Volume1 COMUNICAÇÃO reflexões, experiências, ensino

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Capitu incompleta: indeterminação na construção do feminino em Dom Casmurro

memória do narrador. Assim como Bentinho, ela apresenta pelo menos dois estados bastante diversos, ambos fragmentados: a infância/ adolescência e a idade adulta. A personagem se constrói pelo olhar voyerístico do narrador, em suas impressões quase sempre parciais, ora focalizando uma característica física, ora explorando de soslaio o comportamento da musa. Outra forma de caracterização é o jogo de espelhos feito pelo narrador. Ao conduzir o leitor pelos labirintos de sua infância/adolescência e idade adulta, Bentinho é um observador obsessivo, que compara, com grande insistência, os velhos retratos às personagens que fazem parte do seu círculo. A imagem dos pais, em tradicional quadro de casamento, joga sua sombra sobre as personagens. Seminarista por promessa da mãe, Bentinho quer uma posição semelhante à ocupada pelo pai, longe da Igreja. A conclusão que tira quando olha o retrato de ambos é evidente quanto a isso: “O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade” (ASSIS, 2008, p. 21). A imagem da mãe, feliz e fiel ao lado do marido, que aos poucos vai ser canonizada pelo narrador — sobre a lápide dela, o filho manda gravar a inscrição: “Santa” —, rivaliza com a de Capitu. Esta, sem nunca substituir a imagem da sogra, é silenciada justamente por ter traçado caminho inverso. Capitu é a imagem oposta à da sogra. Esta última é a personagem que garante a manutenção do patriarcado, assumindo o lugar do marido falecido e controlando a família com mão de ferro; aquela questiona, em vários momentos, os estatutos da sociedade patriarcal — reforçada pela educação católica conservadora — e busca, com a razão, construir sua própria felicidade ao lado do marido. Numa época em que a mulher não participava integralmente da esfera pública, sendo apenas um adorno a ocupar o espaço da casa, Capitu se apresenta inclinada a fazeres e a comportamentos considerados masculinos: agia pela razão e não pela emoção; era capaz de questionar a autoridade e a ordem estabelecida; tinha inclinação para os estudos, por exemplo, em relação à matemática, o que resultou, de certa forma, na disciplina financeira do casal. Num mundo dominado pelo discurso masculino, Capitu ganha relevo pela independência. Nisso ela difere das outras personagens do livro, que se sujeitam à lógica do patriarcado, inclusive as mulheres — cuja existência é comparável à dos escravos. Como relata Simone de Beauvoir, na metade do século XX, “(...) a mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca um pesado handicap” (BEAUVOIR, 1970, p. 14). A diligência de Capitu com o orçamento do casal causou admiração a Bentinho, acostumado à opulência e à despreocupação de uma família que vivia da renda de aluguel de imóveis e de escravos. Tais características são citadas pelo narrador, que as observa já na adolescência de Capitu: Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se

148 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 1 | n.1|p. 141-152| 2° Semestre 2008


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