, fontes institucionais e agências são privilegiadas devido à credibilidade e à segurança que oferecem. A etapa de seleção segue-se à de coleta. O material coletado chega à redação, via correspondentes, agências ou repór teres, e ga-


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nha forma de notícia a ser veiculada como produto final. O processo de seleção do material noticioso segue um roteiro complexo, que une a subjetividade do jornalista às rotinas produtivas institucionalizadas, desde a apuração junto às fontes até o trabalho do editor (WOLF, 2008). “A obser vação vale também para os valores/notícia que, na realidade, não permeiam apenas o momento da seleção, mas um pouco de todo o processo de produção, inclusive as fases de confecção e de apresentação das notícias, nas quais são enfatizados justamente os elementos de relevância que determinaram a newswor thiness no momento da seleção” (WOLF, 2008, p. 255. Grifo do autor). A filtragem de dados realizada durante a fase de seleção permite que apenas um número restrito de notícias integre o produto f inal. Embora os procedimentos institucionais tentem ordenar e estabilizar o trabalho seletivo, esta etapa não é estática e pode sof rer alterações devido a acontecimentos de última hora. Até o fechamento do produto, é possível incluir novos fatos, ampliar notícias e desfazer-se de outras, de acordo com a importância e relevância atribuídas a cada uma delas (WOLF, 2008). A edição e apresentação da notícia constituem a terceira fase do processo produtivo de informação jornalística. Nela, a notícia ganha o formato exigido para exibição ou publicação, a depender do meio. Anulam-se os efeitos dos limites da organização do produto para que a informação ganhe rótulo de realidade externa, independente do aparato informativo (WOLF, 2008). “Em outras palavras, se todas as fases precedentes agem no sentido de descontextualizar os acontecimentos do âmbito social, histórico, econômico, político e cultural em que ocorrem e em que são inter pretáveis (isto é, no sentido de ‘dobrar’ os eventos às exigências da organização do trabalho informativo), nessa última fase de produção realiza-se uma operação inversa, de recontextualizá-los, porém dentro de um quadro diferente, no formato do noticiário” (WOLF, 2008, p. 259. Grifo do autor). Entre a descontextualização e a reinserção do evento no contexto formatado pelo produto informativo, os conteúdos são f ragmentados. E é o rígido formato da notícia que acaba constituindo modelos de adaptação dos conteúdos; ele representa o contexto formal em que são medidas a relevância e a

significatividade da notícia. O contexto também está no sentido de aproximação entre notícias, seguindo a lógica interna do noticiário (WOLF, 2008). A edição confere uma roupagem estética ao acontecimento, numa narrativa normalmente breve e coerente, com início, meio e f im da história. Neste momento, independente da intencionalidade, destacam-se determinados fatos e minimizam-se outros (WOLF, 2008). A imagem do público elaborada pelo jornalista também interfere na apresentação da notícia. C omo argumenta Wolf (2008), o jornalista tenta conciliar aquilo que ele acha que o público quer, mas sem se deixar condicionar por ele. Para isso, ele exerce sua própria opinião para chegar à suposta representação do público. Nesta discussão, fica evidente que o conceito de qualidade deve unir fatores técnicos às práticas humanas. Uma notícia de boa qualidade ultrapassa a adequação ao formato textual jornalístico e abarca as rotinas produtivas e os valores vinculados ao compromisso social da atividade. Ao qualificar a notícia, o jornalismo aprimora o debate coletivo e intensifica princípios ligados à cidadania. Referências: CANAVILHAS, João. Texto inteligente e qualidade (quase) zero. IN: CORREIA, João Carlos; FIDALGO, António; SERRA, Paulo (Orgs.). Informação e comunicação online: mundo online da vida e cidadania. V. 3. Covilhã: LabCom, 2003. [e-book]. 3 v. Disponível em: <http://www.livroslabcom.ubi.pt/ pdfs/20110829-correia_fidalgo_serra_ico3_mundo_ cidadania.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2013. CERQUEIRA, Luiz Augusto Egypto de. Qualidade jornalística: ensaio para uma matriz de indicadores. Indicadores da Qualidade da Informação Jornalística – Comunicação e Informação. Brasília: Unesco, 2010. Nº 6. (Série Debates CI). Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/ images/0018/001899/189918por.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2013. WOLF, Mauro. Teorias das Comunicações de massa. Tradução de Karina Jannini. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).


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Opinião

“UM CORAÇÃO DE TERRA QUE BATE ACELERADO”

Por Antonio Manoel Elibio Jr , Juliana Mércia Guilherme Vitorino, Marcos Ferreira da Costa Lima

N

a Ciência Política, por conta de um excessivo viés quantitativista, o tema das migrações internacionais possui uma agenda de pesquisa limitada. Os argumentos que recaem sobre as instituições políticas estatais não dão conta de fenômenos que se situam fora da legalidade, como a migração indocumentada e o crime organizado que se expandem ao longo das fronteiras de países desenvolvidos. Nesse sentido, a abordagem quantitativa fica circunscrita à mensuração de impacto, à percepção da população nativa acerca dos migrantes e à construção de indicadores sócioeconômicos que expliquem a direção dos fluxos migratórios. As diásporas, que são o foco desse artigo, também ficam de fora desse tipo de análise praticada a partir dos números. Milesi (2003) assume que as migrações são um fenômeno planetário que indica o número de contradições entre as relações internacionais e a globalização neoliberal, advindas das transformações socioeconômicas em âmbito global, sobretudo a partir da década de 1970, com a aclamada interdependência das relações. Assim como as migrações internacionais se tornaram importantes nesse contexto, o mesmo se pode dizer da emigração centro-americana impulsionada na década de 1980. Migração forçada durante os conflitos armados, marcada pelo exílio de perseguidos políticos e a fuga de campesinos em busca de um lugar seguro. As cifras oficiais do ACNUR, órgão da ONU que ficou a cargo dos cuidados a essa população centro-americana, atentam que o período de guerras produziu cerca de 116.000 refugiados. No entanto, estima-se que o número pode chegar a 2 milhões de pessoas que fugiram, em sua maioria, para os Estados Unidos. A Organização Internacional das Migrações (OIM, 2016) estima que 244 milhões de pessoas vivam em outro país que não o seu país de nascimento. Isso corresponde a 3,3% da população mundial. Cerca de 51% desses migrantes concentram-se em apenas dez países do mundo, sendo os Estados Unidos o país que recebe o maior número de pessoas. A migração sul-sul também tem aparecido como novo padrão nos deslocamentos. Em 2015, 37% dos deslocamentos foram feitos entre países do chamado sul global, enquanto 35% dos deslocamentos foram do sul para o norte global. Para as Américas, segue a tendência da migração norte-sul, tendo os Estados Unidos

como o principal país de destino. Na América Central, na década de 1980, um novo impulso para fora foi dado por causa das guerras e insurreições revolucionárias: globalmente, estava em curso a globalização das economias dentro de uma nova dinâmica orientada a promover novos padrões de acumulação; havia uma reorientação das economias e ocorreu, neste mesmo período de transnacionalização laboral e de globalização, o que também poderíamos chamar de pós-guerra, período em que esta pesquisa se centrará. Na década de 1990, enquanto a América Central se reerguia e tentava reconstruir-se de um intenso período de crises políticas e sociais, ela convivia com uma ordem global bastante diferente da que havia conhecido quando três de seus países, Nicarágua, Guatemala e El Salvador, entraram em guerra. As chamadas guerras centro-americanas, como comumente são chamadas, referem-se aos processos político-militares internos vividos por Nicarágua (1970-1979), Guatemala (19661996) e El Salvador (1980-1992). Apesar do caráter interno dos conflitos – nos três casos ocorreram enfrentamentos entre guerrilhas e governo – intensa ingerência estadunidense ocorreu, a partir de apoio financeiro a exércitos ou grupos para-militares, no caso dos Contra nicaraguenses. O clima de emergência econômica no período pós-guerra facilitou a entrada de discursos e práticas neoliberais. A narrativa triunfante do liberalismo sobre o comunismo também deu um empurrão nesse caminho: a vitória liberal parecia ter que se impor também em uma América Central que havia vivido, durante suas próprias guerras, o delicado contexto da disputa ideológica, que deixou, como parte do saldo, populações traumatizadas que pareciam querer a paz a qualquer custo. Alvarez (2011), o modelo neoliberal adotado por El Salvador, por exemplo, mas que se repetiu em toda América Central, propunha que o bem-estar humano fosse alcançado através da liberalização individual e empresarial, cabendo ao Estado o papel de garantir as estruturas e aparatos institucionais para que isso ocorresse. Mesmo com os incentivos dos governos, os países pareciam não se recuperar. O Estado tornou-se um mero garantidor de circunstâncias que asseguravam a propriedade privada e a criação de mercados, estimulando a acumulação de capital. Nesse sentido, foram criadas políticas econômicas que levavam em conta a


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propriedade da terra (em uma estrutura fundiária concentrada) e a exportação dos produtos primários de sempre (café, algodão e banana), justamente os setores cujos donos eram os tradicionais oligarcas centro-americanos, que se beneficiaram dessas políticas para incrementar suas carteiras de produtos, introduzir as maquilas e investir no turismo. Maquilas ou maquiladoras são empresas dedicadas à montagem de produtos, mediante importação de matéria-prima sem taxação. Na América Latina, o México é o país com maior número de maquilas, sobretudo na área dos têxteis. A América Central, pós 1990, enveredou pelo mesmo caminho. Tais empresas funcionam, majoritariamente, com capital estrangeiro e os produtos montados são vendidos de volta ao país de origem das matérias-primas. Apresentadas ao México e à América Central como estratégias para o aumento da oferta de empregos, recebem críticas por evidenciarem a precarização laboral, por meio de altas jornadas de trabalho e baixos salários. A vida centro-americana, nos anos 1990, estava ainda mais próxima do Império estadunidense. Naqueles anos, os sandinistas nicaraguenses perderam eleições para presidente, entregando a Nicarágua a forças opositoras pró-Estados Unidos; o Panamá sofreu uma intervenção militar direta dos EUA, para a prisão de seu outrora aliado, General Noriega. Houve a assinatura de um acordo de paz em El Salvador, firmado em 1992 e marcado pela permanência da direita-nacionalista, financiada diretamente pela Administração Reagan, no poder. E, finalmente, em 1996, a Unidad Revolucionária Nacional de Guatemala e o governo guatemalteco pactuaram o fim de um conflito de 30 anos, sem, no entanto, pactuar como seriam resolvidas as pendências econômicas e sóciopolíticas que, outrora, justificaram uma guerra. Ou seja, o istmo saiu das ruínas de conflitos armados para adentrar em uma ordem internacional que exigia uma economia interdependente e globalizada. E percorreu esse abrupto caminho tendo, no poder, governos conservadores e afins a um projeto neoliberal e a um projeto de desenvolvimento que permitia a perpetuação de uma lógica excludente e dependente. É nesse sentido que Gamboa (2007, p. 31) diz que estava em curso uma nova etapa de rearticulação global das sociedades centro-americanas e que esta rearticulação havia sido anticipada por una amplia transición sociopolítica que dejó atrás los sistemas oligárquico-militares para abrir paso al establecimiento de régimenes híbridos. Estos son una mezcla de prácticas autoritaria, aún remanentes, frente a la formación de procesos democráticos asentados en el establecimiento de la ciudadanía civil y política, bajo la garantía formal de las libertades civiles y políticas, entre ellas la de elección de los gobernantes, mediante el sufragio, y la aceptación institucionalizada de la disidencia. Ou seja, houve ênfase em um sistema institucional de eleições e construção da democracia, enquanto

a ideia de cidadania ficou resumida aos direitos políticos, deixando de lado as dimensões civis e sociais. É o que Gamboa (2007, p.31) vai chamar de democracia tutelada, ou um processo em que houve legitimação das novas e velhas elites centro-americanas, neutralizando as massas populares, tudo isso sob a égide de acordos de paz ou outros aparatos institucionalizantes. “Podría argumentarse que el saldo de ese proceso derivó enla derrota estratégica de los proyectos de cambio sociopolíticos” (GAMBOA, 2007, p.31), ainda que esse novo cenário, a partir do vazio de direitos sociais e civis, tenha criado novas frentes de reivindicação da cidadania. É aqui, precisamente, que entram os movimentos transnacionais como importantes fóruns de reivindicação e pressão. E para os efeitos deste trabalho, analisaremos as chamadas organizações de migrantes (hometown associations, por seu termo em inglês), consideradas importantes formas de ação coletiva política transnacional, segundo autores como Paul & Gammage (2004) e Rocha (2015), figurando como grande desafio para o sistema político tradicional e nacionalista centro-americano. Do território conhecido como Triângulo Norte, que compreende os Estados de El Salvador, Guatemala e Honduras, origina-se a maior parte dos movimentos migratórios da América Central. São países que não têm demonstrado habilidade no sentido de manter seus cidadãos em território nacional – o que pode ser evidenciado por baixa criação de empregos, baixa capacidade de atrair investimentos, baixa capacidade de prover direitos básicos de saúde, educação e previdência – e que Gammage (2006) caracteriza como expulsores de nacionais. Além disso, encaixam-se como democracias tuteladas e se caracterizam por um acentuado neoliberalismo tardio. Neste trabalho, abordaremos alguns desses problemas: a condição periférica, o maldesarrollo como evidência de colonialismo interno, a violência estrutural e a migração, que detém um caráter ambíguo (ao passo que é uma estratégia de sobrevivência, é, também, responsável pela desarticulação familiar e solapamento das forças produtivas e da população economicamente ativa). Entre centro-americanos e centro-americanistas, é muito comum ouvir o termo diáspora quando se referem ao contingente de pessoas emigradas da América Central. O que se pode observar é que, nesse caso, o termo está mais ligado ao número de pessoas que empreenderam viagem e deixaram o istmo para trás e não especificamente ao tipo de atuação que têm esses migrantes. A partir das teorias de diáspora é possível perceber que existem certas características que ajudam a diferenciar um deslocamento migratório de um movimento diaspórico. No entanto, pelo menos no caso centro-americano, essa dimensão conceitual se perde, o que é complicado, já que migração e diáspora são conceitos


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parecidos, porém bem distantes. Sheffer (2003) e Cohen (1997) são bastante diretos e enfáticos quando colocam nas diásporas a consciência da capacidade de ação política coletiva, enquanto os migrantes podem nunca chegar a alcançar essa noção ou, simplesmente, podem escolher não atuar como atores sociais que influenciam politicamente em sua terra natal. Com um histórico muito baixo de retornados, a América Central teria formado uma diáspora? Como entender a atuação de centro-americanos emigrados em prol de sua terra natal? Assim, a proposta deste artigo é uma análise empiricamente orientada, utilizando os aportes das teorias de diáspora e do pós-colonialismo, tendo o Triângulo Norte Centro-americano como ponto de partida e os Estados Unidos como ponto de chegada desses migrantes. Correntemente, a abordagem sobre as migrações tende a reproduzir uma série de estigmas que acaba por colocar na conta dos migrantes certas responsabilidades e culpas. Eles são os indesejáveis – nos países de passo ou de chegada. Também são responsáveis pela vida de quem fica no Istmo – são os hermanoslejanos, aqueles que vão embora, mas que devem manter-se próximos para aportar financeiramente ao Estado de nascimento. Ao se analisar os relatórios de organismos internacionais, é possível observar a construção de um discurso pretensamente homogeneizador e, por isso mesmo, limitante, mas cuja crítica reside no fato de criar estigmas suaves, que se acoplam facilmente à interpretação sobre o tema e sobre as pessoas. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por exemplo, frequentemente aborda a questão migratória centro-americana identificando-a como estratégia de vida – colocando em evidência uma identificação dessas populações com o desarraigo e é como se assumissem que essas pessoas teriam outras escolhas a fazer. Também se diz que eles vão em busca de desenvolvimento – sem informar que tipo de desenvolvimento e colocando em suas costas a responsabilidade de mandar remessas para suas famílias. O Fundo das Nações Unidas para as Populações (UNFPA, 2009), por sua vez, chegou a caracterizar os severos deslocamentos populacionais centro-americanos como uma avalanche incontrolável, como se as pessoas fossem forças da natureza, imparáveis e que não obedecem a uma racionalidade. A cada estigma que se cria, reforça-se a postura dos Estados em não se responsabilizarem por sua própria população. Afinal, frente a uma identidade desarraigada, não haveria suficiência em políticas econômicas, sociais ou de emprego, elas não seriam suficientes para manter centro-americanos na América Central. Frente decisões pautadas na vivência de situações extremas, não há como os Estados produzirem alternativas de vida viáveis, no curto prazo, elas não seriam escolhidas. Ademais, os estigmas acabam criando a ideia de migrantes como perigos em potencial e de que a migração

será conseguida a qualquer custo, sobretudo pela via indocumentada. Abordaremos mais adiante essas questões, principalmente no que concerne à construção do personagem hermanolejano, autenticamente centro-americano e centralizador de tantos significados conflitantes para a diáspora. Por fim, a crítica possível a essas narrativas é criarem explicações usando uma lógica inversa: focam no sintoma de um construído descontrole estatal e não em suas causas, que, como assumimos aqui, têm uma longa raiz histórica. Ou seja, tratam-se os migrantes por suas condições, suas reações à pobreza e à violência, mas não se evidencia o contexto em que esses descontroles foram construídos. Uma forma de evitar esse tipo de abordagem é a descolonização – nos termos de Mignolo (2005) e Grosfóguel (2008) – das migrações e das diásporas. Por isso uma abordagem teórica que busque trazer à tona os limites das teorias de migração e de diáspora, isto é, até o momento em que elas param de responder ao contexto centro-americano, já que são teorias construídas para países centrais, com contextos distintos, padrões migratórios distintos e com causas distintas para os deslocamentos. De acordo com teóricos pós-coloniais, essa limitação na explicação ocorre quando utilizamos instrumental teórico que não leva em conta, para países periféricos e seus fenômenos sociais, as histórias locais e, no cerne dessa problemática, está o encobrimento do choque colonial, da diferença colonial e do colonialismo vigente mesmo após as independências dos Estados. Encontramos que a padronização do discurso sobre as migrações também obedece a uma lógica de colonialidade do poder, nos termos de Quijano (2005), ou seja, a reprodução das estruturas de poder coloniais seguem vigentes, via colonialismo interno, como diz Casanova (2006), porque vigente segue o interesse de outras elites na hierarquização das relações, na diferenciação entre classes, no espólio de recursos naturais, na precarização laboral, na violência do cotidiano, nas faltas de políticas sociais de educação, moradia e saúde. Trabalhar com essa perspectiva é, também, reconhecer que o que antes era interessante como objeto de estudo, observado, exotizado e analisado a partir de enfoques que nada tinham a ver com seu contexto, passa agora a funcionar como locus de enunciação protagônico, sendo fonte, não só do problema, mas das soluções, garantindo abordagens teóricas que levam em conta seu contexto. É reconhecer que a universalidade histórica silenciou atores que precisam, agora, recuperar suas vozes e narrativas. Procede-se então, não à construção de uma nova narrativa, mas de outra narrativa que vise recuperar saberes escondidos, por isso também a escolha por privilegiar autores sul-americanos e centro-americanos. Diz Mignolo (2005, p. 52): “Cada ato locutivo é, ao mesmo tempo um pronunciamento contra e um


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pronunciamento em direção a. Esse duplo movimento vai adquirir uma dimensão complexa quando considerado na intersecção das histórias locais e dos projetos globais e na intersecção dos solos e subsolos hegemônicos e subalternos”. A partir da necessária fricção entre ambas as fronteiras, a periférica e a central, é que podemos notar como a colonialidade do poder cobra seu direito de contestar qualquer outra alternativa “cujo desejo de verdade seja precedido pelo desejo de mudança e de justiça”. Nesses termos, Mignolo (2005) advoga que esta outra narrativa – que ele vai chamar de episteme liminar – serve também ao anseio de emancipação dos povos subalternizados, porque apenas pode existir dentro dessa subalternidade e funciona como imprescindível instrumento para a descolonização intelectual, política e econômica. As histórias locais centro-americanas articulam-se com os projetos globais do colonialismo espanhol e do imperialismo estadounidense, por isso se faz necessário contar a histórica centro-americana relembrando a responsabilidades destas potências na construção de um contexto conturbado e de dependência endêmica. Isso significa dizer que esta região do mundo esteve historicamente secundarizada em relação a este outro ente externo e dominador. Assim, não é de se estranhar que o discurso sobre a América Latina, em geral, e sobre a América Central, em específico, parta da narrativa hegemônica. Deveria parecer estranho que a história centro-americana seja, ainda hoje, mais “bem-entendida” a partir das ausências. Sendo assim, apenas a aplicação da teoria de diásporas para interpretar os fenômenos migratórios de Centro-américa, não responde a contento àquelas que são as grandes perguntas-guia deste trabalho: existe uma diáspora centro-americana? De que forma ela está articulada e com quem? E duas formas de descolonizar as migrações é não as tomar como eventos iminentemente individuais, reconhecendo seus limites enquanto estratégias de sobrevivência e considerando os migrantes também como atores políticos que compõem uma coletividade que não deve ser tutelada por governos que, na maior parte das vezes, obedecem às lógicas de colonialidade do poder e da necropolítica. Referências: ALVAREZ, Alberto Martín (2011). Desafiando la hegemonia neoloiberal: ideologias de cambio radical en la Centroamérica del postguerra. Revista História Actual On line, 25: 111-23. Publicado em [http://kms1.isn.ethz.ch/serviceengine/Files/ ISN/136357/ichaptersection_singledocu ment/783d0a132fe2-4d6b-9c69-aebb9a4b39ae/es/9.pdf.] Disponibilidade 10/07/2014. CASANOVA, Pablo González (2006). Colonialismo interno: una redefinición. In BORÓN, Atílio. La teoria marxista hoy. Buenos Aires: Clacso, 409-434.

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Antonio Manoel Elibio Jr é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Juliana Mércia Guilherme Vitorino é professora do Departamento de Ciências Sociais Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira. Marcos Ferreira da Costa Lima é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Esta é uma versão resumida de um artigo que foi publicado na íntegra em Revista de Estudos Internacionais (REI), ISSN 2236-4811, Vol. 8 (3), 2017


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Mídia Alternativa Jornalismo de oposição e resistência Por Xenya Bucchioni

Outros jornalismos possíveis

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1 d e Ju l h o d e 1 9 7 8 . D i a nt e d a f ot o d e u m E r n e s t He m i n g w ay b on a c h ã o, e s pi n g a rd a e m pu n h o, e m uma de suas caçadas pela África, algumas q u e s t õ e s p a i r a m n a s e nt re l i n h a s d o t e x t o pu b l i c a d o n a Fo l h a d e S . Pau l o : O qu e p e n s a m o s j or n a l i s t a s s o bre o t ip o d e j or n a l i s m o q u e pr at i c a m ? S e r i a pr u d e nt e f a l a r e m j or n a l i s m o n o s i n g u l a r ? O u m e l h or s e r i a a c re s c e nt a r- l h e u m “s”, nu m e x e rc í c i o s i mp l e s d e p lu r a l i d a d e ? Q u a l a n atu re z a d a prof i s s ã o e c om o ( p e r ) s e g u i - l a ? É p o s s í v e l apre n d e r a s e r j or n a l i s t a ? A p a r t i r d e q u a l s u b s t r at o ? Int itu l a d o “Um t ip o i n e s qu e c í v e l”, o t e x t o c a r re g a c on s i g o a au r a d o re p ór t e r- a v e ntu re i ro. Um a e s c o l h a f e it a s o b m e d i d a à d i s c u s s ã o a b e r t a s o bre o e s c r it or à lu z d a r a i z m ít i c a e nv o lt a n o e x e rc í c i o d a prof i s s ã o d e j or n a l i s t a t ã o b e m e n c a r n a d a p or ele. R e p or t a g e m e av e ntu r a , n o t e x t o d a Fo l h a , s ã o d oi s l a d o s d e u m a m e s m a m o e d a c ont r ap o s t a a d a d o s m e n o s g l a m ou ro s o s s o bre a v i d a d i á r i a d o s j or n a l i s t a s – pro b l e m a s d e c or a ç ã o, pr i s ã o d e v e nt re , h e m or roi d a . S i nt om a s at r i bu í d o s a u m a v i d a s e d e nt á r i a q u e i n s i s t e e m p or a b a i x o o s e n s o c omu m , s o b o qu a l a s l i n h a s pu b l i c a d a s d i s p õ e m - s e a re f l e t i r e m u m c onv it e e s t e n d i d o a j or n a l i s t a s n ov at o s e , e s p e c i a l m e nt e , a v e t e r a n o s d e re d a ç õ e s c onv e n c i on a i s . “Eu s e mpre l i o He m i n g w ay c om o u m j or n a l i s t a rom â nt i c o, u m t ip o i d e a l”, d i r i a , n a o c a s i ã o, Fe r n a n d o Por t e l a , e d it or- c h e f e d o Jor n a l d a Ta rd e . Pa r a Jo s é R o b e r t o Gu z z o, e d it or d a Ve j a d a qu e l e s t e mp o s , o s t e x t o s d o e s c r it or c om o re p ór t e r p a re c i a m “c oi s a s l on g í n qu a s , v a g a s , m a i s ou m e n o s p e rd i d a s e m a l g u m p ont o d o p a s s a d o q u e p ou c o ou n a d a t e m a v e r c om a re a l i d a d e m a i s c on c re t a d o d i a a d i a d e u m prof i s s i o -

n a l q u e t r a b a l h a n o B r a s i l d e 1 9 7 8 ”. C l au d i o Abr a m o, a q u e l a a ltu r a j á c om l on g a e s t r a d a prof i s s i on a l , s u b l i n h a r i a o d e s c on h e c i m e n t o a c e rc a d o t r a b a l h o j or n a l í s t i c o d o e s c r i t or, e n f at i z a n d o s u a pro du ç ã o l it e r á r i a s e m c on s i d e r a r, c ontu d o, a p o s s i bi l i d a d e d e e n t re c r u z a m e nt o e nt re a mb a s . Ao s j or n a l i s t a s re c é m - f or m a d o s , c a b e r i a o p o s i c i on a m e nt o e nt re a q u e l e s c uj a pre s e n ç a d o m it o e r a , a i n d a , b a s t a nt e f or t e . Um s i n a l , a d v e r t e o t e x t o, a d e q u a d o a o lu g a r p or e l e s , a i n d a , o c up a d o f or a d a s re d a ç õ e s . A f i n a l : “ Tr a n c a d o s n a s e s c o l a s apre n d e m t é c n i c a s u m t a nt o d i s t i nt a s d a s q u e s e e x i g e m e m u m j or n a l , o q u e l h e s s o br a é a v i s ã o rom â nt i c a d e u m a prof i s s ã o q u e n ã o c on h e c e m”. At é p orq u e , p e l a ót i c a prop o s t a , “e s c o l a d e j or n a l i s m o é j or n a l”. As s i m , n a a s s o c i a ç ã o e nt re He m i n g w ay e o j or n a l i s m o, c on c lu i - s e : “o av e ntu re i r i s m o d e u m h om e m f i c a c on d i c i on a d o, at re l a d o a u m a prof i s s ã o”. Ne s t e q u a d ro, s u b s t itu í d o p e l o d e s i g n at i v o g e n é r i c o d e “av e ntu r a”, o e t h o s d a prof i s s ã o v o lt a - s e , p or t a nt o, a o i n d i v í du o aut ôn om o, d ot a d o d e v ont a d e s e c a r a c t e r í s t i c a s p e s s o a i s or i e nt a d or a s d o e x e rc í c i o d e s u a prof i s s ã o. Vi v e r o q u e o He m i n g w ay v i v e u p a r a c ont a r t r a du z - s e , a s s i m , a u m a pro c u r a p a r t i c u l a r, à u m a q u e s t ã o d e g o s t o e n ã o a out r a p o s s i bi l i d a d e d e “f a z e r j orn a l í s t i c o”. “A av e ntu r a e s t á n o i n d i v í du o, n ã o e m s u a prof i s s ã o”, d i r i a Jo s é A f on s o, u m d o s j or n a l i s t a s v e t e r a n o s e nt re v i s t a d o s . S e g u i n d o e s s a l i n h a d e r a c i o c í n i o, M i n o C a rt a , e nt ã o e d it or d a re v i s t a Is t o É , re t om a r i a o s e nt i d o d a p a l av r a : “O q u e é a av e nt u r a ? S e f or at r av e s s a r u m d e s e r t o, e u a c h o mu it o c h at o. Ma s s e a av e ntu r a f or d e nu n c i a r a s m a z e l a s d o p o d e r, e nt ã o m e p a re c e i nt e re s s a nt e”. E m m e i o a d i s c u s s ã o – c uj a m a rc a e s s e n c i a l d e s nu d a t a nt o o c ont e x t o j or n a l í s t i c o br a s i l e i ro d a é p o c a q u a nt o o s m o d o s m a i s ou m e n o s a c e it áv e i s e u s u a i s d e s e f a z e r j or n a l i s m o – n ã o s e r i a d e e s t r a n h a r, p ort a nt o, q u e f o s s e j u s t a m e nt e u m re pre s e n -


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t a nt e d a i mpre n s a a lt e r n at i v a a v o z d i s s o n a nt e e nt re o s j or n a l i s t a s v e t e r a n o s . Pa r a Wa g n e r C a re l l i , c o l a b or a d or d e Ve r s u s , He m i n g w ay h av i a s i d o u m a i n f lu ê n c i a e m s e u s c a m i n h o s e e s c o l h a s , s o bre tu d o, p orq u e “e l e m o s t rou qu e o j or n a l i s m o v a i a l é m d o e s p a ç o r i d í c u l o qu e of e re c e a f r i g i d e z a n a c rôn i c a d o s j or n a i s ( . . . ) ”. O pi n i õ e s e c ont rov é r s i a s à p a r t e , o t e x t o e m q u e s t ã o t r a z e m s e u b oj o e l e m e n t o s f u n d a m e nt a i s à c ompre e n s ã o d e proj e t o s j or n a l í s t i c o s p e r s e g u i d o s n a e s t e i r a d a s re f e rê n c i a s a nu n c i a d a s p e l o e n c ont ro d a l i t e r atu r a c om o j or n a l i s m o. A f i n a l , He m i n g w ay é u m d o s p e r s on a g e n s n e s s e t ip o d e t r aj e t ór i a . E x i s t e m out ro s , n o e nt a nt o. Ja c k L on d on , Jo h n R e e d , Tr u m a n C ap ot e , Norm a n Ma i l e r – “d a s b a n d a s d e l á” ( d o h e m i s f é r i o n or t e ) . C a r l o s Fu e nt e s , Au g u s t o R o a B a s t o s , O s v a l d o S or i a n o, G a br i e l G a rc í a Má rq u e z , R o d o l f o Wa l s h – “d a s b a n d a s d e c á” ( d a A m é r i c a L at i n a ) . E e nt re e l e s , u m a i d e i a c omu m : a d e qu e a f u n ç ã o d a e s c r it a , m e s m o a d e s e nv o l v i d a e m í nt i m a v i n c u l a ç ã o c om o j or n a l i s m o, c on s t itu i - s e c om o a l g o m a i s d o q u e t r a n s m it i r u m a i n f or m a ç ã o s o b a pre t e n s ã o d a o bj e t i v i d a d e . Um p ont o d e v i s t a n o qu a l a l it e r at u r a c ont e r i a n ã o a s m a rc a s d a s u bj e t i v i d a d e proi bi d a a o e x e rc í c i o j or n a l í s t i c o, m a s s i m o s re c u r s o s n e c e s s á r i o s a o d e s v e l a m e nt o d a re a l i d a d e . D e s s e m o d o, a bu s c a j or n a l í s t i c a d i z m e n o s re s p e it o à d e nú n c i a – e n qu a nt o pro c e s s o d e v e r i f i c a ç ã o d a re a l i d a d e ou f i s c a l i z a ç ã o d o p o d e r – d o qu e a out ro s c a m i n h o s d e m é t o d o s e l i n g u a g e n s j or n a l í s t i c a . Is t o p orqu e a aprox i m a ç ã o e nt re o j or n a l i s m o e a l it e r atu r a a d qu i re u m c ont or n o e s p e c i a l , u m a v e z qu e s e u e n l a c e pro c u r a d a r c ont a da nossa marginalidade social, da miséria c ot i d i a n a e e x t re m a e x p e r i m e nt a d a s o b o s i g n o d a v i o l ê n c i a c a r a c t e r í s t i c a d o c ont i n e nt e . Ao m e s m o t e mp o e m qu e s ã o s o c i a i s , e s s e s e n f re nt a m e nt o s s ã o, t a mb é m , t e x tu a i s e , p or i s s o m e s m o, d e m a rc a m u m a n o ç ã o d e c u lt u r a v i n c u l a d a à t r a n s f or m a ç ã o, pre c o n i z a n d o u m e n g aj a m e nt o qu e , i n d e p e n d e n t e m e nt e d e f i l i a ç õ e s p a r t i d á r i a s , t r a du z - s e p or s i s ó c om o u m c omp on e nt e p o l ít i c o. Um a f or m a d e e n g aj a m e nt o qu e s e or i g i n a d e u m a re l a ç ã o í nt i m a c om o t e x t o, e m u m c or p o a c or p o e nt re o j or n a l i s t a e o u n i v e rs o apre e n d i d o. Nã o p or a c a s o, h á , n e s s e out ro c a m i n h o, u m a f u n ç ã o aut o - i nt e r ro g a nt e s o bre a q u i l o qu e s e f a z – u m d e s e j o d e t e r c l a re z a e

c on s c i ê n c i a s o bre à q u i l o q u e s e f a z . Pa r a q u e s e e s c re v e , s o bre o q u ê , c om o e p a r a q u e m s ã o a l g u m a s p e r g u nt a s c or re nt e s e m s e u s proj e t o s . Por m e i o d e l a s , a re a l i d a d e é posta em suspensão a fim de ser inspecion a d a , i nv e s t i g a d a . Um m ov i m e nt o n o q u a l o s própr i o s pro c e d i m e nt o s u s u a i s à d i s p o s i ç ã o d o j or n a l i s t a s ã o p o s t o s e m dú v i d a , e m c on s t a nt e e s t a d o d e i n c e r t e z a . L i m a B a r re t o e Jo ã o A nt ôn i o s ã o d oi s re pre s e nt a nt e s , e m s o l o br a s i l e i ro, d e s s e out ro j or n a l i s m o p o s s í v e l , f u n d a m e nt a d o n a op ç ã o p or i r a l é m d a s m a r g e n s pré - e s t a b e l e c i d a s – a o e n c ont ro d o s p e r s on a g e n s a n ôn i m o s q u e c omp õ e m u m re t r at o e s q u e c i d o n ã o ap e n a s d a c i d a d e , u n i v e r s o c o mu m p or a mb o s re t r at a d o s , m a s s o bre t u d o d o própr i o B r a s i l . L on g e d a m e r a d e s c r i ç ã o, o j or n a l i s m o p e r s e g u i d o p or a m b o s f u n d e - s e , c on f u n d e - s e e t r a n s mut a - s e c om o s h or i z ont e s p o s t o s s o b i n s p e ç ã o. E s s a a b e r tu r a v e r i f i c a - s e , e s p e c i a l m e nt e , n a i n c or p or a ç ã o t e x tu a l d a s l i n g u a g e n s c omu n s a o u n i v e r s o apre e n d i d o, nu m e x e rc í c i o d e d e i x a r- s e “c ont a m i n a r” p e l a s mú lt ip l a s re a l i d a d e s e x i s t e nt e s . Por i s s o m e s m o, o q u e t e m o s t a nt o e m Jo ã o A nt ôn i o q u a nt o e m L i m a B a r re t o é u m a e s p é c i e d e l a b or s o bre a q u i l o qu e n o s c on f or m a e n q u a nt o br a s i l e i ro s . Is t o é , u m o l h a r c on s t r u í d o d e d e nt ro p a r a f or a e , p or t a nt o, c ap a z d e a b a rc a r a s n o s s a s e s p e c i f i c i d a d e s , t a mb é m , n o at o d e e s c re v e r. P re o c up a ç ã o q u e s e t r a du z n o s e nt i m e nt o d e u m a nt i a c a d e m i c i s m o e d e t u d o o q u e d e i mp or t a d o h á n o pro c e s s o d e e s c r it a , e q u e n o s i mp e d e d e a br a ç a r p or c omp l e t o u m a aut e nt i c i d a d e a l i c e rç a d a n a u n i ã o d a l it e r atu r a , d o j or n a l i s m o e d e u m a pr át i c a d e e s c r it a prof u n d a m e nt e c omprom e t i d a c om o u n i v e r s o s o c i a l e c u ltu r a l br a s i l e i ro.

Escrita pela jornalista Xenya Bucchioni, doutoranda em Comunicação na UFPE e fundadora do Mezclador, estúdio de cultura contemporânea desenhado para realizar projetos de impacto social, a coluna Mídia Alternativa aborda a produção jornalística feita à margem dos veículos tradicionais. Mensalmente, o espaço apresentará um raio-x das publicações alternativas marcantes na história do jornalismo e do país, além de entrevistas e debates.


JORNALISMO E CIDADANIA | 16

Opinião

MERCOSUL A restauração dinâmica do Consenso de Assunção II Por Mariana Vazquez

E

m 22 de junho de 2012, com o apoio das forças que encarnavam as dinâmicas restauradoras subjacentes na região da América do Sul, foi realizado um golpe de Estado parlamentar c o n t r a o p r e s i d e n t e d o Pa r a g u a i F e r n a n d o Lu g o. Is s o r e s u l t o u , p o r u m l a d o, n a s u s p e n s ã o d e s t e p a í s d o Me r c o s u l e , p o r o u t r o, u m p a r a d o x o n ã o e s p e r a d o p e l o s g o l p i s t a s : a R e p ú b l i c a B o l i v a r i a n a d a Ve nezuela adquiriu parte de um estatuto do E s t a d o, q u e t i n h a s i d o b l o q u e a d a a t é e n tão pela ausência de ratificação do C ong r e s s o p a r a g u a i o. I nv o c a n d o o P r o t o c o l o d e Us h u a i a s o b r e C o m p r o m i s s o D e m o c r á t i c o, 2 9 d e j u n h o d a q u e l e a n o, o s c h e f e s d e E s t a d o d a A r g e n t i n a , B r a s i l e Ur u g u a i d e c i d i r a m s u s p e n d e r a R e p ú b l i c a d o Pa r a g u a i . Na mesma data, e tendo em conta o Protocol o d e Ad e s ã o d a R e p ú b l i c a B o l i v a r i a n a d a Ve n e z u e l a a o Me r c o s u l , a s s i n a d o e m C a r a cas em quatro de julho de 2006, foi decidid o o i n g r e s s o d e s t e p a í s n o b l o c o. O golpe foi um infortúnio para a democ r a c i a n o Pa r a g u a i , m a s t a m b é m e r a f u n damentalmente para o projeto autônomo e inclusivo de integração regional sul-am e r i c a n o, q u e s e e s t a v a v i s a n d o a n c o r a r n a r e g i ã o, c o m a f o r m a ç ã o d o C o n s e n s o d e B u e n o s A i r e s n o Me r c o s u l e n o â m b i t o d a Un a s u l . E m t e r m o s d e p r o j e t o p o l í t i c o e e c o n ô m i c o d e i n t e g r a ç ã o, a d i r e i t a t r i u n f a n t e n o Pa r a g u a i i m p ô s u m g o v e r n o que abandonou a perspectiva democrática e a extensão dos direitos anteriormente promovidos, e começou a se comprometer muito mais com a integração mundial, por meio de acordos com economias altamente d e s e nv o l v i d a s . A s u p o s i ç ã o p o r Ta b a r é Va z q u e z , n o s e u s e g u n d o m a n d a t o n o Ur u g u a i , e m 1 º de março de 2015, com um discurso indisf a r ç a v e l m e n t e f a v o r á v e l a o l i v r e c o m é r c i o, pagou as terras anteriormente plantadas p e l o g o v e r n o d o Pa r a g u a i . D e s d e a c h e g a d a d e M a u r i c i o M a c r i a o g o v e r n o d a A r-

g e n t i n a , e m d e z e m b r o d o m e s m o a n o, u m novo consenso foi tomando forma e se ref letiu nos discursos dominantes da Cimeira de Chefes de Estado realizada em Assunção na época. Restou apenas esperar o golpe contra o governo da presidente Dilma Rousseff, em 2016, para o novo projeto b u s c a r p r e v a l e c e r n a r e g i ã o. E s t e p r o j e t o, n a d i m e n s ã o d a e c o n o m i a p o l í t i c a d a i n t e g r a ç ã o, e nv o l v e u m a d e g r a d a ç ã o d o p r o c e s s o d e i n t e g r a ç ã o, q u e e m s u a v e r s ã o e x t r e m a , l e v a o Me r c o s u l para se tornar uma área de livre comércio em que os Estados podem assinar acordos nesses modelos com países ou blocos sem a concordância dos seus parceiros. Esta versão corresponde paradoxalmente à prop o s t a d o g o v e r n o d a F r e n t e A m p l a d o Ur u guai. O único veto possível a essa reorientação do projeto regional foi da República B o l i v a r i a n a d a Ve n e z u e l a , e e i s q u e s u r g e uma extremidade da meada que nos traz à recente suspensão do país em dezembro de 2016. Embora seja muito cedo para dar uma dimensão ao impacto político regional sob r e o e s q u e m a d e i n t e g r a ç ã o, j á s e v i s u a l i z a um esvaziamento das dimensões políticas, s o c i a i s e c i d a d ã s d o Me r c o s u l e u m a h i e r a r q u i z a ç ã o d a a g e n d a c o m e r c i a l , n o m a rco do enfoque alinhado com a degradação da que falamos previamente. É um projeto fortemente dependente, embora baseado em um total desrespeito da democracia e d o E s t a d o d e d i r e i t o. Nã o p o d e m o s i g n o r a r q u e e s t e p r o j e t o d e i n t e g r a ç ã o, r o s t o dependente e exclusivo da antinomia, tem p r o c u r a d o i m p o r a o Me r c o s u l a p a r t i r d e d o i s g o l p e s ( Pa r a g u a i e B r a s i l ) e u m g o l p e i n s t i t u c i o n a l ( s u s p e n s ã o Ve n e z u e l a ) , q u e contou com a cumplicidade de governos democraticamente eleitos. A R e p ú b l i c a B o l i v a r i a n a d a Ve n e z u e l a h o j e . Pe ç a c h a v e d a a n t i n o m i a .


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Em 12 de julho de 2012, logo após o golp e q u e o c o r r e u n o Pa r a g u a i , o s i t e C a r t a Maior resumiu da seguinte forma um documento elaborado pelo Professor Samuel P i n h e i r o G u i m a r ã e s : “A p o l í t i c a e x t e r n a norte americana na América do Sul sofreu as conseqüências totalmente inesperadas da pressa dos paraguaios neogolpistas por a s s u m i r o p o d e r, c o m t ã o g r a n d e v o r a c i dade que não podiam esperar até abril de 2013, quando serão realizadas as eleições, e agora articula todos os seus aliados para r e v e r t e r a d e c i s ã o d o i n g r e s s o d a Ve n e z u e l a . A q u e s t ã o d o Pa r a g u a i é a q u e s t ã o d a Ve n e z u e l a , a d i s p u t a p e l a i n f l u ê n c i a e c o n ô m i c a e p o l í t i c a n a A m é r i c a d o S u l “. P i n h e i r o G u i m a r ã e s d e s c r e v e n e s s e a rtigo que o objetivo histórico e permanente d o s E UA n a A m é r i c a d o S u l é i n c o r p o r a r todos os países da região à sua economia, buscando centralmente adoção na Améric a - L a t i n a e n o C a r i b e d e n o r m a s q u e p e rmitam a mais ampla liberalização possível d e c o m é r c i o, f i n a n ç a s e i nv e s t i m e n t o s , d o s ser viços e da proteção da propriedade intelectual, através da negociação de acordos d e n í v e l r e g i o n a l o u b i l a t e r a l . Ad i c i o n a d o a i s s o, e l e d e s c r e v e u o a l v o v i t a l d o s E UA para o fornecimento de energia. Ambos objetivos foram bloqueados com a chegada d e Hu g o C h á v e z a o g o v e r n o d a Ve n e z u e l a , desencadeando uma campanha regional e g l o b a l c o n t r a e s s e g o v e r n o. E s s e é o c o n t e x t o m e s m o d o g o l p e d e E s t a d o q u e o c o rreu naquele país em 2002, sendo George W. B u s h u m d o s p r i m e i r o s a r e c o n h e c e r a s circunstancias do governo golpista. “A e n t r a d a d a Ve n e z u e l a a o Me r c o s u l teria quatro consequências: dificultar a remoção do presidente Chávez através de um golpe; evitar uma eventual reincorpor a ç ã o d a Ve n e z u e l a e d e s e u e n o r m e p o tencial econômico e energético à economia a m e r i c a n a ; f o r t a l e c e r o Me r c o s u l e t o r n á -lo ainda mais atraente à adesão de outros países da América do Sul; dificultar o proj e t o d o s E s t a d o s Un i d o s p a r a c r i a r u m a área de livre comércio na América L atina, a g o r a p e l a e v e n t u a l ’f u s ã o’ d o s a c o r d o s comerciais bilaterais, da qual a Aliança do Pa c í f i c o é u m e x e m p l o “. O n o v o c o n s e n s o, q u e c o m e ç o u a t o m a r f o r m a e m A s s u n ç ã o, e m d e z e m b r o d e 2015, após a chegada ao governo de Mauricio Macri na Argentina, foi a base para a r e a t i v a ç ã o d a s t e n t a t i v a s d e e x p u l s a r a Ve -

n e z u e l a d o Me r c o s u l . D e s d e e n t ã o, m u i t o s foram os instrumentos e maquiagens pseudo-jurídicos que procuraram cumprir esse o b j e t i v o, a l c a n ç a d o e m d e z e m b r o d e 2 0 1 6 . A suspensão da República Bolivarian a d a Ve n e z u e l a é c o n t r á r i a a o d i r e i t o d o Me r c o s u l e d o d i r e i t o i n t e r n a c i o n a l , q u e é de uma gravidade sem precedentes na história do bloco de 25 anos e nos coloca em um lugar que tem sido reiterado infelizmente na nossa história recente, procurando impor um projeto econômico e p o l í t i c o, p o r m e i o d e t o t a l d e s r e s p e i t o d o E s t a d o d e d i r e i t o. Tr ê s c o n s e n s o s , d o i s p r o j e t o s O continente austral está localizado no espaço econômico e geopolítico da maior p o t ê n c i a i m p e r i a l n o m u n d o. É u m f a t o iniludível. É a região da periferia mais ins e r i d a , m e l h o r a r t i c u l a d a n a “e c o n o m i a i n t e r n a c i o n a l i z a d a” n a t r a n s n a c i o n a l i d a d e . Se deseja alcançar as metas de seu desenv o l v i m e n t o a u t ô n o m o, d e u m a j u s t a d i s t r i buição do ingresso e de uma democracia p l u r a l i s t a e s t á v e l , e l a d e v e l i b e r t a r- s e d e sua dependência intolerável no quadro da crise econômica internacional Ho j e , c o m o o n t e m , e s t a a n t i n o m i a a i n d a e s t á p r e s e n t e e m n o s s a r e g i ã o. A h i s t ó r i a d o Me r c o s u l é u m a e x p r e s s ã o v i v a d e l a . Ho j e c o m o o n t e m , a d e r i v a i n d e p e n d e n t e , inclusiva e profundamente democrática na América L atina e no Caribe só será p o s s í v e l n a u n i d a d e . No v a s r e f l e x õ e s s o bre a história recente da nossa integração devem procurar entender as causas mais profundas da impossibilidade de sua rea l i z a ç ã o, p a r a p r o c u r a r f o r m a s p o l í t i c a s , formas de luta, que enfrentem o desafio de s u a c o n s t r u ç ã o.

Mariana Vazquez é cientista política e professora da Universidade de Buenos Aires – UBA, foi coordenadora da Unidad de Apoyo a la Participación Social del MERCOSUR até 2016 e coordenadora geral da Casa Pátria Grande “Presidente Néstor Carlos Kirchner” - Secretaría General de la Presidencia de la Nación Argentina (2011-2012).


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Opinião

Reforma Política em Disputa Por Pedro Lapa

E

m 2013, o Brasil foi palco de manifestações de rua, que receberam farta cobertura da mídia conservadora e grande veiculação na mídia digital. Essas coberturas e veiculações construíram o ambiente para que a elite e os segmentos da classe média a ela vinculada, gradativamente, assumissem e defendessem, de forma explícita, narrativa e posições conservadoras. Um quadro que, em grande medida, lembra a década de 1960, mas que revela novos atores: os movimentos de extrema direita que articulam a narrativa e as mobilizações. Movimentos que são a face visível da aliança conservadora que anuncia o final do ciclo político iniciado em 1985. A chamada “Nova República”. Diante dessas inquietações, a Presidenta Dilma propôs cinco “pactos políticos nacionais”, envolvendo saúde, educação, transporte, responsabilidade fiscal e reforma política, incluindo nesse item o aprofundamento das medidas de combate à corrupção. No que se refere ao pacto político, propôs a realização de um plebiscito sobre a convocação de uma constituinte para tratar da reforma política, mas o congresso rechaçou a proposta de plebiscito da Presidenta. Desde o início do Século XXI, encontramos um conjunto de organizações sociais e movimentos populares que assumiram a reforma política como imperativa. São exemplos da mobilização desses atores políticos os Plebiscitos Populares sobre a Dívida Externa, em 2000; para barrar a entrada do Brasil na ALCA, em 2002; para anular a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, em 2007; e para impedir a supressão do dispositivo que limitava o tamanho das propriedades rurais, em 2010. Em novembro de 2013, esses mesmos atores políticos lançaram a campanha do “Plebiscito pela Convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva e Soberana para Reforma do Sistema Político”. Podemos, então, considerar que em 2013 torna-se mais nítido que há no Brasil uma disputa de projetos. Um projeto de natureza popular, que reconhece a importância das políticas públicas a partir de 2003, notadamente com relação ao emprego, assistência social e relações internacionais, mas que,

ao mesmo tempo aponta para a captura do Estado pelo poder econômico, com destaque para o capital financeiro e as grandes corporações, e chama a atenção para o fato de que essa captura envolve os poderes executivo, legislativo e judiciário. Outro projeto de natureza conservadora, que estabeleceu como alvos, sem disfarces, acabar com a CLT, como havia tentado o PSDB na década de 1990; acabar com os direitos conquistados na Constituição de 1988, como são os casos do Sistema Universal de Saúde – SUS, acesso universal à educação e direitos dos índios e quilombolas; e acabar com as políticas públicas adotadas a partir de 2003, acima mencionadas em síntese. Essa disputa de projetos e a força e organização demonstradas pela aliança conservadora anunciam os estertores simultâneos de dois ciclos políticos. Um de maior duração, iniciado em 1985, e outro de menor duração, iniciado em 2003, construído dentro da lógica de conciliação de classes. Aqui cabe considerar dois elementos. Um que diz respeito à América Latina, e outro relacionado ao que podemos chamar de mundo ocidental. No início do Século XXI, a região experimentou um arejamento político significativo com a eleição de governos com programas que continham importantes avanços no que se refere à classe trabalhadora, com destaque para emprego, saúde, educação e moradia. Elementos que compõem as chamadas bases materiais da vida. Simultaneamente esses governos adotaram posições muito claras nas relações internacionais pautadas pela integração regional, cooperação e zelo com relação à soberania. Foram os casos da Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil. Sobre esse processo na América Latina, são muito relevantes duas considerações formuladas por François Houtart. A primeira diz respeito à estratégia econômica. Foi o único Continente que esboçou uma reação ao neoliberalismo. A segunda diz respeito à estratégia de poder. Os governos progressistas foram eleitos com base em alianças políticas das quais faziam parte uma parcela das forças políticas conservadoras, que inicialmente ocupavam posição secundária, mas que com o passar do tempo e na maior parte dos casos assumiram o controle dessas alianças.


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No Brasil essa transição se tornou muito nítida com o resultado das eleições de 2014. A maioria constitucional (2/3 do Parlamento), capitaneada pela aliança PMDB/PSDB, assumiu o controle do Estado embora tenha sido derrotada nas eleições presidenciais. Em 2008, o mundo ocidental experimentou uma crise cuja gravidade pode nos remeter ao Século XIX, quando o título da obra de um dos precursores do liberalismo: “A Natureza e as Causas da Riqueza das Nações” se apresentou como sua síntese ideológica. Diante do crescimento sem precedente das desigualdades combinado com a anulação (econômica e política) dos mecanismos que permitem ao Estado prover as bases materiais da vida, a síntese contemporânea do capitalismo neoliberal passa a ser “A Natureza e as Causas da Pobreza das Nações”. Voltando à disputa de projetos de nação que está explicitada de forma mais nítida no Brasil, a partir de 2013, para reafirmar que a força e organização demonstradas pela aliança conservadora anunciam não só os estertores simultâneos de dois ciclos políticos – um de maior duração, iniciado em 1985, e outro de menor duração, iniciado em 2003, construído dentro da lógica de conciliação de classes – mas também os estertores de uma estratégia política de enfrentamento do neoliberalismo implantado na América Latina pelo capital financeiro e as grandes corporações. Voltando agora aos projetos de reforma política, temos também uma disputa nítida. Por um lado, temos o conjunto de organizações sociais e movimentos populares que tomaram a iniciativa e promoveram a mobilização pelo “Plebiscito pela Convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva e Soberana para Reforma do Sistema Político”. Um dos argumentos para o plebiscito foi a necessidade de corrigir a enorme distorção da representação política. Referido argumento se confirmou de maneira dramática na eleição parlamentar de 2014, ao ser constatado que 10 corporações financiaram os mandatos de 360 deputados para eleger uma bancada em condições de rasgar a Constituição de 1988. Por outro lado, temos o parlamento eleito em 2014, o mais conservador de nossa história, que tinha pressa em capturar o Estado e, com a contribuição de um novo ator político relevante, constituído de procuradores/delegados/juízes, promoveu o golpe de 2016 e assumiu o controle do executivo. A seguir uma cronologia da pauta do parlamento golpista: 1 - CONGELAR ORÇAMENTO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE

Deputados Favoráveis 366 Deputados Contra 111 2 - DESMONTAR RELAÇÕES DE TRABALHO Deputados Favoráveis 296 Deputados Contra 177 3 - IMPEDIR PROCESSO CONTRA O PRESIDENTE GOLPISTA Deputados Pelo Impedimento 263 Deputados contra Impedimento 227 Obedecendo a mesma lógica adotada na votação dos processos contra os integrantes da aliança conservadora, caracterizada pelo impedimento das investigações, em 2017 o parlamento incluiu na pauta o seu projeto de reforma política. Três pontos sugerem a natureza da motivação desse projeto. Aqueles que consideram que a eleição é um plano de negócio, no momento que surgiram embaraços ao financiamento privado de campanha, houve a defesa do financiamento público, e feito um movimento de fixar o orçamento de campanha em R$ 3,5 bilhões. Aqueles que consideram que o mandato também é um plano de negócio, diante das iniciativas de afastar das funções públicas os acusados por ilícitos, houve o movimento de estender aos presidentes da Câmara e do Senado a prerrogativa de cometer crimes e não responder por eles. Uma imunidade criminal. Aqueles que consideram que os atuais detentores de mandatos devem ter prioridade para conservar seus mandatos na eleição de 2018 fizeram o movimento de propor o chamado “distritão”. Os projetos de nação e de reforma política seguem em disputa e nessa quadra da nossa história política as esperanças estão depositadas nas iniciativas de construção no campo popular de uma ferramenta chamada Frente Brasil Popular e no âmbito do legislativo na construção das frentes parlamentares em defesa da democracia, com 186 deputados e 32 senadores, e em defesa da soberania, com 170 deputados e 30 senadores. No que se refere às eleições de 2018, é decisivo que o conjunto das organizações sociais e movimentos populares enfrentem com força e organização a manobra de impedir que o Presidente Lula dispute a eleição de 2018.

Pedro Lapa é Economista e Cientista Político integrante da Frente Brasil Popular.


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Opinião

Autoria no jornalismo: tensionamentos e negociações Por Amanda Tavares de Melo

A

o longo de sua história, o jornalismo alicerçou suas leis de funcionamento nos procedimentos-chave da objetividade, da primazia do factual, da clareza e da concisão, visando profissionalizar suas atividades e consolidar-se como um segmento digno de credibilidade. Nas palavras de Bulhões (2007, p. 22-3), “com tais credenciais, o jornalismo participa ativamente da crença de ser um reformador social, adquirindo, na vigência democrática, o estatuto de vigilante do poder político e porta-voz da sociedade. Assim, ele passa a formular a respeito de si próprio um discurso que o associa ao compromisso de ‘dizer a verdade e nada mais que a verdade’”. É preciso reconhecer, contudo, que a crença em uma objetividade absoluta, constituída prioritariamente por procedimentos científicos e assépticos, vem sofrendo duros golpes, em decorrência da crise institucional e financeira vivenciada pelo jornalismo contemporâneo. Sobre isso, pondera Moretzsohn (2007, p. 181): “Uma polêmica central gira em torno da perspectiva de se conhecer o objeto ‘tal qual é’, na medida em que esse conhecimento depende do sujeito, do tipo de indagações que fará e dos instrumentos que desenvolve e utiliza nesse processo, e que evoluem ao longo da história”. Ora, se o processo de realizar recortes da realidade para representá-la em formato de notícia é atravessado pela subjetividade de quem o faz, como se sustentam as máximas de que “os fatos devem falar por si só” e de que as marcas de subjetividade devem ser eliminadas dos textos informativos? Como advogar em prol de uma “imparcialidade plena” se sabemos que a linguagem não é neutra e que “cada um concebe, caracteriza, recorta, reorganiza e representa os acontecimentos” de acordo com seus próprios filtros e a partir de uma determinada posição sócio-histórica? A partir desses questionamentos, nosso objetivo é discutir o exercício da autoria, isto é, da expressão de um determinado ponto de vista, um posicionamento valorativo de um sujeito que fala/escreve em um campo profissional historicamente regido por um corpo de práticas coletivas que visa padronizar os discursos que circulam em seu interior. O primeiro ponto relevante para essa discussão refere-se à questão da assinatura dos produtos jornalísticos. Ora, se o jornalista – como qualquer enuncia-

dor - seleciona, interpreta e empreende escolhas discursivas a partir de seu lugar único no mundo (BAKHTIN, 2003), nada mais lógico do que atribuir sua assinatura ao material produzido, o que Christofoletti (2004, p. 132) define como “a mais evidente forma canônica de fixação de um discurso, de um texto”. Na contramão do que Moretzsohn (2007, p. 119) chamou de “jornalismo de mãos limpas”, em que “o jornalista procura isentar-se de responsabilidades sobre o noticiário que produz”, a imputação de um ou mais nomes a um produto jornalístico funcionaria “como uma impressão digital, um traço da identidade. A metáfora da impressão digital não é gratuita, já que se trata aqui de criminalização ou responsabilização penal por produtos de criação autoral” (CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 155). Foucault chama a atenção para a relação entre a autoria e a propriedade dos textos por meio dessa ideia de “apropriação penal”. Para ele, “os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores” (FOUCAULT, 2001, p. 278). Assim, o nome do autor em um texto representaria não apenas a delimitação de um ponto de vista único e responsável sobre determinado tema, como também um mecanismo que “atua como instrumento de responsabilização do autor frente a possíveis consequências da difusão de sua obra” (CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 134. Grifo do autor). Contudo, a presença da assinatura em um texto jornalístico por si só não é suficiente para caracterizar uma autoria. Isso porque, como reforça Christofoletti (2004, p. 134), a positivação da assinatura, embora importante, funciona mais como um “dispositivo retroalimentador da credibilidade profissional”, um atestado de reconhecimento da relevância/qualidade/destaque do material produzido ou da experiência do jornalista, do que como uma prova incontestável da atuação do repórter enquanto autor. Se “a assinatura é só a ponta visível do iceberg da autoria” (CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 135), o que efetivamente significa ser autor e como isso se materializa em uma reportagem? Para Foucault, a autoria deve ser pensada como uma posição de sujeito,


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uma função a ser desempenhada por um indivíduo responsável por conferir certa unidade, certo modo de organização a seus textos e discursos. O pesquisador francês elenca os quatro traços mais visíveis e importantes para a sua concepção de autoria: “a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente nem da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar”. (FOUCAULT, 2001, p. 284). Ao definir a autoria como uma função a ser ocupada por sujeitos distintos e ressaltar as diferenças entre o seu exercício a depender das épocas e formas de civilização, Foucault desconstrói a visão de um sujeito homogêneo, que se enxerga como a consciência fundadora de um discurso “porque reforça o seu caráter múltiplo, clivado, dinâmico. Ser autor é uma dimensão possível nas tantas que ser sujeito comporta” (CHRISTOFOLETTI, 2004, p. 156). Essa proposta nos permite enxergar o sujeito não como um indivíduo real, uma pessoa em carne e osso, mas como alguém que ocupa determinada posição em um discurso e que pode exercer uma função completamente distinta em outro contexto discursivo. Isso corrobora a influência das circunstâncias concretas na produção desses conjuntos de discursos e textos, uma vez que o autor – como qualquer sujeito –organiza o projeto de seu discurso a partir de um momento histórico, de um lugar social e de determinada posição de classe. Além disso, para Foucault (2001), quando o sujeito exerce a função autor em um texto, ele confere àquele material certo estilo e unidade temática, opera certas regularidades e silencia outros aspectos, fornecendo pistas sobre o seu discurso. Ancorando essa concepção à reportagem, devemos ter em mente a inscrição desse gênero na ordem jornalística do discurso, o que, em regra, limita a autonomia criativa desse jornalista-autor. Como sabemos, os cânones consolidados pela cartilha da objetividade, fruto da concepção positivista a que a maioria dos veículos midiáticos está submetida, defendem o apagamento das marcas de subjetividade dos textos jornalísticos em detrimento de uma escrita padronizada e às vezes superficial. Ademais, rotinas burocratizadas e diretrizes editoriais guiadas pela lógica industrial de “produzir mais, em menos tempo, com menos custos” não só precarizam a

profissão de jornalista, como dificultam ainda mais o exercício de uma autoria dentro do texto jornalístico. Contudo, “se todo sistema tem fissuras, é justo supor a possibilidade de momentos de suspensão que, nos seus limites, realizem o ideal do jornalismo apesar da estrutura que o constrange” (MORETZSOHN, 2007, p. 32). Um desses espaços de suspensão em que se alargam frestas para uma atuação mais autônoma do jornalista é a inscrição de um estilo próprio–autoral dentro do estilo comum. Assim, “os planos da vida vivida são reordenados de forma a ‘isolar’ a singularidade do sujeito e do acontecimento, condensados em um modo novo, diverso, cuja ótica daquele que escreve e constrói o acontecimento será o fio condutor do leitor” (CORDEIRO, 2017, p. 77-8). É na atitude deliberada de organizar um discurso de uma maneira e não de outras possíveis – desde que com vistas à produção de um efeito de sentido e passível de ser identificada, mapeada pelos leitores – que se opera a função autor, que se confere um modo de ser e um certo status ao seu discurso.

Referências: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução por Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007. CHRISTOFOLETTI, Rogério. A medida do olhar: objetividade e autoria na reportagem. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes. Comunicação, 2004. CORDEIRO, Rafaela Queiroz Ferreira. Nominações, vozes e pontos de vista sobre a loucura na e pela mídia: da reforma psiquiátrica ao boom das doenças mentais. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Artes e Comunicação. Letras, 2017. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: _____. Ditos & Escritos. Estética: literatura e pintura, música e cinema. V. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 264-298. MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos: jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2015. Amanda Tavares de Melo é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.


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Opinião

Merkel e Macron numa nova encruzilhada da Europa Por Pedro de Souza

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resultado das eleições na Alemanha e, dois dias depois, o longo discurso de Emmanuel Macron, abrem novos horizontes para a Europa, de novo sob o tradicional comando político da França, apoiado por um governo de coalizão na Alemanha, cuja receita está sendo ainda procurada. O centro-direita de Merkel e os sociais-democratas de Schultz registraram, nas eleições legislativas de 24 de setembro, os piores resultados desde há mais de 60 anos. A extrema direita do AfD (Alternativa para a Alemanha) entrou em grande estilo na Assembleia, seguida pelos liberais, que nas últimas eleições tinham ficado de fora e conseguiram agora um bom resultado, enquanto os demais partidos (esquerda e verdes) marcaram passo. Os 13% obtidos pelo AfD - nacionalista, xenófobo - chocaram. O tempo dirá o que esse resultado significa, mas podemos para já apontar que os votos

que obtiveram vieram sobretudo do leste da Alemanha. Nas regiões mais prósperas e integradas na economia internacional (o oeste e as grandes cidades), o AfD não ultrapassou, salvo episodicamente, os 5% que já obtivera em anteriores eleições. Quem diz leste de Alemanha diz Alemanha de Leste e não pode deixar de evocar a situação nas suas vizinhas Polónia e Hungria, embarcadas em regimes violentamente retrógrados. Esse compadrio geográfico, dá um tom decididamente passadista ao voto no AfD, partido que junta em si os restos de todos os pesadelos do passado da Europa. Tudo indica que Merkel foi castigada sobretudo pela sua atitude corajosa diante da onda de refugiados provenientes do Oriente Médio, um milhão dos quais se estabeleceram na Alemanha. Diante da oposição de parte da população, com largo eco na imprensa, a generosidade alemã acabou por se voltar para a Turquia, que foi regiamente paga para deter um máximo de refugiados em campos no seu


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território. É claro que Merkel sai enfraquecida dessa eleição, tendo de procurar uma coalizão arriscada, trabalhosa e demorada com os verdes e os liberais, já que os sociais-democratas recusaram voltar ao governo com ela. Sofrendo pressões da ala mais conservadora do seu partido para virar à direita e voltar a ocupar o espaço político que o AfD abocanhou, Merkel seria ainda puxada para a direita pelo partido liberal, que reclamaria o ministério das finanças e se mostraria no mínimo tão relutante quanto o atual ministro Schäuble em pagar a dívida “dos outros”. Schäuble se notabilizou como o grande arauto da política de austeridade e de achincalhação dos países do sul da Europa, às voltas com gigantescas dívidas que os “bons alemães trabalhadores” teriam agora de cobrir. Com esse discurso ele oculta o estouro dos grandes bancos alemães (e franceses) atolados em especulação e dívidas podres, cujos balanços foram confortados pelo Banco Central Europeu (através de várias ajudas e alavancamentos), que cabe agora aos povos do sul da Europa reembolsar. Desde a eleição de Trump, a xenofobia dos europeus havia marcado um gol a seu favor, o Brexit, e dois contra: as eleições na Holanda e na França, ganhas ao centro do espectro político. Obviamente vitórias e derrotas não dependem apenas da vontade dos eleitores, mas também dos sistemas eleitorais vigentes em cada país. Mas não podemos deixar de nos felicitar pelo fato de finalmente os dois países mais seriamente atingidos pela xenofobia serem os mais claramente neoliberais, os EUA e o Reino Unido - até hoje sem saber como se extrair do pântano do Brexit -, enquanto os países da União Europeia, que aceitam negociar a sua soberania e sustentar políticas sociais expressivas, têm conseguido evitar esses extremismos. Apesar de meio cambaleante, a União Europeia é também uma garantia de estabilidade, com seus 500 milhões de habitantes e o mercado correspondente, diante dos desvarios mais ou menos incontrolados de Trump. Não há razões para crer que Merkel, no final da sua carreira política, ponha em perigo a sua liderança na União Europeia para perseguir os 13% dos eleitores alemães que votaram no AfD, e que pouco mais farão que barulho. Apesar do resultado das eleições não ter sido claramente o desejado, é possível que a lição que ela tire dessas eleições seja exatamente a contrária, ou seja, que a estagnação econômica da União Europeia, e a sua perda de rumo, favorece esses partidos extremistas. À sua espera para relançar a União Europeia, está Emmanuel Macron, o irrequieto presidente francês que propôs, num discurso de uma hora e quarenta e cinco minutos na Sorbonne, uma série de planos para relançar da União. Planos audaciosos, incluindo algumas medidas de

caráter marcadamente progressista como a taxação das operações financeiras, que o acusavam de ter retirado do cardápio do Eurogrupo logo depois da sua eleição. Voltaremos a esses planos em breve. Nas suas primeiras declarações após a apuração dos resultados, o secretário geral do SPD, Schulz, havia declarado que o partido não participaria de uma nova “grande coalizão”. Merkel declarou que procuraria o apoio dos outros partidos, incluindo o dos sociais democratas do SPD. Isso pode ser um sinal de estabilidade da orientação política da Alemanha, ou apenas para deixar claro que, se não houver de novo a “grande coalizão” dos dois grandes partidos alemães, isso se deve ao SDP. Schulz, ex-presidente da Parlamento Europeu, sai bastante chamuscado dessa eleição. Não só o resultado foi o pior de sempre para o seu partido, como também os analistas foram unânimes em considerar que a sua campanha foi fraca, vazia, evidenciando mais uma vez o beco sem saída da social-democracia, que não sabe como se demarcar da mera gestão do sistema. Se Schulz cair, não é impossível que o SPD repense em participar da grande coalizão, apesar de nessas circunstâncias abrir uma estrada para o AfD que, como terceiro partido e apesar de todas as suas dissensões internas, assumiria o papel de líder da oposição. No entanto, do ponto de vista da Europa, e singularmente do ponto de vista da França, a não recondução da grande coalizão pode ser incômoda, dada a evolução para a direita dos liberais alemães, que relutarão em abrir os cordões à bolsa para sustentar os programas europeus “inventados” pelos franceses. Em qualquer circunstância, fica petreamente gravado que toda a política interna dos grandes países europeus coincide ou colide com a sua política europeia. Os partidos sociais-democratas deveriam ter a coragem de admitir que qualquer ambição de reforma tem de passar pela União Europeia, que não existe mais soberania nacional onde não houver soberania europeia. Macron, que não é um social-democrata, e que se diz de esquerda e de direta simultaneamente, parece ter aprendido isso: que num mundo globalizado onde as antigas solidariedades tendem ao radicalismo ou ao conformismo a União Europeia é o horizonte de salvação de uma política preocupada com o planeta, o trabalho e as gerações futuras.

Pedro de Souza é pesquisador, editor e exsuperintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Email: pdrdesouza@gmail.com.


JORNALISMO E CIDADANIA | 24

Opinião

Agências reguladoras criadas para beneficiar às empresas Por Heitor Scalambrini Costa

A

s agê nci as regu l ador as for am cr i ad as p ar a f is c a l izar a prest aç ão d e s e r v i ços públ icos pr at ic ado s p el a i n i c i at iva pr iva d a. A l ém de c ont rol ar a qu al i d a d e na pre st aç ão do s er v iço, [ el as est ab e l e c em re g ras p ara o s etor. Ao l ongo do temp o, foram compl et amente des c ar ac ter izad as d e s e us obj e t ivos inic i ais. Houve na verd ad e u ma “c aptu ra” dest as agênci as p or p ar te d as e mpre s as. D e d i c ado s qu as e 40 anos de min ha v i d a prof issiona l à temát ic a d a E nerg i a, a c omp an he i de p er to o “nas c imento” dest as agênci as , e m p ar t ic u l ar d a Agênci a Naci o na l d e Ene rg i a E l ét r ic a (Ane el ). Aut arqu i a cr i ad a em 1996, ter i a como f u nç ã o a re g u l aç ão e f is c a l izaç ão d a geraç ã o, a t ransmiss ão, a dist r ibuiç ão e a comerc i a l iza ç ão d a e nerg i a el ét r ic a. Vinc u l ad a ao Mi n isté r i o d e Minas e E nerg i a (M M E ), t am b ém te m como at r ibuiç ão atender às re cl a ma ç õ e s de age ntes e consumidores, e me d i ar o s con f litos d e interess es ent re o s age ntes d o s e tor elé t r i c o e ent re estes e os consu m i d ore s. To d av i a, é inf luenci ad a p or for tes “ l óbis” d as e mpres as, f uturo s empregadores d o s d i re tore s d est as agênci as. A Ane el é u ma for te a l i ad a do s etor pr i va d o, s e ndo u ma d as maiores resp ons áveis p el os lu cros e xor bit antes apres ent ado s nas d e monst raçõ e s f inanc eir as anu ais d as empre s as d ist r ibu i dor as. No Br asi l, negó c i o d e e ne rg i a” é lu cro c er to, um c apit a l ismo s em r is c o. A “ú lt i ma ( ? )”, de t ant as out r as me d i d as tomad as p el a Ane el c ont r a o consumid or, foi a cr i a ç ão d as b andeir as t ar ifár i as. O s is te ma d e B ande i r as Tar ifár i as impl ant ado em 2 0 1 5 i nt ro du ziu uma nov id ade nas c ont as d e e ne rg i a, apres ent ando mo d a l id ades: verd e, amarel a e ver mel ha, indic ando s e haverá ou nã o a cré s ci mo no v a l or d a energ i a a s er re p ass a d a a o consumidor f ina l, em f unç ão d as cond i çõ e s de ger aç ão de el et r icid ad e. Ass i m, os c ustos com c ompr a de energ i a p e l as d ist r ibu i doras s ão incluídos no c á lc u lo d e re ajuste d as t ar ifas dess as dist r ibuidoras e s ã o re p ass a dos aos consumidores. À s o ci e d ad e foi just if ic ado este acrés-

ci mo ao c ai xa d as d ist r ibui d oras , s ob o pretexto d e “t raz er t ransp arênci a ao s c on sumi d ores atend i d os p el as d ist r ibu i d or as ( merc ad o c at ivo) , com rel aç ão ao c usto d e energ i a, e cont r ibui r p ara um us o e f i c i e nte no consumo”. C om cer te z a, o c ai xa d as d is t r ibui d oras foi “reforç ad o” com o d i n he i ro p ago p elo consumi d or, tor nand o a t ar i f a d e energ i a uma d as mais c aras d o mund o. Tod av i a, o us o ef i ci ente p or p ar te d o consu m i d or é quest i onável. E a t ransp arênci a é a l go i nv is ível p ara o consumi d or. Hoj e a efet iv i d ad e d as b and ei ras t ar i f á r i as qu anto às mud anç as no comp or t ame nto d e consumo d a p opu l aç ão, como me d i d a d e pre venç ão d e e ventu ais raci oname nto s, t ão prop a l ad o p ara just i f i c ar a i mpl ant aç ão d est a me d i d a, est á s end o quest i ona d a p elo Tr ibuna l d e C ont as d a Un i ão (TCU ). S em dúv i d a, muito i mp or t ante a p o si ç ã o d o TC U, e agu ard amos ans i os os a au d itor i a anunci ad a. To d av i a é e v i d ente que as rel a ç õ es promís c u as d a Ane el com as empre s as, cont ra o consumi d or, com a i mpl ant a ç ã o d as b and ei ras t ar i f ár i as d es d e 2 0 1 5 , na ve rd a d e i nt ro duz iu no s istema t ar i f ár i o mais u ma fer rament a d e ar re c ad aç ão d e re c urs o s p ar a as empres as . L ei a mais : https : //w w w. bras i ld ef ato.c om . br/no d e/2 5 8 4 9 /, https : //w w w. ep o cht i me s. com.br/bandeiras-tarifarias-assalto-bolso- consumi d or/# . Wdj LGT Br w2 w

Heitor Scalambrini Costa é Professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.


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