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A Revista Dasartes (ISSN 1983-9235) é uma publicação da Indexa Editora Ltda ME.
A exposição
Reluz investigaossignificados simbólicos do adorno na arte contemporânea, reunindo obras de 21 artistas mulheres de diferentes regiões, geraçõeseorigensétnicasdo Brasil. A mostra propõe uma reflexão sobre como adornos guardam memórias, constroem identidades e expressam vínculos culturais, espirituais e políticos.
Dividida em quatro núcleos temáticos, reúne obras comissionadas e de acervo, em múltiplos formatos e
suportes. Ocupa todo o espaço interno e externo do Solar Fábio Prado (antigo Museu da Casa Brasileira), comentradagratuita.Entreas artistas participantes estão Lidia Lisbôa, Rebeca Carapiá eNádiaTaquary,JuliaPereira, LauraVinci,ElledeBernardini, Amélia Toledo, Kimi Nii e A TRANSÄLIEN.
NEM TUDO QUE RELUZ • SOLAR FÁBIO PRADO • SÃO PAULO • 29/7 A 14/9/2025
Julia Pereira, Eternidade.
de arte ,AZ
CURIOSIDADES •Comunidadede Plainfield, em Illinois, EUA, homenageia Wadee Alfayoumi, meninopalestinode6anosmorto em crime de ódio em 2023, com um monumento no playground, agora renomeado. A obra, com silhueta e coração vermelho, foi criada por artistas muçulmanos e financiadaporescoteiroslocais.
PELO MUNDO • O Observatório
Vera Rubin, no Chile, divulgou as primeiras imagens feitas pela maior câmera digital do mundo. Com 2.812 kg e montado nos Andes, o equipamento promete revolucionar a astronomia. O projeto homenageia a cientista queprovouaexistênciadamatéria escura e um marco histórico na observaçãodocosmos.
EDITAIS • CCJF e Caixa lançam prêmio para identificar figura histórica apagada de painel na antiga sede do Superior Tribunal Federal, no Rio de Janeiro. Com inscriçõesaté30/9epremiaçõesem dinheiro, o concurso convida pesquisadoreseartistasainvestigar uma enigmática inscrição e reconstruir a imagem perdida na SaladeSessões.
PELO MUNDO • A artista Nan
Goldin lança, em parceria com o Museu Leslie-Lohman, venda online de impressões a US$ 250 para apoiar causas trans e de gênero. A ação incluiu dois retratos icônicos feitos em NY: Jimmy Paulette em Wigstock (1991) e Thora com ursinho de pelúcia (2020).
LUTO • Morreu, aos 83 anos, o escultor Joel Shapiro, conhecido por expandir os limites do minimalismo com obras emotivas feitas de bronze. Representado pelaPaceGallery,crioumaisde30 esculturas monumentais, como PerdaeRegeneração (1993).Suas obras integram acervos do MET, GettyeCentrePompidou.
• DISSE A GALERIA ALMEIDA & DALE em resposta a uma disputa com a HOA Galeria. Em foco, a posse de um galpão na Barra Funda (SP), reformado pela HOA e agora alvo de reintegração. A HOA acusa o grupo Atropos de rompimento unilateral; a Almeida & Dale alega fim consensual e medidas legais por uso indevido.
Livros,
Após abordar o Barro (vol. 1) e a Palavra (vol. 2), o terceiro número propõe uma reflexão ampla e polifônica sobre a ideia de povo. Longe de oferecer uma definição única ou definitiva, o livro aborda o tema como processo, relação e acontecimento. A palavra “povo” é tratada como ponto de partida para cruzamentos entre diferentes áreas do conhecimento, como história, sociologia, educação, biologia, geografia, literatura, arte, religião, cosmologias e política.
POVO • Org. Instituto Tomie Ohtake • Coord. Divina Prado, Felipe Carnevalli e Gabriela Moulin • 208 páginas • R$ 85,00
Com curadoria de Daniele Queiroz, Thyago Nogueira e Ana Paula Vitorio, Beleza Valente é a primeira exposição antológica de Zanele Muholi no Brasil, oferecendo uma visão única do ativismo visual da fotógrafa e artista sul-africana. Reconhecida internacionalmente, Muholi utiliza suas obras para destacar a beleza e humanidade de pessoas não binárias e da comunidade LGBTQIAPN+, amplificando suas vozes em um contexto de intensa discriminação e violência.
ZANELE MUHOLI - BELEZA VALENTE • Org. Thyago Nogueira, Daniele Queiroz, Ana Paula Vitorio • Editora IMS - Instituto Moreira Salles • 256 páginas • R$ 150,00
O livro Balé literal apresenta a obra da artista Laura Lima, em sua montagem no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA). Na instalação, objetos – ou “entes” –, fotografias e frases poéticas e políticas, suspensas em fios de aço, atravessam o museu, em uma estrutura posta em movimento pelo Sindicato, composto por um maquinário com duas bicicletas e uma equipe de manutenção, visíveis para os visitantes.
Regina Vater, Mulher mutante, 1968. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
ÉNAPROFUSÃOCROMÁTICA
E NO VOLUME EXPRESSIVO
DAS CERCA DE 250 OBRAS
REUNIDAS NA EXPOSIÇÃO
POP BRASIL: VANGUARDA E NOVA FIGURAÇÃO, 1960-
1970, APRESENTADA NA
PINACOTECADESÃOPAULO, QUE OS CURADORES
POLLYANAQUINTELLAEYURI
QUEVEDO ENSAIAM UMA
CARTOGRAFIA POSSÍVEL,
AINDA QUE PARCIAL, PARA
DARCONTADAINTENSIDADE
E DA PLURALIDADE QUE
MARCAM AS ARTES VISUAIS
NAS DUAS PRIMEIRAS
DÉCADAS SOB O REGIME
CÍVICO-MILITARNOBRASIL
PORFABRÍCIOREINER
Raymundo Colares, Lateral de ônibus, 1969. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
Teresinha Soares, Caixa de fazer amor, 1967 . Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
Desconsiderandoanarrativalinearouum eixo unívoco, a curadoria aposta na multiplicidade de formas, discursos e contradições,assumindoacomplexidade comométodoeapolissemiacomoíndice da vitalidade daquela produção. Afinal,qualquertentativadeleituradesse período esbarra em camadas de tensão ainda abertas: entre engajamento político e fetiche pop, entre ironia e denúncia, entre reações institucionais e pulsões subterrâneas que seguem reverberando nos debates contemporâneos, seja no campo das artes, seja no campo ampliado da cultura ou no da política.Longedeserumobstáculo,essa profusão se transforma nas mãos dos curadores em força narrativa: um gesto que reconhece a impossibilidade da síntese e, ao mesmo tempo, sustenta a urgência de revisitar criticamente um momento-chave da arte brasileira, cujos signos, estratégias e silêncios ainda exigem elaboração. Entreasobrasicônicasquepontuamesse período e aparecem na exposição Pop Brasil, algumas se impõem não apenas pela força de sua imagem, mas pela espessura crítica que adquiriram, muitas delas produzidas em tensão direta com os códigos visuais da cultura de massa.
Pietrina Checcacci, Sem Titulo, 1967-1968. Da serie O Povo Brasileiro Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
Na célebre Adoração (altar para Roberto Carlos) (1966), a obra Nelson Leirner é exemplar nesse sentido. Ao transformar o ícone da indústria cultural em ícone religioso, o artista embaralha as fronteiras entre sagrado e mercado, sublinhando com acidez os mecanismos de consagração presentes tanto na religião quanto na indústria cultural. Assim, Leirner desmonta a ideia de sacralidade, religiosidade e identidade nacional, submetendo-as ao filtro do consumo e do kitsch. A obra propõe um comentário contundente sobre a iconofagiabrasileira,essacapacidadede consumir e estetizar tudo, inclusive aquiloquedeverianosprovocarespanto. Emoutrachave,mascomigualpotência, A bela Lindoneia (1967), de Rubens Gerchman, retrata uma mulher desaparecida, cujo rosto foi extraído de uma nota policial. A “Gioconda do subúrbio”nãosorri:estáausente,diluída entre o sensacionalismo da imprensa popular e a invisibilidade social. Gerchman opera aqui uma crítica à romantização da classe trabalhadora ao mesmo tempo em que transborda empatia plástica e política sobre uma figura invisibilizada.
Nelson Leirner, Adoração (altar para Roberto Carlos), 1966. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
Pimentel, Sem título. Da série envolvimento,
Wanda
1968. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
La mort de Black Hawk (1967), de Antonio Dias, é uma das peças mais emblemáticas da virada crítica que marca sua produção nos anos 1960. Criada em meio ao endurecimento do regime militar brasileiro, a obra condensa, em sua visualidade e título, uma crítica aguda à violência institucional e à mitologia do poder, tanto no Brasil quanto no imaginário “ocidental” mais amplo. O título evoca diretamenteafiguradeBlackHawk,líder indígena norte-americano do século 19, cuja resistência à expansão colonial dos Estados Unidos se tornou símbolo. Na obra, Dias constrói uma alegoria que ultrapassaoepisódioespecífico:trata-se dealegoriaaqualquerfiguraqueresista à lógica imperialista, militarizada e colonizadora. Formalmente, a obra se inserenovocabuláriovisualqueoartista vinha desenvolvendo naquele período: usodecoresrestritas(geralmentepreto, branco e vermelho), formas gráficas contundentes,eumalinguagemsígnica, ainda que esvaziada de função direta. A imagem não ilustra, mas tensiona; não denuncia de forma literal, mas convoca oespectadoradecifraroscódigosdeum tempo em que a palavra e a imagem estavam sob vigilância.
Antonio Dias, La mort de Black Hawk, 1967. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Levi Fanan.
Inspirado pela corrida espacial que dominava o imaginárioglobalnaquelemomento,especialmentecom a chegada do homem à Lua, Tozzi se apropria da figura doastronautacomosímboloambíguo:aomesmotempo em que representa o ápice do progresso tecnológico e daconquistacientífica,eletambémencarnaoisolamento,
a alienação e a desumanização do sujeito moderno. Em suas telas, o astronauta aparece repetido, flutuante, muitas vezes com o capacete refletindo o vazio, uma presençaespectralqueparecedesconectadadomundo ao redor.
A estética da obra é marcada por cores vibrantes, grafismos inspirados na linguagem dos quadrinhos e da propaganda,eumacomposiçãoqueremeteàserialidade daculturade massa.Mas,aocontráriodacelebraçãodo consumo que caracteriza parte da pop art internacional, Tozzi tensiona esses códigos para produzir uma crítica
Claudio Tozzi, Astronautas, 1969 . Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella
sutil ao autoritarismo e à lógica espetacular da modernização brasileira. O astronauta, figura de conquista no imaginário ocidental, torna-se aqui um corposuspenso,semchão,símbolodeum país que assiste ao avanço tecnológico global nasmargensdodesenvolvimento, sob repressão e intensa desigualdade; curiosamente, aliás, até os dias de hoje. Talvez seja nesse herói espacial que a distância entre as promessas do progresso e a realidade política do Brasil se torne ainda mais discrepante. Dissonância essa que a obra marginal, seja herói
Oiticica, eleva como um dos marcos mais contundentes da arte brasileira do período. Originalmente concebida como uma “bandeira-poema”, a obra traz a imagemdocorpomortodeAlcirFigueira daSilva,jovemnegroquehaviacometido um assalto e, ao ser perseguido e alcançado pela polícia, suicidou-se. A força do trabalho reside justamente na inversão simbólica que propõe: ao subverterosvaloresdaordemdominante, transformando o excluído, o perseguido, o corpo fora da norma, em figura de resistência e potência, o artista impõe o enfrentamento como subversão da condição imposta por uma sociedade excludente.
Hélio Oiticica, Seja Marginal Seja Herói. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Renato Parada.
Geraldo Barros, Marlboro1976.
Pinacoteca de São Paulo.
Foto: Edouard Frainpont.
Marlboro (1976), de Geraldo de Barros, é também exemplo contundente da inflexão crítica que a arte do período imprimiu à visualidade da cultura de massa no Brasil dos anos 1970.
Realizada em óleo e colagem sobre compensado, com dimensões monumentais, a peça se apropria do logotipo da famosa marca de cigarros estadunidense para construir uma imagem que, à primeira vista, remete à publicidade, ainda que se revele como comentário incisivo sobre os mecanismos de fetichização e poder simbólico operados pelo capitalismo global. Ao incorporar fragmentos publicitários e elementos gráficos da sociedade de consumo, Geraldo de Barros propõe a desestabilização da norma. A “virilidade” de Marlboro, somadaàideiadeliberdadeeconquista é esvaziada de sua função persuasiva para se transformar em ruído. A operação formal, marcada por sobreposições, cortes e reconfigurações, desmonta a lógica da comunicação direta e instaura uma visualidade de fricção, onde o excesso de sentido se converte em opacidade.
Claudio Tozzi, Guevara. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
Ao reunir um conjunto tão expressivo e diversodeobras, Pop Brasil evitaoriscoda reencenação nostálgica ou da cristalização histórica.Emvezdisso,propõeumterritório de fricções onde diferentes registros, formais,políticosesubjetivos,entrecruzamse sem hierarquia ou pacificação. Cada obra não ocupa apenas um lugar no percurso expositivo, pois que se realiza no conjunto, fazendo dele um campo de significação. Nesse gesto curatorial, a recusa da linearidade e o acolhimento do conflito permite que se evidenciem os dilemas que ainda atravessam mazelas brasileiras, reativando as tensões que continuam a operar sob novas linguagens e contextos na cultura brasileira.
E é por isso que Pop Brasil não se limita a um exercício historiográfico; trata-se de uma intervenção cultural que toca diretamente os impasses do presente. As questões que essas obras ativam, entre pertencimento e exclusão, espetáculo e crítica,identidadeedissenso,permanecem ainda em suspensão. Em um país que insiste em atualizar assombrações sob outros signos, essas obras ressurgem, transformadas, porque presentes.
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Claudio Tozzi, Anunciação de foguete na lua,1969. Pinacoteca de São Paulo. Foto: Isabella Matheus.
Fabrício Reiner é mestre em Filosofia com especialização em Culturas e Identidades Brasileiras (2016) e Bacharel em História (2005), ambos pela Universidade de São Paulo, aperfeiçoou-se em museologia e história da arte em Siena (2008). Desenvolveu e participou de diversos projetos acadêmicos e curatoriais junto a Biblioteca Mário de Andrade, Biblioteca Guita e José Mindlin e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Doutorando em História da Cultura pela USP, atua como pesquisador e curador.
“Esses trabalhos compreendem a música brasileira e, mais especificamente, o samba, como um saber ancestral disseminado pelo mundo. Recorro a essas canções como dados culturais compartilhados por nós. É uma maneira de evocar sentimentos profundos com frases curtas, uma latência para cantarmos mentalmente e despertarmos as narrativas transformadoras dessas canções.”
Felippe Moraes, 2021
Felippe Moraes é um polímata: artista, pesquisador,curador,cenógrafo,autor... Ele também pertence a essa família carioca apaixonada por um Rio de Janeiro de mil sons. Um estandarte em seuateliêemSãoPaulo,expostoemsua janela e claramente legível da rua, é um letreiro vermelho de neon que diz “QuerovivernoCarnaval”,emumasérie que ele chama de Samba exaltação, inventada durante a pandemia. É o espírito de um artista muito focado no público, que ele quer ver participar e gosta de imergir em suas obras. Não é surpresa, portanto, que ele retorne a , na Caixa Cultural de Curitiba, a quartaversãodeumaexposiçãoqueele crioupelaprimeiravezem2019,naFIESP.
Em termos filosóficos, a teoria musical, que vem da palavra italiana Solfeggio, Solfejo é um derivado do nome de duas notas musicais, Sol e Fá. Foi inventada porummongebeneditinoitalianodoséculo11,Guido d’Arezzo. Pode ser vista como um sistema simbólico queestruturaeorganizaapercepçãoeacompreensão do mundo sonoro. Representa uma linguagem universalparaamúsica,permitindoaleitura,aescrita e a interpretação de partituras. Além de sua função técnica, a teoria musical pode ser vista como um
método para desenvolver a “consciência sonora” e uma apreciação mais profunda da música. É essa experiência da consciência sonora que Felippe propõe na sua exposição.
Essa nova exposição polifônica parece se pensar e se organizar com uma ordem muito precisa e determinada. Trata-se de uma introdução para fazer entrar o público em um mundo complexo, por vezes interativo, no qual o pensar será muito solicitado, e onde o público estará sujeito a devaneios profundos.
Nessaexposição,todasasobras respondem umas às outras em um contexto de arte total, de relação com o corpo, de aleatoriedade, de referências diversasdialogandofísicamente e mentalmente. O artista nos convida a cantar junto com as imagens, com seus gestos e pensamentos. Letreiros de neon, fotografias de desenhos sonoros(cadaumacomtítuloda sua frequência de 97 até 1228 hertz), instalações...
Felippe interpela seu público sem parar com suas exclamações textuais, “Atenção para o refrão” logo na entrada da exposição, “Não deixa o Samba morrer”, “Canta Forte/ Alto” (esse último, tinha, entre 2021 e 2024, uma versão na fachada da biblioteca Mario de Andrade, de São Paulo. cantando a música do Martinho da Vila) ... Esse tipo de textosluz,meioimprescindíveldaarte contemporânea, criado pelo químico francês Georges Claude (1870-1960), que transformou a imagem de
nossas cidades, imiscuiu-se na arte, para enriquecê-la e questioná-la. Os artistas jogaram com as especificidades desse meio para abrir o campo do visual, para criar emoções e provocar a reflexão dos espectadores. Os artistasescolheramafiguraçãooualinguagem,umpouco como na história humana da cultura: das cavernas de Lascaux aos hieróglifos. Felippe, por sua vez, utiliza suas neons-mensagens para dialogar com seu público no
caminhodecadapedaçodasuaexposição,comoumeco que o convida a avançar para descobrir mais de suas propostas e entender, com essa série, como o samba –um gênero musical brasileiro que se originou entre as comunidades afro-brasileiras urbanas do Rio de Janeiro no início do século 20 – é um modo de viver. Também, Felippe escolheu neons para criar as constelações de Solaris Discotecum (2023).
A obra é um modelo imersivo do universo, com um grandioso globo espelhado ao centro, girando lentamente em meio às 12 constelações do zodíaco. Uma maneiraparaoartistanoslembrarde como somos pequenos em relação ao universo. Mas, além de tudo, Felippequerconvidarsutilmente,na dança de sua exposição, o pensamento do famoso astrônomo alemão Johannes Kepler (15711630) e sua hipótese heliocêntrica. EleafirmouqueaTerragiraemtorno do Sol, sobretudo para mostrar que os planetas não giram em torno do Sol seguindo trajetórias circulares perfeitas, mas trajetórias elípticas. Em sua exposição, Felippe utiliza o pensamento da elipse, ou seja, a complexidade de suas proposições artísticasforçaopúblicoaresponder nas omissões (impossível colocar textosnasparedesparaexplicartoda a complexidade do pensamento do artista)parachegaraoessencialeao choque estético da sua obra. Sobretudo, o artista quer então deixar o observador adivinhar as complexidades dos universos que ele descreve em seu Solfejo.
Essa obra dialoga com o filme Harmonices mundi (2017), outra referênciaaKeplereseulivroepônimo. Nessa obra, publicada em 1619, o astrônomo expressa, em termos musicais,suasconvicçõesarespeitodas conexões entre o físico e o espiritual. Para ele, o universo é uma imagem de Deus; a harmonia da música reflete a do universo e de seu criador.
Toda a exposição Solfejo, de Felippe Moraes, é platônica. A música permeia todaaobradePlatão.Elaestáemtoda parte e contribui para a construção do projeto de uma nova cidade. A República desempenha esse papel em particular:ahistóriadeAtenasperpassa constantemente os diálogos, nos quais o projeto de uma cidade perfeita é apresentadoemrespostaàturbulência política. A cidade ideal é a personificação da harmonia, como aquela encontrada na natureza. Platão acredita que a música tem influência sobre a alma. Mas essa influência é estritamente dicotômica: boa ou má. Seugrandepodersobreaalmahumana advém da conexão que os estudiosos gregos estabeleceram entre música e astronomia. Com base na teoria dos números de Pitágoras, a música era
Considerado um dos artistas mais influentes de seu tempo, o americano
Robert Rauschenberg (1925-2008) teveumatrajetóriaqueatravessouseis décadas e foi precursora do movimento da Pop Art. Sua obra desafiou o gestualismo e a expressividade da pintura abstrata, estabelecendo um diálogo visionário entre temas do cotidiano, novas técnicas e uma infinidade de mídias, incluindofotografia,gravura,colagem e assemblage. Esse corpo de trabalho reformulou e redefiniu o curso da arte na segunda metade do século 20. Rauschenberg foi um dos principais nomes a reagir contra o expressionismo abstrato, movimento dominantenopós-guerra.Seuobjetivo não era representar o mundo, mas incorporá-lodiretamenteemsuaobra.
OartistaestudoucomJosefAlbers, no Black Mountain College, uma instituição experimental na Carolina do Norte, entre 1948 e 1952, e frequentou a Art Students League de Nova York, entre 1949 e 1951. Ainda jovem, colaborou com figuras fundamentais da vanguarda americana do pósguerra, como o compositor John Cage, os artistas Cy Twombly e Jasper Johns, e os coreógrafos MerceCunninghameTrishaBrown. Essa intensa troca de ideias resultou em uma obra profundamente colaborativa, que borrava as fronteiras entre as linguagens artísticas e refletia o desejo de Rauschenberg de integrar o mundo real à arte.
OBRAS EM DESTAQUE NA EXPOSIÇÃO
A exposição no The Ringling apresenta uma seleção de obras significativas da coleção do museu. Entre os destaques estão duas peças monumentais da série escultórica Glut (1986-1989/1991-1994),criadasapartir de sucatas de carros e metais reaproveitados, e obras da série têxtil Hoarfrosts (1974-1976), nas quais o artista explorou impressões sobre tecidos e transparências. Tambémestãoincluídasgravurascomoumalitografiada série Glacial Decoy (1979-1980)efotografiasdoportfólio Studies for Chinese Summerhall (1983).
Essas obras ilustram a abordagem radical de Rauschenberg quanto à mistura de materiais e técnicas, e sua busca por uma arte que estivesse em constante diálogo com a vida cotidiana e o entorno sociopolítico.
Robert Rauschenberg foi uma figura central na cena artística do pós-guerra em Nova York, nas décadas de 1950 e 1960, antes de se mudar para a ilha de Captiva, naFlórida,nofinaldosanos1970,ondeviveuetrabalhou por quase quatro décadas. Ele descrevia a ilha como “a base da minha vida e do meu trabalho; é a fonte e a reserva das minhas energias.” Foi ali que Rauschenberg produziu algumas de suas obras mais importantes,
combinando objetos encontrados no cotidiano com imagens da cultura pop. O artista deixou um legado duradouro na Flórida –manteveumaconexãocontínuacomaBobRauschenberg Gallery no Florida Southwestern State College, em Fort Myers, que, desde os anos 1980, organizou diversas exposiçõesdesuaobra.Em2004,agaleriafoirebatizada com seu nome em homenagem ao artista.
Em 2012, a Fundação Robert Rauschenberg lançou um programa internacional de residênciasartísticasnaantiga propriedade de Rauschenberg na ilha de Captiva, no condado de Lee. A propriedade de 20 acres incluía um amplo estúdio e uma gráfica construídos em 1992, além da icônica Fish House, que se tornou um refúgio para o artista – e hoje está aberta a artistas renomadosdetodoomundo.
A artista interdisciplinar radicada em Los Angeles, Cauleen Smith, gravou sua obra Egungun: ancestor can’t find me (2017), durante uma residência nesse espaço. O vídeo está atualmente em exibição na mostra coletiva EMBODIED, com obras da coleção do The Ringling, em galerias adjacentes. O trabalho de Smith oferece um vislumbredapaisagemnatural e das construções modernas onde Rauschenberg criou até sua morte, em 2008.
A convicção de Rauschenberg de que a arte pode nutrir a sensibilidade das pessoas como indivíduos, membros da comunidade e cidadãos continua a ecoar. Suas experimentações e atitudes abriram caminho para uma geração de artistas que compreendem a prática artística como um campo atravessado porquestõessociais,políticasehumanas. Mais do que celebrar o passado, o centenário de Rauschenberg reafirma a vitalidade de seu pensamento e a urgência de uma arte em constante movimento, aberta à experiência do mundo e ao outro.
Ola Wlusek é curador de Arte Moderna e Contemporânea no museu The Ringling desde 2018 e mestre em Teoria da Arte Contemporânea pela Goldsmiths, Universidade de Londres.
COM OBRAS QUE MISTURAM RIGORARQUITETÔNICO,CRÍTICA HISTÓRICAEIMAGENSDEFORTE IMPACTO SIMBÓLICO, ANDRÉ GRIFFO CONSTRUIU UMA
TRAJETÓRIA SINGULAR NAS ARTES VISUAIS. FORMADO EM ARQUITETURA, ELE TRANSITA ENTRE PINTURA, INSTALAÇÃO E COLAGENS,ABORDANDOTEMAS COMO PODER, RELIGIÃO E VIOLÊNCIA. AGORA, CELEBRA SUA PRIMEIRA INDIVIDUAL EM UMA INSTITUIÇÃO NO RIO DE JANEIRO, NO PAÇO IMPERIAL, REUNINDO MAIS DE 50 TRABALHOS QUE ATRAVESSAM DIFERENTES FASES DE SUA CARREIRA. CONVIDAMOS O ARTISTA PARA COMENTAR O PROCESSO CRIATIVO DE CINCO OBRAS MARCANTES DE SUA TRAJETÓRIA
“Nesta obra, tomo como ponto de partida o interior da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, instituição filantrópica católica voltada ao atendimento hospitalar, fundada em meados do século 16. Desde sua origem, a Santa Casa teve como propósito central oferecer amparoaosmaisnecessitados.
Desde o século 17, a administração é feita por uma irmandade que presta serviço voluntário e sem remuneração; esta elege um líder, denominado Provedor. O ingresso à irmandade significa o reconhecimento social e de posses e o cargo de Provedor é historicamente ocupado por políticos influentes ou membros da alta sociedade. A referência desse trabalho é a Galeria dos Provedores da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, local onde estão os retratos pictóricosdosProvedoresdainstituiçãodoinício do século 19 até os dias atuais. O espaço foi integralmente reproduzido na pintura e as informações adicionadas são relacionadas ao históricodosProvedoresretratados.Entrealguns benfeitores,figuramacusadosdeenriquecimento ilícito, escravagistas, latifundiários, favorecidos políticos e afastados por desvios de verbas da instituição.
Em síntese, trata-se de um grupo pequeno que constitui um sistema filantrópico com regras e políticas próprias e, em decorrência de sua longevidade, é capaz de fornecer parâmetros dos valores éticos e interesses de parte da alta sociedade brasileira. Considero este um dos trabalhos mais importantesda exposição Alto Barroco, noPaçoImperial, pois foi o primeiro trabalho da minha trajetória em que desenvolvi uma pesquisa completa sobre um espaço, fazendo uma narrativa sobre as questões daquele local.”
Jesus e seu projeto teocrático para os Anos 2000, 3.
“Depois de ter feito a pesquisa na Santa Casa de Misericórdia para a obra Sala dosProvedores, aprofundei maisotema com novas pesquisas em instituições. No Museu Afro-Brasileiro de São Paulo, encontrei uma carta com o título Instrução para administração de fazendas, que também dá nome à essa extensa série de trabalhos. O conteúdo da carta abordava formas de tratamento de pessoas escravizadas para gerar maiores lucros.
Nos interiores de edificações opulentas do período colonial, represento o funcionamento de uma fazenda de acordo com as normas descritas naquela carta. Ao expor tal conteúdo, questiono o quanto do nosso presente há naquela carta, que, a meu ver, se mostra como um Post scriptum de relações entre classes que encontramos hoje, em uma sociedade cuja escravidão foi determinante à formação de uma base viciosa de desigualdades. Destaco um trecho escrito pela antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz que, na minha primeira publicação monográfica, escreveu sobre este trabalho: ‘O arquivo da escravidão descansa por sobre uma base violenta que estrutura a própria sociedade brasileira. Já a obra de André Griffo, sem ser um manifesto, revela por indícios a agência dos objetos, reapresentados de forma a contar uma história divergente.Umarecombinaçãonarrativa,umarranjovisualque remete ao tempo da escravidão, transformando-o no nosso próprio tempo. Ninguém sai ileso.’
Essa é uma arte, portanto, que se produz junto com o arquivo, mas também contra ele. Uma contra história que se opõe de maneira sensível e até delicada às opacidades e silêncios das fontes visuais eurocêntricas.
Eu reconto, assim, uma história do que ‘poderia ter sido’, rompendo com os limites da representação colonial. Afinal, nomearopassadodemaneiracríticasignificaumaformadileta de rever o presente e visionar o futuro.”
Percorrer tempos e ver as mesmas coisas. Foto: Leonardo Martins.
“Este é um trabalho de grandes proporções, mede 2.90 x 2.90, e é baseado na arquiteturaornamentadada obra L’incontrodiSalomone con la regina di Saba (O Encontro de Salomão com a Rainha de Sabá, ca. 1470–1473), de Francesco del Cossa, noqualpinteiomesmoJesusque Giotto pintou na capela Scrovegni. Neste trabalho, discuto, maisuma vez, a questão da religião retratando Jesus sendo influenciado por anjos em ações inesperadas e até violentas. Como muito bem descreveu a curadora Juliana Gontijo: “Segundo a tradição judaico-cristã, os anjos são seres celestiais perfeitos, criados bons por Deus para servi-lo segundo a sua vontade; aqui, porém, aparecem demasiadamentehumanos,pondoemquestãoaperfeiçãoda criação ou a onisciência divina”.
“Objetoseimagens são fundamentais à concretização e à materialização das ideias que formam um sistema religioso; a eles são agregados significadose direcionados os sentimentos daquilo que representam. No caso do cristianismo, tais símbolos – santos, anjos, a
Bíblia,acruz,entreoutros–sãocomumenteapresentadoscom umamplorepertóriodeornamentos.Opropósitodessajunção é que o conjunto seja capaz de provocar sentimentos de celebração, adoração, sublime.
Embora a principal característica do ornamento seja estética, sua importância no contexto religioso vai além da função decorativa; ele é capaz de apresentar e definir o valor do símbolo que ornamenta e conduzir por si só a narrativa do contexto religioso.
Asérie A Supressão do Santo pelo Ornamento écompostapor pinturas e desenhos onde as imagens dos santos de retábulos eoratóriossãosubstituídasporoutrosornamentos,demaneira queacomposiçãosejatomadaporumconjuntosemânticocuja dimensão estética se relaciona diretamente com a memória e os valores da cultura cristã.”
“Neste trabalho, faço referência a estações de metrô presentes em grandes cidades do mundo, cenário onde um vendedor fictício informal expõe e vende seus produtos. Dispostasemlonasnochão, ouemganchospendurados nas estruturas dos espaços, estão figuras em miniatura que evocam tanto imagens religiosas como figuras de ação. Ao lado de imagens sagradas, como são Sebastião ou Nossa Senhora Aparecida, estão também figuras como políticos, policiais e pastores evangélicos, elementos que compõem muitos grupos paramilitares denominados "milícias" no Rio de Janeiro. Por meio da representação de um espaço arquitetônico cotidianoem uma cena aparentemente banal, exponho, soba forma de miniaturas, os agentes contemporâneos, que se estruturam por meio da política e da religião, para exercer o controle e promover a violência.”
Reconhecido por suas sucessivas rupturas e pela constante busca pelo novo, o Modernismo não foi capazdequebrarestruturaspatriarcaiseaindafalhou emintegraracriatividadefemininaemsuasnarrativas deinovaçãoetransgressão,atribuindoàsmulheresas condições de musas ou “artistas amadoras”. Apesar demuitasmulheresteremparticipadoativamentedas vanguardas – como Virginia Woolf, Djuna Barnes, Sonia Delaunay,Hannah Höch e Tamara de Lempicka –, suas contribuições foram, com frequência, vistas como “exceções” e invisibilizadas nas narrativas oficiais da história da arte e da literatura.
Por muito tempo, esse apagamento tornou o Modernismo um campo de disputasimbólicosobreospapéis de gênero. Pesquisadoras, como Griselda Pollock, propõem uma releitura desse movimento artístico como uma constelação de momentos em que o “feminino” aparece de forma oscilante: as mulheres surgem, ora como musas, ora como criadoras, ora como dissidentes. Assim, as novas abordagens que estão em voga resgatam vozes femininas na tentativa de compreender como o gênero moldou (e foi moldado por) as estéticas modernistas. Nesse embate, muitas artistas mulheres usaram a própria linguagem modernista para questionar os ideais de feminilidade impostos pelas vanguardas e pela sociedade burguesa. Os trabalhosdeTamaradeLempicka (1898-1980), por exemplo, subverteramoolharmasculinoao retratar mulheres com poder, desejo sexual e autonomia – algo radical demais para a época.
E, ainda hoje, sua produção artística fascina. Há um seleto grupo de celebridades seduzidas pelo estilo glamouroso de Lempicka, entre eles, Jack Nicholson, ao lado de nomes como Madonna, Barbra Streisand e a designer de moda Donna Karan. A admiração de Nicholson pela artista é tão marcante que ele chegou a presentear a atriz Anjelica HustoncomjoiasinspiradasemLempicka, nanoiteemqueelaganhouoOscarpor A honra do poderoso Prizzi (1985)–umgesto que uniu cinema, artes visuais e paixão. Madonna, a “Rainha do pop”, já declarou ementrevistasqueconsideraaartistauma referência estética. Ela também tem uma importante coleção de suas obras. Somese a isso a permanente presença de Lempicka nos videoclipes e turnês da cantora – ou seja, há, no vocábulo de Madonna, uma clara homenagem visual à artista.OdiálogoentreLempickaeDonna Karan faz todo sentido: ambas são mulheresqueromperampadrõesemsuas áreas. Lempicka, com suas figuras femininas poderosas, e Karan, com sua moda pensada para a mulher urbana e independente.Peloviésdaestética,ocorre umaconversaentreLempickaeKaran–um verdadeiro encontro entre arte e moda.
Com tudo isso, o interesse pela arte de Lempicka está mais atual do que nunca. E há dois novos motivos: o primeiro é a repercussãodesuaretrospectivanosEstados Unidos. A mostra, com curadoria de Gioia Mori e Furio Rinaldi, teve como ponto inicial o Young Museum, em São Francisco, com itinerância para o Museum of Fine Arts, em Houston – uma exposição que agitou a cena cultural norte-americana apresentando mais de 150 obras, incluindo pinturas e trabalhos em papel, além de explorar detalhes recémdescobertos da vida e do estilo da artista. O prefácio do catálogo da mostra é assinado porninguémmenosdoqueBarbraStreisand – isso é ou não é opulência?
Já o segundo motivo é o leilão da Sotheby's, em Londres, da tela La Belle Rafaëla (1927), um dos nus mais ousados de Tamara de Lempicka. Essa pintura retrata Rafaëla, uma modelo que se tornou amante e musa da artista. Lempicka a conheceu nos anos 1920 e ficou tão encantada por sua beleza que a abordou na rua e a convidou para posar. O resultadofoiumasériederetratossensuaise intensos – e La Belle Rafaëla é considerada a obra-íconedessafase,issoporquemostraum nu feminino sedutor sob o olhar de uma mulher, em uma época dominada por narrativas masculinas.
NascidaTamaraRozaliaGurwik-Górska (hoje,descobriram-sedocumentosque indicam que seu nome verdadeiro era Tamara Rosa Hurwitz – o que lhe daria umaorigemjudaica),em1898,naentão turbulentaVarsóvia,elacresceucercada porriqueza,arteeumainquietaçãoque jamais a abandonaria. Aos 12 anos, já insatisfeitacomoretratoqueumartista fez de sua irmã, pintou ela mesma – e nunca mais parou. Seu primeiro marido foi Tadeusz Łempicki, um advogado polonês, eleganteeinfluente.Elessecasaramem 1916, em São Petersburgo, durante os últimosanosdoImpérioRusso.Durante a Revolução Russa, Tadeusz foi preso pelos bolcheviques. Tamara, com apenas19anos,usoutodaasuaastúcia e influência para conseguir sua libertação. Embora os detalhes exatos nãosejamamplamentedocumentados, sabe-se que ela recorreu a contatos diplomáticos e usou sua determinação para tirá-lo da prisão. Juntos fugiram para Paris, onde ela renasceu como Tamara de Lempicka, a mulher que transformou o art déco e a beleza em armas de sedução e poder.
Na capital francesa, ela estudou com mestres como Maurice Denis e André Lhote, mas logo superou seus professores. Criou um estilo próprio: sensual, geométrico, moderno – um “cubismo suave” que encantou a elite europeia.Pintouaristocratas,socialites e amantes, sempre com a mesma intensidade com que vivia. Sua obra, marcada por linhas precisas, cores vibrantes e uma sensualidade audaciosa, refletindo a sofisticação e a liberdade da era art déco. Aliás, como o estilo art déco, marcado pelas décadas de 1920 e 1930, a produção de Lempicka foi um desfile de elegância geométrica e luxo. Tudo muito calculado, com equilíbrio visual e ornamentos refinados. Seus temas giramemtornodasmulheresvigorosas e sua estética é sempre limpa, mas nunca simples – com um toque de exuberância. Sua arte espelha certa dualidade –aomesmotempo,luxuosa e transgressora. Enquanto muitos artistas retratavam mulheres como musas passivas, Lempicka as pintava como figuras dominantes, cheias de agência e desejo.
Bissexualassumida,frequentavaossalõesmais ousados de Paris, onde escandalizava e fascinava em igual medida. Ela participava de festas com figuras como o poeta Gabriele
D’Annunzio, com quem teve um breve envolvimento, e era próxima de artistas como André Gide e Colette. Também teve contato com o círculo de Gertrude Stein, que reunia nomes como Picasso, Matisse e Hemingway.
Alémdosdoiscasamentos,seusamantesmais conhecidos foram Rafaëla, uma jovem prostitutadeParisjámencionada; SuzySolidor, cantoraefiguradaboemiafrancesa,eMarquis
Sommi Picenardi, um aristocrata italiano com quem teve um breve e intenso caso amoroso. Seus romances com homens e mulheres, sua beleza estonteante e sua ambição feroz a tornaram uma lenda viva.
Lempicka conheceu o barão Raoul Kuffner, um aristocrata austro-húngaroconhecidocomo “o barão de pincel”, quando este encomendou retratos dele e de sua amante. Após a morte de sua primeira esposa por leucemia e o divórcio de Lempicka e Tadeusz em 1928, eles se casaram em 1933. Com aascensãodonazismo,fugiram para os Estados Unidos. Lá, Tamara se reinventou mais uma vez – como a “Baronesa com pincel”, consolidando sua imagem como uma artista sofisticada e cosmopolita.
Mas a II Guerra Mundial alterou condiçõeseconômicas,políticas e socioculturais... o mundo mudou. Lempicka se interessou por pinturas abstratas, naturezas-mortas e o emprego de espátulas em vez de pincéis. Ela também repintou algumas de suas obras mais antigas a partir desses novos interesses, porém, sem sucesso. Seu estilo caiu em esquecimento... ela foi redescoberta nos anos 1970, quando virou ícone cult. Sua
Vuilleumier,
mortesedeuem1980,noMéxico.
Como último desejo, pediu que suas cinzas fossem espalhadas no vulcão Popocatépetl – um fim tão dramático quanto sua vida. Ela não apenas pintou mulheres poderosas – ela foi uma delas. Hoje, sua obra é sinônimo de empoderamentofemininonaarte.
gênero. Foi somente em 1925 que ela assinou uma obra com o nome feminino “Lempitzka” pela primeira vez. Alguns pesquisadores pensam queessaatitudenãoerapropriamente um esforço de Lempicka para ocultar seu gênero ou identidade, mas, mais ainda, revela como ela se sentia confortável na fluidez dos gêneros. Em síntese, Tamara de Lempicka não foiapenasumamestrado art déco;foi uma mulher que pintou seu próprio caminho com elegância e rebeldia. O interesse por sua obra confirma que, décadas depois, sua arte traz temas atuais – não apenas por sua coragem em desafiar o mundo que a cercava. Masporque,defato,elausouabeleza como “arma” para esse desafio.
Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECA-USP e pós-doutora na mesma área pela Unesp. Mestre pela ECA-USP e bacharel e licenciada em História pela FFLCH-USP, atua como crítica de arte e curadora independente. Atualmente, é professora na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e no CELACC (ECA-USP) e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes. É membro da Associação Internacional de Crítica de Arte (AICA) e colabora com diversas publicações, como o Jornal da USP e a Revista Dasartes. Além disso, é editora de Arte/História na Revista Arte & Crítica e autora dos livros Schenberg: crítica e criação (Edusp, 2011) e Memória da resistência (MCSP, 2022).
TAMARA DE LEMPICKA
, Coluna do meio
São
São
Marcelo Amorim, Renata Egreja e Marina Bortoluzzi
Leonardo Peliz, Marisa Quagliato Guimarães e Natália Forti
Carla Chaim
Fernanda Lopes e Patrizia D'Angello
César Oiticica Filho
Adriana Leirner, Carol Olinto, Amanda Coimbra, Nanado Simões
Marcos Osaki e Marcio Gobbi
Marcio Gobbi, Milena Merces, Adriana Balbino, William Leite
Marcio Gobbi e James Lisboa
Larissa Gallep
Viva São João
Marcio Gobbi
Escritório de Arte
Paulo
Renata Egreja Fonte
Paulo
Amanda Coimbra e Natália Quinderé
Amanda Coimbra Paço Imperial Rio de Janeiro
Fotos: Leda Abuhab
Fotos: Mari Morgado
Fotos: Denise Andrade.
Ricardo Von Brusky e Dina Steagall
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990.
Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site www.dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil.
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