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EM EVIDÊNCIA NA TV - Antônio Carlos Côrtes
Antônio Carlos Côrtes, escritor, advogado, comunicador e psicanalista
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Entrevista: Lucio Vaz e Voltaire Santos Edição: Patrícia Poitevin
Na sua opinião, o Brasil é um país branco?
Eu respondo da seguinte forma, o deputado Carlos Santos, uma das maiores lideranças do estado e do Brasil, que foi metalúrgico, deputado estadual e federal, também interinamente governador do Estado, dizia que não pode existir racismo num país de mestiços. Um lugar que tem mais de 60% da população negra, não pode exercer segregação, racismo e preconceito. Imagina, eu chegar na RDC TV e dizer que eu não gosto do
Voltaire, sem conhecê-lo. Quando eu vou conhecê-lo e sua família de Tapes, penso que ele não era tudo isso que pensava, portanto, estabeleci um pré-conceito, pois antecipei alguma coisa. Segregação é pegar a população da antiga Ilhota e jogar na Restinga, a 30 quilômetros da cidade, como fizeram com os negros que colocaram no Passo do Feijó, que hoje é Alvorada. O racismo é querer dizer que exista a supremacia de uma etnia, considerando a raça humana. Como psicanalista, eu vejo que as pessoas não querem olhar dentro de si, pois quando olham se chocam e tentam inverter isso.
Como estão as políticas públicas para o movimento negro nesse Governo Federal?

Eu vou ampliar um pouco a análise desses quatro anos, sou um grande admirador da Dona Ruth Cardoso, a esposa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi quem começou o princípio das políticas afirmativas e depois desaguou na lei 10.639/2003. Ela estabeleceu o trabalho da professora Maria da Graça e da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, sobre a importância de conhecermos a história da África, não como um país como as pessoas imaginam, mas como um continente. Propagar, também, a história do negro no Brasil, pois eles encharcaram esse chão com o seu sangue e seu suor. No início do país, ele esteve presente na agricultura da cana-de-açúcar e do café, que era o que garantia as exportações brasileiras. Com a abolição da escravatura, em 1888, aquele excelente escravizado passou a ser um mal cidadão. Trouxeram os imigrantes brancos, deram terras e ferramentas. Os negros foram jogados na rua da amargura, como vagabundos. Posteriormente, veio a lei da vadiagem, que até hoje está em vigor como contravenção penal, ao lado de jogo do bicho e do porte ilegal de armas, que depois se modificou. Como não é possível indenizar a esses descendentes de escravizados por esse trabalho que exerceram com muita dignidade no país, as políticas afirmativas compensam isso. Tu podes até entrar por cota, mas não sairá por ela, como disse o nosso grande amigo, Osvaldo Ferreira dos Reis. O desempenho desses cotistas é superior ao dos não-cotistas, portanto, tem que haver oportunidade para eles.

Como é que o senhor analisa o enfraquecimento das políticas voltadas para a Indústria Criativa, como o Carnaval e as festas populares?
Por dez anos fui do Conselho Estadual de Cultura, onde tive a oportunidade de ser presidente duas vezes, as Leis de Incentivo à Cultura deveriam receber o maior apoio dos municípios, dos governos estaduais e, principalmente, do federal, por causa da cadeia produtiva. O carnaval é um espetáculo com fantasias riquíssimas, carros alegóricos e sambas-enredo maravilhosos. Eu trato no meu livro, como o maior remédio para quem está com depressão ou ansiedade, pois quando a pessoa ouve um samba-enredo vai direto na alma. Eu observo que precisaria de muito mais apoio. Com certeza, teríamos menos pessoas com doenças mentais e menos violência nas ruas. Eu levantei um dado importante, junto com o Cláudio José Silveira Brito. Nós concluímos que no carnaval diminui o índice de violência no país. Se eu esbarro numa pessoa, na Rua da Praia, em outra época do ano, nós podemos nos olhar atravessado e, dependendo da situação, sair no soco. Se é carnaval, seguimos adiante, numa boa, porque ele desarma o espírito. Estamos mais abertos ao aconchego e ao
RACISMO NO BRASIL “Um lugar que tem mais de 60% da população negra, não pode exercer segregação, racismo e preconceito”
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA “O Dia da Consciência Negra começou em Porto Alegre e se espalhou por todo o país, sendo celebrado no dia 20 de novembro”
CHICO PINHEYRO/REVISTA EM EVIDÊNCIA
acolhimento. As políticas públicas precisam incentivar o carnaval. Temos que valorizar o empresário que investe na cultura, através da Lei Rouanet. A Lei de Incentivo à Cultura (LIC), aqui no governo do Estado tem funcionado muito bem. Eu vivenciei dentro do Conselho, vejo que a secretária de Cultura, Beatriz Araujo, fez um ótimo trabalho e o ex-secretário Victor Hugo também. O empresário que investe reduzirá o ICMS, dando um retorno direto para aquela cadeia produtiva que mencionei anteriormente. No carnaval, trabalha a costureira, o marceneiro, o ferreiro e uma série de pessoas, como o bilheteiro, o cuidador de carro e até a própria Polícia Militar do Estado, que lamentavelmente tem uma defasagem tão grande. Na época em que Alceu Collares era governador, os policiais militares somavam 35 mil no estado. Hoje, temos só 18 mil.

O senhor escreveu A Alma do Carnaval no Espelho. Sobre o que trata essa obra?
Ela fala que o desfile de carnaval, a concentração de uma escola de samba, ou o simples ouvir de um disco de samba-enredo vai ao encontro da ansiedade da alma e da depressão, porque existe a ocitocina, que eu chamo de hormônio do amor. Ela desperta na mulher durante o parto, age como um tipo de anestesia para resistir à dor, mas o homem também pode provocar isso ao cutucar o seu timo que está atrás do coração. A palavra ritmo tem timo. Este componente é despertado num desfile de carnaval, que tem os seus quesitos e a empatia se dá com o público presente na avenida ou quando a pessoa simplesmente ouve um disco. O carnaval de Porto Alegre acontece no Complexo Cultural do Porto Seco, longe do Centro da cidade, isso não prejudica as escolas de samba e o desfile?
Sem dúvida nenhuma, o carnaval de Porto Alegre é suis generis no país. Ele não tem comparação com o do Rio de Janeiro, que é a matriz, nem com o de São Paulo. Porto Alegre tem os seus próprios compositores, passistas, ritmistas, construtores de carros alegóricos e a nossa cara. Nós realizamos uma festa para nós mesmos e com isso há essa empatia com o público de cada bairro. Os Bambas da Orgia, com 82 anos de existência, quase enrolaram o estandarte, mas seguraram e estão aí até hoje, como campeões do carnaval. Se formos examinar a Academia de Samba Praiana, ela tem a ver com o Giba Giba, as comunidades de Pelotas e Rio Grande, que fazem um carnaval espetáculo, com alas e luxo. Aquilo que o Joãosinho Trinta disse é a verdade, quem gosta de pobreza é rico, o pobre gosta do luxo na avenida. O Fernando Pamplona constatou que nós tiramos da cabeça o que não se tem no bolso. É o que se faz nas oficinas de arte.
Seguindo com os livros do Antônio Carlos Côrtes, qual a temática de Rua da Praia 40°?
Na Rua da Praia existe a Galeria Chaves, que é a mais charmosa do Brasil, com os resquícios fundamentais da arquitetura Belle Époque. Ela é a passarela daqui, foi onde comecei a assistir ao carnaval, que era na esquina da Rua da Praia, com a Avenida Borges de Medeiros. Nós assistíamos às tribos, sendo que Porto Alegre chegou a ter 17 delas, que contavam a história dos verdadeiros donos dessa terra, os indígenas. Eu e os meus irmãos chorávamos, porque elas vinham com alas de bandolins, violões e cavaquinhos. A harmonia era muito bela. As tribos não têm samba-enredo, elas possuem hino. Se Porto Alegre tivesse a sua pista de eventos no Centro seria um colosso, porque eu sou da época em que o argentino, o
uruguaio, o paraguaio e até o peruano vinham assistir o carnaval daqui, lotando as arquibancadas. Então, fica um apelo ao nosso prefeito Sebastião Melo, que se consagre na cidade, construindo as arquibancadas definitivas, dando conforto a esse povo. Para que ele possa ter um momento de lazer e de entretenimento, aprendendo a cultura. Na minha concepção, o Paulo da Silva Dias (Jajá) é o maior puxador de samba do Brasil, de todos os tempos e olha que eu respeito muito o Jamelão, mas o Jajá cantando Festa de Batuque, considero o maior enredo que já assisti. Não existe essa questão de que o carnaval de Porto Alegre seja incipiente, ele é maravilhoso. Existe todo um ritual. Houve uma vez, que a chuva só parou quando os Bambas entraram na Avenida. Eles terminaram o desfile, ela voltou. Isso é uma ligação com o alto, a palavra alma é a união da matéria com o alto. A ligação dos Orixás está presente em tudo, também.
Degraus da Vida é uma obra que na capa mostra o encontro de gerações, uma metáfora que diz muito sobre a nossa existência. Qual a mensagem que fica para os leitores?
Eu quero destacar que a capa deste livro e do Rua da Praia 40° é uma graça do artista plástico Vinicius Vieira. Quanto ao livro, nós precisamos dar dez aos graus da vida, eu estou dizendo ao meu neto que para se conseguir subir a escada de Jacó, tem que subir degrau por degrau, com ética, moral, seriedade e competência. Ele trata das crônicas que publico nos jornais Correio do Povo, do Comércio e outros tantos que têm textos inéditos. Não é um livro de autoajuda, ele é quase de psicanálise, porque leva a pensar e fazer uma reflexão. Isso me basta. O meu primeiro solo foi Bailarina do Sinal Fechado que está esgotado. Todas as manhãs, eu passava na Avenida Ipiranga, esquina com a Avenida Silva Só, onde tinha uma menina que vendia jornal e ao mesmo tempo metia a mão no bolso, para dar bala aos pais que estavam levando os filhos no colégio, dentro de seus carros. Era uma menina negra muito bonita e parecia que ela serpenteava no meio dos carros, me fazendo lembrar da Ana Maria Botafogo, a bailarina número um do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
O período da escravidão gerou muitas histórias e mitos. O que de fato aconteceu na fuga dos negros para os outros países da América Latina?
Quando propagamos uma mentira repetida muitas vezes, acaba sendo na visão de alguns verdade. O Brasil tem 60% de negros e tinha muito mais. No Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, chegaram mais de cinco milhões de escravizados, a bordo de campos de concentração flutuantes, que eram os navios negreiros e que se espalharam pelo país todo. Atualmente, no Rio Grande do Sul, nós temos em torno de 20%, o mesmo percentual de negros que têm nos Estados Unidos. Lá, eles fazem tanto barulho que as pessoas pensam que é muito mais. O Dia da Consciência Negra começou em Porto Alegre e se espalhou por todo o país, sendo celebrado no dia 20 de novembro. Houve um fato que nunca foi abordado, existia um grande número de suicídios de negros que não aguentavam mais aquele sofrimento, devido a crueldade com que eram tratados. Então, alguns fugiam para a fronteira do Uruguai, que hoje formam 5% da população, o mesmo acontecia na Argentina, que são 3%. É lógico que eles não pegariam essas pessoas e colocariam todas num navio para mandar embora, pois não gastariam com isso. Além do que, para eles os negros eram uma mão-de-obra barata. Eu posso estar errado, mas vejo como um mito.
Nas suas considerações finais, gostaria que o senhor falasse sobre a importância das cotas.
As cotas são uma ferramenta que o Brasil deveria se servir mais, não só para diminuir o fosso da desigualdade social. Elas vieram para ficar, os Estados Unidos aplicaram esse método, no governo Kennedy. Se for examinar as Câmaras Municipais, no Brasil, praticamente não encontramos negros. Isso acontece no Legislativo e no Executivo, porque todos os partidos políticos são racistas. Eles têm medo de que um negro ao ser candidato, se eleja. Nos casos de corrupção no país, dos últimos 20 anos, não encontramos nenhum negro envolvido. É possível encontrar o Joaquim Barbosa, que como juiz puniu a corrupção. Eu questiono, caso a política de cotas existisse no país a mais tempo, quantos “Joaquins Barbosa” não existiriam dentro do Judiciário brasileiro. Por mais que se diga que o país não tem racismo, basta examinar, por exemplo, as filas de emprego, nas segundas-feiras, a maioria ali é de negros. Quantos são admitidos? Houve uma época em que o setor que recrutava, botava um pontinho que era o símbolo para quando encaminhava para a empresa, a pessoa já sabia que aquele candidato era negro e nem chamava. Eu cito um exemplo meu, fiz um concurso de locutor numa grande Rádio no RS, na década de 70, onde inscreveram-se 700 candidatos. Eu fiquei em terceiro lugar e fui chamado pelo gerente, quando cheguei ele que já era branco, ficou mais branco ainda, perguntou se eu era o Antônio Carlos Côrtes. Conversou um pouquinho e pediu para eu aguardar, prometendo que me chamaria. Isso nunca aconteceu. Passou um tempo, eu fiz um concurso de apresentador de Televisão de um programa noticioso. No teste, tinha menos gente, uns 150 participantes. A equipe disse que fui o melhor. O gerente de programação pediu para aguardar a chamada e nunca chamou. Eu fui saber depois por um switch, meu amigo, que ele disse que o meu cabelo era muito grande. Eu usava um Black Power e sequer fui chamado para perguntar se concordaria em cortar o cabelo ou baixar um pouco ele. Com quantos acontecem exatamente isso? Esse é o racismo estrutural do nosso dia a dia.