Revista Acadêmica de Publicidade: Monografias 2015

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Expediente Publicação anual Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo Reitor José Pio Martins Pró-Reitor Administrativo Arno Antonio Gnoatto Pró-Reitor Acadêmico Carlos Roberto Juliano Longo Diretor-Geral da Escola de Comunicação e Negócios (ECN) Rogério Mainardes

Conselho Editorial Integrantes da UP André Tezza Consentino Christiane Monteiro Machado Hilton Castelo Filipe Bordinhão Revisão Susan Blum Coordenação Editorial Christiane Monteiro Machado Ricardo Pedrosa Macedo Projeto Gráfico e Diagramação Mayara Colucci Ricardo Pedrosa Macedo

Coordenadora do Curso de Comunicação Social - Publicidade e Propaganda Christiane Monteiro Machado

Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP) - Biblioteca da Universidade Positivo

Revista Acadêmica de Publicidade e Propaganda | Universidade Positivo. v. 1 - n. 1 Ano 2015 - Curitiba : Universidade Positivo, 2015 Periodicidade semestral ISSN 0000-0000 1. Periódicos. Publicidade - Periódicos. I. Universidade Positivo. CDU 000:000



Sumário A articulação do som como elemento persuasivo na publicidade audiovisual

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Julia Bohatch Batista Orientador: Prof. Hilton Castelo

Discurso do medo na campanha presidencial de 2014

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Letícia Maria Morgado Rodrigues Orientador: Prof. Hilton Castelo

Não só a fé: O Marketing de serviços e a Igreja Universal do Reino de Deus Mariana de Santana Lourenço Orientador: Prof. André Tezza

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JULIA BOHATCH BATISTA

A articulação do som como elemento persuasivo na publicidade audiovisual Hilton Castelo – orientador do trabalho

Conheço Julia desde o primeiro ano e posso garantir que se trata de uma das melhores alunas a quem tive a oportunidade de dar aula em quinze anos de docência. Fui professor de Julia em três disciplinas no curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo – Teorias da Comunicação, Áudio Publicitário e Narrativas em Quadrinhos. Em todas, foi sempre uma aluna que se destacou pela seriedade, comprometimento com os estudos e desempenho entre os melhores da sala. O processo de orientação do trabalho monográfico “A Articulação do Som como Elemento Persuasivo na Publicidade Audiovisual: Estudos de Caso de Comerciais Selecionados para Cannes em 2013 e 2014” foi muito tranquilo e prazeroso. Julia revelou-se uma pesquisadora de qualidade ímpar – dedicada, produtiva, ágil nas leituras e com autonomia intelectual. Pela habilidade e competência de Julia, ainda com a pesquisa em desenvolvimento, os resultados parciais da monografia foram transformados em artigo científico apresentado no Congresso Nacional da Intercom. Por tudo isso, o resultado final da monografia de conclusão de curso não poderia ter sido outro: nota dez. Julia, com redação madura e capacidade argumentativa e analítica primorosas, discute aqui a articulação do som como elemento persuasivo, trazendo ao leitor – a partir do pensamento de autores como Lucia Santaella, Rogério Covaleski e Murray Schafer – reflexões sobre as linguagens híbridas do audiovisual, as funções do som na televisão e cinema, a intertextualidade entre publicidade e produções audiovisuais. Na sequência, a partir de uma base teórica perfeitamente articulada, analisa comerciais brasileiros das marcas Leica, Liberty Seguros e Volkswagen selecionados para o Festival de Cannes em 2013/2014, mostrando a força imagética do som e a contribuição dos elementos sonoros para a significação, percepção e compreensão da mensagem publicitária. Nas palavras de Julia: “O riso, a nostalgia, a apreensão, a ansiedade e o sentimento de realização são emoções que uma mensagem audiovisual é capaz de despertar no espectador. Neste sentido, percebemos que, uma vez que a comunicação ultrapassa seus níveis superficiais de interpretação, estabelece-se uma conexão entre o receptor e o emissor. Diante disso, notamos a importância de atribuir à publicidade um caráter mais emocional, de entretenimento e interatividade, a fim de conectar de maneira mais forte uma determinada marca com seu público alvo. Para tanto, estratégias criativas e elementos persuasivos entram em ação. Nesta etapa, encontramos a música: uma arte dotada de elementos independentes, formadores do que chamamos de articulação sonora. “ Uma leitura indispensável para estudantes de Publicidade que queiram entender um dos mais importantes elementos discursivos do fazer publicitário.

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A ARTICULAÇÃO DO SOM COMO ELEMENTO PERSUASIVO NA PUBLICIDADE AUDIOVISUAL

A articulação do som como elemento persuasivo na publicidade audiovisual Estudos de caso de comerciais brasileiros selecionados para Cannes em 2013 e 2014

Orientador: Prof. Hilton Castelo

Julia Bohatch Batista

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JULIA BOHATCH BATISTA

Para uma eterna inspiração musical. Minha mãe.

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Agradecimentos Ao meu orientador, fonte de inspiração e conhecimento, por despertar minha paixão pela carreira acadêmica e por me incentivar a embarcar nesta viagem. Aos meus professores, que me fizeram crescer profissionalmente através de desafios, ensinamentos e viva prestimosidade. À minha família, pela confiança, paciência, amor, e eternos braços abertos. Em especial à minha mãe e minha tia, por me apresentarem a música no momento em que nasci. Aos meus amigos, pelas torcidas, inspirações e comemorações que envolveram esta aventura. Ao Universo, e à todos que contribuíram para a minha formação.

Muito obrigada.

“Music is a higher revelation than all wisdom and philosophy. Music is the electrical soil in which the spirit lives, thinks and invents.” Ludwig van Beethoven

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Resumo Este presente trabalho estuda como se dá a articulação do som como um elemento de persuasão na publicidade audiovisual. A pesquisa serviu de base para a realização de um estudo de caso de três comerciais brasileiros, os quais foram selecionados para o Festival de Cannes nos anos 2013 e 2014, e que foram analisados através de uma pesquisa teórica e de uma análise semioticista. Com base nas teorias de Santaella (2001), que estuda as linguagens do audiovisual, nos estudos de Murray Schafer (1994), sobre a musicalidade, e nas obras de Covaleski (2010), que analisam os processos de hibridização na publicidade, denota-se que o som é capaz de despertar sensações no espectador que contribuem para a percepção e compreensão de uma mensagem publicitária. Palavras-chave: Som; Publicidade; Audiovisual; Persuasão; Hibridização; Festival de Cannes

Abstract This present work has the objective of studying how the sound articulation works as a persuasive element in audiovisual advertising. The research served as a basis to the realization of a case study of three Brazilian commercials, which were selected for Cannes Festival in the years of 2013 and 2014, and which were analyzed through a theory research and a semioticist analysis. Based on Sanatella’s (2001) theories, about the languages in the audiovisual, on Schafer’s (1994) studies, about the musicality, and on Covaleski’s works, which analyze the process of hybridization in advertising; it is shown that the sound is able to awake sensations in the spectator which contribute for the perception and comprehension of an advertising message. Keywords: Sound; Advertising; Audio-visual; Persuasion; Hybridization; Cannes Festival

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Lista de Figuras Figura 01: Cena de “Alma” ___________________________ 53 Figura 02: Cena de “Alma” ___________________________ 54 Figura 03: Cena de “Alma” ___________________________ 54 Figura 04: Cena de “TopDrivers” ______________________ 57 Figura 05: Cena de “TopDrivers” ______________________ 58 Figura 06: Cenas de “TopDrivers” _____________________ 58 Figura 07: Cena de “Os Últimos Desejos da Kombi” _______ 61 Figura 08: Ator de Ben Pon Jr. pequeno ________________ 61 Figura 09: Ben Pon Jr. real ___________________________ 61 Figura 10: Registros antigos da Kombi _________________ 62

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Sumário 1. Introdução _______________________________________________ 15 2. As linguagens híbridas do audiovisual __________________________ 16 2.1 A concepção de linguagem _________________________________ 16 2.2 O cruzamento das linguagens híbridas ________________________ 17 2.3 A linguagem sonora _______________________________________ 18 2.3.1 O som e os elementos musicais ____________________________ 20 2.4 A linguagem visual ________________________________________ 22 2.5 A linguagem visual sonora __________________________________ 25 2.6 As interpenetrações das linguagens no audiovisual ______________ 26 3. A articulação do som nos meios audiovisuais ____________________ 28 3.1 O papel do som no cinema _________________________________ 28 3.2 O papel do som na televisão ________________________________ 32 3.3 O papel do som na publicidade _____________________________ 33 4. O processo criativo da publicidade audiovisual __________________ 38 4.1 A concepção artística ______________________________________ 38 4.2 A interface entre o cinema e a publicidade audiovisual ___________ 41 4.3 O contexto do audiovisual no Brasil __________________________ 43 5. Publicidade audiovisual e hibridização _________________________ 46 5.1 O entretenimento na publicidade ____________________________ 46 5.2 A interatividade na publicidade ______________________________ 48 5.3 A persuasão na publicidade ________________________________ 50

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6. Estudo de caso: comerciais brasileiros selecionados para Cannes em 2013 e 2014 _______________________ 52 6.1 Análise de “Alma” para a Leica _____________________ 52 6.1.1 A composição imagética da peça audiovisual _______ 53 6.1.2 A articulação sonora da peça audiovisual __________ 55 6.1.3 A hibridização de linguagens na peça audiovisual _______________________________ 56 6.2 Análise de “Top drivers” para a Liberty Seguros _______ 57 6.2.1 A composição imagética da peça audiovisual _______ 57 6.2.2 A articulação sonora da peça audiovisual __________ 58 6.2.3 A hibridização de linguagens na peça audiovisual _______________________________ 59 6.3 Análise de “os últimos desejos da Kombi” para a Volskwagen _______________________________ 60 6.3.1 A composição imagética do comercial audiovisual ___________________________ 60 6.3.2 A articulação sonora da peça audiovisual __________ 62 6.3.3 A hibridização de linguagens na peça audiovisual_______________________________ 64 6.4 O som como um elemento norteador de diferentes emoções em cada peça analisada __________ 65 6.5 Mapeamento das linguagens e emoções ____________ 67 Considerações finais _______________________________ 68 Referências _______________________________________ 70

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1. Introdução A fundamentação linguística da comunicação origina-se em sistemas de matrizes que, na publicidade, adquirem uma carga infinita de significações. Ao ser humano, é destinada a capacidade de decifrar códigos através das linguagens, assim como de estruturá-los. Diante disso, o ponto de partida desta monografia deu-se na motivação de investigar de que maneiras uma específica linguagem, reconhecida e admirada por todos os seres humanos, é capaz de influenciar na persuasão de um comercial publicitário: a música. A música apresenta um universo de elementos hábeis para desvencilharem-se entre si e agirem de forma independente em uma peça audiovisual. Esta maleável conexão de componentes é reconhecida neste estudo por articulação sonora, um exercício musical que seleciona especificidades de tal linguagem para estruturar a comunicação audiovisual. À frente desta concepção, forma-se o tema desta monografia: a articulação sonora como uma estratégia persuasiva na transmissão de mensagens publicitárias em comerciais audiovisuais brasileiros. As três peças selecionadas para estudo constituem-se de um cruzamento de elementos sonoros e visuais, verificando-se neste contexto a presença de estratégias linguísticas na comunicação. Com isto, procura-se compreender de que forma a articulação dos sons em um filme publicitário pode contribuir para intensificar o tom de voz da comunicação que se estabelece com o espectador, assim como ajudar a guiar suas emoções na interpretação da mensagem. O estudo de tal formulação estratégica e de diversificadas aplicações musicais pode levar à compreensão mais clara de quais são os essenciais pilares da comunicação, que usualmente sustentam uma peça publicitária audiovisual. É de fundamental importância estar ciente dos potenciais elementos de persuasão que estão ao alcance de nossa utilização, uma vez que a união estrategicamente pensada de componentes visuais e sonoros pode potencializar os objetivos finais do discurso persuasivo, originando um vínculo entre a marca e o consumidor que ultrapasse as linhas superficiais de um relacionamento. Percebe-se que a publicidade necessita cada vez mais aproximar uma marca de seu público com argumentações que façam parte de seu universo de interesse. Isto é, a fim de sustentar um produto ou serviço na mente de um indivíduo, mais do que nunca é necessário atribuir valores de entretenimento e interatividade à comunicação publicitária, para então estabelecer a força suasória de uma mensagem. Neste cenário, nota-se que a música se manifesta como uma excelente estratégia comunicacional a ser estudada, uma vez que ela transmite sensações distintas, capazes de catalisar e fortalecer os atributos de uma marca. Como metodologia deste estudo, estruturaram-se uma pesquisa teórica e uma análise semiótica que uniram distintos campos do conhecimento: a música, as linguagens da comunicação, o cinema e a publicidade. Nesta confluência teórica, encontram-se obras de autores como Lucia Santaella (2001), Rogério Covaleski (2010), Murray Schafer e Fernando Salinas (1994).

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Para direcionar a investigação ao estudo de caso das peças, foi estabelecida uma lógica de análise geral à específica. Buscou-se, neste caminho, compreender como se estabelece o processo de hibridizações e interpenetrações das linguagens no audiovisual, detalhando o estudo no campo da linguagem sonora, a fim de entender qual papel exerce o som nas principais artes audiovisuais. Diante de tais conhecimentos, foi realizada uma pesquisa sobre os usuais processos criativos para a formulação de uma campanha publicitária, direcionando o estudo para a dinâmica do entretenimento, interatividade e persuasão. A concepção sobre hibridização de linguagens no audiovisual, traçada no início da pesquisa, foi norteadora de toda a base teórica da monografia, e manifestada na análise das peças. Os comerciais brasileiros selecionados para o estudo de caso foram indicados para participar da premiação do Festival de Cannes nos anos 2013 e 2014, e como critério de seleção para participação desta pesquisa, foi levado em consideração quando a musicalidade das peças se apresentou como um potencial influenciador sob o estado de espírito do espectador, sendo capaz de provocar no público diferentes sensações. Dentre ela, o riso, a nostalgia, a apreensão, a ansiedade e a realização. Para estudar a conexão entre as estratégias sonoras e as emoções, foram analisados separadamente os elementos visuais e sonoros de cada peça, podendo, posteriormente, compreender os efeitos de sua hibridização e o grande papel da musicalidade na percepção final da mensagem. A articulação sonora evoluiu muito no cenário do audiovisual, na medida em que ela foi conquistando cada vez mais espaço na mídia, desde sua implantação estratégica no cinema. Sua utilização na comunicação publicitária apresenta a capacidade de gerar resultados surpreendentes, e por isso merece ser estudada como uma estratégia bastante potencial.

2. As linguagens híbridas do audiovisual As emoções de um espectador na interpretação do audiovisual são provocadas pela hibridização de diferentes linguagens. Esse processo promove uma alternância no foco do receptor perante as informações que recebe, constatando uma atividade rítmica entre os elementos linguísticos de grande significado. A transmissão de uma mensagem pelos meios audiovisuais é o resultado de uma harmonia que nasce da hibridização das linguagens visual e sonora. O desencadeamento de tal processo será estudado neste capítulo, introduzindo à análise os principais elementos que compõe estas linguagens, e de que maneira suas presenças influenciam na dinâmica de sensações do telespectador ao assistir um material audiovisual.

2.1 A concepção de linguagem A linguagem, segundo Santaella (2001), relaciona-se de forma indissociável com o pensamento humano. Ela pode ser considerada qualquer coisa que esteja à mente, seja ela proveniente de uma natureza similar a frases verbalizadas, a imagens ou a 16

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elementos sonoros. Tendo origem no pensamento, é possível afirmar que a linguagem é qualquer meio sistemático utilizado para comunicar ideias ou sentimentos, através de signos convencionais, sejam eles sonoros, gráficos ou gestuais. Para Turin (2007), a linguagem pode ser considerada como uma faculdade que o indivíduo tem de realizar representações. Segundo a autora, apenas aquilo que representamos, que conhecemos, vivenciamos e aprendemos se constitui na nossa realidade. Desta maneira, o mais alto grau de realidade consiste nas representações. Diante de tal contexto, nota-se que a publicidade audiovisual reúne em seu processo criativo diferentes objetivos de comunicação. Para que cada um deles seja alcançado, é válido levar em consideração os entornos das diferentes linguagens utilizadas na comunicação publicitária. Santaella (2001) defende que apenas a visão e a audição, como sentidos da percepção humana, são capazes de desenvolver linguagens. Com isto, considera-se que, para algo ser considerado uma linguagem, alguns atributos devem estar reunidos: sistematicidade, metalinguagem (podendo ser auto-referente) e recursividade (deve ser passível de qualquer espécie de registro, mesmo que apenas de memória). Ou seja, a linguagem pode ser conceituada como uma organização de códigos para manifestação de pensamentos (representação). O atributo da recursividade pode justificar um dos motivos pelos quais a publicidade utiliza estímulos visuais e sonoros para a sua composição, pois mostra que o ser humano apenas pode revivenciar uma sensação através da audição ou visão. Em seguida, será estudado como se dá o cruzamento de elementos sonoros e visuais na publicidade audiovisual, colocando em análise algumas especificidades de cada linguagem presente nesta hibridização.

2.2 O cruzamento das linguagens híbridas A arte audiovisual pode ser vista como um cruzamento de linguagens híbridas, as quais evoluem entre si com a aderência de elementos de diferente natureza. Covaleski (2010) traz o significado de híbrido inicialmente como uma composição de dois elementos linguísticos que resultam em um novo terceiro, mantendo as características dos dois primeiros. Pode-se compreender assim o hibridismo, conforme a interpretação de Raymond Bellour (1997), como uma mescla de diferentes formas de representação. No estudo de um objeto proveniente da hibridização de diferentes linguagens, pode-se notar que a essência dos elementos desse cruzamento não se perde em sua composição. Hoff explica que: Assim como a cultura não é acumulativa, não basta acumular elementos para gerar um terceiro híbrido, mas é preciso criar conexões entre os mesmos. Trata-se de uma mistura cultural que nem se limita a justapor elementos e nem tampouco os sintetiza, não no sentido de homogeneizá-los, destruindo-os de suas características individuais (2006, p. 43).

Neste sentido, pode-se dizer que todos os cruzamentos de linguagens carregam as essências de cada uma delas. A hibridização de diferentes elementos é capaz de produzir novos sentidos, e, ao mesmo tempo, manter suas características individuais.

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É correto afirmar, segundo Santaella (2001), que todas as linguagens existentes são híbridas, não apresentando nenhum tipo de pureza. Ou seja, os seus surgimentos têm origem de diferentes naturezas que se encontram, sejam elas gestuais, sonoras, verbais, visuais. Os nivelamentos dessas matrizes estão sustentados pelos graus de hibridização de cada uma delas. Ou seja, uma linguagem pode vir a ser mais híbrida que outra, dependendo da quantidade de cruzamento com outrem de sua própria origem. Para Bhabha (2001), a complementaridade da linguagem enquanto comunicação deve ser entendida como algo que surge de um estado constante de contestação e fluxo, causado pelos sistemas diferencias de significação social e cultural. No meio audiovisual, três matrizes de princípios linguísticos se manifestam em distintos níveis, os quais sustentam todas as linguagens existentes: a sonoridade, a visualidade e a discursividade verbal. Tal como afirma Santaella (2001), o princípio da sonoridade consiste na evanescência, ao retratar sempre uma passagem de tempo e uma ideia de finitude. Considera-se que o som acontece no tempo e é levado junto com ele. No caso da visualidade, retrata-se primeiramente a forma, mesmo quando nada está fisicamente materializado. Nesta questão está o pensamento onírico, ao impregnar com matéria algo que é informe. Por fim se menciona o primeiro fundamento da discursividade verbal, o qual está na inscrição, capaz de nos transportar para outras fronteiras da realidade. No discurso está a fala, o traço, a escrita, a letra. A discursividade movimenta ações a partir de tais inscrições. Direcionando o estudo às concepções destas linguagens que compõe o audiovisual, é possível classificar, de acordo com Santaella, (2001) em linguagens sonoras, linguagens visuais e linguagens visuais sonoras.

2.3 A Linguagem Sonora Segundo Santaella (2001), a linguagem sonora refere-se ao som e a música em si, sem nenhum tipo de verbalização. É interessante introduzir neste tópico algumas especificidades do som para, no decorrer da monografia, resgatar alguns conceitos de tal natureza que podem ajudar a compreender a audição. Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentidos (WISNIK, 1989, p. 15).

Para Russo (1985), a atenção auditiva é a capacidade do ser humano de manifestar uma resposta voluntária a um estímulo sonoro. Fernando Salinas (1994), explica que todos os sons provocam uma resposta, seja ela de passividade ou atividade. Mesmo quando um indivíduo está em estado de sono, os ouvidos processam ondas sonoras e estimulam o trabalho do cérebro. Conforme afirma Murray Schafer (1991, p. 29), “os ouvidos não possuem pálpebras”. No caso das respostas ativas aos estímulos sonoros, a atenção auditiva permite a interatividade entre um emissor e um receptor em uma comunicação verbal: a resposta posterior à pergunta. Pode-se afirmar que um ser humano discrimina, memoriza e interpreta os sons ao seu redor. Ele é capaz de detectar diferenças e semelhanças nos sons que ouve, armazená18

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los em sua memória auditiva relacionando-os a objetos, lugares, e períodos da vida. Sem tal inteligência, o homem não seria capaz de reproduzir os sons que ouve, e muito menos de compor música, um processo que implica a união harmônica de diferentes sons de qualquer natureza. Para Schafer (1991, p.125), “os sons ouvidos poderiam ser divididos em sons produzidos pela natureza, por seres humanos e por engenhocas elétricas ou mecânicas.“ A união de elementos sonoros compõe uma paisagem sonora, a qual, para Schafer (1991), significa um ambiente acústico, um campo sonoro total dentro do qual estamos localizados. Neste ambiente, pode-se dizer que o ouvinte apresenta dois tipos de audição: a audição focalizada e a audição periférica (Salinas, 1994). No primeiro caso, o indivíduo está prestando atenção nos sons que ouve, enviando-os para um processo de discernimento e significação de tal material auditivo. No segundo caso, o indivíduo ouve os sons com uma atenção passageira. O discernimento entre as atitudes de audição focalizada e audição periférica do ouvinte é uma percepção importante para os objetivos de estudo dessa monografia, uma vez que, no estudo de caso, serão analisadas as participações de diferentes elementos sonoros em cada peça. Na arte audiovisual entram também na classificação de Santaella sobre a linguagem sonora os ruídos de objetos, representadores de funções relevantes à contextualização da ideia de uma peça. Como, por exemplo, o som de um carro em movimento, passos em pressa, risadas. Diz-se funções relevantes à contextualização de uma ideia por, muitas vezes, o artista − manipulador do elemento que nasce de tal hibridização de linguagens − optar por omitir a sonoridade de alguns objetos e ressaltar a de outros, enfatizando a ideia da arte composta e liderando o caminho das interpretações do público sobre ela, conforme suas próprias percepções. No cotidiano, a atitude auditiva de um indivíduo varia de acordo com a paisagem sonora em que este se encontra. O processamento dos elementos sonoros em uma conversa com outra pessoa é diferente do processamento dos elementos sonoros característicos de uma cidade grande, por exemplo. Em uma conversa, a audição focalizada marca uma atitude ativa, uma vez que a mensagem transmitida implica em uma resposta por parte do receptor, seja esta manifestada oralmente ou não (o processo de interpretação da mensagem já é válida neste caso). Em comparação a um indivíduo que, ao estar lendo um livro em casa, ouve sons vindos da rua, os quais contemplam a paisagem sonora de uma cidade grande do mundo moderno. Esta audição periférica marca uma atitude passiva, na qual a pessoa está ciente dos elementos sonoros e suas origens por resgatá-los involuntariamente de sua memória auditiva, porém não busca demasiadas interpretações. Estas diferentes atitudes auditivas de um indivíduo podem ser comparadas com as de um telespectador ao assistir um comercial publicitário audiovisual, interferindo diretamente em sua percepção da mensagem transmitida.

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2.3.1 O som e os elementos musicais Considera-se que, em um meio audiovisual, a trilha sonora apresenta-se como o ambiente acústico da obra: a sua paisagem sonora. Os realizadores de uma trilha sonora responsabilizam-se por unir as falas dos personagens, os ruídos e efeitos sonoros de objetos, a música e o silêncio. A paisagem sonora audiovisual configura-se de uma sucessão e combinação simultânea de sons organizados na procura de um determinado significado. A trilha sonora pulsa a atenção auditiva do receptor no intuito de respostas racionais e emocionais (SALINAS, 1994, p. 42).

Pode-se dizer que a trilha sonora é uma mistura de sons de variadas fontes, as quais se alternam na emissão de uma mescla entre o intencional e o acaso, resultando em uma forma de música. Assumindo tal fato, é válido considerar alguns elementos da música para a discussão, os quais podem influenciar na concepção de um projeto audiovisual, visando contornar as percepções de um telespectador. Como propriedades, todo som possui uma altura, uma duração, um timbre e uma intensidade. Segundo Salinas (1994, p. 4), “a sucessão organizada de sons denominase melodia, e a combinação simultânea de dois ou mais sons chama-se de harmonia”. Anterior ao aprofundamento da significação destes termos, é importante apontar uma percepção fundamental para esta monografia: a compreensão do silêncio. Todos os eventos musicais são acontecimentos sensíveis e precisam de proteção contra o ruído. O papel do silêncio é promover tal proteção. Schafer (1994) discute a crescente preciosidade dessa quietação, uma vez em que ela é extraviada para ruídos como os sons industriais, carros, rádios transistores. Como ela está sendo perdida, sua presença é cada vez mais fundamental em qualquer composição musical. Para Schafer, o silêncio é a característica mais cheia de possibilidades da música. Mesmo quando cai depois de um som, o silêncio reverbera com o que foi esse som e essa reverberação continua até que outro som o desaloje ou ele se perca na memória. Logo, mesmo indistintamente, o silêncio soa. (...) O homem teme a ausência de som como teme a ausência de vida (SCHAFER, 1994, p. 71).

No audiovisual, a articulação do silêncio é igualmente fundamental à articulação do som. Sua presença pode, ao mesmo tempo que significar calmaria e pacificidade, representar o caos e o suspense. Sua alternância com a sonoridade é demarcada por um momento de impacto sonoro que Schafer (1991, p. 74) chama de “ictus”, um ataque que separa o silêncio da articulação. Pode-se observar que, na técnica musical e audiovisual, o “ictus” estabelece este impacto entre a ausência e a presença de som, e, paralelamente, fixa um controle sobre a perspectiva do receptor. Isto é, este impacto técnico é diretamente refletido nas emoções manifestadas pelo telespectador, o qual presta atenção ao silêncio com uma atitude de audição focalizada assim como presta atenção à sonoridade. Conforme afirma Salinas (1994, p. 44), “as pausas silenciosas podem trazer as sensações de medo, dúvida, espera, angústia.”

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Analisando agora os elementos musicais da sonoridade, encontra-se como relevante neste estudo o timbre, uma propriedade que auxilia na discriminação da fonte sonora, ao lado da memória auditiva. Schafer (1991) o define como a cor da música. Uma característica sonora que promove a individualidade das articulações. Assentindo as capacidades de uma memória auditiva comum do ser humano, é possível utilizar o timbre de variadas fontes sonoras como articulação técnica para promover efeitos desejados em um meio audiovisual. Há sons cotidianos que podem antecipar ou atestar ações sem que suas fontes sonoras apareçam em cena, como, por exemplo, o barulho de passos, de carros passando, das ondas do mar e entre outros. Reconhece-se as pessoas pelo timbre da voz de cada um. No desenrolar da idade, desde a infância à velhice, um mesmo indivíduo altera a cor de sua voz. Na maioria das vezes, é possível determinar se uma pessoa é homem ou mulher, jovem ou velho, apenas pelo timbre da sua voz, sem a necessidade de decifrar as palavras faladas (Salinas, 1994). No audiovisual, o timbre de um instrumento ou da voz de um personagem pode situar o telespectador em um determinado contexto cultural de espaço-tempo, e fazêlo reconhecer suas fontes. Além disso, seu papel é essencial para manter equilibrada e coesa a relação entre som e imagem. Salinas (1994) defende que, quando a ligação fonte-som se altera, as imagens que vemos soam falsas, podendo haver um estranhamento sonoro. Por essa razão, a cautela na criação e reprodução dos sons de uma paisagem sonora é essencial, uma vez que uma cor dissonante de sua fonte prejudica a veracidade do audiovisual. A intensidade, como propriedade sonora, refere-se ao grau de energia de um som. Um impacto sonoro pode ter intensidades fortes ou fracas, independente de suas outras propriedades. Uma das características mais importantes da intensidade é a capacidade de moldar a transmissão de uma mensagem. Às vezes, no caso da fala, a intensidade vem a ser mais significativa do que a própria palavra dita, pois ela manifesta as emoções do indivíduo. No audiovisual, ao mesmo tempo em que são ensaiadas as intensidades de cada diálogo entre os personagens, são manipuladas as intensidades das ações que acontecem nas cenas. A equipe técnica responsável pelos efeitos sonoros pode utilizar, na formação da paisagem sonora da obra, uma certa elevação/declive no aparecimento de sons de diversas fontes. Algumas destas podem ser vozes de personagens que se aproximam ou se afastam, o barulho de explosões, a música da trilha sonora tomando gradativamente o lugar das falas ou do som ambiente da cena. Os sons das paisagens sonoras fílmicas, cada um com suas propriedades, apresentamse sempre sucessivamente, um após ou outro e, também, junto de outro. Essa sucessão de notas, cada uma com uma altura, pode ser chamada de melodia (Salinas, 1994). Para Schafer (1991), uma melodia pode ser qualquer combinação de sons. Segundo ele, para termos uma melodia, é preciso movimentar o som em diferentes altitudes, como se fôssemos levar um som a um passeio. No audiovisual, o conceito de melodia torna-se um pouco mais complexo devido à multiplicidade de fontes sonoras que apresenta-se nas cenas. Falas, expressões não

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linguísticas, ruídos de objetos, músicas e sons dramatizadores estão entre eles. Salinas (1994) argumenta que, normalmente, a intenção dos realizadores de uma paisagem sonora de um meio audiovisual é a de direcionar a audição focalizada para as falas dos personagens. Porém, durante os diálogos, manifestam-se também as expressões não linguísticas das próprias falas, as quais são ouvidas com uma audição periférica e mesmo assim provocam respostas emocionais por parte do telespectador. Nesta relação de figura/fundo, a figura dirige-se ao racional e o fundo ao emocional do receptor. Apresenta-se, então, uma articulação na qual a trilha sonora detém não uma linha melódica, mas sim um jogo de várias linhas melódicas simultâneas (SALINAS, 1994, p. 47).

Assume-se assim a melodia como uma propriedade potencializadora da trilha sonora, ao estimular constantemente a atenção auditiva do receptor. Em complemento à análise dos elementos musicais relevantes para os objetivos de estudo desta monografia, é válido introduzir o conceito de ritmo. Para Schafer (1991), ritmo é a direção. Ele divide o todo em partes, articulando um percurso. Segundo o compositor, pode existir dois tipos de ritmos: regulares e irregulares. Os primeiros sugerem divisões cronológicas do tempo real, vivendo uma existência mecânica seguindo o tique-taque do relógio. Já o segundo comprime o tempo real, seguindo um tempo que pode ser chamado de virtual ou psicológico. Nos audiovisuais, a articulação do ritmo como uma propriedade fundamental da música proporciona ao receptor emoções variadas. Uma melodia pode alternar do ritmo regular ao irregular, resgatando a paisagem sonora para fora de um ambiente monótono. Como diz Schafer (1991), composições ritmicamente interessantes deixam o ouvinte em suspense. Este argumento faz crescer uma perspectiva de que a linguagem sonora, com todas as suas propriedades habilidosamente manuseadas, assume um pilar fundamental no controle emocional do telespectador. No tópico seguinte, será observado de que maneira os elementos que compõe a linguagem visual trabalham para construir outro pilar de controle sobre as emoções do espectador.

2.4 A LINGUAGEM VISUAL Na concepção de Santaella, as linguagens visuais tratam-se de linguagens fixas, as quais, no campo da visualidade, encontram-se próximas de um estado puro por não se misturarem, nos níveis superficiais, com outros sistemas de signos. Essas linguagens apresentam o maior grau de pureza possível no campo visual (Santaella, 2001). Dentre estas linguagens visuais, alguns exemplos são o desenho, pintura, gravura, escultura, mapa, fotografia. Mas nesse entendimento de pureza, essas linguagens visuais não podem ser consideradas inteiramente impermistas, por receberem naturalmente influências e contaminações de outras linguagens, sejam elas sonoras, verbais e gestuais.

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Muitas vezes, o surgimento de certas linguagens provém de outras, e é por isso que o sistema de matrizes de linguagens pode ser considerado interminavelmente híbrido. Uma linguagem alavanca o surgimento da outra, e neste processo, elementos de naturezas distintas se cruzam para produzir um novo sentido. No caso das linguagens visuais, uma mesma imagem pode transmitir diversos significados a pessoas diferentes. Este processo de significação transcende de uma natureza do próprio objeto, fazendo com que as distintas interpretações sobre tal imagem estejam conectadas em um ponto em comum da memória dos seres humanos. Um exemplo deste fato é o reconhecimento das logos de grandes marcas pelo mundo. As significações sobre o símbolo visual possuem pontos comuns entre todos os interpretantes. A hibridização anterior, pertinente à concepção do elemento, provém do contexto em que o material foi gerado. Entram neste processo a possível imaginação do criador, sua memória, seus procedimentos e técnicas e outros intermináveis fatores influenciadores à geração do objeto. Já a hibridização posterior, pertinente à interpretação do elemento de linguagem visual, é composta pela inteligência do interpretante em seu contexto, junto da mensagem transmitida pelo objeto criado, podendo esta combinar com as percepções de seu autor ou não. Uma mensagem visual composta apenas por uma imagem é uma forma de comunicação e expressão que dispensa a necessidade de explorar significados interpretativos em outras linguagens. A análise de uma imagem conta com uma capacidade de percepção e reconhecimento por parte do receptor, como no exemplo citado anteriormente sobre logos de grandes marcas. A função de uma mensagem visual imagética pode ser designada de acordo com a capacidade de expressão do emissor, como com a de percepção do receptor. Essas funções podem variar em diferentes contextos. Joly (2001) argumenta que uma imagem pode ser um instrumento de comunicação entre pessoas, assim como pode ser um instrumento de intercessão entre o homem e o próprio mundo. Uma imagem pode ter uma função de símbolo, como é o caso de inúmeras religiões que utilizam destas representações para intervir uma aproximação entre os homens e o que é considerado divino. Esta ocupação também foi explorada na decorrência de diversas mitologias, e atualmente, também se manifesta com frequência na publicidade, com aplicação nas logomarcas. A influência de uma imagem como um símbolo veio a ser tão grande que, cada vez mais, cresce a busca pela simplificação da representação de um significado maior, de grande porte não necessariamente material - seja ele uma empresa, uma crença, um nome, uma marca, uma assinatura - em uma linguagem visual. Uma imagem também pode exercer uma função informativa, assumindo uma rsponsabilidade de instrumento de conhecimento, tornando-se uma referência para fornecer informações sobre objetos, lugares, pessoas, assumindo formas visuais tão diversificadas quanto às ilustrações, fotografias, painéis ou mapas (Joly, 2001).

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Segundo a autora (2001), essa função imagética do conhecimento está naturalmente associada à função da estética, sendo capaz de proporcionar ao seu espectador sensações específicas. Se comunicar pela imagem (mais do que pela linguagem) vai estimular necessariamente, por parte do espectador, um tipo de expectativa específica e diferente da que uma mensagem verbal estimula (JOLY, 2001, p. 61).

A noção de expectativa está vinculada à de contexto, a qual condiciona diretamente a interpretação de uma mensagem. Para Joly (2001), o jogo com este contexto pode ser uma maneira de intrujar a expectativa do espectador, causando-lhe surpresas, choques ou divertimentos. Colocar uma roda de bicicleta em um museu e erigi-la à categoria de “obra-dearte”, promover a “imagem” de um político com os mesmos instrumentos usados para lançar um novo detergente, (...) são procedimentos de descontextualização que deslocam o sentido de um campo a outro, brincando com nosso saber e nossas expectativas (JOLY, 2001, p.63).

Santaella e Nöth (1997) estudam a divisão das imagens entre dois domínios. Primeiramente, o domínio das imagens como representações visuais, as quais foram mencionadas anteriormente, como os desenhos, pinturas, fotografias, imagens cinematográficas. Segundamente, o domínio das imagens como algo imaterial na nossa mente. Nesta categoria pode-se posicionar o aparecimento de imagens como visões, imaginações, esquemas, fantasias. Isto é, como representações mentais. Esta percepção é importante para reconhecer que ambos os domínios estão entrelaçados em suas origens, ou seja, não existem imagens como representações visuais que não tenham irrompido de imagens na mente de quem a produziu, assim como não existem imagens mentais que não tenham algum laço de origem no mundo concreto dos objetos visuais (Santaella e Nöth, 1997). No audiovisual, pode-se dizer que as imagens assumem um pouco de cada função. Existe uma mescla entre as representações contextuais, as quais fornecem informações sobre a realidade vivida no projeto de tal meio, e as representações simbólicas e de domínio imaterial. A linguagem visual não pode ser confundida com a linguagem visual sonora. Ambas utilizam da imagem para se materializarem, porém, uma de suas principais diferenças pode alterar completamente o sentido da mensagem transmitida através de uma e de outra: o tempo. Este entendimento será aprofundado no tópico seguinte, e enriquece o breve estudo sobre linguagens visuais que encontra-se relevante para esta monografia. Pode-se deduzir que a utilização da imagem, independente de sua forma, abriga um potencial transmissor de significados. A linguagem visual pode ser considerada uma linguagem híbrida por levar em conta a sua concepção e origem. O seu cruzamento com outras linguagens, como a sonora e a textual, prolifera uma multiplicidade de novas interpretações que, sem o processo de hibridização, não poderiam emergir.

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2.5 A linguagem visual sonora No levantamento de exemplos das linguagens visuais sonoras, pode-se mencionar o cinema, vídeo, computação gráfica e televisão. É válido ressaltar que, conforme enfatizou Santaella (2001), a lógica do sonoro não precisa necessariamente estar expressa em sons, podendo tomar corpo em imagens em movimento. Imagem animada é uma questão de timing, duração. O conteúdo das imagens no vídeo, cinema e televisão é sempre tão impositivo na sua figuratividade e registro de coisas e situações também visíveis fora da imagem que o aspecto meramente rítmico, temporal das imagens passa despercebido (SANTAELLA, 2001, p. 383).

Santaella (2001) justifica que, por tal razão, a computação gráfica, frequentemente feita de variadas circunvoluções de formas não representativas põe em cena de maneira mais evidente a música das imagens. Para Burch (1992), um filme é uma sucessão de pedaços de tempo e pedaços de espaço. E dentre as inúmeras possibilidades de articulação, existem as que transmitem uma ação contínua e as que transmitem uma ação descontínua. Nos exemplos de linguagem visual sonora, o tempo permite ao receptor orientar-se com relação ao contexto da obra. Tal orientação pode ser explicada segundo as três espécies de tempo, mencionadas por Santaella e Nöth (1997), que estão interligados à questão das imagens animadas: o intrínseco à imagem; o extrínseco à imagem; e, finalmente o intersticial, o qual significa o tempo de percepção que o receptor constrói perante o objeto. Ao assistir um filme, é possível perceber a passagem do tempo no decorrer da obra. Se são passadas horas, dias, ou grandes períodos de anos ou transcorrência de épocas. Para tornar essa percepção possível, os produtores exploram de movimentos de câmeras, planos de cena, iluminação, sonoridade e discursividade, dependendo de cada caso. Laurentiz (2007) argumenta que existe um tempo no mundo, um tempo na imagem que está presente neste mundo, um tempo do espectador que observa a imagem, e um tempo sintético que relaciona estes dois últimos. É nesta síntese que nasce o reconhecimento do tempo no audiovisual. Na interpretação de qualquer meio da linguagem visual sonora, Schaeffer (1996) discute sobre a possibilidade de uma imagem que por si só não existe, mas é capaz de ser transmitida, porque o espectador deposita nela algo que é seu e acrescenta algo à ela. Levando em consideração que a linguagem visual sonora é um cruzamento de sons e imagens, neste processo entram em questão a memória auditiva, a inteligência de mundo e a capacidade de percepção de mensagens do indivíduo. Cada ser humano vivencia uma experiência única ao decodificar uma mensagem, independente das linguagens que são abordadas neste contexto. Os vídeos podem, frequentemente, não estar acompanhados de palavras ou diálogos, e, neste caso, atingem seu maior grau de poeticidade por meio do mais intenso cruzamento e relação entre as imagens e elementos característicos da música.

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Quanto mais intimamente as imagens do vídeo se tecem na dinâmica que é própria da sonoridade, das durações, intensidades, acelerações e retardamentos, maior é a eficácia de suas imagens (SANTAELLA, 2001, p. 381).

Com a presença do verbo, tais exemplos de linguagens visuais sonoras passam a ser exemplos de linguagens verbo visuais sonoras, e, em cada um desses exemplos, a interpretação da hibridização dos elementos que as compõe pode possuir diferentes intenções e explicações. O cinema, vídeo, televisão e publicidade são os meios audiovisuais mais ressaltantes nesta categoria, por apresentarem uma grande rede de interpenetrações de linguagens e possuírem ritmos diferentes. Cada um destes exemplos apresenta um diferente cruzamento de linguagens. A relação entre som e imagem em cada um deles apresentase de forma característica. A discursividade verbal no audiovisual não está sempre expressa por meio dos diálogos entre os personagens. A narrativa das obras é o próprio discurso verbal. Ou seja, mesmo quando não há discurso verbal oral na peça, uma história pode ser transmitida pelo cruzamento de imagens em movimento e sons, mantendo ainda presente a linguagem verbal no primeiro estágio de sua composição. As imagens dos vídeos podem ser de qualquer natureza (de estúdio, de reportagem, de arquivo, de filme de ficção, de desenho animado) e sempre desencadearão uma função referencial a um discurso, mostrando aquilo que as palavras não podem mostrar. Podese dizer, portanto, que as essências dos elementos que compõe um audiovisual, ao se cruzarem, se complementam, fazendo com que nasça uma nova essência que condiz com a peça em um todo, a qual é fruto de tal hibridização. Os meio audiovisuais, através da imagem em movimento, manifestam a semiose que é própria da sonoridade, não apenas naquilo que é neles audível, mas também na ausência de som, isto é, nos movimentos, durações, enfim, nos ritmos de suas imagens (SANTAELLA, 2001, p. 387).

Conforme mencionado anteriormente, os audiovisuais apresentam tipos de ritmos diferentes. Em um primeiro nível, conforme a semioticista (2001), é o ritmo da história ou daquilo que é narrado na peça, segundo a relação do tempo real da projeção e o tempo suposto que a história é transmitida. Em um segundo nível, são apresentadas as analogias com o ritmo que é próprio da sonoridade, como o tempo de duração das tomadas, dos diversos movimentos da câmera. Conforme Santaella (2001), são essas configurações que se destacam unicamente no universo imagético, o qual constitui um dos aspectos mais importantes da organização sonora.

2.6 As interpenetrações das linguagens no audiovisual A linguagem audiovisual pode ser considerada um conjunto de códigos compartilhados baseados no som e nas imagens em movimento. Cada vez mais decorre um avanço tecnológico que permite uma evolução no sistema de signos, promovendo assim novos cruzamentos entre gêneros de linguagens e alternâncias nas percepções dos indivíduos perante as mensagens. A linguagem audiovisual constrói continuamente suas características, transformando-se à medida que novas formas de captação e registro de sons e imagens vão sendo descobertos/criados (CORTÊS, 2003, p.32).

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Uma grande variedade de símbolos e signos emerge no sistema híbrido da linguagem audiovisual, e sua tangência com a comunicação social aciona em sua figuração as matrizes sonora, visual e verbal pautadas na forma e no discurso, tornando possível a imersão em um universo de imagens técnicas (Gerbase, 2003). Entende-se que a linguagem permite ao indivíduo uma prática ampla de decodificação de mensagens. Essa vastidão está expressa na possibilidade do ser humano de reconhecer e nomear objetos segundo categorias pré-concebidas. Assume-se, portanto, que a linguagem não encontra-se somente em uma forma de comunicação entre pessoas. Ela está interna e externamente conectada à forma de compreensão de cada um sobre o mundo, sobre si mesmo, e sobre os próximos. Tal fato ocorre através da capacidade do homem de codificação dos discursos e dos meios aos quais ele está imerso. Na interpretação do audiovisual, esses discursos provocam estímulos no espectador, promovidos por meio das interpenetrações das linguagens visual, sonora e verbal. Essa tríade caracteriza a linguagem audiovisual. Uma conexão entre a linguagem e um indivíduo é estabelecida nesta interpretação. Porém, para que ela realmente seja estabelecida, Dondis (2007) aponta a necessidade de transformação dos indivíduos em visualmente alfabetizados, possibilitando a sua expansão da capacidade de ver e compreender as mensagens pertinentes às linguagens visuais. Concebe-se hoje que tal entendimento conheceu um nível mais vasto de valor. Além de uma alfabetização visual, é indispensável que os indivíduos sejam alfabetizados audiovisualmente, em benefício de uma posição mais crítica e cada vez menos passiva no consumo de produtos audiovisuais. Conforme foi discutido anteriormente, os indivíduos depositam suas próprias inteligências na decodificação de uma mensagem de qualquer linguagem. Com a evolução de técnicas, as hibridizações linguísticas avançam, e as percepções do ser humano, consequentemente, adaptam-se ao meio, verificando-se aí o surgimento de um ciclo. Assume-se que, mesmo com essa progressão técnica, as linguagens híbridas afastadas do cruzamento não perdem as suas essências de composição. Mesmo que a linguagem visual dos filmes, por exemplo, seja impactada pelos avanços da tecnologia 3D, por exemplo, a sonoridade e a discursividade narrativa e/ou verbal ainda são indispensáveis para formular o audiovisual. Aceita-se assim que nenhuma linguagem é capaz de substituir a outra, apenas complementá-la. Suas funções mesmo quando cruzadas são distintas e, de acordo com o que foi discutido anteriormente neste capítulo, proliferam uma multiplicidade de interpretações distintas de acordo com cada contexto de hibridização. As interpenetrações das linguagens, juntamente da capacidade de recepção de mensagens dos indivíduos, dão vida à comunicação audiovisual. Em concordância com o que defende Covaleski (2010), o conjunto de linguagens dos distintos aparatos comunicativos e das variadas expressões artísticas é capaz de produzir um composto linguístico sincrético, constituído de manifestações culturais contemporâneas, que

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fomenta a geração de processos de hibridização.

3. A articulação do som nos meios audiovisuais A linguagem audiovisual passou por um processo evolutivo de cruzamentos e hibridizações. A adição de novos recursos aos meios conhecidos hoje desconhece uma finitude, e conforme novas tecnologias de entretenimento são aperfeiçoadas, relações inéditas entre a narratividade, os elementos visuais e a sonoridade se estabelecem. Além da linguagem audiovisual, os meios que a expressam também passaram por um processo de evolução e decorrência. Neste capítulo, serão estudados este processo e como se dá a articulação do som em cada um destes meios, observando como este vínculo interfere na comunicação com o público. A análise terá início no cinema, posteriormente na televisão, e em seguida na publicidade. Esta esquematização de estudo não utiliza uma escala qualitativamente hierárquica, mas simplesmente cronológica, pois o cinema em relação aos outros meios audiovisuais surgiu primeiro.

3.1 O papel do som no cinema O surgimento do som no cinema pode ser considerado como uma espécie de aprimoramento de técnicas que fazem o espectador compreender a trama. É possível identificar que a relação som-imagem demarcou início mesmo no cinema mudo, onde a sonoridade era retratada como uma sugestão, e evoluiu para o advento do cinema fisicamente sonoro. Nota-se que o cinema mudo caracterizava-se por um lado por não reproduzir sons, e por outro era sonoro por sugeri-los. Manzano explica que Pelo fato de, ao desenvolver uma gramática própria, o cinema mudo teria desenvolvido mecanismos para compensar a ausência do som, como o uso de intertítulos, de imagens altamente sugestivas do ponto de vista sonoro e a associação montagem/decupagem dando noção de ritmo e movimento. A composição imagética torna-se mais complexa, assim como a articulação de imagens justapostas pela montagem procura criar novos sentidos (2003, p.22).

Observa-se que a relevância do som no cinema é demonstrada pela necessidade de se transmitir uma impressão sonora através das composições imagéticas. Recorda-se hoje de vislumbres artistas que marcaram o cinema mudo pela apreciável atuação mímica, como Charlie Chaplin e a dupla de comediantes Stan Laurel e Oliver Hardy. O cinema pode ser considerado como audiovisual desde seus primórdios, segundo Martin (1990), por já promover sons mesmo que por meios externos, como através do frequente acompanhamento de instrumentos musicais (em sua maioria, o piano), por exemplo.

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Detecta-se que o som era capaz de ditar o ritmo do espetáculo fílmico, Proporcionando um caráter sensorial e lírico às imagens em movimento, além de um maior poder de persuasão, pois, auditivamente, conseguimos captar de forma totalitária o espaço ambiental a qual estamos imersos, o que visualmente não ocorre (MARTIN, 1990, p. 22).

Decorrente da notoriedade desta relevância, não tardou muito para os efeitos sonoros se implantarem fisicamente nos filmes, gerando condições mais agradáveis de exibição para o espectador e explorando a possibilidade de revelar valores que as imagens sozinhas nem sempre eram capazes. Percebe-se nesta condição, novamente, a importância da hibridização de linguagens para os meios audiovisuais, onde as características fundamentais de cada uma delas expõem-se claras e intactas, e a sua união traz vida à novas interpretações sobre as mensagens. Conforme argumenta Alves (2006) sobre a presença do som em todos os tipos de obras cinematográficas, a componente acústica nunca deixa de estar presente nas salas de projeção, exercendo uma função expressiva e variada, que transforma qualitativamente a experiência sensorial e cognitiva dos espectadores. Verifica-se que o papel do som no cinema conquistou cada vez mais espaço na competência das linguagens utilizadas no audiovisual. De início, seu papel marcava um auxílio na interpretação de cenas de terror, romance, suspense e serenidade, implantando uma estandardização de acompanhamentos acústicos específicos para a distinção de cenas e gêneros cinematográficos. Mais adiante, a música, além de amortecer o choque e a angústia que os espectadores sentiam ao deparar-se com sombras em movimento, “ela também proporcionava aos espectros a vida que lhes parecia faltar” (Rosenfeld e Manzano, 2003, p.27).

Percebe-se, portanto, que a articulação sonora no cinema passou de um elemento técnico que aperfeiçoava a obra, tornando-se parte fundamental do conteúdo, atribuindo mais dramaticidade às composições imagéticas. Uma concepção importante a ser explorada sobre o papel do som no cinema e nos meios audiovisuais é a proporção do alívio sobre a carga que as imagens detém com relação a função explicativa do contexto. Isto é, a articulação sonora no audiovisual liberta, em parte, a composição imagética de seu papel explicativo, permitindo a exteriorização de pensamentos por parte do espectador (Martin, 1990).

A partir da sincronização com elementos sonoros, as imagens estão sujeitas a um novo tipo de interpretação sobre as cenas, um recurso que posteriormente foi bastante explorado na publicidade audiovisual, e será analisado no estudo de caso desta monografia. Outra vicissitude provocada pela música no cinema foi a importância do silêncio para a dramatização. Ele passou a assumir um novo tipo de intervenção nas cenas, reforçando ainda mais a possibilidade de se conceber momentos de tensão no filme, através da sua alternância com a sonoridade e precedência de composições imagéticas. De acordo com Martin (1990), o silêncio era capaz de sublinhar com força a tensão dramática de um momento fílmico.

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A confecção de trilhas sonoras tornou-se uma necessidade para a indústria cinematográfica, e até hoje, requer um profundo estudo sobre a mensagem final a ser transmitida, assim como também uma elaboração bastante detalhada dos personagens que fazem parte da trama, visando dar vida à sincronização entre a obra visual e o acompanhamento acústico. Com o intuito de manter o equilíbrio sonoro entre as cenas, um novo especialista surgiu na indústria cinematográfica: o sound cutter, encarregado de observar esta sincronização entre som e imagem. Uma consequência desta revolução sonora no cinema foi a falta de mão de obra especializada nesta função, fato que implicou uma adaptação da indústria cinematográfica que, muitas vezes, vigora até hoje. Tornou-se necessária e inevitável a composição de músicas originais para cada sequência do filme, coincidindo rigorosamente com o tempo de projeção da cena, uma vez que a música passou a ser executada já na gravação do material (Moraes, 2011).

No contexto de interpretação das obras cinematográficas que utilizam das revolucionadas técnicas sonoras, é válido retomar para este estudo as concepções de audição focalizada e periférica, que foram discutidas no capítulo anterior. Considera-se que, para compreender a narratividade e o contexto histórico de um filme, é essencial que o espectador tenha sua atenção voltada para o que está sendo executado sonoramente. Conforme Sonnenschein (2001), todos os efeitos sonoros criados para uma determinada obra audiovisual, sincronizados às falas, às imagens e inclusive músicas, devem confluir para uma perfeita imersão no que está sendo transmitido, quando o espectador é levado para uma espécie de ilusão, a qual além de influenciar levemente sua percepção de mundo, pode induzir seu estado físico e psicológico. Contribuinte para efetivar esta espécie de imersão, a articulação sonora distribui a função entre as sonoridades que merecem uma audição periférica ou focalizada. Entram nesta repartição de papéis os diálogos, as trilhas sonoras musicais, os ruídos de objetos em cena e o silêncio. É possível notar, nas diferentes sequências de cena de um filme, a alternância de funções que cada um dos elementos sonoros assume. Esses cargos tendem a variar de filme para filme e de cena para cena. Existem momentos em que estes revezamentos de função são claramente perceptíveis. Na abertura de um filme, por exemplo, é estandardizada a utilização de uma trilha sonora que contextualiza a ocupação em que se passa a história, variando seu surgimento logo no início ou após um breve diálogo, introduzindo, na maioria das vezes, os créditos iniciais. Esta função da trilha sonora diferencia-se de sua utilização na ambientação de uma cena preenchida por diálogos no meio da narrativa, por exemplo. O mesmo elemento sonoro, em momentos diferentes, admite atenção focalizada e, noutrora, periférica. Da mesma maneira em que o silêncio que antecede as cenas de filmes de terror não assume esta função, ao preceder momentos em filmes de comédia, os diálogos entre os personagens podem disputar a atenção com ruídos e outros efeitos sonoros, de acordo com o objetivo da narração.

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O cruzamento entre som e imagem pode trazer vários tipos de combinações. As combinações complementares têm um caráter didático e de informação, como as usadas, geralmente, nos documentários. As combinações redundantes acontecem quando há sobreposição de som e imagem para reforçar o conteúdo, assim, a atenção do espectador é condicionada e o mesmo tende a permanecer passivo sendo, normalmente, observado nas transmissões esportivas pelos canais de TV. As combinações contrastantes, quando os conteúdos do som e da imagem são opostos em sentido, surgindo um segundo nível de leitura, fazendo com que o espectador seja estimulado (BETTON, 1987, p.39).

Desta forma, como afirma Cavalcante (2008), o som assume um papel facilitador para a compreensão da narrativa, multiplicando assim a capacidade de expressão cinematográfica. O papel da articulação sonora foi muito discutido por grandes cineastas no início desta revolucionária adaptação industrial. Eisenstein e Pudovkin (1934) defendiam que o que trouxe a maior força ao cinema foi o poder da montagem. Segundo eles, como meio de principal efeito, ela tornou-se um axioma incontestável sobre o qual a cultura mundial do cinema foi construída. Tendo este pensamento em vista, para possibilitar um maior desenvolvimento do cinema, estes mestres apostavam que os momentos importantes seriam somente aqueles que fortalecessem e ampliassem os métodos de montagem, os quais deveriam atingir efetivamente o espectador. De acordo com Manzano (2003), somente um uso contra pontual do som, em junção com o trecho de montagem visual, proporcionará uma nova potencialidade de aprimoramento para a perfeição da montagem. Seguindo a mesma linha de pensamento de Eisenstein e Pudovkin, Cunha (2006) alega que o som, quando utilizado na montagem cinematográfica, não deve reproduzir especificamente o que a imagem está mostrando, dispensando a característica redundante da sonoridade, e sim deve expandir os limites que ele possui, trazendo um novo sentido para o audiovisual. Estes argumentos revolucionaram o cinema sonoro, trazendo para a indústria um novo significado da articulação sonora para a confecção de um filme. Além de servir como uma solução para impasses anteriores, exercendo o revezamento com subtítulos e textos explicativos que acabavam por pesar a montagem e retardar o tempo da obra, o som passava a assumir um papel criativo e coerente. Segundo a afirmação de Manzano (2003), o som ajudaria a construir a emoção ao incorporar-se à montagem divorciando-se da imagem visual. Mais que um complemento para o material visual, o papel do som no cinema consiste em aprimorar o efeito transmitido por silêncios, ruídos e diálogos, trazendo um novo significado à composição fílmica. A articulação sonora vigora hoje como indispensável para a montagem cinematográfica, ao enfatizar que, da nova sincronia entre som e imagem, surgem também emoções distintas no espetáculo que o público presencia.

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3.2 O papel do som na televisão A televisão assumiu, ao longo do tempo, o papel de espetáculo audiovisual derivado do cinema, trazendo em suas características inúmeras semelhanças com esta arte, desde as técnicas às discursivas. Conforme afirma Metz (1980), o cinema e a televisão compartilham de codificações que apresentam um elevado grau de cinematograficidade, formando um grupo de linguagens que são, instantaneamente, mecânicas, móveis e múltiplas. Estes dois meios, enfatiza o autor, constituem uma única e mesma linguagem, pelo menos em seus traços físicos essenciais. Percebe-se que estes dois meios sofrem hibridizações dos mesmos elementos sonoros e visuais, e suas principais diferenças são perceptíveis, principalmente, nos diferentes formatos de exibição da programação e na acessibilidade e postura receptiva do público. A televisão pode ser vista como uma espécie de ponte entre o cinema e a publicidade televisual. Ela doa características suas para os comerciais e intercala uma atividade de exibições de formato próprias, e, ao mesmo tempo, dos outros dois meios audiovisuais. Após analisar a evolução do papel do som no cinema, convém estudar neste tópico de que maneira a sonoridade é articulada na televisão, levando em conta os seus principais objetivos de exibição. Conforme mencionado anteriormente, a televisão exibe, além das próprias programações, produtos da indústria cinematográfica e publicitária. Por tal fato, é válido constatar que nesta parte da observação, o enfoque de estudo será sobre o papel do som nas exibições propriamente televisivas. Neste contexto de estudo, é interessante analisar alguns pontos sobre o comportamento do público televisivo. Pode-se dizer que este tipo de espectador, diferentemente do cinéfilo, apresenta uma postura mais descontraída. Normalmente, ele está em seu território, dentro dos seus limites, e tem o poder de assistir o conteúdo como, quando e onde quiser. Ou seja, além do controle remoto, ele possui o controle da situação (Canteiro, 2005). Aliadas à esta questão, pode-se retomar os diferentes tipos de audição estudados anteriormente: focalizada e periférica. Ao ligar a televisão, antes do conteúdo visual, quem capta a atenção do espectador é o som. Este fato tende a interferir diretamente na decisão de mudar ou não de canal. Na maioria das vezes, em conjunto com a postura descontraída, o telespectador doméstico tem ativa a audição periférica, e no processo de escolha da programação que se deseja assistir a audição torna-se focalizada. Isto é, a pessoas tem ouvidos para todos os câmbios de canais, mas apenas um deles será capaz de captar o seu interesse, interferindo, junto das composições imagéticas, no seu critério de escolha sobre o que será assistido. Esta percepção pode ser considerada relativa, ao envolver situações de programas que já estão planejados para serem assistidos ou a disputa com a exibição escrita da programação nas mídias fechadas. Porém, ela é bastante válida para este estudo, uma 32

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vez em que ele está direcionado para a publicidade: uma mídia que capta atenções de surpresa. Segundo Salinas (1994), a televisão admite uma imensa pluralidade de canais, programas, gêneros e realizadores, assim como assume uma complexidade de fragmentação, velocidade de adequação às mudanças históricas e a virtude de transmitir um evento ao vivo, podendo aglomerar diante de si milhões de espectadores que, na individualidade de suas residências, têm consciência de estar participando de uma coletividade. Com este pensamento em vista, pode-se afirmar que o papel do som na televisão, além de contemplar as funções que também se exercem no cinema, abarca propósitos bastante específicos. Devido à pluralidade de programações televisivas, existe a necessidade de contar com técnicas sonoras para a identificação de situações distintas. Uma delas é a anunciação de que algum programa entrará no ar. Quando observadas, todas as categorias de programação da TV apresentam uma divulgação/anunciação sonora comum. Normalmente, elas se expõe através das permanentes vinhetas de novelas, noticiários, e locuções padrões que preveem exibições esportivas. Ou seja, apenas pelos elementos sonoros, se faz possível identificar que tipo de programa será exibido e se ele retornou de um intervalo comercial ou não. Outro tipo de situação, muito recorrente no formato das telenovelas e seriados, é a utilização do som para uma finalidade não tão técnica: a individualização e a identificação de personagens. Comumente e recorrente em obras audiovisuais destinadas ao público infantil, existe o atrelamento de músicas e efeitos sonoros à personagens específicos, preparando o terreno para suas atuações e facilitando a compreensão do enredo, dispondo a música como uma característica de personificação. O processo de pseudo-individuação preenche a fórmula com detalhes, com efeitos, que garantem às canções, uma aura de particularidade, de referências específicas aos indivíduos. (...) O reconhecimento perde sua posição de meio para o conhecimento, para tornar-se um fim. Todo o esforço empreendido pelo ouvinte é orientado para que ele identifique o que acaba de ouvir com o que já conhece e, a partir da identificação de tal processo como coletivo, também se reconheça nele (DIAS, 2000, p. 47).

Nota-se que, neste momento, a articulação sonora invade o caráter discursivo da linguagem audiovisual, disputando a formação de personalidade dos personagens com a narratividade. Não passa despercebido, porém, que significantemente mais que a música, os diálogos assumem um papel muito importante na televisão. De acordo com Salinas, exceto por alguns programas musicais, a fala coordena todo o áudio deste meio. Ainda hoje, a televisão é apontada como um “rádio com imagem”, para qual o receptor precisa dar umas “olhadinhas” de vez em quando, e o resto é só ouvir. Ou seja, o domínio da fala neste caso é evidente.

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O autor ainda argumenta que Realizar uma atividade qualquer e assistir simultaneamente televisão obrigam o receptor a participar de um jogo mediado pelo próprio aparelho, jogo no qual o receptor pode ouvir sem ver, mas deverá deter sua atividade quando for incitado a olhar a tela (SALINAS, 1994, p. 33).

Com isso, observa-se que a televisão, um meio que ao contrário do cinema já nasceu audiovisual, compartilha em alternância as responsabilidades entre as linguagens que a compõe, assumindo uma estética onde a articulação sonora contorna não apenas questões técnicas de formatos e divulgação de programações, mas também de enredo e contextualização, também exploradas no tópico anterior.

3.3 O papel do som na publicidade A publicidade audiovisual está presente tanto nos intervalos das programações televisivas como nas salas de cinema. Neste segundo caso, ela alterna suas exibições com os trailers de outros filmes e, na maioria das vezes, traz para a tela obras que exploram um ar mais artístico em comparação às exibidas na tevê, e não tão comerciais. De qualquer forma, o comportamento e funcionalidade da hibridização de linguagens nas publicidades audiovisuais comporta-se de forma bastante parecida, independente do meio em que elas são exibidas. Normalmente, as diferenças entre uma obra e outra no universo generalizado das peças audiovisuais estão mais acentuadas na produção e objetivos de cada uma. Na transmissão de comerciais publicitários, existe o almejo de um consenso interpretativo por parte do público-alvo que se é pretendido, uma vez que o anúncio é dirigido a milhões de pessoas e, ao mesmo tempo, necessita-se afunilar o foco. Esta focalização pode ser garantida ou realçada através de algumas estratégias. Dentre elas, a escolha da música apropriada para o comercial. Esta seleção pode fazer com que o espectador, mesmo consciente do grande público pelo qual a peça é dirigida, sinta que ela interpela a uma só (Myers, 1994). Tal como afirma Alpert (1989), uma das características mais perceptíveis das mensagens publicitárias é o esforço cooperativo para que a mensagem global seja obtida. Ou seja, a soma dos significados que provém de diferentes linguagens, como as visuais, textuais e sonoras, guia diretamente a interpretação do receptor final. O manuseio da articulação sonora na publicidade exige técnica e precisão, pois, muitas vezes, a escolha inadequada da música pode vir a desestabilizar ou contradizer as mensagens visual e verbalmente codificadas. Para adentrar nos critérios de escolha do acompanhamento sonoro das peças publicitárias, se faz necessário esclarecer os diferentes papéis da música como uma linguagem na publicidade. Giorgetti (1998) explora as distintas maneiras de se empregar a música no audiovisual. É válido ressaltar que esta relação a ser explorada encaixa-se em todos as linguagens audiovisuais estudadas nesta monografia, porém na publicidade, mais que papéis, estas diferentes funções musicais assumem também um posicionamento estratégico diante do produto ou serviço.

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A variação funcional da sonoridade varia de acordo com seu grau de visibilidade no audiovisual, diante das outras linguagens que são empregadas. Para Giorgetti (1998), a música de fundo ou de preenchimento, por exemplo, pode ser vista como uma maneira agradável de enfatizar uma narratividade, repetindo e confirmando a mensagem publicitária. Nesta aplicação, a forma de sonoridade, na maioria das vezes, é decidida posteriormente à estratégia da mensagem, pois explora os pontos que devem ser transmitidos ao espectador em uma única composição, a qual não interfere de forma significativa no contexto da narrativa. Em outros casos, segundo Cardoso, Gomes e Freitas (2010), a música pode assumir um papel de protagonista, responsabilizando-se por estabelecer o tom de voz do anúncio, além de demarcar o desenvolvimento do enredo, preparando o território para as cenas que estão por vir. Nesta situação, ao contrário da música de fundo, a articulação sonora é pensada em conjunto da estratégia que será utilizada na mensagem, pois compartilha a responsabilidade de estabelecimento do tom de voz da comunicação com a linguagem visual, de forma igual ou não. Neste estudo, é possível afirmar que a música, fora de outras classificações específicas de seu campo semântico, é capaz de assumir três diferentes posicionamentos em relação aos anúncios publicitários. Os dois primeiros constam acima, ao mencionar a música de fundo e a música protagonista, e expressam, respectivamente, as funções de acompanhante e ditadora da mensagem global. O terceiro posicionamento aborda uma complexidade um pouco maior, pois consiste na desarmonia musical em uma peça como um objetivo estratégico. Segundo Oakes (2007), na relação estabelecida entre a música e a mensagem, elas não devem competir entre si, e sim complementarem-se. A função da articulação sonora ganha sentido quando esta firma-se a outros elementos verbais e visuais. A única diferenciação está na relação que se estabelece entre si (Scott, 1990). Afinal, a música como uma linguagem isolada gera outros significados, os quais não convém a serem explorados aqui. Tal como afirma Childers (1992), a música pode assumir o papel de estímulo para a identificação de uma mensagem que está sendo transmitida, assim como resgatar conhecimentos anteriores sobre determinado tema. Nesta leva de relações, é possível detectar uma dicotomia sobre o modo musical: a congruência e a incongruência. Para Oakes (2007), ao identificá-la, deve-se prever e medir os benefícios atrelados a diferentes articulações musicais, aprimorando a escolha que será utilizada no caso de cada marca ou produto. Antes de levar o estudo à questão da desarmonia musical (incongruência) levantada anteriormente, é válido analisar a situação de seu oposto: a congruência. Nestes casos, nota-se que o estado de ânimo que a música transmite parece estar em sintonia com o produto publicitado. Em uma mesma categoria de produto ou serviço, diferentes estilos musicais podem comunicar de formas distintas, ressaltando na mensagem características específicas sobre ele de acordo com cada tipo de articulação sonora. Zander (2006) traz como exemplo para explicar esta relação o caso inespecífico de um anúncio automobilístico audiovisual. Nesta categoria de produto, tanto a música clássica como a música de rock podem tornar-se congruentes com o produto. No primeiro estilo, é possível afirmar que se construiria uma harmonia entre a sonoridade REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 008-074| 2015 |

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da composição clássica com os aspectos de design, segurança e luxo do carro. Já na utilização do ritmo mais forte e pesado do rock, seriam reforçados os atributos de velocidade e poder do automóvel. Uma alternativa estratégica bastante utilizada na produção de audiovisuais publicitários é a confecção própria da música que será aplicada no comercial. Nesta questão, a harmonia entre a mensagem e a música é conquistada com êxito, uma vez que o controle das emoções desejadas e a combinação estudada com as imagens já é criada de raiz. De acordo com Oakes (2007), a congruência não é variável nestes casos, e sim controlável, pois ficam definidos a duração exata da composição sonora, os instrumentos que fazem parte dela e a entonação musical necessária para levar ao espectador as sensações e estados de espírito pretendidas. Direcionando o estudo para as consequências da incongruência musical aplicada nos comerciais publicitários, percebe-se a presença do efeito surpresa que é causado no espectador. Conforme Hecker (1984), se de repente for tocada uma nota completamente dissonante da norma musical, o consumidor ficará alerta e imediatamente direcionará sua atenção à mensagem. Esta técnica de incongruência pode ser utilizada para distintos fins comunicativos. Dentre eles, os mais comuns e recorrentes são o acolhimento da criatividade e de tendências de um estilo mais moderno e revolucionário do papel da música no audiovisual. Com o passar dos anos, da mesma forma que no cinema, foi-se abandonando o paradigma de que o som deve ser aplicado na publicidade apenas como um complemento à imagem, trazendo simultaneidade ao que está sendo transmitido. No quadro da incongruência aplicada com o intuito de trazer um efeito criativo à peça, é comum estar presente a finalidade humorística, cenário que desperta ao espectador a decodificação desta desarmonia musical, buscando a atenção dele à mensagem. Neste processo, o público nota em primeira mão a dissonância da linguagem sonora com a visual, e procura decifrar o objetivo deste efeito. Parte-se da ideia de que o alvo compreende que a publicidade é pensada com estratégias, e que busca decifrá-las. Por tal motivo a incongruência musical humorística funciona. No estudo de caso desta monografia, um dos objetos traz em sua composição este fator, o qual será melhor aprofundado posteriormente. É válido constatar que, independentemente se a música é congruente ou não com a mensagem transmitida na publicidade, ela é capaz de enfatizar as palavras e imagens de um anúncio e assume um papel importante na assimilação da estratégia com o produto ou serviço em questão. A seleção da música que será utilizada em um anúncio audiovisual exige técnica e precisão, principalmente, devido ao fato de englobar para a atmosfera publicitária questões de outro campo, seja de repertório dos consumidores, de histórico da marca, de tendências sociais ou cenário mercadológico. Conforme afirmam Cardoso, Gomes e Freitas (2010), a publicidade funciona segundo uma lógica de empréstimos e aproveitamentos. Isto é, ela transfere valores que a música já conquistou através de sua natureza própria e exposição solitária para o produto e a marca. Esta consideração é bastante importante quando a escolha da sonoridade que acompanhará a peça é de uma música significantemente popular no repertório do público, pois neste processo, a marca acaba por absorver a imagem do artista em questão e as memórias que os espectadores têm sobre ele (McClaren, 1998). 36

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Deve-se ter a consciência de que uma música popular é uma comunicação de massas, e representa um gosto generalizado do público-alvo. Nesta associação, quanto maior a extensão deste público, maior a probabilidade de proliferação da mensagem. Recentemente, tem sido utilizado na indústria publicitária o formato de adaptação de músicas populares para a própria campanha, em que após a compra de direitos autorais e autorização de mudanças, são feitas manutenções na letra delas com a finalidade de associação mais direta da composição sonora com o produto, aproveitando a situação para expor, de maneira inédita, a mensagem estratégica final. Um dos papéis de um publicitário consiste em absorver, constantemente, as adaptações pelas quais a comunicação persuasiva passa, sejam elas alterações de linguagens, revisões conceituais e adoção de novas estratégias para construir a interatividade entre uma determinada marca e seu público consumidor. Por trabalhar com assimilações que unem campos da comunicação, da psicologia, do marketing, da arte, da música e do entretenimento, a publicidade ganha um aspecto unicamente intelectual e emocional. Assim como para os compositores musicais, a postura crítica de um publicitário deve estar em constante equilíbrio com seus ápices emotivos, em função da composição harmônica da peça final. Oliver Sacks (2007) enuncia que os músicos às vezes podem ter de seguir uma postura crítica e desapaixonada diante de sua composição, a fim de assegurar que todas as minúcias da execução sigam uma técnica correta. Porém, a correção técnica isoladamente não é prestativa. A emoção manifestada no início, diante da criação, deve ser retomada ao processo, para evitar o risco de transformar a composição em um “árido virtuosismo” (p.201). Segundo o autor, o que é imprescindível, em todos os momentos da criação, é o equilíbrio. A transmissão dos valores e emoções em uma peça publicitária audiovisual é tão importante quanto sua elaboração criativa. Pode-se dizer que, como um teste de execução, o ato de descer do palco para presenciar o próprio espetáculo é uma maneira de avivar e reforçar as próprias emoções com uma criação de autoria própria. Para que os objetivos finais de um comercial sejam atingidos, nos quesitos de interpretação da narrativa, o próprio criativo deve ser impactado e persuadido pela mensagem que deseja transmitir. Percebe-se que na publicidade o papel do som assume uma pluralidade de funções, sejam elas de despertar emoções e estados de espírito no público, como de catalisar as ações pretendidas na campanha. Esta distribuição de papéis das linguagens na peça deriva de um processo criativo, o qual estuda as melhores estratégias a serem aplicadas para a marca ou produto em questão. No capítulo seguinte, será estudada esta concepção artística, trazendo para a análise as relações interfaciais entre a publicidade e o cinema, assim como o contexto do audiovisual no Brasil.

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4. O processo criativo da publicidade audiovisual Na publicidade, a concepção artística de um audiovisual pode ser interpretada como uma ponte sobre as estratégias de marketing. Em cada lado desta ponte estão a marca e o consumidor, unidos por táticas que derivam da utilização de técnicas de aproximação entre estes dois polos. O rio abaixo é o objetivo de venda, de crescimento e ascensão comercial da empresa, que incentivam a existência da ponte e promovem a necessidade de se fazer publicidade e unir da melhor maneira possível a marca e seu público consumidor. Esta ponte de concepção artística é sustentada por um histórico de adaptações e influências à publicidade que provém de outros meios nascidos antes, conforme analisados no capítulo anterior. A publicidade audiovisual sofre influência direta do cinema, originando um novo cenário merecedor de análises. Neste capítulo, será percorrido um caminho de estudo sobre a criação publicitária audiovisual, a influência e as relações interfaciais da publicidade com o cinema, assim como a contextualização do audiovisual no Brasil.

4.1 A concepção artística Diante do cenário que se observa atualmente com relação à proliferação disparada de novos meios midiáticos, a publicidade necessitou assumir um papel que fosse muito além do discurso de venda. Ela precisou tornar-se, de fato, muito mais interessante aos olhos do público para captar sua atenção. O tempo é curto e a possibilidade de escolha sobre o que se quer ver acabou por tonalizar o problema e a carga que a publicidade veio acumulando ao longo das revoluções digitais. Apesar deste empecilho, a oportunidade de se fazer coisas criativas hoje é muito maior do que no início do século XXI. Com as redes sociais e as novas plataformas digitais, é possível compreender de forma muito mais clara as reais necessidades do consumidor. Pode-se averiguar em tempo real as prioridades de escolha de um determinado público, assim como os assuntos que ele rejeita. A competição é maior e mais complicada, porém o cenário permite fazer com que as marcas adotem um posicionamento não somente de venda, mas também de estar ao lado do consumidor e fazer parte da sua vida. Devido a tais fatos, é possível perceber que para fazer com que uma marca esteja presente no cotidiano de um público é necessário buscar cada vez mais maneiras alternativas, artísticas e criativas para construir a ponte de comunicação mencionada na abertura deste capítulo. Uma peça publicitária apresenta, em muitos exemplos, além da função comercial, uma atmosfera artística, a qual possibilita uma valorização maior por parte do público. Conforme teoriza Jakobson (2008) sobre estes casos, a função poética da linguagem se sobrepõe à função referencial ou conativa.

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De acordo com Covaleski, No processo de criação publicitária, as múltiplas referências do profissional de criação – redator ou diretor de arte – vêm a tona, sejam elas cinematográficas, literárias, musicais ou de outras formas de expressão artística (2009, p.59).

Desta maneira, a peça publicitária passa por um processo criativo que pode ser considerado uma hibridização de referências de arte. Tal como complementa Covaleski (2009), os valores estéticos, as referências artísticas e os diversos tipos de informação precisa, sejam elas sobre o produto anunciado ou sobre o mercado, são elementos que têm a capacidade de contribuir diretamente para que a campanha publicitária seja eficaz. A publicidade, que elabora ou apropria das técnicas que mais lhe convêm, entrelaça formas tradicionais de arte com as que lhe são características (em função dos seus próprios media) e prepara novas condições de existência dos consumidores que a recebem e que, por ela, têm alteradas sua visão de mundo, suas expectativas e seu comportamento pessoal, interpessoal ou grupal (PIRATININGA, 1994, P. 73).

Não existe uma fórmula exata para fazer com que uma marca alcance seus objetivos de venda através de estratégias comunicacionais, uma vez que neste processo entram um público final sempre heterogêneo, com características em comum e uma pluralidade de vivências diferentes que acabam por influenciar em suas decisões de compra. Não se pode prever com máxima certeza o resultado de uma campanha publicitária, porém, pode-se estipular prazos para colocá-la em ação, traçar linhas objetivas de comparações de resultado e planejar estratégias e táticas para comunicar-se com o público-alvo da maneira mais eficaz possível. Joannis (1998) descreve diferentes e clássicos processos criativos que mostram-se bastante satisfatórios na elaboração de um material publicitário. Segundo o autor, eles auxiliam a conciliar a força e pertinência entre a estratégia e a mensagem comunicada. O primeiro destes métodos, é a bi-secção simbolizante: uma aproximação de elementos de universos diferentes nos quais o criativo descobre uma zona comum, onde se estabelece a comunicação. Outro processo é a hiperbolização simpática, onde se diferencia um produto de sua concorrência através de uma comunicação exagerada, intencionalmente perceptível, sobre alguma característica do que é publicitado. Já o método de referência inesperada age causando uma espécie de estranhamento e impacto no espectador, quando este espera que a mensagem do anúncio seja uma solução em sua mente, que nasce de sua percepção natural, e o comercial apresenta uma inédita. Outro método que auxilia no destaque de uma marca diante de outras é a expressão contra a corrente, quando a comunicação utiliza de meios incomuns para se comunicar com o público, ou até mesmo de tons de voz e atribuições estéticas incomuns. Este processo hoje pode ser considerado essencial para a construção de nome de uma marca no cotidiano de seu público, pois, conforme analisado anteriormente, a competição de presença das marcas na vida dos consumidores está cada vez mais acirrada, e as revoluções digitais estão ao alcance para auxiliar a trazer inovações para a comunicação.

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O suspense também entra na lista dos processos criativos de Joannis (1998), fazendo com que o espectador entre no jogo do comercial, despertando sua atenção para a mensagem final. Percebe-se diante destas técnicas estratégias que a publicidade precisa captar a atenção do público em meio a uma ciclo de informações infinito, e por isso todos estes métodos discutidos trazem alguma forma de impacto no consumidor para preparar o terreno para a mensagem. Neste contexto, os métodos criativos podem ser considerados estratégias, e as linguagens e meios midiáticos de comunicação dão vida às táticas. Ou seja, em um processo criativo, uma vez que foi decidido qual o melhor método estratégico a ser utilizado, é discutido sobre qual a melhor maneira de explorar o que foi planejado no audiovisual. A criação publicitária não pode ser considerada um exercício de total liberdade criativa, pois o que dizer, para quem dizer e onde dizer já estão previamente definidos nos objetivos de comunicação. O redator e o diretor de arte atuam no como dizer e vivenciam todas as etapas do processo criativo, que é repleto de idas e vindas: começamos, erramos, refazemos, mudamos, recomeçamos (HOFF e GABRIELLI, 2004, p.59).

De acordo com Bertomeu (2008), percebe-se que a comunicação publicitária deve ser um instrumento de interpretação das necessidades do cliente, para auxiliá-lo de forma assertiva a alcançar seus objetivos mercadológicos. Em função disso, sobressaem duas forças no cenário da publicidade: a eficiência e a criatividade. Para Serpa (1999), é possível conciliar perfeitamente a criação e a eficiência, pois, segundo ele, elas não são antagônicas. Tal como afirma Bertomeu (2008), em razão do subjetivismo e particularismo característicos da propaganda, um ambiente em que cada situação se difere da outra, a previsão sobre a eficácia da sua criação apenas torna-se possível quando a publicidade é veiculada, recebida pelo público, e os resultados no mercado são finalmente avaliados. Sampaio (1996) propõe que é necessário avaliar em cada caso se a ideia é consistente e pertinente ao objeto definido e público visado. Conforme afirma Olivetto (1991), para um produto, uma solução emocional pode ser brilhante, e para outro, uma solução purística pode ser mais adequada. Segundo o publicitário, o grande criativo é quem consegue detectar o que cada produto precisa e o que cada consumidor da marca em questão deseja ouvir. Porém, ao mesmo tempo, de acordo com Sampaio (1996), é necessário avaliar se a comunicação proposta coerente e objetiva é suficientemente destacável e emocionante, a fim de ser percebida e apreendida pelo consumidor. Neste sentido, Lipovetsky (1987, p.186) sustenta que a publicidade é uma “corrida interminável para o inédito”, uma busca por efeitos diferentes o suficiente para captar a atenção e a memória dos consumidores. Na busca pela comunicação eficaz, a pesquisa assume um papel essencial para antecipar a elaboração das estratégias apropriadas ao caso. É fundamental interar-se sobre o que se passa na realidade tanto do produto como do consumidor, para adequar as necessidades da marca com as de seu público. Covaleski (2009) defende que, no processo de elaboração de comerciais audiovisuais, boa parte dos elementos visuais e sonoros estabelecem uma rota de acesso ao subconsciente do destinatário. Devido a este fato, é bastante comum na peça publicitária a busca pelo lúdico e pelo poético. Conforme afirma Lipovetsky (1987, 40

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p.187), a publicidade situa-se “para além do verdadeiro e do falso”, sendo seu registro a “verossimilhança”, e não a verdade. Desta forma, há uma natural interface entre o discurso publicitário e a obra artística. Conforme afirma Bertomeu (2008, p. 41), “quanto mais criativa é a peça publicitária, maior será o nível de persuasão alcançado por ela”. Derivado disto, todo o aspecto associado às questões da criação da linguagem ousada, inusitada, emocionante e inesperada diz respeito aos diferentes níveis de persuasão com o consumidor. No processo criativo de uma campanha publicitária, as bases fundamentais dividem suas forças entre as informações contidas no briefing, as informações repassadas pelo próprio cliente, e o perfil e hábitos de consumo do público-alvo. Em paralelo a estes pilares, encontra-se o repertório de conhecimento do profissional criativo, origem da essência publicitária. Para Covaleski (2009, p.63), “o repertório cultural do criador publicitário é a diferenciação da capacidade criativa destes profissionais.” Este aspecto é alimentado por diversas fontes ao longo da vida de cada um, sejam elas provenientes do ambiente acadêmico, familiar ou social.

4.2 A interface entre o cinema e a publicidade audiovisual As artes em geral, como o cinema e a televisão, são algumas das fontes que mais influenciam os criativos publicitários no momento de elaboração de uma ideia ou estratégia de comunicação para uma determinada marca. Em conformidade com o que foi analisado anteriormente, Vanin (2007) defende que os anúncios devem ser criativos para serem notados, assim como manterem a atenção do espectador por tempo suficiente para que a mensagem seja transmitida. Levar em conta a busca pela relevância do que se é comunicado é fundamental para a criação de qualquer estratégia publicitária, pois, se o comercial não apresentar razões pertinentes, o espectador desviará sua atenção para outros interesses. Desta forma, a publicidade naturalmente busca por soluções criativas influenciadas por outras esferas audiovisuais que alcançam o sucesso, como é o caso do cinema. Para Covaleski (2009), além da forma estética, do apelo emocional e do fascínio exercido sobre a maioria das pessoas, a obra cinematográfica caracteriza-se como uma nascente infinita de ideias, linguagens e formatos, que servem como inspiração para diretores de arte, roteiristas e redatores publicitários. Durante o tempo de exibição de um filme, o espectador vive uma situação semelhante à hipnose, sem que ocorra a alteração da consciência: questões escondidas na psique afloram, são elaboradas e as respostas aparecem, auxiliando na reestruturação da personalidade (MASTRONARDI apud COVALESKI, 2009, p. 65).

De acordo com o autor citado acima, o cinema tem uma importância fundamental na estruturação da psique de todas as pessoas – o inconsciente coletivo. Segundo Martins (2003), a obra cinematográfica proporciona ao espectador experiências muitas vezes inatingíveis à vida das pessoas. Com este pensamento em vista, percebe-se que esta arte aviva de forma atraente a atenção de um espectador, levando até ele, com a utilização de uma linguagem própria, a vivência de uma realidade distante.

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Por este fato, é imprescindível que, tanto o cinema como a publicidade, possuam uma carga argumentativa suficientemente convincente, a ponto de levar o espectador ao universo e ao contexto da história e mensagem que estão sendo transmitidas. Byrne (1992) evidencia que uma peça publicitária pode ser pertinente para o telespectador somente quando ele interage com a informação existente em seu ambiente cognitivo, para então produzir efeitos cognitivos suficientes. No contexto de evolução da publicidade, desenvolveu-se a necessidade das marcas comunicarem-se no mercado de maneira mais expressiva e cativante com seu público. Operar a dimensão persuasiva para o espectador hoje é essencial e idealizador. Percebese aqui que a busca para fazer com que isto se efetive tem inspiração no cinema, um processo que leva para as campanhas uma atmosfera de contextualização. Tal como afirma Martins (2001), o cinema como fonte instigante de satisfação de desejos poderia se tornar um exemplo de venda visual antes mesmo do consumo final do produto ou serviço em questão. Nota-se que o público se identifica muito mais facilmente com a publicidade abordada de uma forma criativa, a qual traz um ar artístico e fílmico, em comparação à publicidade que divulga apenas um produto ou serviço, carecendo de referências que possam divertir o espectador e captar sua atenção de forma mais eficiente. Levinson (2000) sustenta que, quando uma propaganda é transmitida, o possível significado a respeito das evidências lançadas pelo anunciante parte do espectador. Em complemento a isto, Leech (1966) defende que a maior parte das propagandas possui uma linguagem bastante rica, que objetiva a mudança da opinião de sua audiência. Esta linguagem, conforme estudada no início desta monografia, auxilia na recuperação de suposições comunicadas implicitamente por estímulos adicionais diversos, como uma maneira de preencher a intenção informativa do comunicador (Martins, 2003). Trata-se nesta questão da hibridização de elementos, sejam eles verbais, sonoros ou visuais. Eles comportam-se como estímulos, os quais, quando lançados juntos, formam um conjunto de representações complementares que servem para a interpretação final do comercial audiovisual. Vanoye (1994) afirma que as peças publicitárias audiovisuais, por serem de curta duração, levam à exploração conjunta de cinco matérias de expressão do cinema. São elas as imagens, os sons, as impressões, as sensações e as significações. Pelo fato destes elementos atuarem concomitantemente no cinema e na televisão, existe uma aproximação entre os meios e uma possibilidade de relação e interface entre eles. Covaleski (2009) reconhece que, com a chegada da arte cinematográfica na televisão, alguns padrões estéticos foram incorporados gradativamente ao meio televisual e publicitário. Segundo o autor, boa parte dos comerciais audiovisuais tornaram-se, em muitos casos, mais atraentes que a própria programação. Deste fato percebese a importância da concepção artística por traz de uma divulgação. Uma vez que a publicidade desenvolveu cada vez mais a preocupação com a estética, as peças audiovisuais fizeram gerar um “receptáculo próprio, a estética publicitária” (Covaleski, 2009, p. 79).

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Tendo em vista a estética como uma estratégia de conquistar a atenção do consumidor, é válido introduzir um pensamento de Lipovetsky: Nenhum anúncio publicitário, por mais sedutor que seja, convencerá os consumidores pós-modernos a abdicarem da liberdade de escolha que arduamente conquistaram. Aos demais, resta encontrar criatividade para fazer valer seus argumentos no concorrido mercado de ideias (LIPOVETSKY, 2007, p.13).

Por mais atraente que seja uma peça publicitária, a ideia de que a publicidade garante uma decisão de compra de compra pode ser descartada, uma vez que, na transmissão de uma mensagem, o que é comunicado entra em confluência com o repertório de conhecimentos do espectador. Neste momento, é destinada à ele a liberdade de decisão final sobre a compra do produto em questão. Ou seja, a publicidade estabelece uma ponte entre o consumidor e o produto, facilitando o acesso do espectador à marca. Em proveito disto, a publicidade pode utilizar da interdiscursividade. Ou seja, o ato de agregar temas, figurações discursivas e repertório à mensagem publicitária. Para Covaleski (2009), a utilização dos elementos incorporados dentro de um discurso novo pode acontecer de diferentes maneiras. A primeira delas, conforme sustenta Carrascoza (2008), é sob a forma de citação, seja ela direta ou indireta, ao repetir literalmente alguma ideia já propagada. Bakhtin (1997) explica este tipo de dialogismo com o fato de que um texto sempre está relacionado com um outro anterior, tornando a intertextualidade o princípio constitutivo da linguagem. Outras formas de dialogismo textual são a alusão – referência a temas ou figurações, para contextualizar a mensagem, e a estilização – reprodução do estilo da obra, planos de expressão e de filmagem ou até mesmo de elementos do conteúdo (Covaleski, 2009). O processo criativo da publicidade dialoga com o do cinema. Por mais que existam formas de intertextualidades oportunas para a concepção de uma peça, cada caso busca uma identidade própria na transmissão da mensagem. Não existe fotografia de comerciais. A publicidade aceita e incorpora tudo com grande velocidade. A ideia de comerciais limpinhos acabou faz tempo. Como no cinema, para cada projeto há uma imagem adequada (MEIRELLES apud COVALESKI, 2009, p.81).

Percebe-se que hoje se mostra muito mais a realidade de cada contexto, e a corrida pela sedução com o espectador é mais buscada através da verossimilhança, principalmente nas peças audiovisuais brasileiras.

4.3 O contexto do audiovisual no Brasil Nos últimos dois anos, o cenário brasileiro das produções audiovisuais vem encontrando ramificações em distintos formatos de exibição. É possível flagrar uma certa tendência tecnológica que se baseia no imediatismo da transmissão de mensagens, repercutindo em uma extensão da pluralidade de novos formatos e hibridizações entre eles. Lopes (2015) identifica este imediatismo através do forte aumento de séries e minisséries, assim como no encurtamento das telenovelas e grande repercussão das programações nas redes sociais.

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Por mais que tenha ocorrido uma queda no número de horas e exibições de conteúdo, o número de títulos estreantes e em exibições, além de não decair, alcançou uma boa audiência. Estes fatos mostram uma adaptação da sociedade brasileira diante de novos formatos de programações audiovisuais, e com a compreensão e estudo destas tendências em ascensão, o ambiente pode ser favorável para o campo publicitário. O imediatismo na transmissão de mensagens hoje é muito mais valorizado, e conforme visto anteriormente, são necessárias múltiplas forças para atrair um espectador imerso em uma situação corriqueira. Neste cenário, encontra-se a conveniência na elaboração de estratégias inteligentes, as quais consigam despertar a atenção do receptor de maneira rápida e eficiente. Conforme estudado anteriormente, o som de uma peça audiovisual é um dos estímulos que provocam uma interpretação mais agilizada por parte do espectador, devido à capacidade de memória auditiva do ser humano. Podese relacionar este pensamento com o exercimento da interatividade e entretenimento na publicidade, assuntos que serão mais aprofundados no capítulo seguinte, e que encontram raízes no cinema. No Brasil, inúmeros diretores de comerciais audiovisuais migraram diretamente do ambiente cinematográfico e vice-versa, fator que contribuiu para que muitas peças publicitárias sofram influência de uma estética mais artística, e muitos filmes tragam contextos com uma carga maior de persuasão e técnica. A contribuição do mercado da publicidade foi com técnicos, como diretores de fotografia, que adquiriram prática na produção publicitária. No caso dos diretores, eles formam um conjunto com uma estética originada na publicidade (ALVETTI apud COVALESKI, 2009, p.102).

A relação interfacial entre o cinema e a publicidade ressalva nas programações audiovisuais uma estética típica brasileira, composta pela alta exploração de componentes da cultura e da criatividade em estratégias de transmissão de mensagens. Tais estratégias pesam seus fundamentos na hibridização de linguagens, dividindo suas forças entre os elementos visuais e sonoros. Tal como foi discutido anteriormente, a interpretação de um comercial audiovisual depende da interação dos estímulos causados no espectador, sejam eles através de uma imagem ou um discurso, os quais provém de uma concepção estética propícia para cada caso. Segundo Covaleski (2009), existe a necessidade de se adequar a mensagem ao meio, afim de se traçar os objetivos da comunicação. Por mais que grande parte da população esteja estagnada em uma marcha mais lenta de evolução repertorial, as corridas tecnológicas e digitais trouxeram ao país uma fase de adaptação e câmbio de culturas que ocorre de maneira muito mais facilitada e corriqueira. Conteúdos de entretenimento e interação de todo o globo batem à porta dos atuais espectadores, e com apenas um clique é possível absorver um leque de estéticas e estratégias de comunicação completamente diferentes do que o campo nacional oferece. Decorrente deste fato, percebe-se a possibilidade de adaptação à novos formatos audiovisuais, sejam eles narrativos ou de exibição. Já não é mais inviável a exploração de táticas mais densas de comunicação em um conteúdo publicitário, pois ao mesmo tempo que o público brasileiro absorve de culturas diferentes, ele treina seu repertório para decifrar e abarcar intertextos mais elaborados. Exemplos de comerciais que oferecem uma carga maior de informação e história serão analisados no estudo de caso desta monografia.

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Segundo Araujo e Gracioso (2014), a publicidade brasileira, nos últimos 20 anos, assistiu ao aumento da concorrência em praticamente todos os segmentos da economia, fato que contribuiu para o protagonismo assumido do consumidor no relacionamento com as marcas. Diante disso, a propaganda adaptou o foco de seus esforços em três pilares: consolidação da imagem das marcas, fatores subjetivos que traduzem esta imagem e geração de confiança que as marcas inspiram. Isto é, a propaganda hoje procura estabelecer uma relação mais íntima entre os consumidores e as marcas. Contribuintes para este estágio de desenvolvimento, é possível flagrar a recepção da transmídia nos espectadores brasileiros. Segundo Livingstone (2011), as interações por meio das redes sociais, nas quais os fãs comentam e compartilham conteúdos de televisão, ganham corpo nesse contexto. Além deste repertório inovado, o público desenvolve cada vez mais a capacitação de realizações multitarefas, cenário em que os smartphones tomam posição como uma segunda tela (Deller, 2011). Neste processo, nota-se que as mídias influenciam diretamente na produção de conteúdo, o qual se torna cada vez mais interativo. Uma vez que os novos modelos de formatação, assim como os próprios espectadores, instigam a necessidade de se colocar no ar peças chamativas, se faz essencial o estudo e compreensão de estratégias de comunicação, formuladas a partir das linguagens que estão ao alcance para a composição de uma peça. No momento em que as mídias de exibição de uma campanha são prospectadas, as telas encontram-se imprescindivelmente unidas. Isto é, a televisão e o digital caminham juntos para que o objetivo de comunicação se estabeleça, ocorra isto através da interatividade entre os meios ou da acoplagem. Um exemplo disso, é a transmissão de comerciais audiovisuais em sites como o Youtube e o Vimeo. Muitas vezes, o conteúdo exposto na rede não é transmitido na televisão, e este fato acontece por razões variadas, que podem incorporar desde o tipo de público até o tempo de exibição das peças. Diante deste contexto, é válido ressaltar a importância da hibridização estratégica de linguagens, as quais devem adaptar-se sempre ao meio de exibição da mensagem. Em algumas circunstâncias, as imagens podem adquirir mais força na transmissão de posicionamento de uma marca, assim como também pode ocorrer de uma peça exigir maior atenção emocional por parte do receptor, apelando então pelo maior foco na articulação sonora. Verifica-se, diante desta questão, que o caminho de exibição de uma peça publicitária audiovisual encontra, com crescente frequência, novas ramificações e oportunidades, e para fazer com que a mídia escolhida para cada caso atribua vantagens à marca, é necessário ter em mente como se dá o comportamento do espectador diante de cada meio. A divulgação de uma peça audiovisual em televisão aberta difere de sua exibição em canais fechados, assim como traz resultados diferentes ao ser transmitida na internet. Por isto, neste quesito, é válido colocar na fórmula de exibição envasamentos de repertório do público e objetivos de campanha. Conforme cita Lopes (2015), o setor publicitário no Brasil aumentou seu investimento desde 2013, participando deste cenário a televisão aberta, o jornal, a televisão paga, o merchandising, a revista e a internet. Diante disso, percebe-se que o contexto do audiovisual brasileiro encontra-se em um processo de mudanças e adaptações. Por mais que novas mídias tornam-se crescentemente mais onipresentes, os meios de exibição como a televisão e cinema não deixam de fazer parte da rotina do público. Para se adequar os objetivos de comunicação de um comercial publicitário, é primordial REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 008-074| 2015 |

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a compreensão sobre o atual cenário de transmídia. Isto é, no processo criativo de uma publicidade, se faz necessário que a ideia seja acomodável a distintas mídias de exibição. Para estabelecer tal facilidade de adaptação, a função que cada linguagem exerce em uma peça audiovisual deve ser compreendida, afim de que seja realizada uma transposição de responsabilidades persuasivas, sejam elas visuais, sonoras e verbais. Pode-se dizer que o entretenimento, a interatividade e a persuasão são os pilares que sustentam uma peça publicitária audiovisual, e para que a construção destes efeitos seja bem-sucedida, é necessário que a hibridização de linguagens decorra de um processo estratégico bem elaborado.

5. Publicidade audiovisual e hibridização O termo hibridização foi bastante explorado no começo desta monografia para nomear os cruzamentos de um ou mais elementos que formam um inédito. Assim como as linguagens estudadas, a publicidade também é híbrida, e se dá pelo cruzamento de técnicas e estratégias que a diferenciam de outros meios audiovisuais. Conforme discutido no capítulo inicial, uma peça audiovisual - com fins publicitários ou não - é composta através de uma hibridização de diferentes linguagens. Diante das teorias deste cruzamento, percebe-se que a publicidade encontra em sua essência um outro nível de hibridização, composto por métodos e qualidades que a tornam autêntica e criativa. Entretenimento, interatividade e persuasão são os elos entre uma marca e seu público alvo. Unidos, eles dão vida ao discurso publicitário, cada vez mais inovador em formatos e linguagens, mas ainda firmam o mesmo objetivo: atrair a atenção do consumidor. Hoje, a publicidade criativa solta-se, dá prioridade a um imaginário quase puro, a sedução está livre para expandir-se por si mesma, exibe-se em hiperespetáculo, magia dos artifícios, palco indiferente ao princípio da realidade e à lógica da verossimilhança. A sedução funciona cada vez menos pela solicitude, pela atenção calorosa, pela gratificação, e cada vez mais pelo lúdico, pela teatralidade hollywoodiana, pela gratuidade superlativa (LIPOVETSKY, 2007, p. 217).

Os comerciais audiovisuais apresentam uma discursividade estritamente elaborada, por intermédio de objetivos de venda e sedução do consumidor. O objetivo aqui é atrair o público para um prazer que se transforma em necessidade, através da utilização de técnicas que reforçam a construção deste caminho. Neste capítulo, será estudado como se dá a hibridização da publicidade através do entretenimento, persuasão e interatividade, a fim de levar ao estudo de caso.

5.1 O entretenimento na publicidade O ato de entreter demanda o exercimento de atividades que sobressaem-se em meio a uma rotina. Pode-se afirmar que consiste em uma atividade básica que gira em torno da comunicação, e que tem por finalidade o divertimento e a recreação do receptor. Existem duas relações distintas entre a publicidade e o entretenimento. Em um primeiro momento, a publicidade pode estar inserida no meio do entretenimento, ao tomar corpo em forma de merchandising – aparição de uma determinada marca sem 46

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as características explícitas publicitárias – por exemplo, nos conteúdos de televisão, cinema e videogames. Nesta relação, ela também pode aproveitar a atenção do público sem estar inserida na essência da programação, como é o caso dos intervalos comerciais na televisão, dos trailers no cinema, e dos anúncios em canais de vídeo na internet, que antecedem os conteúdos. A segunda relação possível, e ainda mais pertinente para este estudo de caso, é a inserção do entretenimento na publicidade. Isto ocorre quando a própria publicidade assume a função de entreter o espectador para potencializar seus objetivos. Ou seja, uma hibridização de valores de origens diferenciadas. Para Gomes (2008), o entretenimento é um valor proveniente das sociedades contemporâneas, que se organiza como indústria e se compreende por um conjunto de estratégias para atrair a atenção de um determinado público. Com esta afirmação, percebe-se que o entretenimento pode ser considerado um método inicial na abordagem publicitária audiovisual, o qual se estende por todo o comercial, ao ser vinculado com a interatividade e a persuasão. Ele é capaz de atribuir à uma determinada marca uma vantagem competitiva e um diferencial, em virtude de todos os aspectos da imensa economia de consumo (Wolf, 1999). Assim como ele está inserido na economia em diversos setores de mercadoria, também assume a capacidade de influenciar cada vez mais as escolhas de consumo que as pessoas fazem cotidianamente. Segundo Covaleski (2010), o entretenimento publicitário exige que o processo criativo elabore peças que confortem em sua estrutura a possibilidade de experiência do público a que se destina a mensagem. Pressupõe-se que o alvo irá dialogar, contribuir e expandir o conteúdo recebido por ele, trazendo para a marca a possibilidade de uma propagação orgânica e natural em meio aos consumidores. A previsão de Affini (2007) sobre os novos entornos da publicidade, decorrentes de sua fusão com o entretenimento, parece mostrar-se correta. Segundo a autora, teríamos conteúdos publicitários híbridos que integram e dinamizam vários códigos e linguagens, ou seja, que fundem a estética da televisão com a estética da internet. Os conteúdos específicos para a internet provocariam alterações na linguagem audiovisual, e no modo como consumimos televisão, cinema e vídeo. Hoje, além de existir uma enorme pluralidade de formatos de exibição de um material audiovisual, existe a possibilidade de comunicação entre as telas. Esta espécie de ligação pode se efetivar de maneiras distintas: seja através do fenômeno interativo “segunda tela” – termo referente a um dispositivo eletrônico adicional (como smartphones ou tablets) que permite ao consumidor interagir com o conteúdo que consome em um dispositivo principal (como a televisão e o cinema); ou seja através da adaptação da linguagem e da estética de um conteúdo para diferentes meios, que levem em conta o contexto de exibição de cada um deles – situação que será melhor estudada no tópico específico sobre a interatividade. Tal como afirma Covaleski (2010), as pessoas demonstram consumir cada vez mais o entretenimento, uma das indústrias de maior movimento financeiro pelo mundo. Em meio à correria da vida cotidiana, existe uma busca pelo ócio, pelo divertimento e pela fruição. Neste papel, o entretenimento, aliado das revoluções tecnológicas e digitais, torna-se gradativamente mais onipresente. O tempo livre, não ocupado em tarefas econômicas diretamente produtivas, adquire nas indústrias da cultura, o estatuto de entretenimento. Como refere Hartley, o entretenimento é um regime de produção mundialmente inteligível das indústrias de REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 008-074| 2015 |

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lazer e conteúdo, que engloba uma complexa condensação de gratificações individuais, formas textuais e organização industrial (CUNHA, 2008, p. 5). A publicidade, desde seus primórdios, necessitou enfrentar um pensamento social sobre o que pode ser referido como saturação de conteúdo. Pela imprescindibilidade de conseguir a atenção do público, houve consequentemente a implicância dela estar em todos os lugares. Com o rumo que as coisas estão tomando, esta situação está longe de se alterar. Conforme comentado anteriormente, as plataformas de exibição de mídia hoje se proliferam com velocidade muito mais avançada, e naturalmente, a publicidade é uma das primeiras indústrias a abraçar tais revoluções, com o intuito de atribuir vantagens na corrida pela atenção do público. Todavia, além de encarnar-se em novos formatos de exibição, a publicidade pode atribuir às suas peças valores e métodos que filtram as visões do público sobre suas características saturadas e perturbantes. É possível fazer com que o conteúdo oferecido por ela enquadre-se nas definições de “gratificações individuais”, oferecidas por Cunha (2008), acima. Um exemplo estratégico de como atribuir uma valorização maior a um comercial é através do controle emocional do espectador, realizado por meio da paisagem sonora de uma peça. No estudo de caso, serão analisadas peças que promovem diferentes sensações no público através da música, e diante deste fato, não apenas ganham maior atenção, mas atribuem mais créditos ao produto ou serviço divulgado, Unir a publicidade ao entretenimento já é uma questão de subsistência. Nas atuais configurações da mídia sob demanda, pode-se dizer que, de certa forma, o público detém o poder de escolher tornar-se ou não uma audiência do que é exibido por ela. Este fato sobrecarrega a indústria publicitária em termos de responsabilidade sobre a qualidade do que é ofertado. O discurso de venda, quando sozinho, tem difícil sobrevivência ao lado de outros que acompanham também uma carga de cultura e conteúdo que sobressai-se aos objetivos comerciais. E é neste ponto que a adesão ao entretenimento torna-se essencial. Compreende Covaleski sobre o entretenimento, Como sendo um produto midiático destinado a sorver de ludicidade os momentos vagos e de contemplação dos indivíduos, e que possibilita, ao mesmo tempo, fruição estética e distração intelectual, contribuindo, ainda, para a formação repertorial da cultura do público-receptor e para movimentar uma pujante indústria de lazer e conteúdo (2010, p. 58).

O ato de entreter na publicidade audiovisual envolve o divertimento dos sentidos, principalmente visuais e sonoros. Para que isto aconteça, é substancial que sejam provocadas emoções no espectador, e neste aspecto, a articulação sonora transmitida em uma peça assume uma responsabilidade vital como guia sobre os estados de espírito que sobressaem-se em cada contexto.

5.2 A interatividade na publicidade O ato de interagir, no campo da publicidade, pode ser identificado em distintas situações. A primeira delas decorre em princípio de uma atividade humana, proveniente do espectador do conteúdo, através de seu agir diante da mídia de exibição; em segunda mão, ele recebe em troca uma retroação da máquina sobre ele (Belloni, 48

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2001). A segunda situação, em quesitos de análise, adequa-se mais ao estudo de caso desta monografia, ao nominar a hibridização de linguagens de uma peça audiovisual como a principal responsável por provocar este efeito: a interatividade promovida pela potencialidade técnica de um comercial publicitário. Este efeito pode ser notado em situações distintas. Por mais simples que sejam os elementos de linguagem que provoquem a interatividade, eles mostram-se essenciais para a construção argumentativa de uma peça publicitária audiovisual. Neste campo de situações, é possível afirmar que a articulação sonora apresenta um dos mais altos potenciais de interatividade, com sua capacidade de provocar reações nos espectadores. A interatividade, nestes casos, pode ser flagrada no processo de transmissão da mensagem publicitária. No entretenimento, pode-se dizer que este efeito assume uma responsabilidade metodológica, que visa aprimorar a comunicação entre a marca e seu público consumidor. Ou seja, o contato com o espectador pode ser fortalecido com a utilização de técnicas de linguagem argumentativas. Uma das formas com que o som estabelece uma interatividade com o espectador é através do despertar de memórias. Tal como estudado anteriormente, alguns elementos sonoros já estão familiarmente estabelecidos na memória do ser humano, sejam eles representantes de objetos ou identificados através da categorização de gêneros musicais. Neste segundo caso, o espectador, de imediato, pode compreender o estado de ânimo que a peça audiovisual intende transmitir, promovendo assim a interatividade na comunicação do comercial. Outro meio pelo qual a articulação sonora aproxima o público da mensagem é através do tom de voz de comunicação do discurso verbal. Em variante de cada caso, a publicidade pode apropriar-se de formas de oralidade distintas, as quais podem contribuir para uma sensação de proximidade entre o espectador e o comercial audiovisual. Em uma das ocorrências, quando proveniente de uma narrativa, a oralidade pode remeter a um tom de conversa, emergindo no espectador uma sensação de interatividade com o narrador. Em outra eventualidade, que se faz mais comum, a peça expõe o discurso sem elementos que focalizam o público. Isto é, a mensagem verbal é transmitida sem a preocupação de personalizar os espectadores, e busca promover a interatividade através de outros elementos linguísticos - sonoros e visuais. De acordo com Galindo (2002), o consumidor deve se sentir atraído e gratificado com o belo, o inteligente, o emocionante e até mesmo com o humor proveniente das peças que assiste para que estas gerem a auto-exposição do espectador sobre a mensagem, abrindo, desta maneira, as portas para a interatividade. O termo ‘interatividade’ em geral ressalta a participação ativa do beneficiário de uma transação de informação. De fato, seria trivial mostrar que um receptor de informação, a menos que esteja morto, nunca é passivo. Mesmo sentado na frente de uma televisão sem controle remoto, o destinatário decodifica, interpreta, participa, mobiliza seu sistema nervoso de muitas maneiras, e sempre de forma diferente de seu vizinho (LÉVY, 1999, p.79).

Percebe-se que os meios de exibição audiovisual são naturalmente convidativos à atenção do espectador sob qualquer espécie de peça exibida, porém, não significa que, uma vez que o consumidor está em frente à televisão, por exemplo, a causa já está ganha. É imprescindível que as marcas tomem conhecimento sobre as bases

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comportamentais de seus públicos-alvo durante os momentos de exposição às mídias. Desta maneira, é possível guiar o processo criativo da publicidade para as linguagens de abordagem mais propícias para cada ocasião. Tal como afirma Hopkins (1966), quanto mais o publicitário conhece sobre a psicologia, melhor, pois ele aprende que determinados efeitos levam a determinadas reações, e pode usar tal conhecimento para melhorar resultados e evitar desvios de objetivos finais. Interatividade, neste campo de estudo, é uma questão de conquistar a atenção do espectador para que ele possa interpretar a mensagem que um comercial transmite da maneira como ela foi planejada, desviando possíveis ruídos de comunicação e tornando-a mais eficiente. A experiência interativa proporciona a troca a partir do indivíduo, que deixa de ser apenas espectador e passa a protagonizar a grande teatralidade da mídia (Gontijo, 2004).

5.3 A persuasão na publicidade A publicidade tem passado por mudanças em seu processo criativo e definição de objetividades. Características fundamentais se mantém, e uma delas é a persuasão, porém, novos aspectos são agregados a este meio, os quais fazem com que a essência deste tipo de comunicação passe por adaptações em favor das novas necessidades do consumidor e do mundo das marcas. A publicidade não gira mais em torno apenas de um produto ou serviço, e sim da construção de uma marca. Algumas das maiores marcas do mundo, independente dos setores de atuação, já aderiram a este conhecimento décadas atrás, e por isto conquistaram um ótimo posicionamento no ranking Top of Mind dos consumidores. O branding, contudo, não se comporta mais como uma função de destaque na corrida das empresas, e sim como uma condição de sobrevivência nos novos entornos da publicidade. Muitas campanhas se afastam da valorização repetitiva do produto, privilegiando o espetacular, o lúdico, o humor, a surpresa, a sedução dos consumidores. A publicidade denominada “criativa” é a expressão dessa mudança. Já não se trata tanto de vender um produto quanto de um modo de vida, um imaginário, valores que desencadeiem uma emoção (LIPOVETSKY, 2007, p. 96).

Conforme analisado anteriormente, a construção de um relacionamento com o consumidor e a oferta de carga cultural nos materiais publicitários são caminho para a interatividade com o público-alvo. Uma vez que a interatividade se estabelece, o discurso publicitário encarrega-se da persuasão. De acordo com Covaleski (2010), procura-se no discurso publicitário persuasivo conexões entre o texto da mensagem e a percepção do espectador com o qual ele precisa dialogar. Entretanto, é necessário considerar que o consumidor precisa ser convencido e persuadido a absorver o que a marca tem a dizer, tornando-se substancial o conhecimento sobre o público pelo qual a mensagem está sendo dirigida. Tal como afirma Carvalho (2001), levando como base o sentimento de necessidade ou vazio interior de cada ser humano, a mensagem pode mostrar que falta algo para complementar o indivíduo, seja o prestígio, amor, sucesso, lazer ou vitória. Para suprir esta necessidade, a comunicação utiliza a linguagem adequada para cada caso, despertando o desejo de ser feliz, natural de cada ser. Por meio da hibridização das palavras, imagens e textos, o espectador avista o que lhe falta e sobe a marca da 50

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publicidade em questão ao patamar de soluções. Ao referir-se às técnicas de persuasão, Leduc (1980) agrupa três mecanismos: os automáticos, os de racionalização e os de sugestão. O primeiro deles, explica Galindo (2002), trabalha sobre a memória do espectador ao basear-se na repetição da mensagem. Este mecanismo apresenta pontos fortes nas divulgações de um lançamento. Porém, quando o anunciante possui um grande número de concorrentes disputando a atenção nas mídias, a comunicação deve saber explorar os aspectos individuais e únicos que o produto ou serviço oferece para levar a marca ao destaque. O mecanismo de racionalização é composto por cinco partes distintas. Para Bazanini (1997), são elas: a intervenção, onde reúnem-se os argumentos para o discurso; a disposição, quando a ordem de exposição destes argumentos é estruturada; a elocução, fase em que cria-se o ornamento e o estilo da mensagem; a memória, quando se recorre ao arquivo coletivo do saber do público receptor; e, finalmente, a ação, quando a enunciação da mensagem é teatralizada na mídia. Diante desta sequência estrutural, é possível perceber que, nos discursos que utilizam o apelo à razão como forma de persuasão, tudo pode ser justificado e provado diante do consumidor, dandolhe, através de argumentos e exibições demonstrativas sobre o aspecto do produto, a certeza do que ele pode realizar (Galindo, 2002). O mecanismo da sugestão evidencia algumas motivações funcionais profundas que não são de ordem racional. Isto é, a persuasão também pode ser obtida por linguagens que façam apelo aos sentidos. Nesta categorização, a hibridização de elementos sonoros e visuais torna-se fundamental para a suscitação do desejo pela marca, criando a atmosfera da peça, a aura, o clima e o glamour na contextualidade narrativa. Para Leduc (1980), este mecanismo de persuasão apresenta-se como um dos mais poderosos e eficazes, pois trabalha com o emocional, o poético, o artístico, e com a mensagem não sustentada apenas pelo discurso verbalizado. A articulação sonora, unida da composição imagética de uma peça publicitária audiovisual, é capaz de estruturar a função suasória no comercial, ao despertar a identificação do público para com a mensagem. O espectador atinge estados de ânimo pelos quais já está familiarizado, os quais terão análises mais aprofundadas no estudo de caso desta monografia. O discurso persuasivo é fundamental no processo de convencimento do potencial consumidor. Sobre isto, Covaleski (2010) enuncia que: devido a esta responsabilidade suasória, as mensagens das peças publicitárias procuram ir sempre além da função básica informativa sobre o produto ou serviço em questão; elas requerem o estabelecimento de algum tipo de vínculo com os espectadores da campanha, de maneira com que os diferenciais competitivos e aspectos do produto sejam fixados na memória dos destinatários da ação comunicativa. Para Hoff e Gabrielli (2004), o tema de uma peça publicitária audiovisual pode ser considerado o primeiro nível de persuasão do consumidor. Apesar de que, isoladamente, ele não é responsável por toda a força persuasiva da campanha, ao unirse a outros elementos que a compõe e apresentam cargas de tal capacidade. Parte da enunciação temática de um comercial é realizada através da articulação sonora. O som torna-se responsável por estabelecer o ambiente emocional da narrativa, guiando as interpretações do espectador sobre o assunto retratado. Neste sentido, ele pode ser considerado um dos elementos persuasivos mais poderosos na publicidade, e será REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 008-074| 2015 |

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abordado para análise prática no capítulo seguinte, na realização do estudo de caso.

6. Estudo de caso: comerciais brasileiros selecionados para Cannes em 2013 e 2014 Diante do raciocínio sustentado anteriormente sobre a transmissão de valores e emoções em uma peça publicitária, percebe-se que a articulação do som no audiovisual exerce um papel estratégico fundamental. Neste tópico, será analisado de que maneiras a sonoridade funciona como um elemento persuasivo nos comerciais, trazendo para o estudo de caso três comerciais brasileiros indicados para o Festival de Cannes, nos anos 2013 3 2014. Em cada um deles, a musicalidade da peça se apresentou como um potencial influenciador sobre o estado de espírito do público. Em foco, o estudo analisará os objetos contextualizando, primeiramente, seus objetivos publicitários, enunciando alguns perceptíveis processos criativos. Em seguida, serão observados os principais elementos da composição imagética e da articulação sonora audiovisual das peças, um estudo que antecede a análise sobre os efeitos que provocam suas hibridizações. No espetáculo de cada uma das peças, nota-se que distintas emoções são provocadas no espectador. Diante disso, foram apurados cinco sensações para serem colocadas em análise ao fim deste capítulo, e como se estabelecem suas relações com a musicalidade que as acompanha. São estas as sensações de ansiedade, apreensão, riso, nostalgia e realização.

6.1 Anásile de “alma” para a leica A agência paulista F/Nazca Saatchi & Saatchi produziu em 2013, para divulgar o lançamento da câmera digital M-Monochrom no Brasil, o comercial “Alma”, para a Leica Store São Paulo. A peça foi dirigida por Vellas e produzida pela Sentimental Filme. A Direção de Criação foi de Eduardo Lima, Fotografia de André Faccioli, e os compositores musicais foram Kito Siqueira e Fernando Rojo. O filme foi um dos mais premiados nesta edição do festival, levando a agência à conquista de 5 Leões: 1 Ouro em Cinematografia, 1 Prata em Melhor Direção e 2 Bronzes, em Direção de Arte/Design de Produto e Edição. O 5º Leão, de Prata, premiou a peça na categoria Film - uma das mais tradicionais do Cannes Lions. O produto divulgado − Leica M-Monochrom − é a primeira câmera digital que só faz fotografias em preto e branco, e foi apresentada no filme sob o conceito de que “Toda Leica tem Alma. Leica M-Monochrom. A reencarnação do preto e branco.” A peça é toda narrada em alemão pela locutora Christine Behm. A narradora conta a história da Leica III na guerra como sendo a câmera, e, ao mesmo tempo, amante do grande fotógrafo Robert Capa. Ao lado dele, Leica III morreu na guerra, e 58 anos depois, reencarnou como M-Monochrom, a câmera que tira fotografias em preto e branco de altíssima qualidade.

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6.1.1 A composição imagética da peça audiovisual A história homenageia a posição de Capa na guerra, assim como representa tantos outros grandes fotógrafos que adotaram a Leica para fazerem sua história na fotografia. Capa, ao mesmo tempo que um fotógrafo, vivia como um soldado e acompanhava todas as batalhas ao lado do exército, correndo riscos 24 horas por dia e persistindo em registrar os acontecimentos no evento.

Figura 01: Cena de “Alma” | Fonte: (LEICA, 2013).

O comercial recria a rotina do fotógrafo húngaro ao acompanhar a guerra. Seguindo o pensamento de Lipovetsky (1987) sobre o registro da verossimilhança na publicidade, pode-se afirmar que a peça publicitária simula, através da composição da linguagem visual, os acontecimentos da época. A filmografia e os registros fotográficos de guerra reais têm seu conceito transmitido nas cenas de “Alma”. Nelas, são apresentados os entornos de amor e morte de Robert Capa, que morreu ao pisar numa mina terrestre enquanto fotografava a Guerra da Indochina da cidade de Thai-Bihn, no Vietnã, em 1954. O valor de verossimilhança construído com as imagens da peça relaciona-se com a concepção de tempo das imagens, sustentada por Santaella (2001) na base teórica. Pode-se afirmar que “Alma” é uma peça composta por dois níveis temporais distintos: o primeiro é o ritmo da história que é narrada no filme, a qual abriga passagens de longos períodos de tempo e representações de acontecimentos históricos verdadeiros; o segundo é o tempo de duração de toda a composição imagética (um minuto e quarenta e dois segundos), o qual expressa a potencialidade narrativa do comercial, ao transmitir uma história de meses em minutos. À vista disto, os elementos visuais do comercial permitem ao espectador orientar-se com relação ao contexto da obra.

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Figura 02: Cena de “Alma”

| Fonte: (LEICA, 2013).

As cenas são transmitidas nas escalas de preto e branco, um aspecto estético que dialoga não somente com as circunstâncias do passado de guerra, mas também com os diferenciais funcionais da câmera M-Monochrom. Conforme enunciado anteriormente, as imagens assumem a responsabilidade de contextualizar o ambiente histórico para o espectador, oferecendo informações sobre a vida dos que presenciaram a guerra de perto. As imagens, além de ilustrar o que viam os olhos de Robert Capa, também transmitem as capturas das lentes Leica que ele carregava, propagando uma atmosfera de cumplicidade entre o fotógrafo e a câmera.

Figura 03: Cena de “Alma” | Fonte: (LEICA, 2013).

Os planos de filmagem consistem sempre na subjetividade, seja da câmera ou do fotógrafo. Tal circunstância aproxima o público da narrativa, conduzindo a jornada dos soldados de uma maneira singular, ao possibilitar ao espectador visualizar as cenas pela representação das lentes que uma vez estiveram na guerra. Há momentos em que as cenas tremem, capturam planos baixos, alteram seus ângulos. As diferentes perspectivas que compõe as imagens do comercial atraem uma grande significação para a estética. Com tais efeitos, os elementos visuais contribuem para formar a aura de entretenimento da peça, oferecendo ao espectador o sentimento de gratificações individuais, oferecidas por Cunha (2008) nos capítulos anteriores. Isto é, da mesma maneira que a peça procurou evidenciar a união entre Robert Capa e a Leica III, ela foi capaz de transmitir uma espécie de experiência visual ao público, instigando um desejo de conhecer a M-Monochrom.

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6.1.2 A articulação sonora da peça audiovisual O ambiente acústico da obra é preenchido por três tipos de elemento sonoro: a locução narrativa, a trilha sonora instrumental e os ruídos de contexto (gritos, explosões, passos e objetos). Conforme o aparecimento destes elementos no filme, o ouvinte alterna suas atitudes auditivas diante de cada um deles. Logo no início, a audição do espectador é abordada com uma melodia instrumental, a qual tem seu ritmo moldado por cordas quando a locução da narradora se inicia. Neste momento, o ouvinte passa a ouvir a música de forma periférica, enquanto busca compreender a história da peça focalizando sua audição na narradora. Sucessivamente, sons ambientes invadem a cena e assumem a capacidade de auxiliar a contextualização da narrativa. São eles os ruídos do manuseio da câmera e da máquina de escrever, a motocicleta correndo pelas ruas, os passos apressados dos soldados em campo de guerra, as explosões de granadas, tiroteios, e as vozes humanas que não implicam a interpretação do discurso. Percebese, então, que tais efeitos sonoros dividem a responsabilidade de contextualização narrativa com a composição imagética da peça, ao resgatar no espectador sua memória auditiva. A narração é transmitida na língua alemã, ressalvando a cultura de Robert Capa e a origem e tradição da Leica III. A história é contada em forma de depoimento e em primeira pessoa, personificando a câmera e criando a atmosfera de interatividade com o ouvinte, ao convidá-lo para testemunhar e conhecer os acontecimentos históricos e biográficos tanto do fotógrafo como da câmera. Além de provocar a interatividade, o efeito de personificação na narrativa também enuncia dois elementos fundamentais na comunicação publicitária: o entretenimento e a persuasão. O entretenimento manifesta-se no ato de contar uma história, quando a peça assume um caráter narrativo fílmico. Já a persuasão se estabelece com o aspecto de criatividade da peça, ao dar vida ao produto lançado, despertando a curiosidade no espectador para conhecer sua história. À vista disto, nota-se que o elemento sonoro da narração é capaz de construir um ciclo que dá vida ao caráter publicitário do filme: entretenimento, interatividade e persuasão. A trilha sonora apresenta-se como uma orquestra de instrumentos que preenchem a paisagem sonora gradativamente, conforme a dramatização dos acontecimentos adquire uma carga emocional mais densa e apreensiva, levando o filme ao clímax. A composição musical transmite uma atmosfera vitoriosa, acompanhando o discurso de que Leica e Capa passaram meses registrando tudo à sua volta e que o fotógrafo, além de acompanhar os soldados, vivia como eles arriscando-se pela fotografia. O clima de vitória é interrompido com a suspensão dos instrumentos, no momento em que o discurso apresenta o ponto de virada da narrativa. A narradora conta que Capa ainda amava o que fazia “quando o som das Kalashnikovs tornou-se insuportável”, que decidiu parar e prometeu nunca mais fotografar a guerra, mas não conseguiu. Em tal circunstância, a quietude musical toma conta da cena ao lado da decisão do fotógrafo de abandonar a guerra, e ressurge fortemente quando este resolve atravessar a promessa e entrar em campo novamente. Neste instante, constata-se um momento de impacto sonoro, denominado por Shafer (1991) nos capítulos anteriores como “ictus” − um ataque que separa o silêncio da presença de som − fixando paralelamente o controle sobe a perspectiva do espectador. A orquestra contextualiza o peso da decisão de Robert Capa ao harmonizar em uma melodia todos os instrumentos junto de ruídos ambientes. As cordas acompanham a REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 008-074| 2015 |

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respiração ofegante e a corrida dos soldados, até o momento de explosão de uma mina terrestre, responsável pela morte do fotógrafo e da Leica III. Após o som do estrondo, os instrumentos diminuem o ritmo e seguram a nota para ambientar o discurso final da narradora, revelando o conceito artístico e criativo do filme, trazendo sentido à essência da publicidade. 6.1.3 A hibridização de linguagens na peça audiovisual A natureza dos elementos visuais e sonoros de “Alma” carrega significações que são capazes de sofrer mutações, uma vez que unidas. Para buscar compreender quais são os verdadeiros efeitos da hibridização de linguagens no filme publicitário, é estratégico isolar a composição imagética da articulação sonora, em um processo de dissociação. As cenas do filme, quando exibidas sem o acompanhamento sonoro, ganham um limite de significação. São imagens que relatam histórias de guerra em planos subjetivos. Pelo fato de a Leica III aparecer no filme apenas uma vez através de um espelho, não é possível identificar com plena certeza sobre o que a publicidade se trata somente com o acompanhamento das imagens. Algumas sugestões sobre a identidade da protagonista da história são perceptíveis no roteiro, como por exemplo, com a atuação de um fotógrafo de guerra com aparência que indica a recriação de Robert Capa, assim como o próprio plano de filmagem subjetivo, que adquire uma função protagonista no roteiro. Apesar de tais incitações, a locução narrativa assumiu, neste caso, a responsabilidade por representar o produto vendido na publicidade e por situar as imagens em um sentido específico. Isto é, o discurso verbal, transmitido através da linguagem sonora, contextualiza as imagens ao guiar o espectador sobre suas verdadeiras significações, oferecendo informações de importante interpretação para a compreensão final da mensagem publicitária. A música de preenchimento, neste caso, não é protagonista da narrativa, mas sim da provocação de interatividade e persuasão de “Alma” para com o espectador. Ela provoca as emoções no público, fazendo com que ele compreenda os pontos chave da narrativa: o contexto, o ponto de virada e o conceito final. Percebe-se que as imagens não seguem uma lógica temporal de acontecimentos. Quem indica tal sucessividade é o discurso verbal. Porém, a trilha sonora orquestrada é o elemento que sugere o peso e a gravidade de cada ato visual. Ou seja, as explosões e conflitos de guerra exibidos no meio da trajetória não possuem o mesmo significado diante dos que são exibidos após o ponto de virada do filme, citado no tópico anterior. Esta gradatividade de peso dos acontecimentos é guiada através da articulação sonora. Nota-se que os elementos sonoros e visuais são tecnicamente manipulados para, ao mesmo tempo que guiar o espectador sobre suas interpretações, surpreendê-lo para a transmissão do conceito publicitário. Logo após a explosão final, o público é impactado pela notícia de morte do fotógrafo e da Leica III, e em seguida é surpreendido com o discurso de “reencarnação” da câmera, valorizando de imediato o produto divulgado. Com a ambientação musical fílmica e uma narrativa histórica, o comercial transmite do início ao fim o posicionamento da marca: “Toda Leica tem alma.”, avivando seu momento de reencarnação, desde Leica III para M-Monochrom, e apropria-se de um conteúdo culturalmente rico para transmitir sua mensagem ao público. Neste contexto, 56

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é válido enunciar a multiplicidade de referências históricas utilizados no filme, as quais despertam no espectador a necessidade de resgatar sua memória cognitiva e auditiva para melhor compreensão da mensagem publicitária. Tal como sustentado por Byrne (1992) em capítulos anteriores, uma peça publicitária pode ser pertinente para o espectador somente quando ele interage com a informação existente em seu ambiente cognitivo, para então produzir efeitos cognitivos suficientes. Desta maneira, além de suscitar uma experiência histórica, “Alma” promove a segmentação de público-alvo da campanha, utilizando como base a temática da fotografia.

6.2 Análise de “top drivers” para a Liberty Seguros Em 2013, a Liberty Seguros divulgou seus serviços em uma peça audiovisual de maneira diferenciada. Pode-se dizer que a concepção criativa do filme inspirou-se em dois mecanismos de persuasão estudados no capítulo anterior: a racionalização e a sugestão. O filme utiliza da lógica persuasiva “problema-solução”, e molda a transmissão da mensagem com a estratégica do humor. A obra foi feita pela agência Rai, com criação da dupla André Baldez e Bruno Cirello, e produção da DL&F. O filme exibe algumas estranhas manobras que as pessoas são capazes de fazer com seus carros, com a mensagem de que acidentes acontecem e, é bom estar prevenido. “Top Drivers” entrou para a shortlist de Cannes em 2013, na categoria de TV/Cinema, e foi premiado também em outros grandes festivais publicitários: London International Awards e El Ojo. Com a trilha sonora irônica de fundo, a peça evidencia com humor a importância de se ter um seguro de carro. 6.2.1 A composição imagética da peça audiovisual O filme é composto por uma compilação de cenas de acidentes de carro, captadas por câmeras de segurança de estabelecimento de serviço ou condomínios residenciais. As imagens despertam a surpresa do espectador pela naturalidade e veracidade das cenas.

Figura 04: Cena de “Top Drivers” | Fonte: (LIBERTY SEGUROS, 2013).

Os acidentes tornam-se absurdos pela simplicidade de serem evitados e representam tragédias que fogem ao acaso, mas procedem com o descuido. Diante disso, as imagens carregam aspectos humorísticos.

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Figura 05: Cena de “Top Drivers” | Fonte: (LIBERTY SEGUROS, 2013).

A direção artística do comercial preocupou-se em manter as imagens conforme a natureza de suas próprias fontes, mantendo o aspecto de “vida real” no filme. A comunicação do conceito é realizada em dois tempos, e este intervalo é responsável por causar suspense no espectador, preparando-o para uma resposta final. Logo após a apresentação de todas as imagens, os quadros com a mensagem publicitária entram em cena.

Figura 06: Cenas de “Top Drivers” | Fonte: (LIBERTY SEGUROS, 2013).

No contexto da linguagem visual de “Top Drivers”, nota-se a utilização de dois diferentes métodos de processo criativo, explicados com as teorias de Joannis (1998) em capítulos anteriores. O primeiro deles é a “expressão contra a corrente”, quando a campanha utiliza de tons de voz e atribuição estéticas incomuns para se comunicar com o público. Neste caso, é inovadora a utilização de imagens captadas por câmeras de segurança para dar sentido à mensagem. O segundo método utilizado, perceptível ao fim da mensagem com a enunciação do conceito criativo da peça, é a “referência inesperada”. O espectador é impactado quando a marca apresenta-se como solução para o problema mostrado nas imagens, porém, apresenta-se com a mensagem de que, como a sujeição a acidentes é inerente ao motorista, a Liberty Seguros prontificase a sempre prestar apoio. 6.2.2 A articulação sonora da peça audiovisual A articulação sonora de “Top Drivers” é composta unicamente pela trilha sonora de fundo. Pode-se dizer que a música segue o ritmo e instrumentalização do gênero musical Bossa Nova. O som assume um papel protagonista na peça, estabelecendo o tom de voz de comunicação do anúncio. Nesta situação, percebe-se que a articulação sonora da peça é pensada em conjunto da estratégia humorística pensada para transmitir a mensagem, e funciona como uma tática para produzir os efeitos de ironia. A trilha sonora do comercial não é verbalizada, mas apenas composta por instrumentos, 58

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deixando a confluência de significados por conta das imagens, fato que substancia um peso de ironia entre a linguagem visual e a linguagem sonora. É evidente, neste caso, que a articulação sonora atribui mais dramaticidade às composições imagéticas do comercial, ao promover um novo tipo de interpretação sobre elas quando a sincronização é estabelecida. Tal como mencionado em capítulos anteriores, é essencial que, para compreender uma narrativa, o espectador tenha sua atenção voltada para o que está sendo executado sonoramente. Relembra-se o raciocínio de Sonnenschein (2001) de que todos os efeitos sonoros criados para uma obra audiovisual, em sincronização com outras linguagens, devem confluir para uma perfeita imersão do que está sendo transmitido. Diante disso, o espectador em “Top Drivers” tem sua percepção influenciada pela ironia, fato que acaba por induzir uma reação de riso, a qual será mais aprofundada posteriormente neste capítulo. 6.2.3 A hibridização de linguagens na peça audiovisual A união entre a compilação de cenas e a música da peça é marcada por uma característica, a qual condiz com um dos papéis do som na publicidade, estudada nos capítulos anteriores: a incongruência musical. Diante dos significados dos elementos das linguagens sonora e visual utilizadas, notase uma dissonância de sentidos. Isto é, as mensagens que as imagens dos acidentes e a bossa nova deveriam transmitir são desarmônicos em seus sentidos existenciais. Em um senso comum, acidentes automobilísticos representam tragédia, e a bossa nova representa alegria e tranquilidade. Porém, quando estes elementos estão unidos na peça, eles encontram uma harmonia perante o conceito publicitário final, levando sentido à hibridização. Neste quadro da incongruência musical, conforme estudado anteriormente, a música não tem por responsabilidade a representação do significado das imagens que a acompanham, e sim a transmissão da mensagem publicitária. É possível afirmar que, neste caso, a dissonância entre linguagens foi aplicada com fins humorísticos, e que esta fusão é harmônica pelo fato de fazer sentido com a mensagem final. Neste sentido, relembra-se as teorias de Manzano (2003) sobre o uso contra pontual do som no audiovisual. Segundo o autor, esta aplicação proporciona uma potencialidade de aprimoramento para a hibridização dos elementos, e ajuda a construir a emoção ao estar dissonante da linguagem visual. Isto é, a incongruência musical humorística pode funcionar como estratégia publicitária , uma vez que o público notará a dissonância entre as linguagens e buscará compreender os objetivos deste efeito. O próprio nome da peça já traz a atmosfera irônica transmitida no comercial. O humor utilizado em “Top Drivers” conseguiu agradar o espectador, aproximando-o da marca. A marca conseguiu apropriar-se de acontecimentos da vida real para transmitir sua mensagem de uma maneira criativa e não habitual, captando a atenção dos consumidores através de efeitos diferentes e inéditos, tal como enuncia Lipovetsky (1987), abordado em capítulos anteriores.

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6.3 Análise de “Os úlrimos desejos da Kombi” para a Volkswagen No ano de 2013 o último modelo da Kombi foi fabricado. Para divulgar a aposentadoria e despedida do veículo, a agência AlmapBBDO produziu e lançou, em janeiro de 2014, um comercial documentário que registra a trajetória da van ao lar para rever a sua família. O roteiro do filme é de autoria de Marcelo Nogueira e Marcelo Pignatari, com direção de arte de Benjamin Yung Jr e Marcelo Tolentino. A direção geral foi de Fernando Gronstein Andrade, com produção da Spray Filmes e trilha sonora trabalhada por Lucas Lima. A obra expressa uma lista com os últimos desejos da Kombi, os quais incluem lembranças a pessoas especiais, que vivenciaram experiências inesquecíveis com o veículo. Entre os homenageados por ela, encontram-se pessoas que tiveram a Kombi como companheira em diversas aventuras. Dentre estas aventuras, alguns exemplos são os jogos mundiais da seleção brasileira, viagens pelo Brasil e mundo afora, Festival Woodstock e até o nascimento de uma menina, que ocorreu dentro da van. O último desejo que consta na lista é rever o filho de seu criador: Ben Pon Jr., quem vive em Amsfort, na Holanda. Antes de ir embora, a Kombi homenageia cada personagem que fez parte da sua história com presentes personalizados, e então prepara-se para partir, visitando seu irmão. 6.3.1 A composição imagética do comercial audiovisual A linguagem visual de “Os Últimos Desejos da Kombi” é composta por um conjunto de gravações de acontecimentos verídicos, fotografias e cenas simuladas. Este conjunto de elementos visuais torna a peça um documentário, ao utilizar depoimentos de personagens e fatos históricos para narrar acontecimentos marcantes na trajetória de vida da Kombi e das pessoas que viveram com ela. Logo nas primeiras cenas, o discurso verbal prepara uma surpresa sobre o protagonista da história, ao não mostrar de início acerca de quem se trata a narrativa. As imagens sugerem o contexto de uma viagem de estrada, e o mistério é revelado ao espectador quando a Kombi entra em cena.

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Figura 07: Cena de “Os Últimos Desejos da Kombi” | Fonte: (VOLKSWAGEN, 2014).

Em seguida, conforme o veículo inicia a narração da história desde o nascimento, as cores das cenas se alteram para preto e branco, indicando um período passado. A encenação do garoto sorrindo pela janela, atuando como Ben Pon Jr. pequeno dialoga com um momento mais ao fim do filme, quando o real Ben Pon Jr. é filmado. Pode-se dizer que a mensagem neste diálogo visual é a cumplicidade do homem com a Kombi: ele estava lá quando o veículo surgiu, e também quando ele se despede. O lar da Kombi é exibido nestes dois momentos, e com o intuito de guiar o espectador, duas cenas da cidade Amsfort são repetidas no início e no final, com a alternância da palheta de cores entre a colorida e a preto e branca, para indicar épocas passadas e presentes.

Figura 08: Ator de Ben Pon Jr. pequeno | Fonte: (VOLKSWAGEN, 2014).

Figura 09: Ben Pon Jr. real | Fonte: (VOLKSWAGEN, 2014).

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Antecipando as homenagens das pessoas enunciadas pela Kombi em seu testamento, o filme apropria-se de registros fotográficos e filmagens da Kombi ao redor do mundo, carregando a mensagem de influência automobilística, assim como de agradecimento pela fama e carinho por todos que fizeram parte de sua história. Tais imagens enriquecem a contextualização documentária do comercial, fortalecendo o posicionamento da marca com lembranças provenientes de diversas culturas diferentes. Ao mesmo tempo que se veem cenas da Kombi transportando pessoas na África, América e Europa, são exibidos os distintos contextos pelos quais o veículo entrou em cena: turismo, lazer, festivais, campeonatos de corrida e ocasiões profissionais. Esta seleção de cenas colabora para a formação de uma boa lembrança que as pessoas terão da Kombi, transmitindo a imagem de um veículo querido por inúmeras culturas.

Figura10: Registros antigos da Kombi | Fonte: (VOLKSWAGEN, 2014)

Após a exibição de registros passados da Kombi pelo mundo, alguns dos personagens homenageados pelo veículo entram em cena com imagens intercaladas de épocas atuais e antigas, e logo depois, a notícia de aposentadoria da Kombi é lançada com a exibição de cenas noticiários de todo o mundo. Nota-se, como estratégia visual na peça, a compilação de diferentes culturas mostradas ao público, um fato que também fortalece a influência da marca sobre a indústria de carros. As imagens de “Os Últimos Desejos da Kombi” potencializam a força emocional da peça pela veracidade das cenas e dialogismo entre elas. No tópico seguinte, será analisada a composição sonora da peça, e em seguida, que efeitos produzem sua união com a linguagem visual da obra. 6.3.2 A articulação sonora da peça audiovisual A composição sonora de “Os Últimos Desejos da Kombi” apresenta uma diversidade de elementos: locução narrativa, depoimentos de personagens, ruídos contextualizadores e variedade de trilhas sonoras. Assim como em “Alma”, o elemento que mais exige uma audição focalizada do espectador é a locução narrativa, feita pela Maria Alice Vergueiro, a qual dá vida à própria Kombi, personificando o veículo. O timbre da voz da atriz sugere que a Kombi é uma senhora de idade, e a maneira como ela conversa com o espectador modela a sua personalidade como alguém que é sábio, feliz e aproveitou a vida, e é exatamente esta mensagem que a personagem deixa para o público no início e no final do filme: “Como eu estou me sentindo? Surpreendentemente bem.” Conforme as teorias de Salinas (1994) discutidas em capítulos anteriores, o timbre da voz de um personagem pode situar o espectador em 62

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um determinado contexto cultural de espaço-tempo, assim como funciona como um elemento essencial para manter equilibrada e coesa a relação entre o som e imagem. Diante disso, nota-se que a equipe técnica fez a escolha certa com relação a narradora, uma vez que a voz da mulher promove para a Kombi uma personificação adequada e bastante significativa ao enunciar a narrativa com um grau de energia espirituoso. A trilha sonora se inicia calmamente no filme junto ao discurso, e se incorpora no momento em que é revelado ao espectador quem é que está contando a história da peça (Kombi). Percebe-se que o comercial utiliza da articulação sonora para contextualizar os diferentes momentos e lugares pelos quais a narrativa se passa, e à frente disso, apropria-se constantemente da alternância entre os elementos sonoros. Quando a Kombi inicia sua história, falando de seu nascimento, a paisagem sonora recebe a música com uma melodia instrumentalizada por flautas, no estilo de uma valsinha, e junto à ela, nota-se o som ambiente de uma nevasca, elemento que remete ao inverno europeu. Posteriormente, a música se altera para uma composição de cordas, acelerando seu ritmo gradativamente. Esta composição encontra harmonia com a ideia de velocidade, a qual é aperfeiçoada pelo ronco de motores. Em contribuição com esta atmosfera de registros históricos, são lançados sons de disparo de câmeras fotográficas antigas, os quais funcionam como ruídos contextualizadores na peça. De acordo com as teorias de Childers (1992), estudadas na base teórica, a música pode assumir o papel de estímulo para a identificação de uma mensagem que está sendo transmitida. Seguindo este raciocínio, recorda-se dos efeitos que causam as aplicações de diferentes gêneros musicais sobre um mesmo produto. Cada estilo musical pode comunicar de formas diferentes, e ressaltar características específicas sobre o produto anunciado. Desta maneira, é possível observar que a articulação sonora de “Os Últimos Desejos da Kombi” enriquece o conjunto de valores positivos que remetem ao veículo, trazendo sempre a aura de lembrança para a narrativa. No momento em que alguns dos personagens que foram homenageados entram em cena, o filme apresenta trilhas sonoras personalizadas para eles. Pode-se afirmar que a trilha sonora de cada personagem está relacionada a um elemento de sua história. Por exemplo: no caso do casal que deu a volta ao mundo com uma Kombi, a trilha sonora remete a ideia de aventura; no caso de Seu Nenê, quem foi assistir à seleção brasileira em três mundiais com o veículo, a música é um samba; e no caso de Bob, que levou a Kombi para o Woodstock, a trilha musical é um rock no estilo do festival. Após a apresentação dos homenageados no testamento, o filme encontra um ponto de virada, apresentado pela locução narrativa: anuncia-se que a Kombi não será mais fabricada. Para climatizar a tensão da notícia, a música é interrompida e substituída pelo efeito sonoro do anúncio caindo na mesa. O que se ouve representa, na verdade, a queda de um objeto muito mais pesado, todavia o significado de apropriar-se de tal articulação sonora encontra relação com o forte peso da notícia. É transmitida a ideia de que o comunicado é algo chocante e inesperado. Logo em seguida, é feita a compilação dos vários noticiários pelo mundo, instante em que as vozes dos repórteres acompanham o tic tac de um relógio, uma sonoridade que transmite a mensagem da contagem regressiva para a despedida da Kombi. Diante disso, a Kombi se revela comovida com a quantidade de pessoas que importavam com ela, e decide fazer um testamento - a ideia principal do filme - e entregar as homenagens personalizadas para as pessoas especiais que fizeram parte de sua história. Aos poucos, a trilha sonora que deu início ao comercial retoma, e gradativamente vai adquirindo REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 008-074| 2015 |

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mais ritmo com a incorporação de mais instrumentos e de um assobio de tranquilidade. Ela ganha maior intensidade quando a Kombi está para realizar seu último desejo: rever Ben Pon Jr., a quem o veículo se refere tecnicamente como um irmão. É possível dizer que a característica mais marcante na articulação sonora da peça é a variedade de estilos musicais que compõe a peça. Conforme estudado anteriormente, qualquer combinação de sons pode ser considerada uma melodia. “Os Últimos Desejos da Kombi” utiliza da sucessão de diferentes notas e estilos para enriquecer a transmissão da mensagem, harmonizar os elementos visuais, e fortalecer os aspectos emocionais da narrativa. 6.3.3 A hibridização de linguagens na peça audiovisual A união de sons e imagens nesta peça permite ao espectador orientar-se diante dos diferentes momentos da história da Kombi. As cenas que dão início ao filme estão em concordância com as que o finalizam, assim como a musicalização que as acompanha. A narrativa começa durante o dia e termina ao pôr-do-sol, contribuindo para a ideia de que a Kombi fez sua jornada de despedida, visitando pessoas especiais que incluiu em seu testamento. O filme apropria-se de elementos sonoros que exigem diferentes níveis de atenção auditiva (focalizada ou periférica), assim como as linguagens preponderantes do comercial se alternam entre a visual e a sonora. Ao apresentar a protagonista da história através da locução narrativa, o aparecimento visual da Kombi se responsabiliza por estabelecer a empatia e identificação entre o público espectador e o veículo, situando-o com relação à personificação do objeto. Quando a Kombi começa a contar sua história, a linguagem visual torna-se central, pois coordena a exibição dos fatos históricos da van e dos personagens participantes do filme. Todavia, a narratividade documentária é enriquecida com elementos sonoros, os quais trabalham absorvendo os conceitos de cada momento e potencializando seus significados. Exemplos de tais inserções são os sons de ronco do motor, palmas, e sopro de vento durante a nevasca na Holanda. As trilhas musicais personalizadas para cada história contribuem para o entendimento de lembranças sonoras, complementando a carga contextual das cenas. Logo após a anunciação de que a Kombi se despede, a linguagem sonora assume novamente o posto substancial, pois lidera o clima de contagem regressiva durante a exibição dos noticiários. Este momento é enriquecido por diferentes vozes de repórteres de todo o mundo. Neste instante, som e imagens contribuem para a mensagem de influência internacional que a Kombi exerceu em sua história de vida. A direção do filme torna-se admirável por transmitir uma imagem de intimidade entre a Kombi e as pessoas a quem o veículo dedica sua homenagem. A maneira pela qual ela verbalmente se refere aos personagens transparece um sentimento de amizade e cumplicidade. “Os Últimos Desejos da Kombi” é um exemplo de comercial que, através de estratégias linguísticas, fortalece o posicionamento tradicional e influente da Volkswagen. O filme atingi a poeticidade ao tecer um intenso cruzamento entre sons e imagens. Diante disso, sustenta-se a percepção de que cada linguagem carrega especificidades e influências 64

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únicas, concedendo à hibridização a atribuição de complementaridade entre o som e imagem.

6.4 O som como um elemento norteador de diferentes emoções em cada peça analisada As trilhas sonoras das peças analisadas apresentam-se como potenciais influenciadoras sob o estado emocional em que o espectador se encontra. Neste tópico, será observado como se estabelece a relação entre a articulação sonora dos comerciais e cinco sensações distintas: o riso, a nostalgia, a apreensão, a realização e a ansiedade. Diante da exibição das obras, nota-se, de acordo com os pensamentos de Sacks (2007), que a musicalidade pode ser considerada uma habilidade perceptiva. A suscetibilidade emocional à música pode ser bastante influenciada tanto por fatores pessoais quanto neurológicos. Perante isso, se estabelece a necessidade de construção de um cenário para que o espectador seja persuadido com a mensagem publicitária através das emoções. Isto é, quando uma música é tocada isoladamente de outras formas de linguagem, a sua percepção sofre maior tendência de ser influenciada por fatores emocionais individuais. Com isto, a publicidade assume a responsabilidade de construir um contexto narrativo que auxilie o espectador a se identificar com a mensagem, buscando despertar emoções em favor da marca. Seguindo este pensamento, pode-se dizer que a articulação sonora é uma estratégia persuasiva na publicidade, pois resgata no público memórias auditivas e situações individuais que possam contribuir para a melhor compreensão de uma mensagem publicitária. Conforme estudado anteriormente, a publicidade busca constantemente a interatividade entre o consumidor e a marca. Desta forma, se faz necessário comunicarse com o público através de estratégias facilmente identificáveis por ele. Dentre elas, encontra-se a construção da paisagem sonora de um audiovisual. É possível afirmar que a intensidade e o ritmo de uma melodia influenciam diretamente na velocidade e condução da exposição de uma mensagem, provocando uma dinâmica sensações no indivíduo que a recebe. Em “Alma”, por exemplo, logo após o ponto de virada, a instrumentalização da orquestra torna-se mais rápida e intensa, causando no espectador a sensação de ansiedade, seguida de apreensão, a qual decorre da abrupta redução de instrumentalização e ritmo sonoro, articulação que confere ao momento “ictus”, citado por Schafer (1994). O espectador encontra-se, neste instante, em um estado de espírito de desassossego pela incerteza da mensagem que irá receber. Sem tal manipulação da articulação sonora, percebe-se que a obra perderia grande parte da carga emocional da narrativa, dificultando que o público seja persuadido pela mensagem e posicionamento da marca. Já em “Top Drivers”, a musicalidade contribui para a construção do humor na peça audiovisual. As próprias imagens já despertam a atenção por apresentarem situações absurdas, e através da estratégia de incongruência musical que acompanha as cenas, surge a atmosfera de ironia. A Liberty Seguros aborda um assunto sério - acidentes automobilísticos - através de situações que decorrem de lapsos de inteligência humana. Através da contraposição entre o desespero e a tranquilidade, o espectador é estimulado a reagir emocionalmente com o riso, uma vez que a aplicação musical REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 008-074| 2015 |

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consiste em um gênero (Bossa Nova) que representa a pacificidade. A própria paisagem sonora de “Os Últimos Desejos da Kombi” é capaz de contar histórias, uma vez que ela apropria-se de uma variedade de elementos e estilos musicais. À vista disso, é possível sustentar que a musicalidade nesta peça transmite sensações que partem da nostalgia, principalmente no início e fim do filme. Cada gênero musical que aparece na obra desperta interpretações diferentes no espectador, devido à sua memória auditiva e orientação contextual. Porém, a trilha sonora de introdução estabelece a nostalgia como a sensação norteadora de toda a peça. Desta maneira, todos os outros estados de espírito pelos quais o público experimenta, diante da variedade de estilo musical do filme, carregam o sentimento de saudade que a Kombi vai deixar. O filme da Volkswagen constrói um ciclo musical, apresentando ao início a mesma melodia que o fim, porém com intensidades de instrumentalização diferenciadas. Nota-se que, quando a peça encontra seu ponto de virada, o recurso sonoro utilizado para causar suspense no público é o mesmo utilizado no filme da Leica. Suspende-se a maior parte da instrumentalização da trilha sonora: efeito que provoca a aura do silêncio. Todavia, uma vez que a articulação sonora não é suspendida por completo, a sensação de impacto no espectador é amortecida pela fina linha de sonoridade que se mantém, causando maior sensação de apreensão. Tal linha é a longa nota tocada por violinos em “Alma”, e a sonoridade pouco intensa de um órgão, substituída pelo tic tac de um relógio em “Os Últimos Desejos da Kombi”. O sentimento de realização transmitido ao final das peças audiovisuais, principalmente nos casos da Volkswagen e da Leica, também é provocado através da articulação sonora. Ao experimentar tal sensação, pode-se dizer que o espectador cria um envolvimento de valorização com o produto divulgado no filme. Em “Alma” o tom de voz com que Christine Behm narra a notícia de reencarnação transmite uma sensação de bemestar, a qual é prolongada com a intensidade de violinos de sucede a mensagem. Já em “Os Últimos Desejos da Kombi”, Maria Alice Vergueiro encerra o filme revelando que sente-se “surpreendentemente bem”. A ênfase no tom de voz aplicada na palavra bem harmoniza com a sonoridade de assobios que acompanham a locução, circunstância que transmite a sensação de dever cumprido, tranquilidade e realização da Kombi. Os três casos estudados demonstram como a articulação sonora pode influenciar diretamente na percepção de uma mensagem e nas emoções do espectador. No tópico seguinte, para facilitar a compreensão deste fato, consta um mapeamento da relação entre as linguagens de cada comercial, suas principais estratégias musicais e a dinâmica de emoções que elas despertam. Entende-se, diante de tal estudo, que a publicidade apropria-se da musicalidade como uma estratégia persuasiva em peças audiovisuais, permitindo ao público ampliar seu horizonte de experiências ao vivenciar tais espetáculos de obras.

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6.5 Mapeamento das linguagens e emoções COMERCIAL

ELEMENTOS DA LINGUAGEM VISUAL

Cenas: rotina de Robert Capa e soldados na guerra; Cores: P&B; Alma

Top Drivers

ELEMENTOS DA LINGUAGEM SONORA

Locução narrativa na primeira pessoa do singular: personificação da câmera;

ESTRATÉGIAS MUSICAIS

Articulação da intensidade e melodia; “Ictus”

DINÂMICA DE EMOÇÕES

1o: nostalgia 2o: ansiedade 3o: apreensão 4o: realização

Planos: subjetividade da câmera de do fotógrafo

Trilha sonora: orquestração instrumental;

Cenas: compilação de acidentes automobilísticos;

Trilha sonora: instrumentalização da Bossa Nova

Incongruência musical

1o: riso 2o: riso + realização

Locução narrativa na primeira pessoa do singular: personificação da Kombi;

Variedade de estilos e elementos musicais;

1o: nostalgia 2o: apreensão 3o: ansiedade 4o: nostalgia + realização

Ruídos de contexto: gritos, explosões, passos, objetos

Cores: colorido; Planos: subjetividade das câmeras de segurança dos estabelecimentos Cenas: gravações de acontecimentos verídicos (documentário), fotografias, atuações;

Os Últimos Desejos da Kombi

Cores: alternância entre o colorido e P&B; Planos: alternância entre o plano geral e subjetivo

Depoimentos de personagens da história;

“Ictus”

Trilha sonora: diversidade de estilos musicais; Ruídos de contexto: disparos de câmeras, roncos de motor

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Considerações Finais Durante a realização da pesquisa, foi possível observar a ocorrência de uma dinâmica entre diversas áreas do conhecimento, uma vez que a temática da linguagem foi estabelecida como norteadora do trabalho. Diante das teorias estudadas, é interessante perceber que, no campo da comunicação, a pluralidade de elementos que um indivíduo pode agregar para a sistematicidade da interatividade, entretenimento e persuasão é muito maior do que se poderia imaginar quando a pesquisa foi iniciada. Além deste fato, se fez possível analisar detalhes de alguns dos principais elementos que constituem a comunicação audiovisual, descobrindo particularidades sobre eles que, na publicidade, podem funcionar como estratégias e táticas para tornar a comunicação com o espectador mais atraente e persuasiva. No estudo da linguagem sonora e alguns dos principais elementos musicais, estabeleceu-se uma ponte entre especificidades do campo da música e da comunicação audiovisual, tornando executável o levantamento de estratégias utilizados no cinema, televisão e publicidade para atrair o espectador. A abordagem semiótica, manifestada principalmente no início da pesquisa, permitiu traçar de que maneira um sistema comunicacional é construído. À vista disso, as concepções sobre o que é o efeito de hibridização puderam ser migradas para todos os campos que envolveram a pesquisa. Ou seja, foi possível notar que todas as formas de comunicação são, de fato, constituídas pelo cruzamento de diversos elementos. Dentre estas formas, observou-se a materialização da hibridização nas linguagens, na música, no audiovisual, na publicidade e em sua própria concepção artística. Diante disso, percebeu-se que cada elemento ou linguagem que constitui uma hibridização detém de particularidades únicas, e quando um cruzamento acontece, um novo sentido é criado sem que as essências destes elementos sejam alteradas. Este pensamento foi levado ao estudo de caso, onde foram analisadas as especificações da linguagem visual e sonora de cada comercial separadamente, para então observar o efeito de complementaridade quando estas foram unidas na peça. A análise dos três casos permitiu constatar que a publicidade busca, através da hibridização das linguagens, oferecer gratificações individuais aos espectadores, a fim de aproximar a marca de seus consumidores. Com isto, foi possível perceber a importância de conhecer as estratégias e elementos que contribuem para deixar a publicidade com um aspecto mais humano e compassivo. Dentre estas estratégias, verificou-se que a articulação sonora é, de fato, um dos elementos mais persuasivos na publicidade audiovisual, uma vez que ela exerce o papel de guia sobre as emoções do espectador. Foi possível perceber que, com a manipulação dos elementos sonoros, é viável estabelecer uma ordem sequencial de sensações que o indivíduo experiencia ao assistir os comerciais, pois a alternância entre as audições periférica e focalizada sugerem quais aspectos da narrativa o espectador deve focalizar em cada momento. Concebese a veracidade na citação de Schafer (1994, p.29): “O ouvido não possui pálbebras”. Ele está sempre ativo e pensante. A realização da análise do surgimento das emoções, de acordo com a música, abriu as portas para um futuro estudo sobre a influência da neurociência na publicidade, estabelecendo como bases a linguística e a estética da comunicação. 68

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A conexão que se estabelece entre a música e a publicidade viabiliza um campo de estudo que, não só permite a descoberta de significações infinitas em favor das marcas e do próprio indivíduo, mas também oportuniza ao pesquisador a experimentação de uma pluralidade de emoções distintas. Além de constituir-se como uma excelente estratégia persuasiva na comunicação publicitária audiovisual, nota-se que a articulação sonora é capaz de fortalecer o posicionamento das marcas na mente do público consumidor.

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LETÍCIA MARIA MORGADO RODRIGUES

Discurso do Medo na Campanha Presidencial de 2014 Hilton Castelo – orientador do trabalho

Fui orientador da Letícia em dois momentos da graduação, no Programa de Iniciação Científica e na monografia de conclusão de curso. Por isso, posso afirmar com conhecimento de causa que estamos diante de uma pessoa com potencial imenso para destacar-se no meio acadêmico brasileiro. A nota dez dada pela banca à monografia “Discurso do Medo na Campanha Presidencial de 2014” é indiscutível. Compreendendo e articulando uma base teórica complexa e eficaz, que vai de Thomas Hobbes e Jean Delumeau até Patrick Charaudeau e Zygmunt Bauman, Letícia investiga o medo em aspectos filosóficos, éticos e discursivo na sociedade pós-moderna para, enfim, entendê-lo como estratégia da última campanha presidencial. Entre outros aspectos, o excelente texto de Letícia busca compreender o medo em seus aspectos primários, históricos e filosófico; o medo na gênese do Estado e do consciente coletivo; o medo nos regimes políticos de esquerda e de direita; o papel discursivo do medo nas mídias. E, para contextualizar e analisar essas questões, a monografia analisa, na parte final do trabalho monográfico, seis peças de propaganda de uma das eleições mais disputadas da histórica política brasileira, procurando, ao fim, responder se tal artifício discursivo pode ser valorado de modo negativo nas campanhas dos três principais candidatos, Dilma Rousseff (PT, Partido dos Trabalhadores), Aécio Neves (PSDB, Partido da Social Democracia Brasileiro) e Marina Silva (PSB, Partido Socialista Brasileiro). Nas palavras de Letícia: “Repercutiu na mídia de uma forma negativa, sob a alegação de que as campanhas eleitorais se utilizavam de mentiras e calúnias com o intento de gerar um discurso do medo. A partir de tais alegações, surgiu a proposta deste trabalho de compreender se houve nas campanhas eleitorais de 2014 dos três principais candidatos citados acima uma estrutura de discurso passível de causar medo e, em caso afirmativo, se esse tipo de discurso teria um valor simbólico negativo atrelado. A fim de alcançar os resultados esperados, foram utilizados métodos de estudo de caso e análise de discurso. O critério utilizado para a escolha dessas campanhas foi a presença explícita de expressões do universo lexical da palavra ‘medo’. Toda a análise foi elaborada tendo por base os conceitos vistos no capítulo sobre a estrutura do discurso político. ” Uma pesquisa atual e relevante para o entendimento da propaganda política brasileira.

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DISCURSO DO MEDO NA CAMPANHA PRESIDENCIAL DE 2014

Discurso do medo na campanha presidencial de 2014

Orientador: Prof. Ms. Hilton Castelo

Letícia Maria Morgado Rodrigues

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LETÍCIA MARIA MORGADO RODRIGUES

Aos meus pais Sônia e Cirineu.

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DISCURSO DO MEDO NA CAMPANHA PRESIDENCIAL DE 2014

Agradecimentos Primeiramente, agradeço ao professor Hilton Castelo pela orientação deste trabalho. Agradeço por toda a confiança, apoio, oportunidades e ensinamentos durante o percurso deste projeto e da minha jornada acadêmica como um todo. Agradeço a minha família pelo carinho e dedicação. Aos meus pais, Cirineu e Sônia, que acompanharam meu crescimento, me incentivando em todos os momentos. Ao meu irmão Eduardo e aos meus avós Oswaldo e Elsa. Eu devo tudo que sou a vocês. Em especial, faço um agradecimento extra ao meu pai, pela infinita paciência para ouvir todos os meus questionamentos, me auxiliar na revisão deste trabalho e contribuir com críticas e sugestões. Agradeço a todos os professores do curso de Publicidade e Propaganda por dedicaremse a nos transmitir uma das maiores virtudes que se pode ter: o conhecimento. Por último, agradeço a todos os meus amigos pelas risadas e aprendizados.

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LETÍCIA MARIA MORGADO RODRIGUES

Resumo O objetivo deste trabalho é compreender se houve nas campanhas eleitorais de 2014 dos três principais candidatos à Presidência da República (Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva) uma estrutura de discurso do medo e se tal discurso seria ético. Discutiu-se inicialmente aspectos primários do medo usando por base os estudos de António Damásio e Paulo Dalgalarrondo. Posteriormente, buscou-se traçar uma cronologia do papel do medo na história da humanidade, desde a sua importância na gênese do Estado até as suas características em uma sociedade pós-moderna, como referência utilizou-se os autores Jean Delumeau, Thomas Hobbes e Zygmunt Bauman. Em segunda instância, foi analisada a funcionalidade do medo dentro da política. Depois de explorar as principais faces do medo, o trabalho dedicou-se a compreender as principais estratégias e recursos que compõem um discurso político, tendo como referência o estudo de Patrick Charaudeau. A seguir, passou-se à análise de seis peças que foram contempladas nas campanhas dos três candidatos retro referidos. Como resultante das pesquisas e das análises foi possível concluir que houve a presença do medo dentro do discurso eleitoral de 2014, e que este poderia resultar em um valor negativo para a sociedade. Palavras-Chave: Medo; Discurso; Política; Eleições 2014; Eleições Presidenciais.

Abstract The purpose of the essay is to understand whether there was a structure likely to cause fear in the 2014’s election campaign of the three main candidates for president (Dilma Rousseff, Aécio Neves and Marina Silva) and if such speech would be ethical. Therefore, first we discussed the primary aspects of fear based in the studies of António Damásio e Paulo Dalgalarrondo. Afterwards, we seek to draw a chronology of fear’s role in the human history, since its importance in the State’s genesis until its role in the postmodern society, using as reference the authors Jean Delumeau, Thomas Hobbes e Zygmunt Bauman. Later on, it was analyzed the fear feature in the politics. After exploring the main faces of fear, the essay dedicated itself to understand the key strategies and resources that compose a political speech having as reference the studies of Patrick Charaudeau. All in all, the project analyzed 6 pieces of the leading candidates’ campaigns. Within the reached results, we were able to conclude that there was a fear speech in the 2014’s election, and this speech could have a negative value for the society. Key-Words: Fear; Speech; Politics; 2014’s Election; Presidential Elections.

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Lista de Ilustrações Objeto 1 – Possíveis cadeias parafrásticas _________________ 116 Figura 1 – Família de camponeses _______________________ 116 Figura 2 – Família no caminhão _________________________ 116 Figura 3 – Menina na rua _____________________________ 117 Figura 4 – Menina tomando sorvete _____________________ 117 Objeto 2 – Possíveis cadeias parafrásticas _________________ 118 Figura 5 – Banqueiros conversando ______________________ 119 Figura 6 – Família almoçando __________________________ 119 Figura 7 – Comida desaparecendo _______________________ 119 Figura 8 – Banqueiros sorrindo _________________________ 119 Objeto 3 – Possíveis cadeias parafrásticas _________________ 120 Objeto 4 – Possíveis cadeias parafrásticas _________________ 121 Objeto 5 – Possíveis cadeias parafrásticas _________________ 122 Objeto 6 – Possíveis cadeias parafrásticas _________________ 124

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Sumário 1. Introdução _______________________________________________ 83 1. O Medo _________________________________________________ 84 1.1 Aspectos primários do medo _______________________________ 84 1.2 Aspectos históricos e filosóficos do medo _____________________ 85 1.2.1 O medo na gênese do Estado ______________________________ 85 1.2.2 O medo no consciente coletivo ____________________________ 87 1.2.3 O medo e a sua classificação ______________________________ 89 1.2.4 O medo em uma sociedade pós-moderna ____________________ 89

1.3 O medo na política _______________________________________ 90 1.3.1 O medo de esquerda e de direita ___________________________ 92

1.3.1.1 Fatos históricos relacionados à ideologia de esquerda ________ 94

1.3.1.2 Fatos históricos relacionados à ideologia de direita __________ 96 1.3.2 O medo relacionado à direita e à esquerda no Brasil ____________ 97

1.3.2.1 História do Partido dos Trabalhadores (PT) ________________ 102

2 O discurso ________________________________________________ 103 2.1 Breve história da retórica __________________________________ 103 2.2 O discurso político ________________________________________ 104 2.2.1 Ethos e algumas estratégias do discurso político _______________ 106 2.2.2 O discurso de direita e de esquerda _________________________ 110 2.2.3 Instância midiática _____________________________________ 111

2.3 A política e a ética ________________________________________ 112

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3 Análise da campanha _____________________________ 114 3.1 O papel do receptor no processo comunicacional _____ 114 3.2 Campanhas eleitorais presidenciais de 2014 _________ 115 3.2.1 Enunciado de Dilma –15/04/2014 – campanha partidária __________________________ 115 3.2.2 Enunciado do programa de Dilma – 09/09/2014 – 1º turno _________________________ 117 3.2.3 Enunciado do programa de Marina – 25/09/2014 – 1º turno _________________________ 119 3.2.4 Enunciado do programa de Aécio – 14/10/2014 – 2º turno _________________________ 121 3.2.5 Enunciado do programa de Aécio – 22/10/2014 – 2º turno _________________________ 121 3.2.6 Enunciado do programa de Dilma – 24/10/2014 – 2º turno_________________________ 124

Considerações finais _______________________________ 125 Referências _______________________________________ 131 Anexo - Carta ao povo brasileiro ______________________ 133

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Introdução As eleições presidenciais de 2014 foram marcadas por intensas reviravoltas, a começar pela morte do candidato do PSB (Partido Socialista Brasileiro) Eduardo Campos em um acidente aéreo no dia 13 de agosto de 2014 – pouco mais de dois meses antes das eleições do primeiro turno. A morte do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, colocou a candidata Marina Silva, vice de Eduardo Campos, na disputa pela presidência. O resultado foi uma contenda acirrada entre os três principais candidatos: Marina Silva pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), Aécio Neves pelo PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro) e a presidente da República Dilma Rousseff pelo PT (Partido dos Trabalhadores). Outro marco importante dessa campanha, foi o de que, pela primeira vez em 25 anos, os eleitores indecisos é que decidiriam o resultado final do pleito. Segundo Zalis (2014) isso só havia acontecido uma vez antes, nas eleições de 1989. Nas eleições de 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso venceu no primeiro turno. Em 2002, 2006 e 2010 a diferença entre o primeiro e o segundo colocados era maior do que o número de eleitores indecisos, significando que, mesmo que todos os eleitores sem candidatos votassem no mesmo nome, isso não seria suficiente para determinar o vencedor. Na história do Brasil, a única eleição que se compara a esta – e não só pela força das caneladas trocadas entre os candidatos – é a que opôs Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva. Às vésperas do segundo turno, o petista estava a apenas 3 pontos porcentuais de Fernando Collor, e os indecisos eram 6% - a mesma porcentagem se vê agora, com a diferença de que, em relação a 1989, a distância entre Dilma Rousseff e Aécio Neves é ainda menor. Segundos os institutos Datafolha e Ibope, o candidato do PSDB tem 2 pontos porcentuais de vantagem. Metade do Brasil está com Dilma e metade com Aécio – mas quem vai definir o nome do candidato que subirá a rampa do Palácio do Planalto no dia 1º de janeiro será o grupo que, por enquanto, não está com nenhum dos dois. (ZALIS, 2014, p. 50)

Um aspecto de grande importância político-social que, segundo diversos jornais e revistas como VEJA, CBN e Estadão, esteve presente nas propagandas eleitorais foi o que se pode denominar de discurso do medo. Segundo essas mídias, foi uma constante nas campanhas de todos os partidos, porém com destaque particular à campanha promovida pelo Partido dos Trabalhadores. A campanha do PT, idealizada pelo jornalista e publicitário João Santana, teria empregado especialmente o discurso do medo como estratégia de comunicação. Teria se utilizado deste recurso para desestabilizar os seus principais oponentes – em destaque a candidata Marina Silva, que até ser ultrapassada de maneira surpreendente por Aécio Neves no primeiro turno, era tida como a principal rival da candidata Dilma Rousseff. A partir daí surgiu a importância de estudar se tal discurso foi efetivamente empregado e de entender a sua eficiência e eficácia no campo político. Portanto, este o objetivo deste projeto. Analisar as campanhas eleitorais dos três principais candidatos à presidência, para compreender se teria existido em suas peças um discurso do medo. Concluindo-se que houve essa estratégia, buscar compreender se haveria nesta técnica um valor simbólico negativo atrelado.

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Para alcançar os resultados esperados, foram utilizados os métodos de estudo de caso e análise de discurso. Primeiramente estudou-se o sentimento do medo em seu valor biológico, psicológico e simbólico, usando como referência os autores António Damásio e Paulo Dalgalarrondo. Posteriormente, foi discutido o papel do medo dentro da sociedade e qual o seu fundamento para a política, utilizando como base principalmente os autores Jean Delumeau, Thomas Hobbes e Zygmunt Bauman. No segundo capítulo, foi dada ênfase na estrutura do discurso político, englobando as suas principais características, estratégias e formatos, com base nos estudos de Patrick Charaudeau. Também procurou-se estudar a ética na política. Por último, o trabalhou buscou compreender o papel do receptor em um ato comunicacional e analisar, com base nos conceitos vistos no segundo capítulo - O DISCURSO, 6 peças de campanhas eleitorais dos três principais partidos (PT, PSB e PSDB). O critério utilizado para a escolha dessas campanhas foi a presença explícita de expressões do universo lexical da palavra “medo”, tais como: “terror”, “aterrorizar”, “amedrontar”, “ameaçar” e “perseguir”.

1. O medo “Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com a coragem.” (Jean-Paul Sartre)

De acordo com Delumeau (1996), dos povos ditos “primitivos” às sociedades contemporâneas, o medo é encontrado a cada passo, sendo um recurso utilizado há várias eras, em diversas liturgias. Descartes (1996) define o medo como uma perturbação da alma que subtrai o poder do indivíduo de resistir aos males que este pensa estarem próximos. Nesse capítulo, iremos abordar os aspectos biológicos, históricos e filosóficos do medo, bem como o seu papel na política e o seu surgimento dentro das esferas esquerdistas e conservadoras da sociedade.

1.1 Aspectos primários do medo O medo é caracterizado por uma reação obtida a partir do contato com algum estímulo físico ou mental que gera uma resposta de alerta no organismo. A emoção do medo é extremamente importante para a sobrevivência humana. Uma pessoa sem medo pode se expor a situações extremamente perigosas, arriscando a própria vida, sem medir as possíveis consequências trágicas de seus atos. Damásio (1996) define emoção como uma variação psíquica e física, desencadeada por um estímulo, subjetivamente experimentada e automática, e que coloca o indivíduo num estado de resposta a esse estímulo, sendo ela um meio natural de avaliar o ambiente que nos rodeia e de reagir a ele. Gross (2013) propôs um dos primeiros modelos para explicar o processo de regulação emocional e seus mecanismos. Para ele, a regulação emocional está conectada a um conjunto de processos pelos quais os indivíduos influenciam quais emoções irão ter, quando irão tê-las e como irão expressá-las. Em outras palavras, o estudo determina como e até que ponto uma pessoa é passível de controlar as suas emoções. No estudo, é proposto que as emoções são originadas de estímulos externos e internos. Esses 84

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estímulos se desencadeariam em respostas fisiológicas, comportamentais e subjetivas. A partir dessa definição de regulação emocional, Damásio (1996, p. 156,164) divide as emoções em dois tipos: primárias e secundárias. As primárias são inatas, evolutivas e partilhadas por todos, enquanto as secundárias são aprendidas nas interações sociais, como, por exemplo, o ciúme, a inveja e a vergonha. As emoções primárias, portanto, estão ligadas à vida instintiva, à sobrevivência. Seguindo essa linha de raciocínio, as emoções primárias podem ser adaptativas ou desadaptativas. As emoções adaptativas têm uma relação com a sobrevivência e bem-estar psicológico. Emoções primárias desadaptativas são aquelas que as pessoas lamentam tê-las expressado de maneira tão intensa ou equivocada. Nas emoções adaptativas estão inseridas a raiva, a tristeza, a alegria e o medo. Segundo Dalgalarrondo (2006) o medo não é uma emoção patológica, mas algo universal do homem. É um sentimento que pode ser descrito como um estado de progressiva insegurança e angústia, de impotência e invalidez crescentes, ante a impressão iminente de que sucederá algo que queríamos evitar e que progressivamente nos consideramos menos capazes de fazer. O medo coloca o indivíduo em um estado de alerta diante de um perigo. Delumeau (1996) descreve o processo fisiológico como um estado no qual o hipotálamo reage mediante mobilização global do organismo, desencadeando diversos tipos de comportamentos somáticos e provando modificações endócrinas. Biologicamente, a sensação do medo é uma consequência da liberação de hormônios, como a adrenalina, que propiciam um aumento dos batimentos cardíacos, aceleração na respiração e enrijecimento dos músculos. Em alguns casos, o organismo reage de forma exagerada ao medo, fazendo com que esse estado de alerta, benéfico em muitos momentos da vida, transforme-se em um estado patológico, quando o medo se transforma em fobia. A fobia é uma antecipação do medo ou da ansiedade. Sua característica mais importante é o comprometimento da relação que o sujeito estabelece com o mundo que o cerca. No caso da fobia, o medo não prepara o indivíduo para decidir entre lutar ou fugir, o único resultado obtido é a paralisação. Além dos aspectos biológicos e fisiológicos do medo aqui expostos, o simbolismo do medo pode ser configurado de forma diversa, nos seus aspectos históricos e filosóficos, dependendo da época, da história e da cultura de um povo, como veremos a seguir.

1.2 Aspectos históricos e filosóficos do medo O medo esteve presente desde o início da história. “Quer haja ou não em nosso tempo mais sensibilidade ao medo, este é um componente maior da experiência humana, a despeito dos esforços para superá-lo” (DELUMEAU, 1996, p. 18). É um sentimento que nasceu com o homem nas mais obscuras das eras e está dentro de nós, fazendo parte de nossa condição humana e acompanhando-nos em toda a nossa existência.

1.2.1 O medo na gênese do Estado Para Thomas Hobbes (2014), o medo é o que dá origem à sociedade. Os homens se igualam em seu estado de natureza pelo medo da morte violenta. Chauí (1987) completa dizendo que se houvesse a pergunta do que se tem medo, a resposta sempre REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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seria da morte e todos os males que possam simbolizá-la ou recordá-la. O Estado, então, é criado para prover segurança aos homens, instaurando-se pelo medo que impõe aos súditos e se mantendo pela esperança de uma vida melhor. “O medo da opressão nos faz preveni-la ou buscar ajuda na sociedade; não existe outro meio de assegurar a liberdade e a vida” (HOBBES, 2014, p. 80). Em outras palavras, como Bauman (2008) mais tarde colocou, o Estado encontrou sua razão de ser e seu direito na obediência dos cidadãos e na promessa de protegê-los das ameaças à sua existência. A esperança (spes) é uma alegria instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida. O medo (metus) é

uma tristeza instável nascida da ideia de uma coisa futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida. Segue-se dessas definições que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Aquele que está suspenso na esperança e duvida que advenha algo esperado, começa a imaginar algo que exclua a existência do esperado e, por conseguinte, passa da alegria instável à tristeza. Quem está suspenso na esperança tem medo de vê-la frustrada. Aquele, ao contrário, que é vítima do medo, isto é, duvida que advenha algo odiado, imagina alguma coisa que exclua a existência do temido e, por conseguinte, alegra-se na esperança de que não ocorrerá. (SPINOZA, 2007 apud CHAUÍ, 2009, p. 59).

Para entender melhor o medo como fundamento do Estado, da forma como Hobbes colocou, é preciso compreender antes as ideias que o autor tinha sobre os homens e suas condições. Em seguida, daremos continuidade com outros aspectos filosóficos do medo. Hobbes (2014) explica que a liberdade de cada homem em utilizar o seu poder como bem entender a fim de preservar a sua própria natureza – ou seja –, a sua própria vida e de, consequentemente, fazer tudo aquilo que seu julgamento e razão dizem ser necessário para alcançar este fim, é denominado Direito da Natureza (Jus Naturale). Já a Lei da Natureza (Lex Naturalis) é a norma geral estabelecida pela razão que proíbe o ser humano de agir de forma a destruir a sua vida, privá-lo ou fazê-lo omitir os meios necessários à sua sobrevivência. Em resumo, podemos entender o Direito como a liberdade de agir ou omitir, enquanto a Lei é o que obriga a agir ou omitir. Hobbes (2014) expõe que a condição humana é a da guerra de uns contra os outros. Parte do pressuposto que a natureza criou os homens em condição de igualdade nas faculdades do corpo e espírito. Por exemplo, um homem pode ser mais forte enquanto o outro é mais sagaz. Ou seja, o mais forte compensa a falta de sagacidade com a sua força, enquanto o mais sagaz compensa a sua falta de força com inteligência. Graças a essa compensação, a diferença entre um homem e outro não é tão importante que possa fazer um deles por si só subjugar o outro. No que diz respeito à força corporal, o homem mais fraco tem força o suficiente para matar o mais forte, seja mediante secretas maquinações ou aliando-se com outro que se ache no mesmo perigo que ele se encontra. Dessa condição de igualdade de capacidade entre os homens é que resulta a igualdade de esperança quanto ao nosso fim (que pode ser, entre outras coisas, prazer próprio, felicidade, e, principalmente, sobrevivência). Essa seria a causa de que se os homens desejam as mesmas coisas, porém não podem desfrutá-las por igual, tornam-se inimigos e tratam de eliminar ou subjugar uns aos outros.

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O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais feliz. (HOBBES, 2014, p. 123)

Além disso, Hobbes (2014, p. 95) alega que na natureza humana existem três causas principais da discórdia, sendo elas: “Competência, Desconfiança e Glória”. A primeira impulsionaria os homens a atacarem-se para lograr algum benefício; a segunda é o garantir a segurança; já a terceira é o que confere a reputação. Sendo assim, se não há um poder comum capaz de manter os homens em respeito, cria-se a condição denominada guerra. A natureza da guerra não necessariamente consiste em uma luta real, porém na disposição para a mesma, e, durante esse tempo não existe segurança. Se esse estado de guerra é estabelecido entre os homens, perduraria o direito de cada um sobre todas as coisas e, dessa forma, não haveria possibilidade de segurança para ninguém. Para que os homens alcancem a paz, segundo essa linha de raciocínio, é necessário que concordem em renunciar aos seus direitos a todas as coisas, contentando-se com a mesma liberdade permitida aos demais. A partir da confiança da transferência mútua dos direitos, é que surge o pacto. Hobbes (2014) conclui que o fim último é a vontade de abandonar à mísera condição de guerra, consequência das paixões naturais dos homens. Para tanto, se faz necessário um poder visível que mantenha os homens em respeito, forçando-os, por temor à punição, a cumprir os seus pactos e o respeito à Lei da Natureza. Sem a espada, os pactos são apenas palavras sem forças, incapazes de dar a mínima segurança a alguém. Maquiavel em um tempo anterior a Hobbes já debatia sobre a necessidade de um soberano de saber usar a piedade. Maquiavel (1996) dizia que um príncipe deve desejar ser considerado piedoso e não cruel, entretanto não deve se preocupar com a fama de ser cruel se quiser manter os seus súditos unidos e obedientes. Para Maquiavel, a piedade excessiva deixa evoluir as desordens, que por sua vez prejudicam a sociedade inteira. Do ponto de vista de um soberano, e, em termos de manter segurança no poder, é preferível ser temido. Pois o temor é mantido pelo medo ao castigo, medo tal que nunca abandona as pessoas. Dessa forma, a sociedade em um estado de medo permanece unida e sob o controle de seu líder. As Leis da Natureza (tais como justiça, equidade, modéstia, piedade, que determinam que façamos aos outros o que queremos que nos façam), são contrárias as nossas paixões naturais, que nos inclinam para Parcialidade, Orgulho, Vingança e outras, se não houver o temor de algum poder que obrigue a respeitá-las. (HOBBES, 2014, p. 123)

Delumeau (1996) completa que a necessidade de segurança é fundamental, e está na base da afetividade e da moral humanas. A insegurança torna-se o símbolo da morte e a segurança o símbolo da vida. Entretanto, para o autor, o medo pode ser caracterizado como ambíguo. Inerente à nossa natureza, é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente da morte. Porém, se este ultrapassar uma dose suportável, ele se torna patológico e cria bloqueios.

1.2.2 O medo no consciente coletivo Delumeau (1996) traça um perfil do medo em um aspecto coletivo. Para ele, em um REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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sentido coletivo do medo, é provável que as reações de uma multidão tomada pelo pânico ou que libera subitamente a sua agressividade resultem em uma grande parte de adição de emoções, choques pessoais tais como vistas no item anterior. Entretanto, os comportamentos de multidão exageram, complicam e transformam os excessos individuais. Os caracteres da psicologia de uma multidão são sua influenciabilidade, o caráter absoluto de seus julgamentos, a rapidez dos contágios que a atravessam, o enfraquecimento ou a perda do espírito crítico, a diminuição ou o desaparecimento do senso da responsabilidade pessoal, a subestimação da força do adversário, sua capacidade de passar subitamente do horror ao entusiasmo e das aclamações às ameaças de morte. Como exemplo da importância das reações coletivas de temor, Delumeau (1923) cita a constituição de Esparta, que era fundada na ideia do medo. “Mobilizados permanentemente e aguerridos desde a infância, a população vivia sob uma constante ameaça de revolta dos hilotas1” (JARDÊ, 1977, p. 163). A fim de os paralisar pelo medo, Esparta precisou modificar-se cada vez mais radicalmente. Séculos após, a Inquisição também foi motivada e mantida pelo medo de um inimigo – a heresia. Mais recentemente, o fascismo e nazismo beneficiaram-se dos alarmes dos possuidores de rendas e dos pequenos burgueses que temiam as perturbações sociais, a ruina da moeda e o comunismo. Quando evocamos, no entanto, o medo de entrar em um carro para uma longa viagem ou lembramos de nossos ancestrais que temiam o mar, os lobos e os fantasmas, não remetemos, segundo Delumeau (1996), a comportamentos de multidão, e fazemos menos alusão à reação psicossomática de uma pessoa petrificada no lugar por um perigo repentino do que a uma atitude bastante habitual que subentende e totaliza muitos pavores individuais em contextos determinados e faz prever outros em casos semelhantes. Nessa esfera, o termo “medo” ganha um sentido menos rigoroso e mais amplo do que na esfera individual. Esse singular coletivo recobre uma gama de emoções que vai do temor e da apreensão ao mais vivo dos terrores. “O medo é aqui o hábito que se tem, em um grupo humano, de temer tal ou tal ameaça (real ou imaginária)” (DELUMEAU,1996, p. 24). Para compreender melhor como o sentimento de insegurança se dá em nível coletivo, também é importante esclarecer a distinção entre medo e angústia. Trata-se de dois polos em torno dos quais gravitam palavras e fatos psíquicos que são, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. O temor, o espanto, o pavor e o terror dizem mais respeito ao medo; já a inquietação, a ansiedade e a melancolia, estão relacionadas à angústia. O primeiro refere-se ao conhecido; a segunda, ao desconhecido. O medo tem um objetivo determinado ao qual se pode fazer frente. A angústia não o tem e é vivida como uma espera dolorosa diante de um perigo não identificado e, portanto, de certa forma mais temível. A angústia é um sentimento global de insegurança. Segundo Delumeau (1996), assim como o medo, a angústia é ambivalente. Reduzida ao plano psíquico é positiva quando prevê ameaças que, por serem ainda imprecisas, não se tornam menos reais. Tal sentimento estimula a mobilização do Ser. Porém, uma apreensão demasiadamente prolongada pode criar um estado de desorientação e inadaptação. Por ser impossível conservar o equilíbrio interno quando se está enfrentando uma angústia incerta por muito tempo, é necessário que o homem a transforme e a fragmente em medos precisos de alguma coisa ou alguém. O espírito 1 Os hilotas eram servos pertencentes ao estado, porém não faziam parte da cidade, não sendo assim protegidos pelas leis. Muito mais numerosos do que os seus senhores, os hilotas só permaneciam submissos pelo terror. Frequentemente organizavam revoltas na cidade.

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humano fabrica permanentemente o medo para evitar uma angústia mórbida. Delumeau (1996) aponta que em uma longa sequência de traumatismos coletivos, o Ocidente venceu a angústia “nomeando” e, até mesmo, “fabricando” medos particulares. Bauman (2008) classifica essa insegurança e esses medos como um “medo em segundo grau” ou “medo derivado”, experimentado apenas pelos seres humanos. Sentir um medo em segundo grau é sentir ser suscetível ao perigo e vulnerável. Caso a ameaça se concretize é ter a certeza de que terá nenhuma ou pouca chance de fugir e se defender. A distinção entre medo e angústia, como dito anteriormente, é fundamental para que possamos compreender, a partir da análise de casos individuais, as atitudes coletivas. As coletividades “mal-amadas” da história – em outras palavras, as minorias – podem ser comparadas com crianças privadas de amor materno, assim, situadas em falso na sociedade e, deste modo, tornando-se classes perigosas. A recusa do “amor” e da “relação” de uma classe dominante sob uma classe dominada não pode deixar de gerar medo e ódio. Partindo deste pressuposto é possível verificar no nível coletivo o que é evidente no plano individual: o elo entre medo e angústia de um lado e agressividade de outro. Freud (2010), apresenta em sua teoria do “instinto de morte” que a agressividade encontra em eros o seu eterno antagonista. Para ele a agressividade não reprimida dirige-se para outros grupos ou pessoas externas ao grupo e, a partir daí, instauram-se as guerras e perseguições.

1.2.3 O medo e sua classificação Se formos classificar os perigos que geram o medo, seguindo a linha de raciocínio de Bauman (2008), podemos classificá-los em três tipos. Temos então como primeiro tipo os perigos que ameaçam o corpo e as propriedades; como segundo tipo, os perigos que ameaçam a durabilidade da ordem social e a confiabilidade nela, pois é da ordem social que advém questões como a segurança do sustento e, até mesmo, sobrevivência em caso de invalidez ou velhice; e, por fim, os perigos que ameaçam o lugar das pessoas no mundo como, por exemplo, posição na hierarquia social, identidade de classe, gênero, etnia, religião, e de forma mais geral, imunidade a exclusões sociais – que retoma a ideia exposta acima de ficar inserido “em falso” na sociedade.

1.2.4 O medo em uma sociedade pós-moderna Compreendendo o papel do medo na sociedade, é preciso agora compreender como se porta frente ao medo uma sociedade pós-moderna. Bauman (2008) irá dizer que estamos inseridos dentro de um mundo líquidomoderno, que admite apenas uma única certeza: amanhã não pode ser, não deve ser e não será como hoje. O termo “modernidade líquida” seria uma substituição do termo “pós-modernidade”, que segundo o autor em entrevista à Oliveira (2010) passou a ser apenas um qualificativo ideológico. A vida líquida é uma vida desordenada, incapaz de tomar forma fixa, sendo vivida em ambientes constantes de incerteza e insegurança. A vida líquida moderna seria um ensaio diário de desaparecimento, extinção e morte, e consequentemente, um ensaio da não finalidade da morte, de ressurreições recorrentes e reencarnações perpétuas. “Como todas as outras formas de coabitação humana, nossa sociedade líquida moderna é um dispositivo que tentar tornar a vida com medo uma coisa tolerável” (BAUMAN, 2008, p. 13), em outras palavras, seria um dispositivo usado

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para reprimir e silenciar medos que não podem ou devem ser efetivamente evitados. Mathaniesen (2004 apud BAUMAN, 2008, p. 13) cita um processo denominado “silenciamento silencioso”, destinado a realizar o trabalho necessário de “calar” sentimentos angustiantes e capazes de destruir a ordem vigente. Sobre o processo de “silenciamento silencioso”: É estrutural. É parte da nossa vida diária; é ilimitado e portanto está gravado em nós; é silencioso e assim passa despercebido; e é dinâmico no sentido

de que, em nossa sociedade, ele se difunde e se torna continuamente mais abrangente. O caráter estrutural do silenciamento “exime” os representantes do Estado da responsabilidade por ele; seu caráter quotidiano o torna “inescapável” do ponto de vista dos que estão sendo silenciados; seu caráter irrefreado o torna especialmente eficaz em relação ao indivíduo; seu caráter silencioso o torna mais fácil de legitimar e seu caráter dinâmico o transforma numa mecanismo de silenciamento cada vez mais digno de confiança. (MATHIESEN, 2004 apud BAUMAN, 2008, p. 13)

Na vida líquida moderna, diferentemente do que os iluministas almejaram, vivemos sob uma constante luta contra o medo. Para os iluministas havia um dia em que seria possível domar os medos e refrear as ameaças que causavam. Porém, na sociedade atual, os perigos são companhias constantes e indissociáveis, como coloca Bauman (2008), da vida humana. Oportunidades para sentir medo é o que não faltam em nossa sociedade carente de proteção e segurança. Essa carência, por sua vez, é consequência da fragilidade dos vínculos sociais, característica essa definidora da modernidade líquida. Dentro dessa constante de medo que a sociedade líquida moderna está inserida, existem os medos pessoais e os medos que todos nós compartilhamos de maneira universal. Esses medos surgem de forma contínua, causando um grande sentimento de impotência. Sem conseguirmos entender sua origem ou sua lógica, não somos capazes de tomar as precauções necessárias para combater e/ou evitar os perigos que eles representam. De acordo com Bauman (2008), esses medos não fazem sentido. E não fazem sentido também quando colocados em uma esfera coletiva. Pois, mesmo sendo um medo coletivo, são enfrentados de forma individual. As condições da sociedade individualizada são inóspitas à ação solidária. Dentro desta sociedade existe uma resistência à solidariedade que poderia tornar os laços sociáveis duráveis e seguros. A sociedade não consegue manter-se unida de forma que o Estado consiga realmente prover a segurança da forma imaginada por Hobbes. Dessa forma, o medo continua uma constante, intrínseca à condição humana. Embora longe de esgotar o tema, as considerações acima nos permitem compreender alguns dos aspectos históricos e filosóficos do medo. No próximo item discutiremos o medo dentro de uma esfera política.

1.3 O medo na Política Neste item iremos retomar as ideias antes citadas de Hobbes e Maquiavel para compreendermos melhor a face do medo dentro do campo político. Maquiavel atribuía ao Estado função absoluta. De acordo com Châtelet (2000), foi Maquiavel quem deu ao Estado a significação de poder central soberano, legitimo e 90

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decisório. No seu pensar, a política deve transformar-se de uma ordem imposta ao mundo para uma atividade necessária à existência coletiva. Mais tarde, Hobbes irá explicar como essa transformação acontece, adicionando, à ação política, o medo. O medo, além de ser a paixão que direciona os seres humanos a ter ação política, segundo Einsenberg (2005), também é o sentimento norteador e necessário de uma teoria política moderna. Em seu ensaio “O Político do Medo e o Medo da Política”, Eisenberg (2005) cita uma frase do personagem de Riobaldo em Grande Sertão - Veredas: “medo não, perdi a vontade de ter coragem”. Para Einsenberg (2005) nesta frase irreverente e irônica residem conotações profundamente políticas. Essa coragem de ter medo, implícita na obra de Guimarães Rosa, é o elemento central para a constituição de um sentido republicano do político. Para o autor, esta frase ajuda a esclarecer aspectos importantes do ato de legitimar uma autoridade através do consentimento, de obedecer a essa autoridade e, até mesmo, formas de resistir a ela. Para dar continuidade ao pensamento de Eisenberg, retomamos o pensamento de Hobbes de que do medo nasce a ação política e do pacto social nasce a obediência a um soberano. Porém para Eisenberg (2005), o medo que leva os humanos para essa ação libertadora, ou seja, a ação política, não seria o da morte violenta, como acreditava Hobbes, e sim o da servidão. Montaigne (1946) irá nos dizer que o medo é mais insuportável que a morte. O que esses autores querem mostrar, é que, por exemplo, se tivéssemos que escolher entra a morte violenta, porém instantânea, ou uma vida de torturas brutais, certamente escolheríamos a morte. Nesse caso, fica claro que o nosso principal terror não é o medo da morte, mas o da servidão, como Eisenberg coloca. A frase de Riobaldo “medo não, perdi a vontade de ter coragem” pode assumir uma outra interpretação no dizer de Eisenberg (2005). Ao renunciar ao medo, Riobaldo deixa seu espírito mobilizar um conjunto de emoções que o habilita a ter uma ação libertadora, o que, para o autor, significa a coragem de assumir o medo e a esperança de dominá-lo. Dessa esperança de dominação e superação é que se inicia a construção da “coragem de resistir àquilo que lhe causa medo, mas também coragem de obedecer àquilo que pode tirar-lhe o medo” (EISENBERG, 2005, p. 51). Dentro dessa lógica, surgiria um processo de coordenação entre os homens que os permitissem se livrar da condição servil e construir uma sociedade justa. Dentro deste processo de coordenação surge um pacto de superação coletiva do medo. De acordo com Eisenberg (2005), a ação coletiva retro referida, gerada pelo que o autor denomina de “sociedade reflexiva”, dá origem a obrigações e deveres, não individuais, mas coletivos, criados na convergência racional de agentes com coragem de ter medo e esperança de superá-los. Seguindo esse raciocínio, temos então o surgimento de um modelo da política sem espaço para interesses de indivíduos ou grupos, uma vez que, quando na presença do medo, esses interesses são relegados para a periferia das paixões humanas. Como exposto por Hobbes, nosso fim último principal é a sobrevivência. É este impulso de sobreviver que determina a nossa condição humana e todas as paixões que a acompanham. Para Eisenberg (2005), quando esse impulso se manifesta de forma negativa sob a figura do medo, somos impelidos a agir. Não é uma escolha. A partir desta obrigatoriedade emerge uma disposição ao dever do qual nasce a virtude cívica que nos impele a ações para superar o medo. Desta sociabilidade reflexiva nasce a REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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política com o seu dever mais importante: a obediência. Como Maquiavel (1999, p. 82) colocou: “Os homens amam segundo a sua vontade e temem segundo a vontade do príncipe”. A obediência se diferencia da servidão por um motivo aparentemente sutil, mas central à sua lógica argumentativa: a obediência é voluntária, ou seja, consentida. [...] Em outros contextos, obedecer porque tenho medo não é servir voluntariamente, mas somente reconhecer que a constituição deste artífice chamado autoridade política tranquiliza a alma, protege o corpo e nos insere em uma comunidade ordenada cujas regras podem ser igualmente válidas para todos. Em outras palavras, o medo gera consentimento. (EISENBERG, 2005, p. 54)

Para Hobbes (2014) o Estado nasce a partir de um pacto suscitado pelo medo: “um pacto que transforma uma multidão amorfa em um corpo político” (GINZBURG, 2014, p. 16). No seu pensar, um Estado é considerado instituído quando uma assembleia de homens concorda e pactua que o homem que for eleito pela maioria como representante do povo tem autoridade para governar a todos. Deve tomar decisões que garantam a segurança e a paz dos seus governados. Einsenberg (2005) irá indagar a respeito dessa autoridade do governante se ela foi fruto apenas do medo. O autor dá como exemplo os índios brasileiros que, por medo das armas do governo colonial, se submeteram à autoridade dos jesuítas, para concordar com a tese de que o medo pode ser causa de uma autoridade legítima, ainda que não justa. Ginzburg (2014) também é categórico ao afirmar que o pacto social é válido mesmo que criado em uma situação de medo. “O príncipe que estabelece a sua autoridade por conquista, é tão legítimo quanto aquele que é aclamado pelos cidadãos” (MAQUIAVEL apud EISENBERG, 2005, p. 58). Sendo assim, segundo Hobbes (2014), é obrigação de cada homem reconhecer o seu soberano. Portanto, Einsenberg (2005) conclui, com fundamento nas explicações expostas acima, que o medo é uma paixão positiva. O medo é o sentimento que constrói a imagem do inimigo e estabelece os amigos, formando assim o político. O príncipe é o senhor da legislação, porque define o Bem e o Mal públicos, e, por conseguinte, no que se refere às questões públicas, nem ele nem os cidadãos devem se valer dos “mandamentos” da Igreja ou da tradição moral; que, nessas mesmas questões, a recusa da violência é uma tolice e que, de resto, cabe distinguir a violência que “conserta” daquela “que destrói”. (CHÂTELET, 1985, p. 39)

Segundo Sakai (2012) o medo é a única lei que não pode ser quebrada. Para a autora, essa “lei do medo” pode ser comparada às leis de exceção impostas por governos quando decretam estado de sítio2 e, por consequência, desqualificam outras leis. Nessa hipótese, o medo acaba por atribuir ao governante poder absoluto, sob o pretexto de garantir a segurança frente a inimigos internos e externos.

1.3.1 O medo de esquerda e de direita Neste subitem utilizaremos o conceito político de “direita” e “esquerda”, seguindo a linha de pensamento de Norberto Bobbio. Segundo o filósofo político Norberto Bobbio (2001), em seu livro “Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política”, direita e esquerda são dois termos que há mais de dois séculos são costumeiramente empregados para designar o contraste 2 Medida provisória de exceção que um Estado pode adotar quando está sob determinada ameaça.

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entre ideologias e movimentos que caracterizam o universo político. A distinção entre direita e esquerda teria surgido na Revolução Francesa para nominar as ideologias antagônicas atuantes. Enquanto termos opostos, eles são reciprocamente excludentes e conjuntamente exaustivos. O que o autor quer nos dizer com isso é que nenhuma doutrina ou movimento pode ser simultaneamente de direita e de esquerda, uma vez que são opostos – uma conotação positiva de um obrigatoriamente implica em uma conotação negativa do outro. E são exaustivos no sentido de que uma doutrina pode ser apenas de direita ou apenas de esquerda. Por esse conceito, Bobbio (2001) cita o filósofo francês Jean-Paul Sartre para contrariálo. Segundo Bobbio (2011, p. 50), Jean Paul Sartre foi um dos primeiros pensadores políticos a afirmar que direita e esquerda são “caixas vazias” e, portanto, palavras que não teriam mais razão para serem usadas. Na fundamentação das primeiras dúvidas a respeito do desaparecimento dessa distinção entraria a chamada crise de ideologias. Bobbio (2001) irá defender que, na realidade, as ideologias nunca deixaram de existir, sendo apenas substituídas por outras ideologias novas ou que pretendem ser novas. A própria afirmação de que as ideologias estão em crise pode ser considerada uma ideologia. Além do mais, ainda segundo Bobbio (2011), esquerda e direita contemplam aspectos que vão muito além de uma mera ideologia. Dentro dos conceitos de esquerda e direita existem programas contrapostos em relação a diversos problemas cuja solução pertence à ação política, contrastes de interesses e de valoração sobre a direção a ser seguida. Bobbio (2001) rebate a alegação de que não se pode falar em direita e esquerda em sociedades democráticas, porque existe uma pluralidade tão imensa de ideologias que não se pode mais colocar os problemas sob a forma de antítese. O autor deixa claro que a objeção, apesar de ir ao ponto certo, não é decisiva. A distinção entre direita e esquerda não exclui de modo algum de que em uma linha continua que vá de um conceito ao outro, exista espaço para posições intermediárias, conhecidas como “centro”. Essa visão que permite a inclusão de um espaço intermediário entre os extemos direita e esquerda é denominada “Terceiro Incluído”: Neste caso em que existe um espaço intermediário simbolizado pela fórmula “nem-nem”, dizem-se contrários. Nada de estranho: entre o preto e o branco pode existir o cinza; entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas o cinza não elimina a diferença entre o branco e o preto, nem o crepúsculo elimina a diferença entre o dia e a noite. (BOBBIO, 2011, p. 54)

Apesar de que, em diversos sistemas democráticos, o Terceiro Incluído ocupe um espaço mais amplo do sistema político, ele não elimina a antítese originária, uma vez que o próprio centro ao não se definir nem como esquerda nem como direita, extrai dessa oposição a sua própria razão de existência. Em relação a uma definição do que seja pessoa de esquerda e de direita, Bobbio (2011) irá citar o jornalista italiano Dino Cofrancesco. Para Cofrancesco, a alma de direita está inexoravelmente ligada à tradição. Na visão do jornalista, o homem de direita é aquele que se preocupa em manter a tradição enquanto o homem de esquerda é aquele que tem como preocupação a libertação. Antes de prosseguir nas distinções entre direita e esquerda, é importante distinguir uma doutrina igualitária de uma igualitarista. De acordo com Bobbio (2001), nos

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últimos anos o critério mais comum adotado para chegar a uma definição de esquerda e direita é a postura assumida diante do ideal de igualdade. Conceito este que é relativo. Para chegar-se em um conceito de igualdade, Bobbio (2001, p. 112) propõe que três preceitos devem ser levados em consideração, sendo eles: a) os sujeitos entre os quais os bens devem ser repartidos; b) os bens a serem repartidos; c) o critério a ser utilizado para fazer essa repartição. Os resultados obtidos a partir dessas três variáveis podem ser inúmeros. Os critérios podem ser adotados com base no mérito, necessidade, capacidade, entre outros. A doutrina igualitária é definida pela tendência de reduzir as desigualdades sociais, já uma doutrina igualitarista tem como preceito “a todos a mesma coisa”. É importante ressaltar essa diferença, pois com muita frequência há quem considere a igualdade característica distintiva da esquerda, e acaba por acusar os igualitários de igualitaristas. Quando se diz que a esquerda é igualitária – e, portanto, a direita seria inigualitária –, não significa que a esquerda proclama que todos os homens devam ser iguais em tudo, ignorando qualquer critério discriminador. O que o autor quer dizer é que, apesar da esquerda ter uma maior propensão a diminuir desigualdades, ela não pretende eliminar todas as desigualdades. Assim como a direita não pretende conservar todas as desigualdades. A igualdade como ideal supremo, ou até mesmo último, de uma comunidade ordenada, justa e feliz, e, portanto, de um lado, como aspiração perene dos homens conviventes, e, de outro, como tema constante das teorias e ideologias políticas, está habitualmente acoplada ao ideal de liberdade, considerado, também ele, supremo e último. (BOBBIO, 2001, p. 127)

A igualdade, em sua formulação mais radical, está relacionada aos traços das cidades utopistas. Em especial, o termo igualitarista é que deu origem às utopias. Para Bobbio (2001), a persistência dos ideais utópicos ao longo da história comprova o fascínio que o ideal de igualdade, liberdade e paz exercem sobre os homens. De acordo com Sakai (2012) as ideias mais radicais de igualdade surgiram no processo da Revolução Francesa (onde surgiu o famoso trinômio “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”). Entretanto, o nascimento das doutrinas socialistas que propunham a construção de uma sociedade mais justa, está historicamente ligado ao processo da Revolução Industrial. Tendo por base a tese “Os Sentidos do Medo no Discurso Político Eleitoral Brasileiro Contemporâneo”, de Daiane Sakai, serão apresentados agora os principais fatos históricos mundiais ligados ao surgimento de um medo de esquerda e de direita.

1.3.1.1 Fatos históricos relacionados à ideologia de esquerda Os primeiros pensadores socialistas defendiam a tese da completa igualdade social, razão pela qual foram denominados socialistas utópicos. Sakai (2012) cita, como exemplo desses pensadores, Robert Owen (fundador de cooperativas), Charles Fourier (defensor de comunidades de trabalhadores) e Saint-Simon (defensor da ideia de que o próprio desenvolvimento industrial acabaria por extinguir os patrões e empregados). Esses pensadores, em linhas gerais, defendiam a produção sem a finalidade de lucro, o direito de ensino para todos, a igualdade completa de direitos e a sistematização do trabalho. O socialismo científico, ou marxismo, teve início em 1848 com a publicação do “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friederich Engels. Criticando tanto o 94

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capitalismo quanto a utopia, o socialismo científico considera a infraestrutura de um sistema (economia e sociedade) como componente básico para que ocorram transformações na superestrutura do mesmo sistema (político, ideológico e cultural). Os socialistas históricos partem da análise das leis e dos princípios determinantes da história para verificar que na evolução do capitalismo haveria uma “luta de classes” entre trabalhadores e patrões que culminaria na tomada do poder pelo proletariado e na transformação da sociedade capitalista em socialista, até se chegar à sociedade comunista3. Para os anarquistas, a revolução proletária deveria derrubar não somente a propriedade privada, como também o Estado, uma vez que é nele que se originam os males da sociedade. O Estado deveria ser substituído por comunidades cooperativas que almejariam apenas o autoabastecimento e não o lucro. Entre os anarquistas, destacase Pierre-Joseph Proudhon, que propôs uma sociedade de homens livres e iguais, sem classe, sem exploração e sem Estado. Outro percursor de destaque foi Mikhail Bakunin, que defendia a violência como meio de ação das massas. Essas ideias anarquistas se opunham, em alguns aspectos, com as ideias do socialismo cientifico, resultando em críticas e contestações entre Marx e Bakunin. Diante das pressões sociais, a própria Igreja católica foi forçada a tomar uma posição em relação aos capitalistas e operários. O chamado “socialismo cristão” acreditava na “aplicação dos ensinamentos cristãos para corrigir os males da sociedade industrial e humanizar o capitalismo, sem, contudo, atacar as suas estruturas fundamentais” (SAKAI, 2012, p. 27). O papa Leão XIII reconheceu a gravidade da questão social na “Encíclica Rerum Novarum” (1891), condenando a exploração do homem pelo homem, porém rejeitando as soluções socialistas. Em 1928, Joseph Stalin assumiu o poder da União Soviética, onde permaneceu como líder até 1953. O período de sua liderança foi marcado pela adoção do sistema socialista, consolidação da organização econômica e aplicação dos chamados Planos Quinquenais (planos que previam metas para a economia russa em cinco anos). O primeiro Plano Quinquenal surgiu para substituir a NEP (Nova Política Econômica) - que permitia pequenas explorações agrícolas, industriais e comerciais à iniciativa privada, como forma de alavancar a economia da União Soviética. O primeiro Plano Quinquenal (1928-1932) previa a priorização da indústria pesada e a coletivização da propriedade agrícola, criando-se as “sovhozes” (propriedades do Estado, onde o camponês recebia salários e prêmios de produção) e os “kolkhozes” (fazendas coletivas que funcionavam como cooperativas de produção dos camponeses). Como resultado, o Primeiro Plano Quinquenal obteve o crescimento efetivo da indústria pesada e o nível de socialização da economia passou de 44% a 93%. O Segundo Plano Quinquenal (1933-1937) continuou a ter a indústria pesada como prioridade, porém também se preocupou em desenvolver uma reconstrução técnica de toda a economia nacional. Segundo Araújo (2015), no livro “Manual de Economia Política”, como resultado do Segundo Plano Quinquenal, a URSS se converteu em um país economicamente independente. Dessa forma, o socialismo foi, no fundamental, edificado na URSS. Além da indústria pesada, o Terceiro Plano Quinquenal (1938-1942) deu ênfase também na indústria química e na produção de energia elétrica. Porém, a sua execução foi interrompida devido ao início da Segunda Guerra Mundial. 3 Fausto (2001) nos diz que, diferente dos anarquistas, os comunistas valorizam o papel do Estado e acreditam no poder centrado na mão dos dirigentes. Os socialistas e comunistas divergem em perspectivas estratégicas. Comunistas acreditam nas reformas como caminho para a revolução, já os socialistas acreditam na reforma em si.

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A realização dos Planos Quinquenais ajudou a transformar a URSS em uma potência mundial, além de ter impulsionado importantes mudanças sociais como a redução do analfabetismo, assistência médica e hospitalar gratuita, acesso da população às atividades educacionais e culturais, entre outras. O período stalinista foi marcado por um endurecimento do Partido Comunista e por um poder ditatorial. Nessa época houve uma forte repressão dos movimentos anticomunistas por parte do partido e da própria população. Em 1938, após votação popular, foi posta em vigor uma nova Constituição. Embora essa nova Constituição conferisse aos cidadãos diversos direitos como voto direto e secreto, o poder estava concentrado nas mãos do Partido Comunista, uma vez que esse era o único com permissão legal para existir. Com isso, o governo federal ditava a linha política, econômica e social. “Na política externa, apesar de continuar isolada, a URSS foi envolvida pela Segunda Guerra Mundial com os países capitalistas que enfrentavam o crescimento das ditaturas nazifascistas” (SAKAI, 2012, p. 28).

1.3.1.2 Fatos históricos relacionados à ideologia de direita Em 1930, com a Alemanha em um clima de instabilidade econômica e social, foram realizadas as eleições para o parlamento. O Partido Nazista ocupou 107 cadeiras no parlamento. Em 1933, com o crescimento eleitoral da extrema direita, Adolf Hitler foi indicado para o cargo de Chanceler pelo então presidente Hindenburg. Os nazistas partiam da crença de que pertenciam a uma raça superior às demais, denominada “ariana”. O nacionalismo exacerbado e o combate aos comunistas, liberais e judeus eram os pilares dos ideais nazistas. Durante o nazismo, sob a liderança de Hitler, ocorreram diversas perseguições de judeus, comunistas, homossexuais, portadores de necessidades especiais, entre outros. O incêndio do parlamento alemão, atribuído aos comunistas, deu aos nazistas a chance para adotar uma série de medidas para consolidar um sistema totalitário: A imprensa passou a ser controlada e tornou-se porta-voz do governo; os partidos de oposição e os sindicatos independentes foram dissolvidos; os indivíduos contrários à ideologia nacionalsocialista foram presos, deportados ou executados; e a indústria pesada recebeu incentivos, em especial a indústria bélica. (SAKAI, 2012, p. 29) Em 1934, com a morte de Hindenburg, Hitler assumiu também a presidência. Segundo Sakai (2012), o Estado alemão adotou uma política expansionista, militarista e ultranacionalista. O Estado investiu em obras públicas e em indústria armamentista. Devido à mobilização militar, as taxas de desemprego foram reduzidas. Após o fim da guerra, os trabalhadores mais velhos reformaram os partidos Comunista e SocialDemocrata4 e iniciaram uma série de greves em 1947. Porém, os movimentos tiveram pouca adesão dos trabalhadores mais jovens que nunca haviam pertencido a um partido de esquerda e almejavam apenas a prosperidade material e a paz. Com a falta de participação dos mais jovens, as greves fracassaram, o partido Comunista foi banido e os social-democratas abandonaram sua herança marxista em 1959. “O declínio da indústria pesada e a ascensão de uma sociedade de consumo completaram o processo” (EVANS, 2012, p. 873). 4 A social-democracia é uma ideologia política que suporta intervenções econômicas e sociais do Estado para promover justiça social dentro de um sistema capitalista e uma política envolvendo Estado de bem-estar social, sindicatos, regulação econômica para o interesse geral da população, intervenções para promover uma distribuição de renda mais igualitária e um compromisso para com a democracia representativa.

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1.3.2 O medo relacionado à esquerda e à direita no Brasil Junto com o surgimento dos ideais esquerdistas no Brasil, surgiram também os seus opositores, que produziam e difundiam o medo em relação a essas práticas no âmbito nacional. Iremos delimitar agora, com base nas obras de Daiane Sakai e do historiador Boris Fausto, alguns dos fatos históricos mais importantes na história do Brasil que contribuíram para o surgimento de um medo relacionado à esquerda e à direita. Os primeiros movimentos sociais da classe operária no Brasil se deram entre 1889 e 1930, na chamada Primeira República. Foi um período de diversificação da estrutura social devido ao avanço da pequena propriedade produtiva no campo, a expansão da classe média urbana e à ampliação da base da sociedade – principalmente da classe operária nos centros urbanos. Os diversos movimentos oriundos dos trabalhadores podiam ser classificados em três grupos: “1. Os que combinaram conteúdo religioso com carência social; 2. Os que combinaram conteúdo religioso com reivindicação social; 3. Os que expressaram reivindicações sociais sem conteúdo religioso” (FAUSTO, 2001, p. 295). Este último grupo costumava fazer greves em prol do aumento de salários e de melhores condições de trabalho dentro das fazendas de café paulistas. Nos centros urbanos, as condições de trabalho não eram diferentes daquelas encontradas dentro das fazendas de café. A diferença é que dentro das fábricas, a circulação de pessoas e ideias era maior do que dentro das fazendas. Porém, essa liberdade de circulação de ideias não foi suficiente para que a classe operária tivesse êxito em seus movimentos. Segundo Fausto (2001), as greves só tinham grandes repercussões quando eram gerais ou quando atingiam ferrovias e portos – setores chaves do sistema agroexportador. Em decorrência dessa certa “falta de expressividade”, a política oligárquica não via necessidade de agradar a massa operária. No final do século XIX começaram a surgir os primeiros partidos operários. No Rio de Janeiro (então capital de República) predominava dentro dos partidos um leve socialismo, que buscava apenas reivindicações imediatas, tais como aumento de salário e limitação da jornada de trabalho, sem maiores preocupações com uma reforma política radical. Em contrapartida, em São Paulo ocorreu o predomínio do anarquismo, ou, como Fausto (2001) coloca: o anarco-sindicalismo. Uma corrente que tinha como objetivo a transformação radical da sociedade e a implementação do socialismo. Os anarquistas encaravam as reivindicações imediatas como simples instrumentos para uma grande ação revolucionária. Na prática, os anarquistas acabaram tendo que se concentrar nas mesmas reivindicações sustentadas pelos operários na capital da República, o que não impediu que esses dois polos operários guerreassem entre si, debilitando o movimento como um todo. Como mencionado anteriormente, as primeiras manifestações dos trabalhadores nasceram no início da Primeira República. Eram esparsas e raramente despertavam atenção ou preocupação da elite. No entanto, as greves acontecidas entre 1917 e 1920, irrompidas no Rio de Janeiro e São Paulo, chamaram a atenção dos jornais e dos dirigentes políticos. Esses movimentos perderam força no final de 1920 e muitos operários estrangeiros, que contribuíram na organização das greves, foram expulsos do país. Em março de 1922, nasceu o Partido Comunista do Brasil, cujos fundadores, em sua maioria, provinham do anarquismo: um fato excepcional na América Latina, onde

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os partidos comunistas advinham de cisões do Partido Socialista. O PCB esteve na ilegalidade em quase toda a sua trajetória, ficando na legalidade apenas entre março e julho de 1922 e entre janeiro e agosto de 1927. Em 1985, com o fim do regime militar, o PCB voltou a funcionar na legalidade. É importante ressaltar que, no período entre 1914 e 1918, acontecia a Primeira Guerra Mundial. Após o seu término, duas tendências políticas começaram a ganhar força na Europa: o nazi-fascismo e o marxismo. O nazismo possuía características militaristas, ditatoriais e ultrarreacionárias, enquanto o marxismo tinha natureza revolucionária e almejava a tomada do poder pela classe operária, destruindo assim a propriedade privada e a exploração laboral. Ambas as tendências se refletiram no Brasil com a formação da Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em 1934, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), fundada em 1935. O Integralismo, chefiado por Plínio Salgado, foi influenciado pelo fascismo italiano e serviu para homogeneizar as forças de direita dispersas pelo país. Em seu programa, a AIB atacava deliberadamente o liberalismo, o socialismo e o capitalismo financeiro internacional nas mãos dos judeus. Pregava um Estado autoritário e nacionalista, tendo como lema “Deus, Pátria e Família”. O movimento contou com a adesão de intelectuais, militares, elementos do clero, da classe média, estudantes e latifundiários. As características marcantes da organização integralista eram: rígida hierarquia, culto ao líder, militantes uniformizados, símbolo (a letra grega sigma), bandeiras, saudações com o braço levantado e o grito “Anauê” (“você é meu irmão”) e o ódio aos comunistas. Surge, nesse contexto, a Aliança Nacional Libertadora como uma frente antifascista. Faziam parte dessa frente: liberais, socialistas, comunistas, líderes trabalhistas e tenentistas. A criação da ANL foi facilitada pela reforma que ocorreu no Partido Comunista com o ingresso de Luís Carlos Prestes no partido. A organização ganhou uma composição social mais forte e variada, com a entrada dos militares seguidores de Prestes e de membros da classe média. Em poucos meses, a Frente já contava com mais de 100 mil participantes. Em 5 de julho de 1935, em uma manifestação da ANL, Carlos Lacerda leu um manifesto de Prestes (que estava como clandestino no país) que incitava os membros a derrubar o “governo odioso” de Getúlio Vargas. Foi o pretexto que o governo precisava para fechar a ANL em 11 de julho. Segundo Sakai (2012), não ocorreram manifestações de protesto contra a dissolução da Aliança Nacional Libertadora. Os dirigentes tiveram que investir muitos esforços para manter alguns núcleos funcionando na ilegalidade. Vários membros foram presos. Os membros mais moderados se afastaram do movimento. O PCB, com apoio da Internacional Comunista (organização que determinava a linha do movimento comunista em Moscou), começou a planejar um levante armado que resultou na tentativa do golpe militar de novembro de 1935. Esse fato deu ao governo Vargas condições para combater o Partido Comunista mediante a utilização do “medo da ameaça comunista”. De fato, o levante, conhecido como Intentona Comunista, eclodiu em 23 de novembro, 98

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e foi considerado um fracasso. Em Natal, capital do Rio Grande do Norte, uma junta conseguiu tomar o poder por quatro dias até ser dominada. Houve rebeliões em Recife e no Rio de Janeiro, porém o confronto resultou em várias mortes até, por fim, em rendição do movimento. Em 25 de novembro, Getúlio Vargas decreta o estado de sítio. Esse era o pretexto que Vargas necessitava para conduzir o país à ditadura. A Intentona Comunista teve consequências sérias, sendo seguida por uma forte repressão. Até mesmo órgãos específicos como a “Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo” foram criados. Comunistas e partidários da ANL foram presos e torturados. Durante esse tempo, inicia-se uma forte campanha visando aterrorizar a população com o chamado “perigo vermelho”. O fantasma do comunismo internacional ganhou enormes proporções, tanto mais porque Moscou havia enviado ao Brasil alguns quadros dirigentes estrangeiros – como o alemão Berger, o argentino Ghioldi – para ajudar nos preparativos da insurreição. (FAUSTO, 2012, p. 361)

Nos dois anos que se seguiram, novas medidas de exceção foram aprovadas, como a criação do Tribunal de Segurança Nacional e a prorrogação do estado de guerra, a que foi equiparado o estado de sítio, até junho de 1937. Essas medidas contribuíram para a instalação do terrorismo político do Estado, usadas como forma de combate a qualquer oposicionista. Em 1938 estavam marcadas as eleições. Os candidatos eram: Armando Salles, pelo Partido Constitucionalista; José Américo de Almeida como candidato oficial; e Plínio Salgado, pelos integralistas. No entanto, Getúlio Vargas não estava disposto a abrir mão do poder e preparava-se para um golpe. Faltava, porém, um pretexto para reacender o clima golpista. Pretexto esse que surgiu com o “Plano Cohen”. De acordo com Fausto (2001), até hoje a verdadeira história do Plano Cohen possui aspectos obscuros. Estima-se que o plano tenha sido uma fraude e de autoria de Olímpio Mourão Filho – membro da polícia particular da Ação Integralista –, servindo apenas de propósito para a ocorrência do golpe. O que se sabe é que no dia 30 de setembro de 1937, o general Góis Monteiro divulga à nação, através do programa “Hora do Brasil”, um documento, supostamente escrito por um certo Cohen. Este documento consistia em um plano comunista que visava a tomada de poder através de inúmeras atrocidades como assassinatos de líderes políticos, invasões de lares e lutas armadas. Para combater a ameaça comunista, Vargas solicita ao Congresso um novo estado de guerra. O Congresso aprova a solicitação e suspende as garantias constitucionais por 90 dias. No dia 10 de novembro tropas da polícia militar fecham o Congresso sem encontrar resistência. Os comunistas não podiam reagir e a classe dominante aceitava o golpe como uma coisa inevitável e, até mesmo, benéfica. À noite, pelo rádio, Getúlio anuncia a entrada em vigor de uma Carta Constitucional, elaborada pelo jurista Francisco Campos, e a implantação do Estado Novo. A ditadura de Getúlio Vargas estava estabelecida. Getúlio Vargas governou duas vezes na história do país. Foi presidente do Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954. Apesar de ser reconhecido por ter sido um ditador e governado com medidas controladoras e populistas, Vargas teve seu governo marcado por medidas favoráveis aos trabalhadores. Deixou sua marca no campo trabalhista através da criação da Justiça do Trabalho (1939), instituição de salário mínimo, de REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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carteira profissional, de semana de trabalho de 48 horas e de férias remuneradas aos trabalhadores. A sua política econômica contribuiu para a geração de empregos no Brasil. No ano de 1945, Vargas sai do poder devido a um golpe militar. Após a queda de Vargas, o governo fica provisoriamente sob o comando de José Linhares, então presidente do Supremo Tribunal Federal. Em 1946, após as eleições, Eurico Gaspar Dutra assume a presidência. Seu governo foi marcado por uma forte repressão ao partido comunista. Baseando-se no texto da constituição que vedava a existência de qualquer partido político cujo programa contrariasse o regime democrático, o Supremo Tribunal Federal cassa, em 1947, o registro do Partido Comunista. Antes de Dutra completar metade de seu mandato, Getúlio já iniciava a sua manobra para a sucessão presidencial. Getúlio faz sua campanha em cima da defesa da industrialização e na necessidade de ampliação da legislação trabalhista. Adaptou seu discurso conforme as necessidades de cada Estado. No Rio de Janeiro, onde havia uma maior influência comunista, chegou a dizer que se fosse eleito o povo ficaria no poder. Em 1950, Getúlio Vargas volta ao poder de forma democrática, onde permanece até agosto de 1954, quando se suicidou no Palácio do Catete. Em 1956 inicia-se o governo de Juscelino Kubitschek, estendendo-se até o ano de 1961. Com o slogan “cinquenta anos em cinco”, Juscelino propunha uma rápida industrialização do país, superando o subdesenvolvimento, a pobreza e as desigualdades sociais. O seu discurso era populista, procurando sempre contemplar os interesses de diferentes classes sociais. De acordo com Sakai (2012), ele gostava de afirmar que todos os brasileiros estavam juntos no desenvolvimento nacional. O seu governo conseguiu agradar dois grandes partidos brasileiros: O Partido Trabalhista Brasileiro (que inicialmente beneficiou-se da ilegalidade do PCB para receber votos antes destinados aos comunistas) e o Partido Social-Democrata. Com 48% dos votos, Jânio Quadros é eleito presidente em 1960. Em sua campanha ostentava uma vassoura e prometia a moralização da vida pública. Seu governo foi marcado por medidas impopulares como congelamento de salários e restrição ao crédito. Em agosto de 1961, Jânio Quadros alega estar sendo ameaçado por “forças terríveis” e renuncia à presidência. Após a renúncia de Jânio Quadros em 1961, João Goulart (Jango) assume a presidência com seus poderes restringidos pelo sistema parlamentarista. Em janeiro de 1963, após um plebiscito, houve a volta do sistema de presidencialismo com Jango no comando do governo. Em seu governo, buscou enfrentar os problemas econômicos através de figuras da chamada “esquerda positiva”, como San Tiago Dantas no ministério da Fazenda e Celso Furtado, ministro do Planejamento. Para o Ministério do Trabalho, escolheu Almino Afonso, um nome popular na esquerda do PTB e entre os comunistas. Em 1964, um golpe de Estado derrubou o governo de João Goulart, instaurando assim o período de ditadura militar no Brasil. Logo após o golpe militar de 1964, havia urgência por parte dos militares de legitimar o novo governo antes que a oposição tivesse tempo de refletir sobre a ação. A preocupação central dos militares era proporcionar o crescimento econômico interno e garantir a segurança do Estado, banindo as ameaças comunistas do país. A ideia era assumir o 100

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controle apenas por tempo suficiente para reorganizar o Brasil e depois devolvê-lo para os civis. Para alcançar esse objetivo, era preciso eliminar a possibilidade de reação por parte da oposição. Uma junta militar formada pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, general Arthur da Costa e Silva e o almirante Augusto Rademaker assumiu o poder e rapidamente instaurou o Ato Institucional, que conforme a ditadura foi se consolidando e outra série de atos surgindo, passou a ser conhecido como Ato Institucional Número Um. O AI-1 estabelecia uma série de mudanças na legislação do país, entre elas a suspensão da Constituição da República por seis meses, dez anos de suspensão de todos os direitos políticos de quem fosse tido como ameaça ao regime e o estabelecimento de eleições indiretas para Presidente da República. A partir de então ficou decretado que o presidente seria escolhido por um Colégio Eleitoral. O primeiro presidente a ser escolhido nesse novo regime foi o general Humberto de Alencar Castello Branco. O AI-1 criou também os Inquéritos Policiais Militares (IPMs), a que ficavam sujeitos todos aqueles responsáveis pela “prática de crime contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou por atos de guerra revolucionária”. A partir desses poderes excepcionais desencadearam-se prisões e torturas aos opositores do regime. Estima-se que mais de 1.400 pessoas foram afastadas da burocracia civil e mais de 1.200 das forças armadas (FAUSTO, 2001, p. 467). Eram, sobretudo, pessoas com destaque nas posições nacionalistas e esquerdistas. Também foi criado o Serviço Nacional de Informações (SNI), que possuía como objetivo coletar informações pertinentes à segurança nacional. O SNI passou a agir por conta própria na “luta contra a subversão interna”. Dentre os próprios militares havia tendências ideológicas diferentes. As duas distinções mais importantes eram os “castellistas” e a “linha dura”. O grupo castellista queria instituir uma “democracia restringida”. A intervenção militar deveria ter metas e prazo determinado. Já os adeptos da chamada “linha dura” eram radicais e acreditavam que os militares em sua tarefa de levar o país à posição de potência não deveriam ter prazo para devolver o poder aos civis. Esse último grupo predominou até o governo do general Geisel. Em 17 de outubro de 1965, Castello Branco baixou o AI-2, que estabelecia que a votação para presidente da República fosse realizada pelo Congresso Nacional. Outra medida importante do AI-2 foi a extinção dos partidos políticos então existentes. A legislação partidária forçou a organização de apenas dois partidos: de um lado a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), formada por representantes do governo, e, do outro, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que formava uma oposição fraca e controlada pelo governo. A ARENA foi responsável por manter maioria no Congresso Nacional durante todo o regime militar. Elegeu todos os presidentes da República, de Costa e Silva a João Figueiredo. No final da década de 70 houve uma gradual abertura do regime militar, e a partir desse processo surge a possibilidade de ideias esquerdistas voltarem a circular com liberdade no âmbito social. Essa possibilidade foi fundamental para o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT). O Governo de Figueiredo (o último dos presidentes militares) realizou uma reforma partidária que extinguiu a ARENA e o MDB, permitindo a volta do pluripartidarismo. REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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Surgem assim: o Partido Democrático Social (PDS), como sucessor da antiga ARENA; o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), como sucessor do MDB; o Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Leonel Brizola, que surgiu como tentativa de capitalizar a herança do trabalhismo getulista; o Partido Popular (PP) que procurou apoio de uma burguesia favorável à transição para a democracia sem grandes mudanças; e o Partido dos Trabalhadores (PT), que reuniu membros da classe operária, da classe média, dos intelectuais e do clero, com uma proposta de direitos mínimos aos trabalhadores e transformações sociais que abrissem o caminho para o socialismo.

1.3.2.1 História do Partido dos Trabalhadores (PT) Conhecer a história do PT, segundo Sakai (2012), é fundamental para compreendermos o contexto histórico do Brasil no século XX. O Partido dos Trabalhadores passou a ser um “divisor de águas” no momento em que se mostrou competitivo ao pódio eleitoral. A criação do PT está intimamente relacionada com o contexto de intensa mobilização social que se espalhou do ABC paulista5 para todo o país em 1978. O movimento sindical brasileiro chegou a ser reconhecido como “o mais ativo do mundo”. Adotando uma postura contrária ao PCB e ao culto da União Soviética, o PT evitou definir-se sobre a natureza do socialismo. Esse fato muito tinha a ver com a existência, em seu interior, de correntes opostas. Em uma das pontas ficavam os simpatizantes da socialdemocracia; na outra, os partidários da ditadura do proletariado. No campo sindical, estabeleceram-se laços íntimos entre o partido e o sindicalismo do ABC. Esse movimento foi um dos centros mais importantes na constituição do PT, com destaque crescente da figura de Lula. (FAUSTO, 2001, p. 506) De acordo com Singer (2001 apud SAKAI, 2012, p. 31), a criação do PT se deu graças a dois fatores: as greves e a reforma partidária. As organizações e lideranças trotskistas, como a Convergência Socialista, tiveram também um papel importante na história do partido. Trotsky6 defendia que a vanguarda da classe operária deveria unificar os assalariados em uma grande organização a fim de orientá-los na direção de uma independência revolucionária. Com base nesses ideais, os sindicalistas criaram um partido para representar os trabalhadores. Com inspiração direta do marxismo, o PT lança seu programa enfatizando a sua solidariedade “à luta de todas as massas oprimidas do mundo”. A intenção do PT era romper com os antigos vícios da política e atrair uma massa heterogênea da sociedade. O objetivo era formar um partido amplo de orientação socialista democrática. Marx acreditava na necessidade de transformação da sociedade injustiçada, por meio de uma melhor distribuição de renda e melhoria das condições de trabalho. O PT incorporou essa ideologia para fundar o partido, trazendo esses princípios nos seus genes. Até aqui tivemos uma visão do papel do medo na política, no próximo capítulo estudaremos o discurso político e a forma como o medo surge dentro dele.

5 O ABC paulista é uma região metropolitana da Capital Paulista formada pelas cidades: Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano. É uma região intensamente industrializada, onde se instalavam, entre tantas, as indústrias montadoras de veículos. 6 Leon Trotsky foi um intelectual marxista e revolucionário comunista, que liderou os bolcheviques durante a Revolução Russa (1917).

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2. O discurso “Todo o discurso deve ser construído como uma criatura viva; não lhe podem faltar nem pés nem cabeça; tem de dispor de um meio e de extremidades compostas de modo tal que sejam compatíveis uns com os outros e com a obra como um todo”. (Sócrates)

De acordo com Charaudeau (2013) não existe política sem discurso. A linguagem é o que motiva a ação, a orienta e lhe dá sentido. Ação política e discurso político estão indissociavelmente ligados, o que justifica pelo mesmo raciocínio o estudo político pelo discurso. Neste capítulo iremos abordar o discurso político a fim de compreender os aspectos que o compõe e a sua importância para a formação da figura do político. Inicialmente faremos uma breve consideração sobre o surgimento da retórica para posteriormente adentrarmos no discurso político propriamente dito.

2.1 Histórica da Retórica Segundo Barcelos (2009), a retórica surgiu por volta do ano de 465 a.C., na Sicília Grega. A sua origem é judiciária, sendo ela utilizada pelos cidadãos para defender os seus bens. A retórica é levada a Atenas por intermédio de Górgias (487-380 a.C.) e se firma definitivamente por obra dos sofistas7. Eles foram os responsáveis por abrir as primeiras escolas de retórica com o objetivo de difundir a arte do discurso persuasivo. Os alunos eram treinados para aprender a defender, através do discurso, qualquer ponto de vista, com preocupação apenas em ganhar a causa e não com os valores éticos envolvidos, o que acabou por atribuir à retórica um significado depreciativo ao longo dos anos. Platão (427-347 a.C.) tinha uma preocupação com o aspecto moral da retórica, dizendo ser preferível sofrer uma injustiça a praticá-la. Para ele, a retórica devia ser sempre usada de maneira justa. Aristóteles irá definir a retórica como “a faculdade de ver teoricamente o que, em cada passo, pode ser capaz de gerar persuasão” (BARCELOS, 2009 apud ARISTÓTELES, 1964, p. 12). Para o filósofo, a persuasão só será eficaz quando estiver relacionada aos valores e costumes do sujeito. A persuasão indica a finalidade da retórica. Persuadir vem de “persuadere”, “per + suadere”. O prefixo “per” significa de modo completo, “suadere” significa aconselhar, não impor. Portanto, “persuadere” significa aconselhar, levar alguém a aceitar um ponto de vista de modo suave, habilidosamente. Para persuadir deve-se provar de alguma forma. (TRINGALI, 1988, p. 20)

Existem três formas de persuasão segundo Barcelos (2009, p. 13): convencer (o que implica em persuadir através de provas lógicas), comover (persuadir através da afetividade) e agradar (persuadir através do “falar bem”). Nos anos 60 a retórica é reformulada graças à obra “Tratado da Argumentação” de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca. Essa nova retórica constitui em uma forte teoria do discurso persuasivo e é vinculada à retórica antiga de Aristóteles. Para os autores Parelman e Olbrechts-Tyteca é em função de um auditório que se desenvolve a argumentação. Afinal, o orador deve pensar, antes de tudo, naqueles a quem quer influenciar com a sua argumentação. O ponto de partida para o discurso deve ser sempre teses já aceitas pelo auditório, desta maneira, a argumentação e a capacidade de influenciar o público ocorrem de maneira mais simplificada. 7 Os Sofistas eram professores itinerantes que percorriam a Grécia Antiga ensinando, mediante pagamento, a arte da retórica às pessoas interessadas. São considerados os precursores da advocacia.

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Por fim, Barcelos (2009 apud MOSCA, 2004, p. 16) destaca as características básicas da retórica: a sua eficácia e o seu caráter utilitário. A eficácia diz respeito a todo discurso ser uma construção retórica, contanto que haja manipulação por parte do orador com o objetivo de induzir o destinatário a agir de certo modo ou em determinada direção. Já o caráter utilitário está relacionado ao fato de que para fazer um discurso ser persuasivo, deve-se levar em consideração as características fundamentais do contexto em que ele se dá e as relações subjetivas entre os interlocutores.

2.2 O discurso político A análise do discurso, segundo Charaudeau (2013), não questiona sobre a legitimidade da racionalidade política, sobre mecanismos que produzem determinado comportamento político, e nem sobre explicações casuais, mas sim sobre os discursos que tornam possíveis a emergência de uma racionalidade política e a regulação dos fatos políticos. Como citado previamente, para o autor não existe política sem discurso. A política é dependente da ação e se insere nas relações de influência social. A linguagem é o que permite a existência de espaços de persuasão e sedução, onde se elaboram o pensamento e a ação políticos. O sentido político é atribuído a um enunciado a partir do momento em que a situação autoriza. Nesse raciocínio, um discurso só é político se a situação comunicacional o tornar tal. Charaudeau (2013) irá distinguir a produção do pensamento político em três lugares: um lugar de elaboração dos sistemas de pensamento; um lugar de ato comunicacional e um lugar de produção de comentário. O sistema de pensamento refere-se a um discurso político resultante de uma atividade discursiva que busca fundar um ideal político em função de determinados princípios que devem servir de referência para a construção de opiniões e posicionamentos. Em outras palavras, é em nome do sistema de pensamentos que são determinadas as filiações ideológicas. Enquanto ato de comunicação, Charaudeau (2013) irá nos dizer que o discurso político se preocupa mais diretamente com os atores que participam da cena de comunicação política. Nesse sentido, o discurso dedica-se a construir imagens dos atores e a usar estratégias de persuasão e de sedução empregando diversos procedimentos retóricos. Enquanto comentário, o discurso diz respeito à pessoa do político. É a imagem que o público faz do político, sendo comumente encontrado em conversas de famílias, amigos, trabalho e etc. Obviamente, esses três lugares de fabricação do discurso político não estão rigorosamente separados. “O discurso se difunde, dá voltas, estica-se, fica à deriva, transforma-se a ponto de perder os seus dados de origem” (CHARAUDEAU, 2013, p. 42). Ele resulta da sutil mistura entre a palavra que deve fundar a política e a que deve geri-la, sendo resultantes de diversos componentes: fatos políticos, fatos sociais (organização e estruturação das relações sociais); fatos jurídicos (leis que regem as condutas e as relações dos indivíduos); e fatos psíquicos (valores presentes na vida dos indivíduos). 104

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Aristóteles (1991) dividiu os meios discursivos em três categorias: o logos que pertence ao domínio da razão e torna possível convencer; o ethos e o pathos que pertencem ao domínio da emoção e tornam possível emocionar. O pathos é voltado ao auditório e o ethos é voltado ao orador. Tanto o ethos quanto o pathos não correspondem ao estado psicológico real do orador ou do auditório, mas sim ao que o público crê que o político tem em mente. Charaudeau (2013) defende que apesar do discurso político ser uma mistura de logos, ethos e pathos, ele tem que ser deslocado do lugar do logos para o do ethos e pathos: do lugar do teor de argumentos para o lugar de encenação. Os valores de ethos e pathos acabam por assumir o lugar de valores de verdade. O discurso é construído na intersecção entre um campo de ação e um campo de enunciação, resultando em um “contrato de comunicação”. Nasce daí a dificuldade enfrentada pelo político, que quer que seu discurso seja eficaz. Os efeitos e significações do jogo político são extremamente complexos, uma vez que dependem dos fatores sociais, psíquicos, políticos, e outros já expostos. As significações do discurso político, segundo Charaudeau (2013), são fabricadas pelo dispositivo da situação de comunicação e por seus atores. Dentre esses dispositivos distingue macrodispositivo conceitual e microdispositivo variante. Por exemplo, temos o macrodispositivo do discurso político e suas variantes (microdispositivo) como: comícios, entrevistas de rádio, declaração televisiva e discursos no Congresso Nacional. A intervenção política é assim exemplar do que propomos chamar dispositivo ritual amplo. Ela obedece a certo número de restrições formais; gera uma expectativa e uma previsão dos resultados; dá tratamento a uma alteridade (a do público, em geral, e a dos adversários políticos, em particular) e tenta estabelecer um “consenso” ou uma maioria, isto é, a afirmação de uma identidade relativa a uma questão particular ou à conduta dos negócios de Estado. (CHARAUDEAU, 2013 apud AUGÉ, 1994, p. 54)

Dentro dos dispositivos estão também inseridas as instâncias. Em todo ato comunicacional é importante o conhecimento das pessoas, porém esse conhecimento por si só não é suficiente. É importante conhecer também as instâncias. As instâncias para Charaudeau (2013) podem ser três: instância política (e a adversária); instância cidadã e instância midiática. A instância política é um lugar de governança. Os atores nesse meio têm um poder de decisão, de ação e de manipulação. Essa instância está em busca de legitimidade, autoridade e credibilidade. O discurso da instância política pode dedicar-se a propor programas políticos na eventualidade de sufrágios universais; justificar decisões e ações para defender a sua legitimidade; criticar as ideias adversárias para reformar sua posição e a conclamar o consenso nacional a fim de obter apoio dos cidadãos. Essa instância pode ser encontrada em situações de debate, declaração pública, campanhas eleitorais, e diversas outras. A diferença da instância política para a instância adversária, é que a última é levada a construir um discurso de crítica ao poder vigente. A instância cidadã é aquela que se encontra em um lugar onde a opinião política é feita fora do governo. É onde os atores buscam saberes que os permitirão escolher ou criticar os políticos. Por sua vez, a instância midiática encontra-se igualmente fora da governança. É o elo que une as demais instâncias por meio de veículos de comunicação. Os atores que compõem essa instância assumem o papel de informantes e estão em REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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busca de credibilidade tanto dos cidadãos quanto dos políticos. O discurso da instância midiática gira em torno da dramatização da narrativa dos acontecimentos para ganhar fidelidade de público e da denunciação de malversações, para justificar seu lugar na construção de opinião pública. Como já referido, o discurso resulta em um “contrato de comunicação”, no qual está inserido o dispositivo da situação comunicacional. Esse dispositivo (ou seja, essas situações comunicacionais) é, portanto, uma “máquina” de forjar discursos de legitimação que constroem imagens de lealdade para a instância política; de protesto para instância cidadã e de denúncia para as instâncias midiáticas.

2.2.1 Ethos e algumas estratégias do discurso político O político desempenha uma função dupla: a de convencer a todos do seu projeto político e a de persuadir o maior número possível de cidadãos a aderirem aos seus valores. Portanto, ele deve construir para si uma dupla identidade discursiva: uma que corresponde ao seu posicionamento ideológico e outra à prática política (posicionamento comunicacional). De Aristóteles à nova retórica, entende-se que não se pode descartar os sentimentos em um processo de influência do interlocutor, uma vez que eles estão intimamente relacionados a persuasão. O político fala para todos como portador de valores transcendentais: ele é a voz de todos na sua voz, ao mesmo tempo em que se dirige a todos como porta-voz de um terceiro, enunciador de um ideal social. (CHARAUDEAU, 2013, p. 80).

É necessário que o político saiba inspirar confiança e admiração, com o objetivo de aderir à imagem do chefe que se encontra no imaginário coletivo dos sentimentos e das paixões. A gestão das paixões é a arte da boa política. Charaudeau (2013) nos diz que as estratégias empregadas pelos políticos dependem de diversos fatores, como: a sua identidade social, a maneira como percebe a opinião pública e do caminho feito até chegar até ela, a posição dos outros atores políticos, os ideais e as ações que ele acha importante defender ou atacar. Essas informações são necessárias para que possa ajustar o seu discurso de acordo com o alvo que quer atingir. Panke (2014) reforça essa ideia ao dizer que, para começar a preparar a campanha comunicacional, é preciso levar em consideração a vida, o histórico e a personalidade do político, os seus ideais e os ideais do partido. É necessário que o seu discurso esteja de acordo com as diretrizes propostas pelo partido. Também é preciso conhecer os concorrentes e ter em mente o público para o qual a campanha será direcionada. Por exemplo, uma campanha para presidente será muito mais abrangente do que uma campanha para deputado estadual. Além disso, é preciso ter uma preocupação com o contexto: o momento, a situação da economia, os valores que estão sendo focados, e etc. Esses valores serão avaliados previamente por diversos instrumentos como entrevistas e pesquisas quantitativas e qualitativas. Segundo Charaudeau (2013), a encenação do político irá oscilar entre a ordem da razão e a ordem da emoção, em uma junção de logos, ethos e pathos. É preciso estabelecer uma estratégia para a construção de sua imagem (ethos), objetivando a sedução e a 106

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credulidade; para a dramatização do discurso (pathos), objetivando a persuasão; e para a apresentação de valores, a fim de fundamentar seu projeto político. Em relação a essa construção de imagem do político, releva observar que uma estratégia pode obter sucesso em determinada época, em determinada circunstância e em determinado público, e conhecer o fracasso quando em outra época, outra circunstância e outro público. O mesmo é válido para o carisma do ator político que pode não funcionar com qualquer um ou em qualquer circunstância. Charaudeau (2013) irá defender que o processo de construção de uma grande figura política pode se dar através de grandes acontecimentos como guerras e crises, construindo imagens simbólicas fortes e de breve temporalidade, como, por exemplo, a potência com Napoleão. Além de grandes acontecimentos, a figura também pode se dar através da sedimentação de certos traços da personalidade do político que se repetem em vários pequenos acontecimentos, que contribui para a construção de uma imagem temporalmente longa como, por exemplo, a imagem paternalista atribuída ao Lula. A construção da imagem política deve ser sempre voltada para o público, pois elas devem gerar identificação de valores entre esses dois personagens. “O ethos político deve, portanto, mergulhar nos imaginários populares mais amplamente partilhados (...), em uma espécie de contrato de reconhecimento implícito” (CHARAUDEAU, 2013, p. 87). As representações sociais podem ser utilizadas com objetivo de seduzir, aterrorizar, ameaçar, entre outras, um interlocutor ou um auditório. Três fatores precisam ser combinados a fim de se produzir um efeito emocional em um auditório (CHARAUDEAU, 2013, p. 90): a natureza do universo de crença a qual o discurso remete (amor, paixão, medo, massacre, acidente ou outros); a encenação discursiva (que pode ser trágica, humorística, neutra ou dramática); e o posicionamento do público em relação aos universos de crença convocados. Desse modo, toda a estratégia de representação deve ser voltada para o modo como o político imagina o público e qual efeito pretende causar nele. Segundo Charaudeau (2013, p. 91), o discurso político irá seguir o mesmo cenário clássico de contos e narrativas: uma situação inicial que descreve o mal, a determinação de sua causa, a reparação desse mal pela intervenção do herói natural ou sobrenatural. O discurso político tende a insistir na desordem social, em que o cidadão é a vítima, a origem do mal é encarnada em um adversário e/ou inimigo, e a solução salvadora pertence ao político que profere o discurso. A desordem social pode ser apresentada como um estado de fato ou potencial. No primeiro caso, como fato, cuida-se de persuadir o público de que o mal e as vítimas existem e que não há lugar para especulação. Já no segundo caso, como um estado potencial, cria-se uma expectativa que obriga o público a vislumbrar a possibilidade de existência de um mal, desencadeando nele um sentimento de angústia. A fonte do mal pode ser apresentada de maneira precisa, quando ela é designada pelo nome de um indivíduo ou de um grupo (como, por exemplo, “Islamic State is deeply evil”8), ou de maneira fluida, quando ela é designada de maneira global, como em sua 8 “O Estado Islâmico é profundamente perverso”. Arcebispo Justin Welby em entrevista a Lyse Doucet, da BBC NEWS.

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essência, exemplo: “a imigração, esse mal que dissemina o terror” (CHARAUDEAU, 2013, p. 91). Independente da fonte do mal, a solução salvadora, por sua vez, consiste em propor medidas que devem repará-lo. O defensor dessas medidas aparece, então, de maneira crível, persuasivo e tende a construir para si uma imagem de salvador da pátria, cumprindo com o seu objetivo de fazer o público encontrar o libertador dos seus males e voltar-se totalmente para ele. Nesta estigmatização da origem do mal também está inserida as estratégias de desqualificação do adversário. Essa desqualificação é utilizada por intermédio de diversos procedimentos discursivos, visando rejeitar as ideias e a visão do adversário, lembrando o público das ameaças e dos perigos que elas representam. De acordo com Panke (2012), é possível definir três categorias principais de desqualificação. A primeira é voltada para o candidato. São situações em que os comentários recaem sobre posturas e atos do adversário. A segunda refere-se ao partido, e configura-se quando os comentários são a respeito de competência do partido, apoios, histórico e valores. E a terceira categoria é voltada ao mundo, mostrando que males relacionados à economia, à justiça social, a classes, são, de forma direta ou indireta, responsabilidade do desqualificado. Essas técnicas de desqualificação podem, no entanto, trazer o risco de prejudicar a imagem do orador: A mesma imagem combativa poderá ser apreciada positivamente por aqueles que têm necessidade de identificar-se com um ethos de “poder” (“ele sabe lutar”), mas será rejeitada (“é um personagem grosseiro”) por aqueles que preferem um ethos de inteligência (“aqui está um debatedor sutil e elegante”). (CHARAUDEAU, 2013, p. 93)

A persuasão no discurso político está ligada à paixão, à razão e à imagem. À paixão, pois as relações de poder dentro de um campo político são governadas por princípios passionais. À razão, pois aquele que procura governar tem que se tornar legítimo, e à imagem, pois, segundo Charaudeau (2013), não há adesão a ideias que não passe pelos homens. Voltemos agora para a construção da imagem. O ethos, como visto anteriormente, é voltado para si mesmo, para os cidadãos e para a imagem de referência, ou seja, a imagem construída entre eles. O si procura endossar a imagem ideal; o outro se deixa levar por um comportamento de adesão, tendo por base a imagem de referência. As imagens são destinadas a tocar o maior número de indivíduos, e viu-se que esse maior número é heterogêneo e vago do ponto de vista dos imaginários. É a razão pela qual os políticos, conscientes disso, jogam com valores opostos, até mesmo contraditórios: tal político vai querer mostrar-se, ao mesmo tempo, tradicional, mas também moderno; sincero, mas igualmente sagaz; poderoso, mas simultaneamente sincero etc., sem contar que algumas imagens, que poderíamos julgar em si mesmas negativas, podem tornar-se positivas em certas circunstâncias. (CHARAUDEAU, 2013, p. 137) Iremos agora explicar quais são alguns desses ethos para podermos ter um panorama de como as imagens são construídas no discurso político. Os ethos mais comuns voltados para o político são os ethos de potência, caráter, inteligência e humanidade. Já os ethos mais comumente voltados ao público são os 108

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ethos de chefe e solidariedade. O ethos de potência é visto como uma energia física, uma força da natureza que impulsiona a ação. Está relacionado com espírito de conquista, de mostrar que político não é um homem apenas de palavras, mas de ação. É nessa imagem de potência que podemos classificar os longos discursos de Fidel Castro e dos Chefes de Estado africanos, que podem durar horas. Ao contrário do ethos de potência, o ethos de caráter tem o imaginário de força de espírito (ao invés de força de corpo). Aqui nós temos a figura de um “berro” de indignação pessoal. Esse ethos é encontrado em figuras políticas de personalidade forte, como, por exemplo, Martin Luther King em seu discurso “Eu tenho um sonho”. Outras características como orgulho, coragem, firmeza e moderação compõem esse ethos. O ethos de inteligência causa identificação na medida em que pode causar admiração e respeito no público, fazendo com que estes queiram aderir às ideias do político possuidor desse ethos. A inteligência, em se tratando do político, não é percebida apenas pela maneira como ele age e discursa, mas também em seu comportamento na vida privada. Dessa forma, o político pode se valer de fatos notórios de sua carreira (como ter escrito um livro) ou de suas conquistas acadêmicas para promover a sua imagem. Um exemplo é o expresidente Fernando Henrique Cardoso. Por fim, o ethos de humanidade é “mensurado pela capacidade de demonstrar sentimentos, compaixão (...), mas o é também pela capacidade de confessar suas fraquezas, de mostrar quais são os seus gostos, até os mais íntimos” (CHARAUDEAU, 2013, p. 148). Cabe ao político revelar-se como pessoa, mostrando a sua capacidade de humor, réplica, elegância e paciência. Como, por exemplo, o ex-presidente do Uruguai, José Mujica. O ethos de chefe é voltado ao mesmo tempo para o político e para o público. Ele se manifesta através das figuras de guia, soberano e comandante. Já o ethos de solidariedade cria a figura de um político atento, que ouve os outros e partilha de suas preocupações, necessidades e pontos de vistas. No campo político esse ethos se constrói em uma relação de reciprocidade entre atos e declarações. O político que faz uso desse ethos quer mostrar-se consciente de suas responsabilidades e das de seu governo. Os procedimentos discursivos que contribuem para a fabricação do ethos são diversos. Um único procedimento pode ter efeitos variados, causar efeito positivo ou negativo na imagem do orador ao mesmo tempo em que pode tocar o afeto do auditório. A seguir serão abordados alguns desses procedimentos. O primeiro deles é o “bem falar”. O bem falar implica o falar de uma maneira elegante, culta e com estilo. Esse procedimento confere ao orador a imagem de posição elevada na hierarquia social. Se essa imagem de fato é formada, o efeito junto ao público é positivo. Porém, se o falar bem é percebido como uma “manipulação” (“ele fala bem demais pra ser honesto”) ou como marca de impotência (“ele fala, fala, e é tudo o que sabe fazer”)” (CHARAUDEAU, 2013, p. 170) o efeito será negativo. O “falar forte” evoca um imaginário de “potência”. Portanto, o orador precisa possuir um físico forte com gestualidade energética e dotado de certa encenação do REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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desempenho oratório (multidão, palanque, decoração e etc.). É importante ter dicção e voz forte. O “falar tranquilo” pode evocar ethos como o de caráter e inteligência, pois necessita de força da alma. É necessário produzir uma simplicidade natural no discurso. É um procedimento que contribui para a criação da figura de soberano paternal. A “enunciação elocutiva” caracteriza-se quando o orador faz uso de expressões com pronomes pessoais em primeira pessoa, por exemplo, “eu estou certo de que...”; “eu decidi...”, “nós somos capazes” e etc. É um procedimento que ajuda a construir a imagem de um líder ou guia soberano. Com o uso do “nós” também pode contribuir para a construção de um ethos de solidariedade. A “enunciação delocutiva” tem como função dizer as coisas sem que a responsabilidade por aquela fala recaia sobre algum dos interlocutores presentes. É a forma de exprimir o ponto de vista de uma terceira voz, a voz da verdade. Por exemplo, ao dizer “o futuro do nosso país está nas mãos do povo” é enunciar uma verdade que não depende nem do eu nem do tu. Esse procedimento também ajuda a construir a imagem de soberano, uma vez que o orador é colocado como acima das massas e portador da verdade.

2.2.2 O Discurso de direita e de esquerda Segundo Charaudeau (2013), se analisarmos os discursos partidários observaremos características novas como a ausência de utopia e um apagamento da instância adversária. Antigamente, conforme estudado no item 1.3.1 – O medo de esquerda e de direita, tínhamos no discurso ideológico da esquerda um discurso em prol de uma sociedade igualitária. Atualmente, percebemos a ausência desse discurso. Não existe mais a mística do triunfo da classe operária sobre a burguesia. O discurso não se inscreve em uma perspectiva histórica ou propõe a utopia. Modificou-se, comportando temas novos. Surge, por exemplo, um conceito que foi muito tempo sustentado por partidos de direita: o de priorizar a economia do mercado. É necessário que antes a riqueza seja produzida para que depois possa ser repartida. No discurso da direita não extremista também vemos a mesma ausência de perspectiva histórica, mas neste caso relacionada ao soberanismo e autoritarismo. Surge nesse âmbito temas como, por exemplo, a redução da desigualdade social. De acordo com o autor, é possível perceber uma oposição clara dos discursos dos partidos “clássicos” e dos partidos extremistas. Os partidos clássicos querem fazer desaparecer a instância adversária, já os partidos extremistas a colocam em evidência. Estes últimos colocam os adversários como único obstáculo para a sua chegada ao poder. São os partidos de extrema esquerda e extrema direita que costumam manejar um discurso de denúncia, “satanizando” seus adversários, como fonte dos males da sociedade. Não ter um inimigo, para os membros de um grupo social, pode ser o equivalente a não ter mais uma razão para agir. O sucesso obtido pelos discursos populistas em períodos de crise advém do fato de que estes jogam o protagonismo para o inimigo, transformando-o em um mal supremo: o capitalismo para países comunistas; a 110

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globalização econômica para a extrema esquerda, a imigração para a extrema direita, e assim por diante. Já os partidos aqui chamados de clássicos tendem a atenuar as oposições, evitando mencionar o adversário. É instituído um discurso que supõe que a instância cidadã não usaria mais das paixões e inseriria o discurso político apenas em um espaço de razão. Charaudeau (2013) alega ser esse um erro tático, uma vez que não é possível se desembaraçar das emoções. Ao fazer um discurso que desconsidera paixões da instância cidadã e ignora a presença do “inimigo”, o político acaba inviabilizando uma construção de ethos, ele não consegue elaborar um personagem de identificação com o público. Como visto anteriormente, a persuasão no discurso está intimamente ligada à paixão e à imagem – tanto quanto está ligada à razão. Um discurso que só consegue conter a razão perde seu valor de persuasivo.

2.2.3 A Instância Midiática A mídia tem um papel importante no campo político, uma vez que possui influência na opinião pública, repercutindo assim nas estratégias de comunicação dos políticos. Apesar disso, não é possível medir a importância da influência da mídia sobre a opinião pública. Em princípio, porque existem diversos meios midiáticos, cada qual com um público específico. Também, porque seria necessário saber qual a opinião do público a respeito de uma determinada informação, a fim de medir o seu impacto. Segundo Charaudeau (2013), toda sociedade requer um sistema de valores para desempenhar o seu papel de despertar uma identidade. Valores esses, compartilhados pelo conjunto de membros da comunidade. Por exemplo, na Idade Média, a Igreja era responsável por assegurar aos cidadãos uma moral divina; no século XIX com a industrialização, diferentes instâncias de organização da produção se juntaram para fazer circular uma moral do trabalho; no século XX, as mídias de massa contribuíram para a divulgação de modelos de vida e de pensamento. Já na segunda metade do século XX, desenvolveram o papel de suporte a ponto de terem midiatizado totalmente a sociedade contemporânea. Essas mídias são portadoras de imaginários sociais que possuem influência sobre as opiniões – mesmo que não se consiga saber qual seria essa influência. Ainda segundo Charaudeau (2013), a mídia se insere em um modelo de comunicação que reúne duas instâncias: uma instância de informação, composta por diferentes atores, como jornalistas, analistas, editores, âncoras de telejornal, e diversos outros. E por uma instância heterogênea, composta por leitores, ouvintes e telespectadores de idades, graus de instrução, classe social e interesses diversificados.

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É responsabilidade da instância de informação selecionar os fatos, sejam estes previstos ou não, que serão convertidos em notícia. Esses fatos podem ter origem na vida social ou no campo político. Após a seleção dos fatos, é dever da mídia hierarquizálos e contá-los. É preciso agora que a mídia encene os fatos, afinal é preciso seduzir o público. Todo órgão de informação é antes de tudo uma empresa que tem necessidade de recursos financeiros para viver que decorrem das vendas dos exemplares, no caso dos jornais, e da publicidade, no caso da imprensa, do rádio e da televisão [...]. Isso os coloca em uma situação de concorrência comercial que passa pela necessidade de atingir um maior número de eleitores, ouvintes ou telespectadores. À lógica da informação, que exige credibilidade no tratamento das notícias, se sobrepõe uma

lógica de mercado, que exige resultados quantitativos. (CHARAUDEAU, 2013, p. 283)

Considerando esse objetivo final de cativar o maior número de público possível e tendo em vista o fato deste ser um público heterogêneo, a mídia precisa recorrer a certas técnicas discursivas para descrever os acontecimentos e colocá-los em debate. Os fatos são reportados segundo os cenários dramáticos de combate para despertar nos espectadores sentimentos diversos: antipatia pelo inimigo, simpatia pelo salvador e compaixão pelas vítimas. Os políticos têm a necessidade de serem visíveis (estarem na cena pública), de terem a sua imagem (devendo seduzir o público) e de terem legitimidade em seu projeto político (serem compreendidos). Portanto, de acordo com Charaudeau (2013), a política na cena pública acontece igual a uma cena de teatro, onde são expostos ao mesmo tempo ator, personagem e pessoa. O ator desempenha o seu papel previamente determinado. O personagem é ficcional e construído dentro da narrativa, podendo ser representado pelo ator. A pessoa está sempre escondida, sendo ela um indivíduo com suas características psicológicas, seus pensamentos e seus sentimentos. O político é a pessoa que irá exercer simultaneamente esses três papéis: como ator mostra o seu carisma; como personagem desempenha o seu papel de político; como pessoa mostra que tem sentimentos como os demais. Os espectadores esperam que o político desempenhe esses três papéis para que possa justificar a sua adesão ou rejeição.

2.3 A Política e a Ética As considerações acima expostas sobre o discurso político, mais especificamente sobre a necessidade que os políticos têm de seduzir o público, nos levam a refletir sobre a ética e a moral. A Ética permeia a política, sendo um norte para todas as decisões tomadas enquanto sociedade. Faz-se necessário compreender quais são os limites éticos e morais que regem a política e, consequentemente, irão reger o seu discurso. Segundo Silva (2002), ética provém do grego ethos e significa “modo de ser”; já moral vem do latim mores, significando “costumes”. A primeira tem a função de explicar as razões do comportamento moral dos homens e proporcionar reflexões, já a segunda é definida como um conjunto de normas que regulam o comportamento individual dos homens, contribuindo para a estabilidade de uma ordem social. A moral é resultante da 112

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ação do homem enquanto ser social, histórico e prático. De acordo com Menezes (2000), as esferas política e ética no cenário brasileiro vivem sob constante tensão, vistas na maioria das vezes como dimensões antagônicas e excludentes. Para Silva (2002), ao negar este vínculo da política com a moral, a pessoa está adotando uma postura que remete a Maquiavel (1996): os fins justificam os meios. Essa busca pelo resultado a qualquer preço, que Silva (2002) chamará de realismo político, impede que os atos políticos sejam avaliados moralmente, restringindo a moral apenas à vida privada. Porém, segundo o autor, este realismo é errôneo, pois ainda que a moral se manifeste no comportamento do indivíduo, ela expressa uma exigência social. Portanto, se a política almeja legitimidade, ela não pode dispensar o consenso dos cidadãos – o que implica em um apelo à moral. Por outro lado, existe o moralismo absoluto, que aprisiona a política em uma esfera moral, onde o político é julgado somente por suas virtudes e vícios. Silva (2002) irá defender que política não deve absorver a moral e nem a moral ser reduzida à política. Ambas são formas de comportamento que não se identificam, entretanto existe a necessidade de uma relação mútua entre as duas, que não renuncie a política em nome da moral e nem a exclua. Maquiavel irá dar outro significado para a política, considerando-a uma esfera autônoma da vida em sociedade. A partir dele, a política passa a ser pensada como um campo de estudo independente, com regras livres de considerações privadas, morais, filosóficas e religiosas. De acordo com Silva (2002), para Maquiavel a política deve preocuparse com as coisas como elas são e não em como elas deveriam ser. “Ao libertar a política da moral religiosa, Maquiavel explicitou seu caráter terreno e transformou-a em algo passível de ser assimilado pelos comuns dos mortais” (SILVA, 2002, p. 2). Para o filósofo florentino, a finalidade essencial da política é conquistar e manter o poder. É neste contexto que a famosa frase “os fins justificam os meios” foi cunhada. Há uma interdependência clara entre os fins e os meios, porém Silva (2002) indaga sobre o que se pode e não pode fazer para atingir um fim e se o fim for justo, se todos os meios realmente se justificam. Além disso, o autor também levanta outra questão importante: o que justifica o fim? Silva (2002) defende que a ordem se mantém a ferro e a fogo. Se entendermos a política enquanto conflito de interesses e classes sociais, a justificação dos fins dirá respeito sobre as opções que fazemos quanto ao projeto político. Segundo o autor, numa sociedade onde impera a desigualdade, os fins não são universais, nem a moral. Partindo do pressuposto de que os fins se justificam pelo projeto social que assumimos, é possível retomar a discussão se os fins justificam os meios. Como exemplo o autor coloca: “Quem luta pela liberdade pode usar recursos ditatoriais, repressivos? Quem respeita a vida humana pode adotar métodos de tortura em nome do objetivo político?” (SILVA, 2002, p. 3). O que Silva (2002) quer dizer com os seus exemplos é que os fins justificam sim os meios, contanto que os meios não entrem em contradição com os fins desejados. É aceitável o meio que contribui para o fim, sem que represente a negação deste fim.

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Em outras palavras, o autor conclui que para a manutenção da ética é necessária a adequação do meio ao fim. Compreendido o discurso político, bem como algumas técnicas que o envolve, no próximo capítulo podemos fazer a análise de alguns discursos presentes nas eleições presidenciais de 2014.

3 Análise de campanha “A política é a arte de captar em proveito próprio a paixão dos outros”. (Henri Millon de Montherlant)

Neste capítulo analisaremos algumas peças das campanhas políticas desenvolvidas pelos três principais candidatos à presidência nas eleições de 2014: Marina Silva (PSB), Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). Porém, antes de dar início à análise em si das peças, se faz necessário tecer algumas considerações sobre o papel do receptor no processo comunicacional para que o objeto de estudo possa ser melhor delimitado.

3.1 O papel do receptor no processo comunicacional Segundo Grohmann (2009), na segunda metade do século XX diversas teorias passaram a entender a imagem do receptor como tendo um papel importante no papel comunicacional. O autor irá citar a obra de Jesús MartínBarbero, uma das principais referências da escola latino-americana de comunicação, que observou que os meios comunicacionais não transformam o ser humano em receptor passivo e alheio à sua realidade. Constata que não existe uma relação unilateral entre um emissor dominante e um receptor dominado, ou seja, deixa-se de ter uma visão de protagonismo do emissor e passa-se a compreender que existe uma intensa troca de informações entre emissor e receptor. De acordo com Dantas (2008), o modelo comunicacional estabelecido por Barbero, implica na recepção midiática como um processo de interação em que há uma troca de mensagens com inúmeras variáveis de natureza representativa ou simbólica entre emissor e receptor. Devido a essa complexidade de fatores que envolvem a mensagem não é possível garantir que a intenção inicial do emissor seja a mesma captada pelo receptor. Neste estudo de Barbero, é observado que o receptor não é um mero decodificador das mensagens impostas pelo emissor, mas também é um produtor de novos significados, uma vez que ele interpretaria o conteúdo de uma mensagem de acordo com os valores sociais por ele defendidos. Hall (2003) propõe que o significado de uma mensagem nunca será fixo, uma vez que é suscetível a interferências contextuais e multirreferenciais. Sendo assim, uma mensagem poderá sempre ser lida e interpretada de diversas maneiras. Hall (2003) alega que, em um processo comunicacional, é possível haver três tipos de respostas: dominante, contestatória e negociada. A resposta dominante normalmente está de acordo com a codificação: ou seja, ocorre uma hegemonia, uma transparência entre codificação e decodificação, onde cada 114

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significado comunicado é perfeitamente compreendido pelo receptor. As respostas contestatórias são aquelas que se opõem ao significado atribuído pelo emissor; as respostas negociadas, que ocorrem na maioria das vezes, são aquelas em que negociamos o seu sentido, sem estabelecer fortemente uma posição de aceitação ou negação da mensagem. Sobre as decodificações televisivas, Grohmann (2009) nos diz que a posição social do receptor produzirá tipos específicos de leitura, que poderão ser entendidas segundo suas próprias questões sociais, raça, sexo e nível de escolaridade. Frente a essas múltiplas possibilidades de decodificação de uma mensagem, não seria possível afirmar categoricamente neste estudo se um possível “discurso do medo” poderia provocar tal percepção no receptor, assim como eventual reação a esse discurso, a não ser por uma análise de suas consequências. Portanto, o que será buscado neste projeto com a análise das peças é determinar apenas se houve uma estrutura de discurso codificada com a intenção de gerar medo, e não a interpretação dada pelo decodificador.

3.2 Campanhas eleitorais presidenciais de 2014 Um aspecto de grande importância político-social que, segundo as diversas mídias, esteve presente nas propagandas eleitorais de 2014 foi o que se denominou discurso do medo. Segundo os meios comunicacionais, tal discurso foi uma constante nas campanhas de todos os partidos. Neste item, portanto, serão analisadas peças de programas eleitorais dos candidatos Marina Silva (PSB), Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), a fim de compreender como o discurso do medo pode ter sido estruturado dentro da campanha dos candidatos. Ao todo foram 28 programas eleitorais (e campanhas partidárias) assistidos, dos quais 6 foram escolhidos para análise. O critério utilizado para a escolha desses programas foi a presença explícita de expressões do universo lexical da palavra “medo”, tais como: “terror”, “aterrorizar”, “amedrontar”, “perder”, “ameaçar”, “prejudicar”, “retrocesso” e “perseguir”. Primeiramente, apresentaremos os enunciados que englobaram esse universo lexical. Posteriormente, serão listadas possíveis cadeias parafrásticas do discurso onde o léxico “medo” produz o seu sentido e, por último, será feita a análise do sentido desses discursos.

3.2.1 Enunciado de Dilma – 15/04/2014 – Campanha Partidária [Locutor]: Quando a gente dá um passo para frente na vida é preciso saber preservar o que conquistou. Não podemos deixar que os fantasmas do passado voltem e levem tudo o que conseguimos com todo o esforço. Nosso emprego de hoje não pode voltar a ser o desemprego de ontem. Não podemos dar ouvidos a falsas promessas. O Brasil não quer voltar atrás. (Fantasmas do Passado,

2014, 00’, 00’48).

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Objeto 1 - Possíveis cadeias parafrásticas: Não podemos deixar que os fantasmas do passado voltem e levem tudo o que conseguimos. Emprego de hoje não pode voltar a ser o desemprego de ontem.

O enunciado extraído pertence a um vídeo intitulado “Fantasmas do Passado”, exibido pela primeira vez na televisão brasileira no dia 13 de maio de 2014 e reexibida no dia 15, quando o PT teve 3 minutos diários de inserções em todos os canais de televisão do país. A campanha foi suspensa no dia 21 de maio do mesmo ano pela ministra Laurita Vaz do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), alegando que o vídeo sinalizava de maneira dissimulada para a continuação do governo Dilma, quando o período de propaganda eleitoral ainda não havia começado. A peça retrata um suposto medo de voltar atrás no governo, fazendo uma menção ao mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que governou em um período prévio aos três mandatos petistas (dois mandatos de Lula e um mandato de Dilma Rousseff). Feita pela agência do publicitário João Santana, a peça mostra pessoas em situações do cotidiano como, por exemplo, em uma farmácia, saindo do trabalho ou tomando sorvete com a família, se deparando com o seu eu no passado – passado este retratado de forma sombria sob uma locução que expressa a necessidade de preservar o que foi conquistado e não voltar atrás. A cena da família feliz tomando sorvete rapidamente se transforma em uma cena escura, com a família encarando a si mesma em uma situação de fome e miséria9.

Figura 1: Família de camponeses

Figura 2: Família no Caminhão

Fotograma do vídeo “Fantasmas do Passado” em 0’04’’.

Fotograma do vídeo “Fantasmas do Passado” em 0’05’’.

9 Todos os fotogramas da página 63 foram retirados do filme publicitário Fantasmas do Passado, 2014. Disponível em: http://bit. ly/1sKCUZL. Recorte feito pela autora.

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Figura 3: Menina na rua

Figura 4: Menina tomando sorvete

Fotograma do vídeo “Fantasmas do Passado” em 0’27’’.

Fotograma do vídeo “Fantasmas do Passado” em 0’29’’.

A locução da campanha ao utilizar expressões como “levem tudo” invoca um sentimento de perda. Diz ao eleitor que não pode deixar que o “fantasma do passado”, no caso o governo da oposição, volte e faça com que a pessoa perca tudo o que conseguiu em sua vida como: status, emprego, estabilidade social, entre outros. Ao dizer isso, a propaganda partidária está dizendo ao cidadão que ele se encontra em uma situação de risco de sua posição social e lugar no mundo. Como visto anteriormente, Bauman (2008) classifica tais riscos como perigos criadores de medo. A peça é enfática ao dizer que, caso os fantasmas voltem, o emprego que temos hoje, nossa segurança de sustento, se verterá em desemprego, gerando fome e miséria. Nessa peça é possível ver um traço característico de campanhas políticas extremistas (mesmo o partido não sendo extremo): a oposição como o único inimigo da nação. Nesta peça, o partido petista coloca os “fantasmas do passado” como único responsável direto por todos os males que o país pode vir a sofrer. A fala em terceira pessoa “levem tudo o que conseguimos” pode ser compreendida de duas formas: tudo o que Dilma e o povo conseguiram e tudo o que Dilma e o PT conseguiram. Nesta frase, fica evidenciada o heroísmo de Dilma e do PT que conseguiram uma melhora de vida para a população. Podemos interpretar que o Partido dos Trabalhadores é o responsável direto pelas conquistas do povo brasileiro: a empregabilidade, o combate à fome, a segurança social, e etc. O discurso converge para um estado potencial: permite que o público vislumbre a possibilidade de existência desse fantasma, que voltará e o entregará à miséria, dessa forma o discurso fica passível de desencadear nos eleitores um sentimento de angústia que, segundo Delumeau (1996), é um sentimento global de insegurança.

3.2.2 Enunciado do programa de Dilma – 09/09/2014 – 1º turno [Locutor]: O que mais dói na corrupção é saber que o dinheiro público, que deveria ser usado para o bem de todos, vai para o bolso de alguns aproveitadores. Mas também devemos estar atentando a outras formas mais sutis do desvio da riqueza da nação para o bolso de uns poucos privilegiados. É o que acontece com certas decisões econômicas erradas. Por exemplo, dar autonomia jurídica ao banco central é privilegiar o interesse de poucos em prejuízo aos que mais precisam. [Locução Vídeo]: Marina tem dito que se eleita vai fazer autonomia do banco central. Parece algo distante da vida da gente, não é? Parece, mas não é. Isso significaria entregar aos banqueiros um grande poder de decisão aos banqueiros sobre você e a sua família: juros que você paga, seu emprego, preços

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e até salários. Ou seja, os bancos assumem um poder que é do presidente e do congresso eleitos pelo povo. Você quer dar a eles esse poder? [Locutor]: A verdade é uma só, Dilma é a maior garantia de que o Brasil não irá dar um passo para trás nem dar um salto no escuro, irá avançar mais em todo o país. (Programa Eleitoral de Dilma, 2014, 07’51”, 08’15’’)

Objeto 2 - Possíveis cadeias parafrásticas: Desvio da riqueza da nação para o bolso de uns poucos privilegiados Em prejuízo aos que mais precisam. Entregar aos banqueiros poder de decisão sobre (...): juros que você paga, seu emprego, preços e até salários. No programa eleitoral da presidente Dilma Rousseff, veiculado no dia 9 de setembro, a ideia da candidata Marina Silva de dar autonomia jurídica ao Banco Central foi fortemente criticada. A locução começa anunciando que o que mais dói na economia é ver o dinheiro público ir para o bolso de alguns aproveitadores, sentença que é reforçada novamente na frase seguinte “devemos estar atentando a outras formas mais sutis do desvio da riqueza da nação para o bolso de uns poucos privilegiados”, em seguida, o locutor cita como exemplo o ato de dar autonomia jurídica ao banco central, que prejudicaria os que mais precisam em detrimento de “alguns poucos privilegiados”. Como visto anteriormente, Charaudeau (2013) defende que o discurso político insiste na mesma desordem social que uma narrativa. Neste primeiro trecho fica claro o primeiro personagem da narrativa: o inimigo. Existe um inimigo, os chamados “aproveitadores” e “privilegiados” e que estão praticando o mal de roubar o “dinheiro que deveria ser usado para o bem de todos”. Também é apresentada a vítima sob o nome de “os que mais precisam” e “todos”. No trecho que segue a locução é mostrado um vídeo10. O vídeo começa com alguns banqueiros conversando enquanto o locutor diz que Marina tem dito que se eleita daria autonomia ao Banco Central, quando o locutor menciona a proximidade que essa decisão tem da vida das pessoas, a câmera mostra uma família almoçando aparentemente feliz. O texto progride e começa a apontar os males que essa decisão causaria: a entrega aos banqueiros do poder de decisão sobre os juros a serem pagos, os empregos, preços e salários, a cada palavra mencionada a comida no prato da família começa a desaparecer. Novamente a câmera se volta para a imagem dos banqueiros que conversam de forma sorridente em contraponto a imagem da família, agora com um olhar desesperado e sem comida no prato.

10 Todos os fotogramas da página 66 foram retirados do filme publicitário veiculado no programa eleitoral da presidente Dilma Rousseff em 09/09/2014. Disponível em: http://bit.ly/YEUC9B. Recorte feito pela autora.

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Figura 5: Banqueiros conversando Fotograma do programa eleitoral de 09/09/2014 em 07’53’’.

Figura 7: Comida desaparecendo Fotograma do programa eleitoral de 09/09/2014 em 08’03’’.

Figura 6: Família almoçando Fotograma do programa eleitoral de 09/09/2014 em 07’58’’

Figura 8: Banqueiros sorrindo Fotograma do programa eleitoral de 09/09/2014 em 08’11’’

Neste segundo momento, o inimigo, dito antes como “aproveitadores” e “privilegiados”, ganha um nome mais específico: Marina. Afinal é ela quem irá dar autonomia ao Banco Central que, por consequência, com seu poder de decisão sobre a vida das pessoas, irá usar o dinheiro público em benefício de uma minoria. A vítima também ganha uma característica mais específica: deixa de ser o “todos” para se tornar “a sua família”. Ao fazer isso, a peça está tentando deixar claro que essa decisão da candidata Marina irá atingir diretamente o espectador que está assistindo o comercial naquele momento. Novamente o lugar do cidadão do mundo está ameaçado, assim como a sua própria sobrevivência, uma vez que a comida é fundamental para a continuidade da vida. Essa situação é passível de gerar medo em um telespectador que se coloca diretamente no lugar da família do vídeo. Por fim, é dada à população a solução salvadora: a candidata Dilma, que é a maior garantia que o Brasil não irá dar um passo para trás, que a maioria não terá um prejuízo ou uma perda e que não será jogada no “escuro”, na incerteza, no medo.

3.2.3 Enunciado do programa de Marina – 25/09/2014 – 1º turno [Marina]: Toda mudança provoca dúvidas e inseguranças. E os que estão agarrados ao poder essa hora vêm com histórias de terror. Dizem que você vai perder o seu emprego, sua casa, sua comida. É como se o governo tivesse dado para você todas essas coisas. Como se você não tivesse conquistado com seu próprio esforço e trabalho. (Programa Eleitoral de Marina, 2014, 00’’08, 00’’28)

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Objeto 3 - Possíveis cadeias parafrásticas: Os que estão agarrados ao poder essa hora vêm com histórias de terror. [...] Você vai perder seu emprego, sua casa, sua comida.

O programa eleitoral da candidata Marina Silva, veiculado 9 dias antes do primeiro turno, abre com Marina fazendo um discurso a respeito das alegações que vinham sendo feitas contra ela. A candidata afirma que os que estão agarrados ao poder vinham com histórias de terror, histórias nas quais a população iria perder o emprego, a casa e a comida. Os personagens da narrativa se invertem com os personagens demonstrados no enunciado anterior: se antes o inimigo era a Marina e os “aproveitadores”, agora o inimigo são as pessoas que estão agarradas ao poder, espalhando histórias de terror. Na época, quem estava no poder era a presidente Dilma Rousseff, podemos então assumir que Dilma, na fala de Marina, estaria “agarrada ao poder” e contando “histórias de terror”. Ou seja, a inimiga neste discurso é a candidata Dilma. Segundo Bauman (2008), sentir um medo em segundo grau (que é como Bauman caracteriza a insegurança) é sentir ser suscetível ao perigo e vulnerável. Ao falar em “terror”, o discurso de Marina sugere que Dilma está querendo se aproveitar do período de insegurança e dúvida para causar medo na sociedade, e ao sugerir isso, Marina também deixa o eleitor à mercê do medo: medo de alguém que o vá deixar suscetível ao perigo. O trecho “dizem que você vai perder o seu emprego, sua casa, sua comida” faz uma clara menção ao comercial exibido no programa eleitoral de Dilma alguns dias antes, no qual dizia que as pessoas teriam seu emprego e seu salário postos em riscos se a candidata Marina Silva assumisse a presidência. Marina, ao rebater a alegação dizendo que é como se “o governo tivesse dado para você todas essas coisas. Como se você não tivesse conquistado com seu próprio esforço e trabalho” implica que o comercial está mentindo e merece ser desqualificado. Afinal, o governo está agindo como se emprego, salário e comida fossem algo que ele estivesse dado às pessoas, porém Marina está lembrando o eleitor que isso não é verdade, que foram coisas que o próprio cidadão conquistou. E mais do que isso, implica que o governo não pode tirar algo que não foi dado por ele, insinuando uma garantia de que só o cidadão tem poder sobre o que ele conquistou. A linha narrativa, portanto, seguirá a seguinte lógica: O vilão é a candidata Dilma que está se utilizando de um período normal de dúvidas e insegurança para contar histórias de terror para a população; a vítima são os cidadãos que estão sendo levados a crer que são dependentes do governo e que todos os seus benefícios provém dele (governo) e não do esforço próprio; e o herói é a candidata Marina que está abrindo os olhos do cidadão a esta realidade e reafirmando que uma mudança irá sim acontecer, porém não é necessário que os cidadãos temam por suas conquistas.

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3.2.4 Enunciado do programa de Aécio – 14/10/2014 – 2º turno [Locutores]: “Eles só pensam nos ricos. Eles vão acabar com os programas sociais. Não vote no Aécio. Não vote no Aécio.” É assim que o PT quer amedrontar você. Com fofocas e boatos, mentiras. Mas na verdade quem tem medo são eles. Medo de perderem a eleição, poder, os privilégios. Medo que se investigue a corrupção na Petrobras ou as obras superfaturadas. Eles é que estão com medo. Porque sabem que a mudança já começou. (Programa Eleitoral de Aécio, 2014, 00’’, 00’’29)

Objeto 4 - Possíveis cadeias parafrásticas: [...] O PT quer amedrontar você. Quem tem medo são eles. Medo de perderem a eleição, poder, privilégios, que se investigue

Com 33,55% dos votos, o candidato Aécio Neves foi para o segundo turno contra a candidata Dilma Rousseff, que recebeu 41,59% dos votos. Na peça que foi ao ar no dia 14 de outubro, o tucano acusou o PT de estar tentando gerar medo na população. Primeiramente, foram listadas as supostas mentiras que estavam sendo contadas: “eles só pensam nos ricos”, “eles vão acabar com os programas sociais”. Posteriormente, o programa de Aécio desmente essas alegações afirmando que o PT estaria querendo amedrontar os eleitores através de fofocas, boatos e mentiras. Neste enunciado temos o vilão que é encarnado no PT, o partido que estaria mentindo para a eterna vítima, os eleitores, e tentando amedrontá-los. Assim como nos discursos antes visto de Marina, aqui também Aécio tenta incutir a ideia de que o PT está deixando o telespectador suscetível ao medo, ao perigo, o que pode acabar gerando no eleitor um medo de sentir medo. Medo de uma força que o estaria enganando e se aproveitando dele. Na segunda parte do enunciado, a expressão “mas na verdade quem tem medo são eles” surge a ideia de que, apesar de tudo, o eleitor não deve ter medo. Pois essa tática que o PT está utilizando não irá funcionar e irá se voltar contra ele próprio, uma vez que o partido é quem está com medo de perder poder e privilégios, entre outros medos. Aécio coloca a ideia de que o PT está tentando aterrorizar a população, sendo passível de gerar, por um breve momento, ele mesmo o medo no eleitor, para logo em seguida se colocar no papel de herói (a mudança que já começou) que não permitirá que o eleitor sinta esse medo, afirmando que, na verdade, quem irá sentir o medo, quem realmente irá perder os privilégios, será o PT e não os cidadãos.

3.2.5 Enunciado do programa de Aécio – 22/10/2014 – 2º turno [Aécio]: Minha amiga, meu amigo. Eu vou interromper nesse momento a nossa campanha eleitoral para me dirigir com o coração aberto a cada brasileiro, a cada brasileira, de todas as regiões do país. O momento de eleição é um momento extremamente importante em uma nação. É um momento de debates, é momento de confirmação, de fortalecimento da democracia. Mas, infelizmente, não é isso que está acontecendo no Brasil. Essa eleição vai ficar marcada pela

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mentira, pela calúnia dos meus adversários, pela covardia. [...] Onde eu vou eu sou procurado por pessoas assustadas. Beneficiários do Bolsa Família estão sendo aterrorizados com a mentira de que eu iria acabar com o programa. Não vou, vou manter o Bolsa Família. Famílias que estão inscritas no Minha Casa, Minha Vida estão recebendo ligações dizendo que eu iria cancelar o programa. [...] Jornais anônimos são espalhados por todo o país com mentiras e falsas acusações. Funcionários de bancos e empresas públicas como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, os Correios, a Petrobras, entre outras, estão assustados com os avisos de que eu iria privatizar essas instituições. [...] As mesmas pessoas que chamaram Eduardo Campos de Playboy, me agridem. As mesmas pessoas que atacaram Marina Silva de forma cruel, agora se voltam contra mim. E vão se voltar contra a qualquer um que ameace a permanência do PT do poder. Infâmias e gravíssimas mentiras são espalhadas de mim nas redes sociais por um exército clandestino, anônimo. Fotos e vídeos são montados e adulterados de forma criminosa. [...] A campanha adversária tenta me desqualificar do ponto de vista pessoal de todas as formas. [...] E eu pergunto a você, por que tanto ódio? Por que tanto desrespeito? Hoje, em função de tantas mentiras, milhões de brasileiros estão com medo. Mas eu digo a vocês, nós não precisamos ter medo do PT. Eu não tenho medo do PT. [...] O Brasil que vai nascer nas urnas no próximo domingo não pode ser um Brasil nascido do terrorismo, do medo, da chantagem, do ódio, da mentira, nós não merecemos isso. Nós queremos libertar o Brasil do medo. [Locutores]: Nessa eleição, para o PT, o inimigo é o Aécio. Para o Aécio, a inimiga é a inflação. Para o PT o inimigo é o Aécio, para o Aécio, a inimiga é a incompetência. Para o PT o inimigo é o Aécio, para o Aécio, a inimiga é a falta de crescimento. Para o PT o inimigo é o Aécio, para o Aécio, a inimiga é a corrupção. E aí quem você acha que está lutando pelo Brasil? Agora é Aécio. [Marina]: Espalha o medo, parte para ataques pessoais, ao invés de debater projetos e soluções, porque sabe que assim evita expor as fraquezas e os erros do seu governo. Eduardo Campos e eu fomos vítimas dessa estratégia destrutiva e agora a mesma coisa está acontecendo com o Aécio. [...] Use a sua liberdade de cidadão, não se deixe intimidar por acusações sem fundamento que a campanha da candidata Dilma vem fazendo ao Aécio. (Programa Eleitoral de Aécio, 2014, 00’’13, 06’26’’)

Objeto 5 - Possíveis cadeias parafrásticas: Onde eu vou eu sou procurado por pessoas assustadas Beneficiários do Bolsa Família estão sendo aterrorizados Funcionários de bancos e empresas públicas [...] estão assustados. Vão se voltar contra qualquer um que ameace a permanência do PT no poder. Milhões de brasileiros estão com medo Nós não precisamos ter medo do PT. Eu não tenho medo do PT. Um Brasil nascido do terrorismo, do medo Nós queremos libertar o Brasil do medo Espalha o medo Não se deixe intimidar por acusações sem fundamento.

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Em um dos seus últimos programas eleitorais, antes da votação do segundo turno, Aécio abre seu discurso se dirigindo, como ele próprio colocou, de “coração aberto” para a população a fim de expor a ela todas as supostas mentiras e calúnias das quais ela e ele mesmo estavam sendo vítimas. Em um primeiro momento, Aécio é enfático ao dizer que em todos os lugares em que vai é procurado por pessoas assustadas. Para reforçar essa ideia são usados exemplos como “Beneficiários do Bolsa Família estão sendo aterrorizados com a mentira de que eu iria acabar com o programa” e “Funcionários de bancos e empresas públicas como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, os Correios, a Petrobras, entre outras, estão assustados com os avisos de que eu iria privatizar essas instituições”. O discurso continua com o candidato Aécio alegando que está sofrendo agressões das pessoas que outrora desferiram ataques a Eduardo Campos e a Marina Silva. Neste trecho, podemos supor que o candidato Aécio está dizendo que existe um grupo de pessoas, a que se refere como “adversários”, que estão de maneira caluniosa e covarde conferindo medo às pessoas, e, esses adversários já vem fazendo isso há um tempo e com outros candidatos. O medo não é recente, é um medo que vem sendo cultivado há algum tempo. Temos aí o inimigo do discurso, que no momento seguinte é nomeado no enunciado: “e vão se voltar contra a qualquer um que ameace a permanência do PT do poder”. Desta frase podemos presumir que qualquer pessoa que for oposta ao governo sofrerá inquestionavelmente os mesmos males que o candidato alega estar sofrendo. O candidato mais adiante diz que está sendo desqualificado do ponto de vista pessoal, isso está acontecendo por que ele é opositor ao atual governo, então qualquer pessoa que se volte contra o governo também poderá ser suscetível a ser desqualificada pessoalmente, em outras palavras: ter o seu lugar no mundo ameaçado. Novamente é citado no discurso que, em consequência a todas as mentiras da oposição, milhões de brasileiros estão com medo. Milhões de brasileiros estão sendo vítimas. Porém, o candidato Aécio se retira do papel de vítima para entrar no papel do herói quando diz: “mas eu digo a vocês, nós não precisamos ter medo do PT. Eu não tenho medo do PT. O Brasil que vai nascer nas urnas no próximo domingo não pode ser um Brasil nascido do terrorismo, do medo, da chantagem, do ódio, da mentira, nós não merecemos isso. Nós queremos libertar o Brasil do medo”. Neste momento podemos interpretar que o país está sim suscetível ao terrorismo e ao medo, e o cidadão deve sentir medo deste fato, pois não é algo que ele mereça. E o único modo de libertar o Brasil deste sentimento, é votando no herói salvador, que no caso é o candidato Aécio. Após o discurso inicial do candidato do PSDB, entra em exibição um vídeo com dois locutores dizendo que enquanto para o PT o inimigo é sempre o Aécio, para o Aécio o inimigo são problemas importantes e sérios como corrupção e inflação. Este vídeo reforça a ideia de que o PT está preocupado somente em desqualificar o seu oponente, utilizando-se de qualquer técnica disponível para fazer com que o adversário apareça como sendo o mal aos olhos do público. A peça serve como um lembrete aos eleitores de que o PT está interessado apenas em atacar qualquer um que possa ameaçar o seu poder. Se o Aécio foi ameaçado e transformado em inimigo, qualquer cidadão que se opuser ao partido, também poderá sofrer as mesmas consequências. Para fechar o discurso, a agora ex-candidata à presidência Marina Silva toma a palavra com o objetivo de endossar tudo o que foi dito anteriormente na fala do candidato Aécio. Marina afirma que os adversários estão realmente espalhando o medo e que estão atacando Aécio com a mesma técnica destrutiva com que atacaram ela própria REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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e Eduardo Campos. Por fim, faz um apelo à população para que não se deixe intimidar pelas acusações sem fundamento. Podemos, neste enunciado, retomar o conceito exposto por Eisenberg (2005) de que ao ter a coragem de sentir medo, o indivíduo fica habilitado a tomar uma ação libertadora, que significa assumir o medo e a partir disso construir a coragem de resistir a este sentimento e resisti-lo. Também, é adquirida a coragem de obedecer àquilo que pode tirar o medo. É possível interpretar a partir do discurso de Marina que o medo existe sim, é real, mas que o brasileiro não pode se deixar intimidar por ele, ou seja, precisa assumir o medo para poder derrotá-lo, e a melhor forma de resistir ao sentimento é utilizar a sua liberdade de cidadão para tomar a decisão que o irá libertar do terror: votar no Aécio.

3.2.6 Enunciado do programa de Dilma – 24/10/2014 – 2º turno [Locutor]: Toda campanha é a mesma coisa. Na reta final, quando todas as pesquisas indicam a liderança de um candidato do PT, seja ele Lula ou Dilma, a revista Veja joga uma notícia bombástica numa tentativa vergonhosa de reverter a decisão popular. Aconteceu de novo agora. A VEJA que está chegando agora as bancas tenta implicar Dilma e Lula no escândalo da Petrobras. Não há nenhuma prova disso, mas para a VEJA isso é o de menos. O que importa é de todas as maneiras tentar evitar a vitória de Dilma. Mesmo que para isso todas as regras da ética e da decência jornalística sejam atropeladas. Infelizmente esse comportamento apelativo tem sido rotineiro na VEJA. Em 98, por exemplo, a revista utilizou o MST como pretexto para aterrorizar os eleitores. A mesma tática do medo foi usada na eleição de 2002. [...] A tática do medo voltou com força total na campanha de 2006. 2010, ano de eleição de Dilma, o velho truque de amedrontar os eleitores foi repetido várias e várias vezes. Nenhuma dessas supostas denúncias foram capazes de reverter os resultados das urnas. Cega por ódio ao PT e a tudo que é popular, ela não se importa de insistir no mesmo erro de sempre. E assim escreve um dos mais tristes e lamentáveis capítulos da história do jornalismo brasileiro. [Dilma]: Minhas amigas e meus amigos. Eu gostaria de encerrar minha campanha na TV de outra forma, mas não posso me calar frente a esse ato de terrorismo eleitoral articulado pela revista VEJA e seus parceiros ocultos. Uma atitude que envergonha a imprensa e agride a nossa tradição democrática. [...] Todos os eleitores sabem da campanha sistemática que essa revista move há anos contra Lula e contra mim, mas desta vez a VEJA excedeu todos os limites. [...] É mais do que clara a intenção malévola da VEJA de interferir de forma desonesta e desleal nos resultados das eleições. A começar pela antecipação da sua edição semanal para hoje, sexta-feira, quando normalmente chega às bancas no domingo. [...] Ela não ficará impune. A Justiça livre desse país seguramente vai condená-la por esse crime, ela e seus cúmplices tão pouco conseguirão sucesso no seu intento de confundir o eleitor. (Programa Eleitoral de Dilma, 2014, 00’’04, 04’27’’)

Objeto 6 - Possíveis cadeias parafrásticas: Utilizou o MST como pretexto para aterrorizar os eleitores. A mesma tática do medo foi usada na eleição de 2002. A tática do medo voltou com força total na campanha de 2006. O velho truque de amedrontar os eleitores foi repetido várias e várias vezes. Ódio ao PT e a tudo que é popular. Ato de terrorismo eleitoral.

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No dia 24 de outubro de 2014, uma sexta-feira e último dia de propaganda eleitoral antes das eleições marcada para domingo, a revista VEJA antecipou a sua edição semanal com uma manchete que dizia que Lula e Dilma sabiam de tudo sobre os escândalos de desvio de dinheiro na Petrobras. A candidata Dilma aproveitou o início do seu programa para desmentir o fato. O discurso começa com um locutor dizendo que toda eleição é a mesma coisa, quando um candidato do PT está à frente nas pesquisas a revista VEJA, que é conhecida por seu notável repúdio ao governo do PT, lança alguma notícia “bombástica” tentando desqualificar o partido. O locutor afirma que existe uma tática do medo que a revista usou e usa constantemente para amedrontar os eleitores, e faz isso cega por ódio ao PT e a tudo que é popular. Segundo Charaudeau (2013), a mídia reporta as notícias segundo os cenários dramáticos a fim de criar no espectador antipatia pelo inimigo, simpatia pelo salvador e compaixão pelas vítimas. Neste caso, a VEJA coloca o PT como o inimigo, as vítimas como os eleitores que precisavam saber da notícia antecipadamente para não serem enganados nas urnas, e, como salvador, podemos interpretar que de certa forma a revista indica ser Aécio Neves, afinal ele era o único concorrente da candidata Dilma, sendo assim a única alternativa no momento a um governo de corrupção e escândalos. No discurso de Dilma, ela reafirma o que foi dito pelo locutor sobre a tática do medo que é utilizada pela revista para agredir ela e a Lula, dizendo que não passa de um ato de terrorismo eleitoral articulado pela VEJA e seus parceiros ocultos. Quando Dilma diz “VEJA e seus parceiros ocultos” podemos indagar quem seria esse parceiro oculto. Uma das possibilidades de reposta que temos é que um dos “parceiros ocultos” poderia ser o próprio candidato Aécio Neves, uma vez que ele de certa forma foi beneficiado pela notícia da VEJA (retomando a ideia que à alternativa que os eleitores teriam frente às denúncias da VEJA seria votar no Aécio), tendo inclusive dedicado os minutos finais de seu último programa eleitoral, exibido também no dia 22, para alertar aos cidadãos sobre a matéria da revista VEJA, dizendo que no domingo o eleitor poderia dar um basta em todas as enganações. Seguindo essa interpretação de que a VEJA estaria associada com a oposição, os tais “parceiros ocultos”, podemos entender que a oposição é tão culpada quanto a VEJA no discurso de Dilma de utilizar uma tática do medo, de possuir intenções malévolas e desleais e de odiar tudo o que é popular.

Considerações Finais Como vimos, o medo é um sentimento inato ao ser humano e que tem um papel fundamental na sua sobrevivência. Ao mesmo tempo em que o medo é o sentimento que impele o homem a agir a fim de preservar sua vida, ele pode ser prejudicial, se não houver equilíbrio: Sentir medo de menos pode levar a pessoa a tomar decisões que colocam sua vida em risco, em contrapartida, medo em excesso insere a pessoa em um estado de terror em que, paralisada, ela não consegue tomar atitudes necessárias para tirar a sua vida do risco. Com o medo indefinido, a insegurança, a angústia. Como consequência, no plano social e político, tendo sua liberdade de agir tolhida, a capacidade civil do indivíduo é profundamente afetada, passa a agir e decidir não mais de acordo com sua própria determinação ou vontade, mas como presa fácil de ideias REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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ou ideais de terceiros. Sua liberdade de agir, pensar e decidir não mais lhe pertence. E vontade das pessoas controladas é característica de Estado autoritário ou totalitário. No Estado democrático em que vivemos, liberdade é o principal direito do cidadão. Essa constatação é gravíssima, e deveria estar na raiz de todo o discurso político, como a ética e a moral nos ensina. Afinal, o Estado democrático de direito11 preceitua que todo cidadão é livre, dotado de capacidade civil para viver da maneira que bem lhe convier, desde que respeite os direitos das outras pessoas. É verdade que as campanhas políticas são embates de ideias e refletem em boa medida os antagonismos da sociedade, como recorda Menezes (2000), ao dizer que as esferas política e ética no cenário brasileiro vivem sob constante tensão. Silva (2002) chamará de realismo político. Tensões que tiram o indivíduo da sua zona de conforto devem ser vistas como naturais, “dentro das regras do jogo”, mas não podem, em hipótese alguma ferir a liberdade do indivíduo, nem se basear na calúnia, difamação ou mentiras. Certamente é da essência da democracia esse embate de ideias. Tal embate deve se pautar pela liberdade de expressão, mas no âmbito dos princípios republicanos, ou seja, com respeito às leis e aos cidadãos, aos valores morais e éticos da sociedade, com respeito a opiniões divergentes, de forma que todos possam agir de forma construtiva, contribuindo cada um com o fim político desejado, que é o prevalecimento da vontade da maioria. Esse é o balizamento legal, moral e ético que se espera do debate público de ideias, conforme entendido nesse estudo. Porém, nas peças analisadas das campanhas dos três partidos foi possível perceber a presença de uma estrutura passível de causar medo, recorrentemente sendo usada a técnica da insistência da desordem social onde sempre há um personagem causador do mal do qual as vítimas devem ter medo e um herói que irá salvá-las. Vimos que, segundo Charaudeau (2013), os novos discursos políticos de partidos mais ao centro, chamados por ele de “clássicos”, estão sendo marcados por características como ausência de ideais utópicos (por exemplo, o triunfo da classe operária sobre a burguesia) e apagamento da instância adversária (por exemplo, o discurso focado nas próprias propostas), deixando, para partidos de extrema direita e extrema esquerda, o discurso de fixar nos adversários a imagem de um inimigo causador dos males da sociedade. No sistema partidário brasileiro não há propriamente os chamados partidos extremos, onde se pode identificar com nitidez ideias de esquerda se contrapondo a ideias de direita. Bobbio (2001) alega que nenhuma doutrina pode ser de esquerda e de direita ao mesmo tempo, porém também alega que não é possível uma doutrina ser apenas de direita e apenas de esquerda. Segundo o autor, na política existe o espaço do Terceiro Incluído, também chamado de centro, e todas as doutrinas acabam por se aproximar mais ou menos deste centro. Como exemplo dado por Bobbio (2001), entre o preto e branco existem tons de cinza. No Brasil diríamos que tons de vermelho. Isso é bastante visível nos partidos políticos brasileiros, que assumem variações diferentes de cinza ou vermelho. Por exemplo, o PT é um partido, que apesar da forte inspiração marxista e de ampla orientação socialista democrática, jamais se definiu sobre o socialismo. Jamais 11 A capacidade civil plena está prevista no código civil brasileiro (lei 10.406 de 2002) do artigo 1º ao 5º. Fonte: BRASIL. Novo Código Civil. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Aprova o novo código civil brasileiro. Brasília, DF, 2002. Disponível em: http:// bit.ly/1hBawae.

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se autodenominou um partido de esquerda, ainda que fosse colocado uma régua definindo os pontos “esquerda”, “centro” e “direita”, poderíamos marcar o partido em algum lugar entre o centro e a esquerda, mais à esquerda. O PSB e o PSDB também estariam entre a esquerda e o centro, mesmo que, por exemplo, o PSDB fosse estar mais próximo do centro do que o PT. Ambos apoiam e promovem a intervenção do Estado no sistema econômico e social do país, em menor ou maior grau, ficando para o PSDB a prática de uma ideologia política centrada mais na socialdemocracia, resvalando, com frequência, para o neoliberalismo12. Nenhum dos partidos prega o igualitarismo, a ideia de que todos devem ter a mesma coisa, porém todos pregam uma sociedade igualitária: uma amenização das diferenças sociais. A diferença que causa a sensação de um partido ser mais de esquerda ou de direita é justamente o quanto essa “tecla” é batida. O discurso do PT é mais direto e esclarecedor quanto a essas diferenças sociais. De acordo com Rita e Zuccaro (2015), esse foi o grande triunfo da campanha de Dilma Rousseff. Em todas as propagandas, a candidata conseguiu inserir a população nas imagens de uma forma orgânica e teve êxito em passar ao povo a sensação de que ela fez obras, projetos sociais e afins, trazendo inúmeros benefícios diretos para a população. Já os candidatos Aécio Neves e Marina Silva não conseguiram realmente conversar com os eleitores, muitas vezes presentes de forma forçada dentro das peças, e se mostraram figuras distantes, com propostas soltas, sem gerar um grande impacto. É inquestionável que a população quer soluções imediatas: comida, saúde, segurança e educação. A campanha do PT conseguiu apresentar essas soluções à população, enquanto a campanha de Marina e Aécio focou em um discurso que apresentava propostas que pareciam distantes dessas soluções imediatas. A tática de campanha empregada por um e outro partido ajuda a entender a doutrina que está por trás deles. Apesar dos partidos não serem extremistas, podemos caracterizar o discurso utilizado como o sendo, principalmente o discurso de Dilma e de Aécio, que fixaram mutuamente o adversário como o inimigo número um da população brasileira. Esse discurso, segundo Charaudeau (2013), seria típico de partidos da extrema direita e esquerda. Dilma, que nas peças analisadas, enfatizou inúmeras vezes que tudo de ruim que poderia acontecer para a população, aconteceria apenas se o governo mudasse de liderança, excluiu totalmente a possibilidade de outras causas adversas, que poderiam ter influência em uma piora da qualidade de vida brasileira. Aécio, por sua vez, apesar de algumas tentativas de falar sobre os “verdadeiros inimigos” (inflação, falta de crescimento, incompetência), demonstrou ter mais preocupação em desqualificar a oposição do que apresentar propostas consistentes para combater esses outros inimigos. Tais inimigos acabaram se transformando em fantasmas, já que no final das contas imputaria a culpa de todos os males ao governo atual. Rita e Zucarro (2015) criticam muito a falta de ética nas campanhas eleitorais de 2014. Aécio utilizou-se muito de pesquisas que, segundo os autores, tinham pouca credibilidade, no entender deles, “fajutas”. Dilma também teria se valido de diversas mentiras para promover o seu governo. Um bom exemplo seria a comparação que a candidata, por inúmeras vezes, fez da economia atual com a economia do governo 12 O neoliberalismo trata-se de uma doutrina que defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim em um grau mínimo.

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tucano, que já havia terminado há 12 anos: “é, no mínimo, uma tapeação para o povão, que talvez não consiga compreender essa defasagem de tempo. É preciso compreender que o Brasil cresceu nesse tempo, fosse quem fosse o governo” (RITA e ZUCCARO, 2015, p. 91). Os autores também são enfáticos em dizer que os ataques de Dilma à Marina foram covardes e mentirosos. Mostrar a candidata como a aliada dos banqueiros que iriam tirar o prato de comida da população, foi, além de uma mentira, antiético, considerando o perfil político e o histórico da candidata. Verdade seja dita que eventual construção do medo nas eleições de 2014 não foi um caso único e nem de exclusividade do PT. Já nas eleições presidenciais de 2002, o então candidato pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, que após três tentativas frustradas, tentava novamente, teve que enfrentar o temor que a população e o “mercado” em particular tinham do seu partido. É fato que esse medo decorria menos da postura dos candidatos e mais da própria ideologia atribuída ao PT. Para enfrentar esse temor, o então candidato Lula, como forma de convencer o país de que o PT não romperia os princípios democráticos, leu, em 22/06/2002, a Carta ao Povo Brasileiro, documento que assumia um compromisso com as diretrizes a serem seguidas caso Lula vencesse as eleições. Esta carta foi fundamental para a vitória do candidato. Carta ao povo brasileiro: O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. [...]. Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas. O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo se esgotou. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral. O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país. (SILVA, 2002).

Segundo Panke (2010), a Carta ao Povo Brasileiro foi importante para oficializar o começo da fase centro-esquerda do PT, fundamentando as mudanças ideológicas do partido e evidenciando a mudança de postura do candidato. Nessa Carta, Lula fez uma desconstrução do medo para conseguir vencer as eleições. Ele mostrou à população que ela, apesar da crise social e da insegurança estarem tomando proporções assustadoras, que poderiam resultar em um colapso, deveria continuar esperançosa. E Lula reforça o seu papel simbólico de ser a esperança do país com o slogan “A esperança venceu o medo”. Se nas eleições de 2002, portanto, o medo foi desconstruído, o que presenciamos 12 anos depois foi sua reconstrução. Faltando 15 dias para o primeiro turno, a própria Marina, durante as eleições de 2014, reutilizou esse bordão “A esperança vai vencer o medo”, em uma citação em sua conta oficial do twitter13. A frase de Marina evidencia a existência de uma estratégia do medo que o próprio PT, que uma vez se colocou em um papel de libertador deste sentimento, estaria utilizando agora como forma de obter vantagem sobre a oposição. 13 Fonte: http://bit.ly/1NUDFi8

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Como visto anteriormente no capítulo da Ética e a Política (item 3.2), de acordo com Silva (2002), os fins justificam os meios, contanto que os meios não entrem em contradição com os fins desejados. Como exemplo, o autor fez a seguinte indagação: “Quem luta pela liberdade pode usar recursos ditatoriais, repressivos?” (SILVA, 2002, p. 3). Nas peças analisadas dos três candidatos restou claro que cada campanha criava uma esfera de medo, atribuindo a culpa dos males para o adversário, para no fim desconstruir esse sentimento, e atribuir ao candidato em questão o papel de salvador. Seguindo o raciocínio de Silva (2002) sobre adequar o meio ao fim, podemos perceber que se o fim é libertar o país do medo, utilizar a própria criação deste medo como meio é, no mínimo, contraditório. Portanto, também por essa questão, podemos concluir que, em suas campanhas, os candidatos não tiveram cuidado com a ética e a moral. Como mostrado no início destas considerações finais, confrontado com a honestidade e os princípios da ética e da moralidade, os discursos dos três principais candidatos deixaram a desejar, tentando impor aos eleitores os respectivos pontos de vistas mediante o emprego do terror e, frequentemente, fazendo uso da difamação. Concordamos com Rita e Zucarro (2015) sobre a falta de ética nas eleições de 2014, e podemos acrescentar, ainda, que o Brasil não foi mostrado com seus problemas reais, ou pelo menos, estes foram mascarados e sublimados, sonegando aos eleitores o verdadeiro debate dos planos de governo. Com tais fundamentos, não resta dúvida que seus discursos tiveram uma estrutura passível de causar medo nos eleitores e de limitar a capacidade destes de agir e entender com clareza os fatos. Assim, nos resta entender se estratégia de medo presente nas campanhas poderiam resultar na sociedade um valor simbólico positivo ou negativo. Como estudado anteriormente, a sociedade mantém o controle sobre o medo em um equilíbrio tênue, que não deve ser rompido sob pena de trazer uma desordem na vida social. O rompimento deste equilíbrio contrapõe o Direito da Natureza (o direito de homem fazer tudo aquilo que seu julgamento e razão diz ser necessário) e a Lei da Natureza (norma geral estabelecida pela razão que proíbe o ser humano de agir de forma a destruir a sua vida), propostos por Hobbes (2014). Segundo Einsenberg (2005), o medo é uma paixão positiva do ponto de vista de formação da figura política, uma vez que constrói a imagem do inimigo e estabelece os amigos. O medo é o que leva à ação política. Afinal, o Estado surge justamente como forma de dominar esse sentimento. Porém, quando difuso de maneira excessiva, o medo fere o pacto social, quebrando o selo de segurança da sociedade que, de acordo com Delumeau (1996), está na fase da afetividade e da moral humana. A sociedade moderna, do ponto de vista de Bauman (2008), é um dispositivo para tornar a vida com medo tolerável. Eisenberg (2005) nos diz que diante do sentimento do medo, somos impelidos a agir, a ter coragem de assumir o medo e de dominá-lo. Para Bauman (2008), as pessoas na sociedade moderna não conseguem lidar com o medo e, portanto, não conseguem se unir em uma ação solidária a ponto do Estado

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realmente conseguir prover a segurança. Diante dessa carência de proteção e segurança proveniente da fragilidade dos vínculos sociais, o medo acaba por adquirir um caráter extremamente perigoso. Frente a isso, a coragem, da qual Eisenberg (2005) nos fala, torna-se uma coragem de obedecer àquilo que pode tirar o medo, ou que, pelo menos, pode nos dar a sensação de que tirará o medo: o governante. Transportando para o consciente coletivo, o medo excessivo pode ser instrumento de poder hegemônico e de dominação. O resultado deste medo também pode ser catastrófico, uma vez que a reação coletiva do medo pode ser a agressividade. Quando falamos em poder absoluto, é importante compreender que a questão de positividade ou negatividade desse poder precisará levar em conta o atendimento das expectativas da população. Getúlio Vargas foi um presidente que conseguiu instaurar a sua ditadura utilizando a propagação do medo. Vargas disse à população que ela estava à beira de sofrer consequências terríveis de um ataque comunista e que a única esperança da nação era entregar o poder absoluto a ele. Apesar de ter instalado uma ditadura, a maneira como a população entendeu essa ditadura foi diferente da maneira como a ditadura militar de 1964 foi encarada. Getúlio Vargas conseguiu, apesar de tudo, atender as expectativas da população em certos pontos como, por exemplo, a segurança trabalhista que conferiu ao povo brasileiro. Em 2002, na “Carta ao povo brasileiro”, Lula trabalhou o seu discurso justamente em cima da quebra de expectativa que o Brasil tinha sofrido. Lula fala sobre um Brasil com medo onde as “promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas”. No discurso de Lula, estava implícito que o partido tucano tinha conseguido chegar ao poder mediante a tática de medo, mas não conseguiria se manter, pois não poderia cumprir suas promessas. Ironicamente, a história está se repetindo agora com o PT no poder. Em julho deste ano (2015), foi divulgada a pesquisa CNT/MDA14, na qual mostra que o governo Dilma está com 70,9% de desaprovação. Essa desaprovação evidencia que Dilma não está conseguindo cumprir suas promessas de campanha. Toda a segurança e estabilidade econômica prometidas nas peças eleitorais não estão se concretizando. Dilma não está conseguindo prover a segurança, como disse que faria. De acordo com Bucci (2015), neste ano a utopia petista de que a esperança venceria o medo saiu de cena “sem honra e sem elegância”. Segundo o jornalista, a desilusão causou vergonha até nos adversários. E essa quebra de expectativa que estamos vivenciando agora poderá resultar em um futuro de treva, insensibilidade e grandes sacrifícios sociais e econômicos. Com isso, não podemos afirmar que a população realmente sentiu medo a partir das campanhas veiculadas, porém podemos assumir que está acontecendo sim uma quebra grande de expectativa no seio da população. O Estado não está sendo capaz de cumprir o seu papel de garantidor da segurança e sobrevivência. Nesse contexto poderíamos afirmar, respondendo à questão inicial, que o discurso do medo pode estar resultando em um valor negativo para a sociedade. Apesar da metodologia da “demonização” do inimigo ser um recurso básico, pragmaticamente presente nas campanhas políticas de qualquer partido, concluímos que esta metodologia do medo teria sido adotada de forma agressiva nas campanhas de 2014. 14 Fonte: http://bit.ly/1OuFYWt

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Anexo Anexo – Carta ao Povo Brasileiro “Carta ao povo brasileiro: O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político. Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas. Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras. O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral. O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo. A sociedade está convencida de que o Brasil continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual modelo não querem absolutamente fazer. A nítida preferência popular pelos candidatos de oposição que têm esse conteúdo de superação do impasse histórico nacional em que caímos, de correção dos rumos do país. A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país. O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção. Da reforma agrária que assegure a paz no campo. Da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit habitacional. Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública. O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 1|p. 076-136| 2015 |

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par ao outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país. Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação. À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores. Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições. Nascem, sim, das graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil. Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas. Não importa a quem a crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. O que importa é que ela precisa ser evitada, pois causará sofrimento irreparável para a maioria da população. Para evitá-la, é preciso compreender que a margem de manobra da política econômica no curto prazo é pequena. O Banco Central acumulou um conjunto de equívocos que trouxeram perdas às aplicações financeiras de inúmeras famílias. Investidores não especulativos, que precisam de horizontes claros, ficaram intranquilos. E os especuladores saíram à luz do dia, para pescar em águas turvas. Que segurança o governo tem oferecido à sociedade brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário tranquilidade e compromisso com o Brasil. Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse. Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas. Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo. Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma tributária, a política alfandegária, os investimentos em infraestrutura e as fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade para gerar divisas. Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento. Estamos conscientes da gravidade da crise econômica. Para resolvê-la, o PT está disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo, de modo a evitar que a crise se agrave e traga mais aflição ao povo brasileiro. Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para 134

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alavancar o crescimento econômico. Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável. Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores. Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos. A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública. O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia. Exemplo maior foi o fracasso na construção e aprovação de uma reforma tributária que banisse o caráter regressivo e cumulativo dos impostos, fardo insuportável para o setor produtivo e para a exportação brasileira. A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores. Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos. Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados. O desenvolvimento de nosso imenso mercado pode revitalizar e impulsionar o conjunto da economia, ampliando de forma decisiva o espaço da pequena e da microempresa, oferecendo ainda bases sólidas par ampliar as exportações. Para esse fim, é fundamentar a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da República. Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos fazer um compromisso pela produção, pelo emprego e por justiça social. O que nos move é a certeza de que o Brasil é bem maior que todas as crises. O país não suporta mais conviver com a ideia de uma terceira década perdidas. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis. Luiz Inácio Lula da Silva, São Paulo, 22 de junho de 2002”

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MARIANA DE SANTANA LOURENÇO

Não só a fé: O marketing de serviços e a Igreja Universal do Reino de Deus André Tezza – orientador do trabalho

A fé é um tema simultaneamente recorrente e difícil para a universidade. É recorrente não só porque a história da universidade, no ocidente, é impossível de ser contada sem a história da igreja, mas também porque a tradição do pensamento religioso, em especial na sua perspectiva filosófica e metafísica, é relevante, sofisticada e está longe de ser considerada anacrônica. E é um tema difícil porque, ao longo do seu desenvolvimento, a universidade tornou-se, majoritariamente, o templo da ciência, da razão, do método científico – e nem sempre o olhar da razão sobre a fé resulta em uma investigação isenta de adversidades, isto quando não entranhada nas dificuldades do preconceito e da intolerância. De certo modo, toda a reflexão universitária sobre a fé terá este desafio inicial: utilizar a razão, o método da ciência sem objetivar a moralização do mundo ou o julgamento inconsequente da igreja – mas, antes, uma descrição de métodos, usos, linguagens, história e poder. Este foi um dos principais desafios deste ótimo trabalho de conclusão de curso da Mariana Lourenço – mas há outros. Na delimitação de tema, a pesquisa se propôs a investigar o fenômeno das igrejas neopentecostais a partir de seus atributos de comunicação, em particular suas possíveis aproximações com práticas típicas do marketing e da publicidade. Como sabemos, os estudos da comunicação, ainda que tenham seu campo autônomo, também são, quase invariavelmente, interdisciplinares. Estudar a comunicação da religião é também estudar o que é o fenômeno da religião, e foi assim que delineamos um referencial teórico que mostrasse um painel de reflexões sobre a religião. Como qualquer painel interdisciplinar, este também tem suas limitações e vantagens – preferimos olhar para a riqueza da diversidade, mesmo sabendo que isto resultaria em menos profundidade. Ainda que parte deste painel seja crítico e não indulgente com o fenômeno da religião, tentamos mostrar as teorias como modelos de explicação da fé, sem tentar tomar partido deles. E a partir destes modelos, articulados depois com as referências do marketing e com uma metodologia de análise de conteúdo, tentamos observar alguns aspectos mercadológicos da comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus. O leitor vai encontrar aqui parte do estado atual da comunicação desta igreja em especial – e que, até certo ponto, pode ser estendido para as demais igrejas neopentecostais. O objetivo foi menos julgar a comunicação das igrejas neopentecostais e mais evidenciar e analisar as relações entre marketing e fé, relações estas que se tornaram massivas e midiáticas.

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NÃO SÓ A FÉ: O MARKETING DE SERVIÇOS E A IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

Não só a fé: O Marketing de serviços e a Igreja Universal do Reino de Deus

Orientador: Profº André Tezza

Mariana de Santana Lourenço

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MARIANA DE SANTANA LOURENÇO

Dedico esse trabalho àqueles que têm coragem de se aventurar.

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Agradecimentos Agradeço a Deus, que aos meus olhos, é amor, sentimento que não tem preço. Aos meus pais, João e Maria de Lourdes, por cada palavra e gesto de amor. Ao Profº. André Tezza, pela oportunidade, confiança e apoio, dando rumo ao que era apenas uma ideia, a todos os professores do curso e aos futuros colegas de profissão que estiveram comigo nessa jornada.

Cada um deve estar plenamente consciente de que sua própria vida é uma aventura, mesmo quando se imagina encerrado em uma segurança burocrática; todo destino humano implica uma incerteza irredutível, até na absoluta certeza que é a morte, pois ignoramos a data. Cada um deve estar plenamente consciente de participar da aventura da humanidade, que se lançou no desconhecido em velocidade, de agora em diante, acelerada. (Edgar Morin, A Cabeça Bem-Feita, p.63)

Que seja doce a dúvida a quem a verdade possa fazer mal. Michelangelo

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Resumo A relação entre marketing e religião vem sendo tema de diversos estudos e discussões, uma vez que, a partir da Reforma diversos grupos religiosos se formaram, dando margem ao surgimento de um mercado, no qual as instituições religiosas competem entre si pela fidelidade de seus fiéis. Diante desse cenário, o presente trabalho procurou investigar as raízes históricas que deram origem a esta relação e contrastar as técnicas de marketing aplicadas no ambiente corporativo com as práticas da Igreja Universal do Reino de Deus, instituição que em menos de quarenta anos de história tornou-se uma das principais igrejas evengélicas do país, a fim de validar a existência dessa relação, o que não explica completamente o seu sucesso, mas mostra que ele não é baseado apenas na fé. Palavras-chaves: Marketing, Religião, IURD, protestantismo, neopentecostalismo.

Abstract The relationship between marketing and religion has become an increasingly controversial subject, since the Reform various religious groups were created, giving rise the emergence of a market in which religious institutions compete against each other for the loyalty of its faithful. In front of this scenario, the present study sought to investigate the historical roots that gave rise to this relationship and contrast the marketing tools applied in the corporate environment with the practices of the Universal Kingdom of God Church, an institution that in less than forty years of history became one of the main protestant churches in the country, in order to validate the existence of this relationship, which does not completely explain its success, but shows that it is not based on faith alone. Keywords: Marketing, Religion, IURD, protestantism, neo-Pentecostalism.

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Sumário 1. Introdução _____________________________________ 143 2. Marco teórico___________________________________ 144 2.1 Religião_______________________________________ 144 2.2 Cristianismo____________________________________ 147 2.3 Reforma protestante_____________________________ 148 2.4 Pentecostalismo_________________________________ 149 2.5 Igreja Universal do Reino de Deus__________________ 150 2.6 Edir Macedo____________________________________ 153 2.7 Igreja protestante e o catitalismo___________________ 156 2.8 Conceito de Marketing___________________________ 161 2.9 Marketing de serviços____________________________ 162 2.10 Marketing e religião____________________________ 163 3. Metodologia____________________________________ 164 3.1 Deus garante a prosperidade______________________ 166 3.2 Poucos tem visto a grandeza de Deus_______________ 169 3.3 Aos que me honram, honrarei_____________________ 170 3.4 Deus na sua vida econômica_______________________ 172 Considerações finais________________________________ 175 Referências_______________________________________ 177

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1. Introdução Os estudos sobre religião estão presentes em muitas análises e discussões das mais diversas áreas, dada sua importância dentro da sociedade desde os tempos mais primitivos. A mensagem da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em seus cultos e em toda a sua comunicação, bem como os depoimentos dos fiéis desta igreja chamam a atenção quanto à finalidade pela qual ela é procurada, uma vez que se propõe a tratar não apenas de questões espirituais, mas também de questões financeiras e de saúde, entre outras. Estes fatores somados ao crescimento das igrejas evangélicas e mais especificamente o crescimento da IURD nas últimas décadas justificam o interesse em compreender de que forma esta instituição religiosa tem trabalhado para se destacar de forma tão significativa. Diante deste cenário, esta monografia propõe a análise das atividades da Igreja Universal do Reino de Deus em contraste com as ferramentas do marketing de serviços. Para tanto, buscamos compreender as relações históricas entre o poder econômico e a religião. De início, apresenta-se algumas definições para religião de vários ângulos diferentes, com autores como Sigmund Freud, Giorgio Agamben e Carl Sagan. Em seguida, a partir dos estudos de Mircea Eliade apresentamos um breve resumo da história do cristianismo, da história de Jesus Cristo até a Reforma Protestante, seguindo para o surgimento da Pentecostalismo e o Neopentecostalismo no Brasil e suas principais características. E ainda, sob a perspectiva de autores como Ricardo Mariano, apresentamos um breve resumo sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, no qual abordamos aspectos como sua história, doutrina e hierarquia. Buscamos ainda apresentar, de forma sucinta, o fundador dessa instituição, Edir Macedo Bezerra. Na sequência, apresentamos os principais aspectos que ligam o protestantismo ao sucesso do sistema capitalista, conforme sugere Max Weber, seguindo para a definição de marketing e de marketing de serviços com autores como Philip Kotler e Alexandre Luzzi Las Casas, respectivamente e, por fim, a compreensão do que é o marketing religioso. A análise de conteúdo foi o método escolhido para iluminar os pontos observados durante a revisão da bibliografia. Para tanto selecionamos alguns vídeos do canal oficial da TV da Igreja Universal do Reino de Deus no Youtube, que atualmente conta com mais de 10 milhões de visualizações, e por meio deles estabelecemos as relações desta atividade com os conceitos estudados anteriormente.

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2. Marco téorico 2.1 Religião Para compreender a relação entre marketing e religião é preciso, primeiramente, compreender algumas definições sobre este aspecto tão importante da cultura de diversos povos, desde os tempos mais primitivos. Para tanto, apresenta-se alguns conceitos psicológicos, históricos e sociológicos a respeito deste tema. De acordo com Freud (2010, p. 32), a religião é a “parcela mais significativa do inventário psíquico de uma cultura”. Para o autor, cabe à religião defender os indivíduos contra os fenômenos da natureza, pois como o autor bem afirma, apesar dos avanços conquistados pelo homem, há ainda muitos fatores sob os quais não se têm controle, como nos exemplos citados: A terra, que treme, se fende e soterra tudo que é humano e obra do homem; a água, que, em rebelião, inunda e afoga tudo; a tempestade, que sopra tudo para longe; aí estão as doenças, que apenas há pouco tempo reconhecemos como sendo ataques de outros seres vivos; por fim, o doloroso enigma da morte, para o qual até agora não se descobriu nenhum remédio e provavelmente nunca se descubra. Com tais forças, a natureza se subleva contra nós, imponente, cruel e implacável, colocando- nos outra vez diante dos olhos a nossa fraqueza e o nosso desamparo, de que pensávamos ter escapado graças ao trabalho da cultura. (FREUD, 2010, p. 34)

Freud também explica como se dá a criação dos deuses, devido à busca do ser humano por uma proteção paternal, que inicia na infância e que continua na idade adulta, e o caminho percorrido até que esses deuses se transformam em um único Deus. Para o autor cabe aos deuses “afastar os pavores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, em especial como ela se mostra na morte, e recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a conveniência da cultura lhes impõe. ” (FREUD, 2010, p. 36). No entanto, Freud explica que dentre estas três tarefas é a terceira que mais demanda a ação dos deuses. A partir de então, torna-se tarefa divina compensar as falhas e os danos da cultura, atentar para os sofrimentos que os homens se infligem mutualmente na vida em comum e vigiar o cumprimento dos preceitos culturais aos quais eles obedecem tão mal. (FREUD, 2010, p. 37)

Sobre como essa tarefa conforta os indivíduos, Freud (2010, p. 38) declara a existência de uma “inteligência superior que, mesmo por caminhos e descaminhos difíceis de entender, acaba por guiar tudo para o bem, ou seja, para a nossa satisfação”. De acordo com o autor, essa sabedoria permitiu que os deuses fossem condensados em um único ser divino e que “agora que Deus era um só, as relações com ele puderam recobrar a efusão e a intensidade das relações infantis com o pai”. (FREUD, 2010, p. 39). Esta relação de paternidade possui dois lados ambivalentes, por um lado o temor e por outro a admiração do indivíduo para com o pai. Ainda segundo Freud, “essa relação de ambivalência na relação com o pai está profundamente gravada em todas as religiões. ” (FREUD, 2010, p. 43-44). Também Agamben (2007, p. 23) discorre acerca da importância da magia para o alcance da felicidade: “O que podemos alcançar por nosso méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo. ” Para esclarecer tal ponto o 144

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autor discorre sobre o universo infantil em que as histórias que relacionam magia e felicidade são maioria. As crianças, como os personagens de fábulas, sabem perfeitamente que, para serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio na garrafa, guardar em casa o burrinho faz dinheiro [asino cacabaiocchi] ou a galinha dos ovos de ouro. E em todas as ocasiões, conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçarse honestamente para atingir um objetivo. Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à medida do homem é sempre hybris, é sempre prepotência e excesso. Mas se alguém dobrar a sorte com o engano, se a felicidade depender não do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abra-te sésamo”, então e só então, pode realmente considerar-se bem-aventurado. (AGAMBEN, 2007, p. 23)

Assim como os deuses, os demônios também ocupam papel importante dentro das crenças. Sobre este tema Sagan (1997, p. 121) afirma que em diversas culturas se cultiva a ideia da existência de deuses, que orientam e zelam pelas pessoas e de entidades que trazem o mal. Segundo o autor: Ambas as classes de seres, tanto faz se consideradas naturais ou sobrenaturais, reais ou imaginárias, servem as necessidades humanas. Mesmo que sejam inteiramente fantásticos, as pessoas se sentem melhor acreditando neles. (SAGAN, 1997, p. 121)

Sagan (1997, p. 121) afirma também que a crença em demônios já estava presente no mundo antigo, e que nessa época “eram considerados seres naturais, e não sobrenaturais”. O autor destaca que nomes como Hesíodo, Sócrates e Platão já tratavam do assunto. Aristóteles, o famoso discípulo de Platão, considerava com serenidade a afirmação de que o roteiro dos sonhos é escrito pelos demônios. Plutarco e Porfírio afirmaram que os demônios, que preenchiam o ar superior, vinham da Lua. (SAGAN, 1997, p. 121-122)

De acordo com Sagan (1997, p. 122), na crença pagã os demônios eram cultuados como deuses, e por essa razão os primeiros padres da Igreja procuraram afastá-los, associando-os a maldade. Desde o início, os demônios significam muito mais do que uma simples metáfora poética para o mal no coração dos homens. Segundo Sagan (1997, p. 122), comentando o pensamento de Santo Agostinho, “Os deuses ocupam as regiões mais elevadas, os homens as mais baixas, os demônios a região intermediária... Eles têm a imortalidade do corpo, mas as paixões da mente em comum com os homens”. Posteriormente Agostinho substitui deuses por Deus e demônios em diabos. De acordo com Agostinho, os diabos são a fonte de todos os males e podem assumir diversas formas para enganar as pessoas. Ele acreditava ainda que as bruxas eram fruto da relação sexual entre demônios e mulheres. “Demônio” significa “conhecimento” em grego, especialmente sobre o mundo material. Por mais inteligentes que sejam, não têm caridade. Atacam “as mentes cativas e ludibriadas dos homens”, escreveu Tertulaino. (SAGAN, 1997, p. 123- 124) De acordo com Sagan (1997, p. 124), “a existência exterior dos demônios transcorreu quase inteiramente sem questionamentos desde a Antiguidade até o final da Idade Média”, mas ainda hoje essas ideias se fazem presentes no nosso cotidiano, seja nas brincadeiras infantis, nos exorcismos da Igreja católica ou no fato dos adeptos de um determinado culto julgarem como feitiçaria as práticas do outro. “Ainda empregamos a REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 2|p. 137-179| 2015 |

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palavra “pandemônio” (literalmente, todos os demônios). Ainda se diz que uma pessoa enlouquecida e violenta é demoníaca. ” (SAGAN, 1997, p. 135) Sagan (1997, p. 137) conclui que: Quando é do conhecimento de todos que os deuses descem à Terra, nós talvez tenhamos alucinações com deuses; quando todos nós estamos familiarizados com demônios, aparecem os íncubos e os súcubos; quando os duendes são aceitos por todo parte, vemos duendes; numa era de espiritualismo, encontros espíritos; e quando os antigos mitos se enfraquecem e começamos a pensar que os seres extraterrestres são plausíveis, é para eles que tendem as nossas imagens hipnagógicas. Trechos de canções ou de línguas estrangeiras, imagens, acontecimentos que presenciamos, histórias que ouvimos por acaso na infância podem ser recordadas com acuidade décadas mais tarde, sem nenhuma lembrança consciente de como entraram em nossas cabeças. “Nas febres violentas, homens, de todo ignorantes, falaram em línguas antigas”, diz Herman Melville em Moby Dick, “e [...] quando o mistério é sondado, sempre se descobre que, em suas infâncias totalmente esquecidas, essas línguas antigas tinham sido realmente faladas ao seu redor”. Em nossa vida diária, incorporamos sem esforço e inconscientemente normas culturais que transformamos em coisas nossas.

Sagan (1997) afirma também que “a distinção entre a imaginação e a memória é com frequência pouco nítida”, por essa razão torna-se possível que, a partir de algumas indicações, as pessoas tenham em mente lembranças muito claras sobre fatos que nunca aconteceram. Para o autor, “Lembranças falsas podem ser implantadas até em mentes que não se consideram vulneráveis e desprovidas de senso crítico”. SAGAN (1997, p. 139) Aquilo que realmente lembramos talvez seja um conjunto de fragmentos de memória alinhavados sobre um tecido de nossa própria invenção. Se costuramos com bastante inteligência, criamos para nós mesmos uma história memorável, fácil de recordar. Os fragmentos em si, livres das associações, são mais difíceis de recuperar. A situação é semelhante ao método da própria clínica, quando muitos dados isolados podem ser lembrados, resumidos e explicados na estrutura de uma teoria. Lembramos então muito mais facilmente a teoria do que os dados. (SAGAN, 1997, p. 139)

Este quadro ajuda a compreender o motivo pelo qual desde as primeiras comunidades o culto a um ou a vários seres superiores já ocupava um papel importante na vida dos indivíduos permitindo a criação de diversas religiões, entre as quais o cristianismo.

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2.2 Cristianismo Um estudo divulgado em 2011, realizado pelo instituto Pew Research Center1, em mais de 200 países, aponta que existem cerca de 2.18 bilhões de cristãos no mundo, o que representa cerca de um terço da população mundial. O cristianismo é uma religião monoteísta, cuja origem comum é reconhecida em Abraão, personagem bíblico que teria iniciado o culto a um único deus, na região que hoje corresponde ao Oriente Médio. É a partir de Abraão que surgem o islamismo, o judaísmo e o cristianismo. A igreja cristã surgiu a partir dos ensinamentos de Jesus Cristo que, segundo a crença cristã, é o filho de Deus, enviado à Terra para a redenção dos homens. Os ensinamentos morais, como o amor a Deus e ao próximo, marcam a imagem de Jesus e são a principal razão para que muitos o sigam. Em síntese, Eliade (1983) conta sobre como Jesus se destacou entre os judeus e o porquê de sua crucificação: Rodeado dos seus primeiros discípulos, Jesus pregava e ensinava nas sinagogas e ao ar livre, dirigindo-se sobretudo aos humildes e aos deserdados. Empregava os processos didáticos tradicionais, reportando-se à história santa e às personagens bíblicas mais populares, indo buscar nas fontes imemoriais imagens e símbolos, e recorrendo sobretudo à linguagem figurada das parábolas. Como tantos outros “homens-divinos” do mundo helenístico, era Jesus médico e taumaturgo, curando toda espécie de doenças e aliviando os possuídos. É em consequência de certos prodígios que ele se torna suspeito de feitiçaria, crime punido com a morte. (ELIADE, 1983, p. 281)

Foi no ano 30, de acordo com Eliade (1983 p. 289), que se iniciaram as pregações do Evangelho2, nascendo assim, a Igreja cristã. De acordo com o autor, “a fé em Cristo ressuscitado constitui o elemento fundamental do cristianismo” (ELIADE, 1983, p. 280). Aquelas pessoas que seguem os ensinamentos de Jesus são chamadas de “cristãos”. Tal denominação foi utilizada pela primeira vez em Antioquia, colônia militar grega, por volta do ano 44. (ELIADE,1983, p. 291). O livro sagrado dos cristãos é a Bíblia Sagrada, que é uma compilação de textos, escritos desde o início das religiões abraanicas, realizada pela igreja católica. A bíblia é composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento3. No primeiro são narradas a história da criação do mundo, das leis, das tradições judaicas, entre outros, já o Novo Testamento narra a história de vida de Jesus e sobre como viviam os cristãos. O Cristianismo se difundiu grandemente pela Ásia, Europa e África. A religião cresceu tanto que, no ano de 313, o imperador Constantino concedeu aos cristãos liberdade de culto e em 392 foi considerada a religião oficial do Império Romano. De acordo com Eliade (1983), a Igreja Católica permaneceu una e indivisa até o século IV. Nos séculos seguintes as diferenças entre a Igreja do Ocidente e do Oriente tornaram-se mais significativas, culminando na invasão de Constantinopla pelos orientais em 1204. Entre os motivos que levaram à esta divisão Eliade (1983) destaca: 1 Disponivél em http://www.pewforum.org/2011/12/19/global-christianity-exec/. Acessado em 31/05/2015. 2 O Evangelho também é chamado de Boa Nova e em suma é a afirmação de que a vinda de Deus à Terra está próxima e que Ele então irá instaurar seu Reino. (ELIADE, 1983, p. 281) 3 Nesse contexto a palavra testamento é sinônimo de aliança. “Testamento” corresponde à palavra hebraica berith (que significa aliança, pacto, convênio, contrato), e designa a aliança que Deus fez com o povo de Israel no Monte Sinai, tal como descrito no livro de Êxodo (Êxodo 24:1-8 e Êxodo 34:10-28). Segundo a própria Bíblia, tendo sido esta aliança quebrada pela infidelidade do povo, Deus prometeu uma nova aliança (Jeremias 31:3134) que deveria ser ratificada com o sangue de Cristo (Mateus 26:28). Os escritores do Novo Testamento denominam a primeira aliança de antiga (Hebreus 8:13), em contraposição à nova (2 Coríntios 3:6-14).

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As suas causas eram múltiplas: tradições culturais distintas (grego oriental por um lado, romano germânica por outro); a ignorância mútua, não só das línguas, mas também das respectivas literaturas teológicas; as divergências de ordem cultural e eclesiástica (o casamento dos padres, proibido no Ocidente; o uso do pão ázimo no Ocidente, e do pão com fermento no Oriente; a água acrescentada ao vinho na Eucaristia no Ocidente, etc.). (ELIADE, 1983, p. 193)

2.3 Reforma protestante Os séculos que sucederam a divisão da Igreja Católica foram igualmente marcantes para a história cristã por diversos fatores, entre os quais, Eliade (1983) destaca as Reformas defendidas por Martinho e Calvino, mas também: (...) ao fato de que a época – que vai aproximadamente desde Marsílio Ficino (1433-1499) até Giordano Bruno (1548-1600) - caracteriza-se por uma série de descobertas (culturais científicas, tecnológicas, geográficas) que sem exceção, tiveram um significado religioso. (ELIADE, p. 214)

Neste contexto, Eliade (1983, p. 214) destaca a importância do surgimento da imprensa para a grande propagação das teses do teólogo Martinho Lutero sobre a Reforma. De acordo com o autor, “graças a esse veículo, Lutero pôde transmitir, com força e precisão, a sua mensagem de um extremo ao outro da Europa. ” Lutero protestava contra diversos pontos da doutrina católica em suas 95 teses, mas foi a venda de indulgências o estopim para que o monge desse início à Reforma. De acordo com Lapa (2012), os princípios da Reforma podem ser definidos a partir das Cinco Solas, cinco frases latinas que definem a doutrina do protestantismo. São elas: Somente a fé; somente a escritura; somente Cristo; somente a graça e glória somente a Deus. Calvino é outro nome importante para a Igreja Protestante. Para Eliade (1983, p. 225), Calvino “não somente contribuiu, mais do que Lutero, para o progresso social e político da sua Igreja, como também demonstrou com o seu exemplo, a função e a importância teológicas da atividade política. ” Nascido em 1509 em Noyon, estudou em Paris no Colégio Montaigu (1523-28) e publicou o seu primeiro livro em 1532 (um comentário sobre o De Clementina de Séneca). Depois de ter conhecido os escritos de Lutero, a sua paixão pelo humanismo cedeu lugar à teologia. Calvino converteu-se provavelmente em 1533, e em 1536 refugiou-se em Genebra. Nomeado pastor, dedicou-se fervorosamente à organização da Reforma. Entretanto, dois anos depois foi expulso pelo Conselho da cidade. Fixou-se então em Estrasburgo, a convite do grande humanista e teólogo Martin Bucer (1491- 1551). Foi em Estrasburgo que Calvino conheceu a melhor época de sua vida. Ele muito aprendeu, graças à amizade de Bucer, e publicou, em 1539, uma edição revista da Instituição da Religião Cristã e, em 1540, um comentário à Epístola aos Romanos. [..]. A situação, no entanto, agravava-se em Genebra, e o Conselhos dos Cantões rogou-lhe que retornasse. Após dez meses de hesitação, Calvino aceitou finalmente regressar, em setembro de 1541, permanecendo em Genebra até a sua morte, em maio de 1564. (ELIADE, 1983, p. 223)

O autor afirma ainda que Calvino deu início a teologias que se destacaram nos anos 50 como a teologia do trabalho, teologia da libertação e teologia do anticolonialismo. Sobre o teólogo, Eliade (1983, p. 223) destaca ainda que, “apesar de sérias resistências Calvino conseguiu impor, em Genebra, a sua concepção de Reforma: a Bíblia é a única autoridade para decidir em todos os problemas de fé e de organização da Igreja. ”

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Em contrapartida ao movimento protestante, ao mesmo tempo em que a Reforma ganhava força, a Igreja Católica deu início à Contrarreforma, em que o nome mais importante foi o de Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus, grupo missionário que tinha por missão reforçar a confiança e obediência na Igreja Católica. (ELIADE, 1983, p. 226). Mais tarde, como veremos, os jesuítas, como eram chamados, fariam parte da história do que muitos profissionais da comunicação entendem como o nascimento da propaganda. Além de Lutero e Calvino, muitos outros nomes surgiram dentro do movimento protestante e com eles, novas ramificações para esta igreja, entre os quais, o Pentecostalismo.

2.4 Pentecostalismo De acordo com Mariano (1999), o Pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos, fruto do metodismo e do movimento holiness. Em linhas gerais o autor afirma que o pentecostalismo se caracteriza pela doutrina baseada em Atos 2, na Bíblia, que destaca os dons do Espírito Santo, principalmente os dons de línguas (glossolalia) 4, cura e discernimento de espíritos. Mariano afirma ainda que: Para simplificar, os pentecostais, diferentemente dos protestantes históricos, acreditam que Deus, por intermédio do Espírito Santo e em nome de Cristo, continua a agir hoje da mesma forma que no cristianismo primitivo, curando enfermos, expulsando demônios, distribuindo bênçãos e dons espirituais, realizando milagres, dialogando com seus servos, concedendo infinitas amostras concretas de Seu supremo poder e inigualável bondade. (MARIANO, 1999, p. 10)

Rocha Junior (2012) afirma que os primeiros missionários protestantes chegaram ao Brasil por volta de 1855, entre os quais pode-se destacar os adventistas, os mórmons e as testemunhas de Jeová — já os pentecostais só apareceram por volta de 1910. Mariano (2004) afirma que o Pentecostalismo no Brasil tornou-se um movimento complexo e diversificado, criando a necessidade acadêmica de ordená-lo em três grupos de acordo com critérios históricos, teológicos e comportamentais. O primeiro grupo é o Pentecostalismo Clássico, que abrange as igrejas pioneiras Congregação Cristã no Brasil (fundada em 1910, na cidade de São Paulo) e Assembleia de Deus (fundada em 1911, em Belém do Pará). O autor afirma que, a princípio, ambas as igrejas se caracterizavam pelo “anticatolicismo, por radical sectarismo e ascetismo de rejeição do mundo”. No plano teológico, enfatizaram o dom de línguas (glossolalia), seguindo a ênfase doutrinária primitiva dessa religião” (MARIANO, 2004, p. 123). Segundo Mariano, a Congregação Cristã no Brasil é a que se mantém mais distante das demais igrejas pentecostais enquanto a Assembleia de Deus tem se mostrado mais flexível quanto às mudanças do movimento no Brasil. Já o segundo grupo, de acordo com Mariano (2004), não possui uma denominação acadêmica consensual, porém, o autor opta por nominá-lo como deuteropentecostalismo, “o radical deutero (presente no título do quinto livro do pentateuco) significa segundo ou segunda vez, sentido que o torna muito apropriado para nomear a segunda vertente pentecostal. ” (MARIANO,1999, p. 32). Esse grupo se caracteriza pelo evangelismo 4 Conhecida também como Oração em Línguas, ou ainda, Língua dos anjos, a Glossolalia “é para seus praticantes um tipo de oração que faz comunicar, de modo imediato, o ser humano com a pessoa divina do Espírito Santo. Nessa relação mística, o sujeito experimenta Deus, enquanto, simultaneamente, Este preenche todo o corpo do primeiro”. (PEREIRA, 2009, p. 65-66).

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focado na cura divina e, segundo o autor, acelerou o crescimento do pentecostalismo no Brasil. Suas principais denominações são a Igreja do Evangelho Quadrangular, fundada em 1953, em São Paulo, a O Brasil Para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962), também fundadas em São Paulo e Casa da Bênção (1964) fundada em Minas Geraes. Por fim, o terceiro grupo é o Neopentecostalismo, iniciado na segunda metade dos anos 1970. Mariano destaca que as principais igrejas desse movimento no Brasil são: Universal do Reino de Deus (1977) e Internacional da Graça de Deus (1980) fundadas no Rio de Janeiro, a Comunidade Sara Nossa Terra (1977), fundada em Goiás e a Renascer em Cristo (1986), fundada em São Paulo. O autor destaca ainda que todas elas foram fundadas por pastores brasileiros. (MARIANO, 2004, p. 123) Para Mariano (2004, p. 123-124), teologicamente, essas denominações são caracterizadas pela ênfase na guerra espiritual contra o diabo, na pregação da Teoria da Prosperidade “e por rejeitar usos e costumes de santidades pentecostais, tradicionais símbolos de conversão e pertencimento ao pentecostalismo”.

2.5 Igreja Universal do Reino de Deus De acordo com o a página oficial da própria instituição religiosa, a história da Igreja Universal do Reino de Deus começa em 1977 quando Edir Macedo e seu cunhado Romildo Ribeiro Soares, hoje mais conhecido como R. R. Soares, decidem deixar a Igreja Pentecostal Nova Vida e fundar sua própria igreja. Nomeada na época como A Cruzada do Caminho Eterno, depois Casa da Benção, e só então Igreja Universal do Reino de Deus, os primeiros encontros aconteceram em um coreto do Jardim do Méier, zona norte do Rio de Janeiro, em seguida as reuniões passaram para um cinema e chegaram ao local onde antes funcionava uma funerária, na Abolição, também Zona Norte. Em junho de 1980, por conflitos sobre o futuro da instituição, Soares e Macedo decidiram seguir caminhos diferentes, Soares fundou a Igreja Internacional da Graça de Deus e Macedo continuou no comando da IURD. O novo espaço logo se tornou pequeno, e assim, novos espaços foram surgindo, bem como o número de pastores e principalmente, de fiéis. De forma muito rápida a IURD conseguiu expandir seus horizontes para além da cidade do Rio de Janeiro, já nos anos 90 estava presente em todo o território brasileiro e em alguns países das Américas, Europa, Ásia e África. Data desta época também o maior número de fiéis já alcançado pela igreja, na época a IURD contava com pouco mais de dois milhões de fiéis. Alguns autores atribuem esse crescimento tão expressivo a situação político social do Brasil na época. Segundo Mariano (2004), alguns desses fatores são: A agudização das crises social e econômica, o aumento do desemprego, o recrudescimento da violência e da criminalidade, o enfraquecimento da Igreja Católica, a liberdade e o pluralismo religiosos, a abertura política e a redemocratização do Brasil, a rápida difusão dos meios de comunicação de massa (MARIANO, 2004, p. 122).

Apesar de uma pequena diminuição no número de fiéis deste então, a IURD continua expandindo sua presença nos mais diversos territórios, e surpreendendo pela diversidade de mídias que ocupa e pelo número de adeptos. Atualmente, de acordo com dados do censo brasileiro de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a denominação religiosa possui cerca de 1.8 milhão de adeptos, quase dez mil pastores e cinco mil templos no Brasil. Os números acerca da instituição 150

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em outros países não são tão precisos, mas segundo a denominação, a IURD atua em cerca de 200 países. O discurso segmentado ao seu público e a grande presença da instituição nos veículos de comunicação são fatores determinantes para que a IURD continue crescendo nos dias atuais. Sobre a organização da igreja, Mariano (2004) destaca que a forma de governo verticalizada e centralizada, criada por Macedo, é muito importante para que o crescimento da instituição não atrapalhasse sua unidade. Sobre essa organização criada por Macedo, o autor destaca que: Em meados da década de 1990, consagrou dezenas de novos bispos para assumir funções de direção em nível regional, estadual e nacional. Para evitar cismas, reestruturou o poder eclesiástico, criando três instâncias hierárquicas: Conselho Mundial de Bispos, Conselho de Bispos do Brasil e Conselho de Pastores. Com isso, a igreja manteve os princípios de verticalidade e concentração de seu governo episcopal, que continuou encimado por Macedo (MARIANO, 2004, p. 126).

A Igreja Universal possui uma hierarquia entre os cargos, e cada cargo possui subdivisões hierárquicas. Os cargos da igreja são em ordem decrescente: Bispo, bispo de um continente ou país, bispo de um Estado e bispo regional. Depois vem o cargo de pastor, que é subdividido em três categorias: o pastor regional, pastor titular e o auxiliar. Existem também os obreiros, que são voluntários, selecionados pelo pastor titular para realizar atividades diversas, como, dar orientações espirituais aos membros da igreja, auxiliar o pastor durante o culto, etc. De acordo com Tavaro (2007, p. 108), os pastores são selecionados entre os obreiros e “para ser consagrado bispo, maior título na graduação, não há idade mínima nem máxima, nem necessidade de escolaridade ou seminário.” Antes de se tornarem pastores, os auxiliares – a maioria jovens entre 18 e 25 anos, inscritos no Iburd, o Instituto Bíblico Universal do Reino de Deus – passam por treinamentos práticos. Durante dois a três anos, assistem a cultos e absorvem experiências. Depois, são enviados como ajudantes de pastor, normalmente a lugares de baixa renda, com populações carentes. Seja no Brasil, seja fora do país, onde podem ficar bons anos. São diversas etapas para crescer na rígida pirâmide da Universal. (TAVARO, 2007, p. 108)

A doutrina da IURD é baseada na pregação da Teologia da Prosperidade, uma doutrina religiosa cristã que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os cristãos e que a fé, o discurso positivo e as doações para os ministérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material do fiel. Souza e Magalhães (2002) afirmam que a Teologia da Prosperidade é fruto da doutrina do Milenarismo, que decorreu da crise de 29, nos Estados Unidos, essa doutrina teve dois períodos diferente, o primeiro, pós-milenarismo, baseava-se na caridade e na ajuda mutua, já o segundo, chamado pré-milenarismo, exime os crentes da responsabilidade de ajudar com os problemas do mundo, pois de acordo com essa teoria esses problemas também fazem parte do plano de Deus. Sobre a Teologia da Prosperidade, as autoras afirmam ainda que: A Teologia da Prosperidade ou Confissão Positiva teve sua origem na década de 40 nos Estados Unidos, sendo reconhecida como doutrina na década de 70, quando se difundiu pelo meio evangélico. Possuía um forte cunho de autoajuda e valorização do indivíduo, agregando crenças sobre cura, prosperidade e poder da fé através da confissão da “Palavra” em voz alta e “No Nome de Jesus” para recebimento das bênçãos almejadas; por meio da Confissão Positiva, o cristão

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compreende que tem direito a tudo de bom e de melhor que a vida pode oferecer: saúde perfeita, riqueza material, poder para subjugar Satanás, uma vida plena de felicidade e sem problemas. Em contrapartida, dele é esperado que não duvide minimamente do recebimento da bênção, pois isto acarretaria em sua perda, bem como o triunfo do Diabo. A relação entre o fiel e Deus ocorre pela reciprocidade, o cristão semeando através de dízimos e ofertas e Deus cumprindo suas promessas. (SOUZA e MAGALHÃES, 2002, p.95)

A prática desta doutrina é de fundamental importância para a IURD pois é por meio dos dízimos e ofertas dos seus fiéis que a instituição consegue fundos para ampliar seu projeto de evangelização, tanto com o investimento em meios de comunicação como na estruturação física. Mariano (2004), com base em um estudo realizado no Rio de Janeiro, pelo Instituto Superior de Estudos da Religião - Iser, destaca alguns dados que mostram a significativa participação dos fiéis da IURD na doação dos dízimos e ofertas, muitas vezes superando o que representaria a décima parte de seus salários. Segundo Mariano (2004), apesar da interpretação da Bíblia baseada na linha neopentecostal, a IURD possui diversas particularidades em seus rituais, principalmente caracterizado pela utilização de características de religiões concorrentes (sincretismo religioso) para se aproximar ainda mais de seus fiéis e mostrar a eles sua eficácia diante das demais religiões, neste contexto, o autor destaca ainda que o sincretismo da IURD com a Umbanda, um dos mais expressivos, não está relacionado com uma ação de tolerância religiosa, mas sim, como uma estratégia para hostilizar os cultos afro-brasileiros. A participação da IURD nos meios de comunicação também é um fator importante a ser observado. A IURD tem uma extensa rede de comunicação que conta com livros, gravadoras, emissora de TV, rádio, jornal, site e revista. O proselitismo em rádio e TV constitui o mais poderoso meio empregado pela Universal para atrair rapidamente grande número de indivíduos das mais diversas localidades geográficas à igreja (MARIANO, 2004). Sobre o conteúdo das mensagens transmitidas, o autor destaca a frequente exibição de testemunhos e promessas de bênçãos e depois músicas e cantores que fazem parte da gravadora da instituição. Mariano (2004) afirma também que o objetivo da IURD ao mostrar os testemunhos é comprovar sua eficiência na solução dos problemas daqueles que a procuram de forma a levar as pessoas até seus cultos em que poderão de fato ser persuadidas. O autor deixa claro que, diferente de outros grupos religiosos, para a IURD a mídia eletrônica nada mais é do que uma ponte entre o fiel e a igreja, pois a maior parte do trabalho de prospecção começa na recepção do indivíduo no local do culto, seguido de orientações sobre as práticas doutrinárias e da inserção deste recém chegado em pequenos grupos. As mensagens da IURD buscam ainda, segundo Mariano (2004), explicar a razão pela qual a realidade daqueles que chegam até eles é tão ruim e como apenas essa igreja é capaz de solucionar tais problemas. “Em suma: em busca de eficácia proselitista, a Universal optou por investir maciçamente em técnicas avançadas de propaganda e no evangelismo eletrônico e por dilatar e sistematizar a oferta de magia. ” (MARIANO, 2004, p. 132). Apesar das grandes mudanças na situação econômica, política e social do Brasil e também os avanços nas diversas áreas da medicina, o discurso proferido pela IURD não reconhece seus méritos e tem por objetivo convencer seus fiéis de que apenas por intermédio desta instituição é possível uma mudança positiva em suas vidas, seja no que diz respeito a sua situação econômica, física ou sentimental. Para comprovar o fato a igreja destina grande parte de sua comunicação, em todos os meios em que está presente, para a exibição de testemunhos nos quais a principal mensagem é a de que 152

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fazer parte da IURD é a melhor solução para qualquer problema e de que apenas ali o indivíduo pode se sentir plenamente realizado e seguro.

2.6 Edir Macedo A biografia autorizada de Edir Macedo é uma ótima oportunidade para sabermos como o bispo se vê e como vê a Igreja Universal, ou seja, como o bispo e sua denominação se afirmam diante do espelho. Edir Macedo Bezerra nasceu em 18 de fevereiro de 1945, na cidade de Rio das Flores, interior do Rio de Janeiro, filho do alagoano Henrique Francisco Bezerra e da fluminense Dona Eugênia, sendo o quarto filho, dos sete que compunham a família Macedo Bezerra. (TAVARO, 2007, p. 53-61) Atualmente a residência fixa de Edir Macedo é nos Estados Unidos, onde mora com a esposa Ester, que se dedica exclusivamente a acompanhar o marido em suas atividades, mas devido a sua agenda o bispo passa o ano em contínuas viagens pelo mundo. (TAVARO, 2007, p. 67) Edir começou a trabalhar aos 11 anos, interrompendo os estudos, para ajudar o pai no bar que a família possuía na cidade de São Cristóvão. Aos dezesseis, morando com a família na cidade do Rio de Janeiro, Edir conseguiu o seu segundo emprego em um escritório administrativo, e foi com o que ganhava nesse emprego que concluiu o ensino médio. Dois anos depois, graças a influência do então governador Carlos Lacerda, atendendo ao um pedido do pai de Edir, iniciou sua carreira no funcionalismo público como contínuo na Loteria do Estado do Rio de Janeiro, onde construiu carreira por dezesseis anos. Nesse tempo começou alguns cursos no ensino superior na área de matemática, mas, por falta de tempo não os concluiu. (TAVARO, 2007, p. 62, 77-79) A religiosidade despertou em Edir aos dezessete anos, quando o medo de ir para o inferno após a morte o atormentava. Em casa uma das irmãs passou a frequentar a igreja Evangélica Nova Vida em busca de uma cura para as crises de asma que a atormentavam, e segundo conta, foi de fato curada, o que chamou a atenção de Edir, que depois de frequentar celebrações católicas e espíritas foi incentivado a frequentar a igreja Nova Vida, na qual se fixou, mas Edir conta que foi aos dezenove anos que de fato sentiu-se convertido. (TAVARO, 2007, p. 80-81) Edir casou-se em 1971, com Ester, também evangélica e frequentadora da igreja Nova Vida. Com ela teve duas filhas, e o nascimento da segunda, Viviane, foi o estopim para que Edir decidisse fundar a Igreja Universal. Viviane nasceu em 1975, com uma “má formação congênita popularmente conhecida como lábio leporino – mal que afeta uma em 650 crianças nascidas no Brasil. ” (TAVARO, 2007, p. 88, 96) Acompanhada do médico, a enfermeira trouxe a criança para o bispo - Levei um grande susto. A menina era um horror. Eu disse a mim mesmo: “Meu Deus, eu não quero esse ‘monstrinho’! ” Sua fisionomia era terrível. Eu imaginava o sofrimento que o seria o crescimento daquela criança. Eu sabia o que era ser defeituoso. Imagine ela então, menina, certamente vaidosa.... Não, não queria. Preferia a sua morte. (TAVARO, 2007, p. 96)

Além do problema com a filha, Edir sentia-se indignado com a sua igreja, pois a frequentava há doze anos e desejava tornar-se pregador, porém a congregação não lhe REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 2|p. 137-179| 2015 |

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dava esta oportunidade. - Havia um fogo dentro de mim que eu não conseguia controlar. Só em pensar, fico nervoso. Ainda no hospital do Rio de Janeiro, após o choque de conhecer a filha, uma reminiscência de Edir Macedo. - Eu e Ester choramos muito, foi doloroso. Em meio ao choro, manifestei minha revolta e decepção. Ajoelhei na cama para orar e, num acesso de raiva, soquei a cama várias vezes. E determinei que, a partir daquele momento, iria deixar minha igreja e ajudar as pessoas sofridas como eu. Pouco mais de um ano depois, nascia a Igreja Universal do Reino de Deus. (TAVARO, 2007, p. 96-97)

As pregações que começaram em um coreto do bairro do Meier no Rio de Janeiro, cresceram de forma extraordinária, e, de acordo com Tavaro (2007, p. 122), “entre 1980 e 1989, o número de templos cresceu 2.600%. ” Logo a IURD conseguiu realizar também grandes concentrações, sendo a primeira em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Seguiram-se dezenas de concentrações pelos dez anos seguintes, impressionando especialistas em religião, autoridades e a imprensa. Recordes de público em outros estádios, como dezenas de vezes o Morumbi e o Pacaembu, em São Paulo; o Fonte Nova, em Salvador; O Mineirão, em Belo Horizonte; além do Pinheirão, em Curitiba, e o Mané Garrincha, no Distrito Federal. A quantidade de gente era comparável somente ao público dos clássicos de futebol dessas cidades. (TAVARO, 2007, p. 127)

De acordo com Tavaro (2007, p. 143) desde que fundou a IURD, em 1977, Edir já pensava na importância de ter espaço nos meios de comunicação de massa para o crescimento da sua igreja. A missão era clara: a propagação do Evangelho por Edir Macedo estava ligada diretamente à aquisição de emissoras de rádio e, por que não, de um canal de tevê. Ainda no final dos anos 1970, a proposta ganhou vida. O Bispo adquiriu quinze minutos na programação da Rádio Metropolitana do Rio de Janeiro e levou ao ar O Despertar da Fé, atração com mensagens evangélicas e casos de fiéis agradecidos. (TAVARO, 2007, p. 143)

A partir desse programa a popularidade da IURD, só fez aumentar, o que fez com o bispo conquistasse espaço em outras rádios e em seguida realizasse a compra da Rádio Copacabana “hoje exclusivamente voltada à programação da Universal. ” (TAVARO, 2007, p. 144) Edir continuou avançando no seu objetivo de utilizar os meios de comunicação em massa para tornar sua pregação mais conhecida, e observando a popularização da televisão no início dos anos 80 o pregador levou o mesmo programa das rádios para a madrugada de alguns canais como a TV Tupi, no Rio, e depois também para São Paulo e outros estados do Brasil. (TAVARO, 2007, p. 145) No final dessa década Edir deu um passo ainda maior na sua empreitada, que foi a compra da Rede Record de Televisão. O episódio é um dos mais conturbados de sua história, devido as questões financeiras, políticas, judiciais, e aos conflitos de interesses, que envolviam esta negociação. Colocada à venda em 1989 pelos donos, Silvio Santos e a família Machado, a TV Record estava à beira da falência. Edir, ciente de que sua imagem não favoreceria a negociação 154

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indicou que um de seus pastores, o ex-deputado Laprovita Vieira estivesse à frente das negociações. (TAVARO, 2007, p. 150-153). Os valores negociados foram motivo de espanto e muita especulação por excederem os valores praticados naquele setor no Brasil até então. “No total, Edir Macedo assumiu uma dívida de 45 milhões de dólares ao adquirir a Record. ” (TAVARO, 2007, p. 154) No entanto, a aquisição da TV Record, era apenas uma etapa, faltava Edir Macedo receber a concessão da emissora, atribuição que cabe ao governo. A transação da venda da Record foi examinada, exaustivamente, por todos os setores do poder público. Em junho de 1991, no prazo de uma semana, a polícia federal e a polícia fazendária de São Paulo chegaram a pedir, juntas, todos os documentos do processo, inclusive com a explicação sobre a origem dos recursos – fato raro nessa esfera de investigação. 167

Data dessa época também a prisão de Edir Macedo, acusado de charlatanismo, curandeirismo, estelionato, entre outros, Edir foi detido em 24 de maio de 1992, e permaneceu preso por onze dias, sendo libertado após o terceiro pedido de habeas corpus. (TAVARO, 2007, p. 26-35). Edir, que já estava sendo investigado, havia tido a prisão decretada anteriormente, em 1991, quando chegou a passar alguns dias foragido. (TAVARO, 2007, p. 181-185) No fim de 1992, o então presidente Fernando Collor de Melo finalmente concedeu a Edir, a concessão da Record. Sobre a programação do canal, Edir Macedo e sua equipe optaram por fazer uma programação comercial, voltada a todos os públicos, e não exclusivamente aos evangélicos, o que muitas vezes vai de encontro com a doutrina de sua igreja. Com isso o grupo espera mostrar aos espectadores que existe uma alternativa para aquilo que está sendo apresentado, que é a IURD. (TAVRO, 2007, p. 182) Edir Macedo dedica-se mais ao trabalho na Igreja Universal do que na Record, no entanto seus esforços refletiram no crescimento da Record. Em 1989, a Record tinha um prédio pequeno de 8 mil metros quadrados. Pouco mais de setecentos funcionários produziam vintes horas de conteúdo nacional. Era uma das últimas emissoras no ranking da audiência no Brasil. Valia 45 milhões de dólares, o preço pago por Edir Macedo.

Hoje, em maio de 2007, o complexo de produção da Record tem 48 mil metros quadrados apenas em São Paulo. No Rio, no RecNov, área exclusiva de teledramaturgia, mais 31 mil metros construídos em um terreno de 200 mil metros quadrados. Seis mil funcionários em todo país produzem 85 horas de conteúdo nacional. A cobertura em 98% do país é feita por 99 emissoras, entre próprias e afiliadas. O sinal internacional chega a 125 países de quatro continentes. É a segunda televisão mais assistida no Brasil. E, segundo analistas de mercado, vale atualmente 2 bilhões de dólares. (TAVARO, 2007, p. 161) E assim como a Record, a IURD continua crescendo, e os planos de Edir Macedo é expandir ainda mais este trabalho.

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2.7 Igreja protestante e o catitalismo Weber (2004, p. 29) parte da observação de que nos países em que se praticam diversas religiões destaca-se “o caráter predominante protestante dos proprietários do capital e empresários, assim como das camadas superiores da mão de obra qualificada”. Justamente um grande número das regiões mais ricas do Reich, mais favorecidas pela natureza ou pelas rotas comerciais e mais desenvolvidas economicamente, mas sobretudo a maioria das cidades ricas, haviam se convertido ao protestantismo já no século XVI, e os efeitos disso ainda hoje trazem vantagens aos protestantes na econômica pela existência. (WEBER, 2004, p. 30)

Para esclarecer esse ponto Weber (2004) apresenta o seguinte exemplo: Noutras palavras, os camaradas artesãos católicos mostram uma tendência mais acentuada a permanecer no artesanato, tornando-se, portanto, mestres artesãos com frequência relativamente maior, ao passo que os protestantes afluem em medida maior para as fábricas para aí ocupar escalões superiores do operariado qualificado e dos postos administrativos. (WEBER, 2004, p. 32-33)

Com base nesse exemplo, Weber (2004, p. 33) afirma a importância da “educação pela atmosfera religiosa da religião de origem da casa paterna” no futuro profissional do indivíduo. O autor atribui, não apenas ao contexto histórico e político, mas também as particularidades da confissão religiosa protestante o fato de se destacar para o “racionalismo econômico” muito mais que o catolicismo, independente de uma situação favorável ou não. (WEBER, 2004, p. 34). Weber destaca também o fato de que muitos dos primeiros protestantes já estarem ligados ao comércio. Especialmente o calvinismo, onde quer que tenha surgido, exibe essa combinação. Por menos que ele estivesse ligado, na época de propagação da Reforma, a uma determinada classe em particular em algum país (como em geral em qualquer das confissões protestantes), um traço característico e em certo sentido “típico” das igrejas huguenotes francesas foi que, por exemplo, os monges e os industriais (comerciantes e artesãos) estivessem desde logo numericamente entre os prosélitos, e assim permaneceram mesmo nos tempos de perseguição. Já sabiam os espanhóis que “a heresia” (ou seja, o calvinismo dos Países Baixos) “fomentava o espírito comercial” (WEBER, 2004, p. 37)

Weber (2004, p. 37) destaca mais uma vez a importância do Calvinismo no “desenvolvimento do espírito capitalista” quando afirma que: O calvinismo, ao que parece, fez o mesmo também na Alemanha; no Wuppertal como noutras partes, a confissão “reformada”, em comparação com outras confissões, parece que favoreceu francamente o espírito do capitalismo. (WEBER, 2004, p. 37)

Usando como exemplo alguns trechos da obra de Benjamin Franklin, Almanaque do Pobre Ricardo, para explicar o comportamento protestante Weber (2004) afirma que: Aqui não se prega simplesmente uma técnica de vida, mas uma “ética” peculiar cuja violação não é tratada apenas como desatino, mas como uma espécie de falta com o dever: isto, antes de tudo, é a essência da coisa. O que se ensina aqui não é apenas “perspicácia nos negócios”- algo que de resto se encontra com bastante frequência-, mas é um ethos que se expressa. (WEBER, 2004, p. 45)

Weber (2004) destaca ainda que é esse ethos que define o conceito de espírito utilizado em seu trabalho e esclarece ainda que o capitalismo ao qual se refere se aplica ao capitalismo da Europa Ocidental e da América do Norte. Ainda sobre a obra de Franklin, o autor destaca que:

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Na ordem econômica moderna, o ganho de dinheiro – contanto que se dê de forma legal - é o resultado e a expressão da habilidade na profissão, e essa habilidade, é fácil reconhecer na passagem citada como em todos os seus escritos sem exceção, constitui o verdadeiro alfa e ômega da moral de Franklin. (WEBER, 2004, p. 47)

Para explicar como o comportamento que Franklin propõe passou de tolerável para uma “vocação profissional”, Weber destaca o conceito de “racionalismo econômico”, que é definido como: “o aumento da produtividade do trabalho que, pela estruturação do processo produtivo a partir de pontos de vista científicos, eliminou sua dependência dos limites “fisiológicos” da pessoa humana impostos pela natureza”. (WEBER, 2004, p. 67) Weber (2004, p. 67) destaca que esta racionalização contribui para um novo ideal de vida na sociedade burguesa, que é “o trabalho com o objetivo de dar forma racional ao provimento dos bens materiais necessários à humanidade”, o que de acordo com o autor, dá significado ao trabalho e por essa razão satisfaz ao “espírito capitalista”. Para explicar o conceito de vocação, Weber (2004, p. 71) remete a palavra alemã Beruf, que sob um contexto religioso tem o significado de “uma missão dada por Deus”. Segundo Weber (2004, p. 72), o termo foi usado pela primeira vez em uma passagem bíblica e “não tardou desde então a assumir seu significado atual na língua profana de todos os protestantes”. O autor destaca também que “assim como o significado da palavra, assim também – como é amplamente sabido - a ideia é nova, e é um produto da Reforma”. No conceito de Beruf, portanto, ganha expressão aquele dogma central de todas as denominações protestantes que condena a distinção católica dos imperativos morais em “praecepta” e “consilia” e reconhece que o único meio de viver que agrada a Deus não está em suplantar a moralidade intramundana pela ascese monástica, mas sim, exclusivamente, em cumprir com os deveres intramundanos, tal como decorrem da posição do indivíduo na vida, a qual por isso mesmo se torna a sua “vocação profissional. ” (WEBER, 2004, p. 72)

Sobre a contribuição da Reforma na construção do conceito de vocação profissional, Weber destaca também que: O feito propriamente dito da Reforma consistiu simplesmente em ter já no primeiro momento inflado fortemente, em contraste com a concepção católica, a ênfase moral e o prêmio religioso para o trabalho intramundano no quadro das profissões. O modo como a ideia de “vocação”, que nomeou esse feito, foi posteriormente desenvolvida passou a depender das subsequentes formas de piedade que se desdobraram dali em diante. (WEBER, 2004, p. 75)

Para Lutero o conceito de vocação profissional foi tratado ainda com “amarras tradicionalistas”. Lutero afirma que “a vocação é aquilo que o ser humano tem de aceitar como desígnio divino” ou ainda como “a missão dada por Deus”. Já o Calvinismo “produziu uma relação entre vida religiosa e ação terrena de espécie totalmente diversa das que se produziram quer no catolicismo quer no luteranismo”. (WEBER, 2004, p. 7778) Sobre os fundadores do protestantismo ascético, Weber (2004) destaca os seguintes movimentos: o calvinismo, o pietismo, o metodismo e as seitas nascidas no movimento anabatista. Weber destaca que “nenhum desses movimentos se achava absolutamente isolado dos outros, e nem mesmo era rigorosa sua separação das igrejas protestante não ascéticas” e também que:

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As diferenças dogmáticas, mesmo as mais importantes, como aquelas concernentes à doutrina da predestinação e à doutrina da justificação, assumiam umas as formas das outras nas mais variadas combinações [...] E acima de tudo: o fenômeno da conduta de vida moral, que para nós é importante, encontra-se de igual modo entre os seguidores das mais diversas denominações que brotaram, seja de uma das quatro fontes mencionadas acima ou de uma combinação de várias delas. (WEBER, 2004, p. 89)

Sobre o calvinismo, Weber (2004, p. 90) afirma que “o calvinismo foi a fé em torno da qual se moveram as grandes lutas políticas e culturais do século XVI e XVII nos países capitalistas mais desenvolvidos - os Países Baixos, a Inglaterra e a França”. Segundo o autor, a doutrina da predestinação é a principal característica desse movimento, desde o começo até hoje. Essa doutrina prega que: Não é Deus que existe para os seres humanos, mas os seres humanos que existem para Deus, e todo acontecimento - incluindo pois aí o fato para ele indubitável de que só uma pequena parcela dos humanos é chamada à bem-aventurança eterna [...] Uma vez estabelecido que seus decretos são imutáveis, a graça de Deus é tão imperdível por aqueles a quem foi concedida como inacessível àqueles a quem foi recusada. (WEBER, 2004, p. 94-95)

Para o calvinismo “o mundo está destinado à autoglorificação de Deus, o cristão (eleito) existe para isto (e apenas para isto): para fazer crescer no mundo a glória de Deus, cumprindo, de sua parte, os mandamentos Dele”. (WEBER, 2004, p. 98- 99) Mas Deus quer do cristão uma obra social porque quer que a conformação social da vida se faça conforme seus mandamentos e seja endireitada de forma a corresponder a esse fim. O trabalho social do calvinista no mundo é exclusivamente o trabalho in maorem Dei gloriam {para aumentar a glória de Deus}. [...] O “amor ao próximo” – já que só lhe é permitido servir à glória de Deus e não à da criatura expressa-se em primeiro lugar no cumprimento da missão vocacional-profissional imposta pela lex naturae, e nisso ele assume um caráter peculiarmente objetivo-impessoal: trata-se de um serviço prestado à conformação racional do cosmos social que nos circunda. (WEBER, 2004, p. 99)

Segundo Weber (2004, p. 99-100), no calvinismo não havia conflito em separar “indivíduo” e “ética” dando margem a “essa economia de forças”. O autor destaca que “aí reside a fonte do caráter utilitário da ética calvinista, e daí igualmente advieram importantes peculiaridades da concepção calvinista de vocação profissional”. Weber (2004, p. 103-104) destaca a diferença entre as confissões protestante de Calvino e Lutero, quanto à forma de alcançar a graça. Enquanto o luteranismo destaca o sentimento, o calvinismo privilegia a ação ascética. Em suma o autor afirma que: Em termos práticos isso significa que, no fim das contas, Deus ajuda a quem se ajuda, por conseguinte o calvinista, como de vez em quando também se diz, “cria” ele mesmo sua bem-aventurança eterna [...], mas esse criar não pode consistir, como no catolicismo, num acumular progressivo de obras meritórias isoladas, mas sim numa auto inspeção sistemática que a cada instante enfrenta a alternativa: eleito ou condenado? (WEBER, 2004, p. 105) Faltava ao luteranismo, justamente por conta de sua doutrina da graça, o estímulo psicológico para a sistematização da conduta de vida, sua racionalização metódica. [...] No entanto acabamos convencidos de que sua singularidade está não apenas em sua coerência absolutamente única, mas também em sua eficácia psicológica absolutamente formidável. (WEBER, 2004, p. 116)

Sobre o movimento pietista, grupo bastante próximo aos calvinistas, Weber destaca que o principal objetivo do grupo era alcançar, ainda nesta vida, a comunhão com Deus e as bens aventuranças e para tanto intensificavam sua ascese. (WEBER, 2004, p. 118). O autor destaca também a “racionalização prática da vida do ponto de vista da 158

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utilidade”. (WEBER, 2004, p. 125). Já o metodismo, segundo Weber (2004, p. 126), trata-se de “uma religiosidade sentimental, porém ascética com crescente indiferença quando não rejeição pelos fundamentos dogmáticos da ascese calvinista”. Weber destaca que o principal uso da metódica nesse movimento foi com o objetivo de levar à uma conversão sentimental, o que o fez assumir “forte caráter emocional, especialmente em solo americano”. “Levava à fé na graça de Deus como dom imerecido e, ao mesmo tempo, à consciência imediata da justificação e da reconciliação. ” (WERBER, 2004, p. 127) O metodismo aparece assim à nossa consideração como uma edificação apoiada em alicerces éticos tão vacilantes quanto o pietismo. Também para ele a ambição por uma higher life (vida superior), por uma “segunda bênção”, funcionou como espécie da sucedâneo da doutrina da predestinação e, crescida no solo da Inglaterra, a prática de sua ética orientou-se inteiramente pela do cristianismo reformado [natural dali mesmo], cujo revival ele pretendia ser no fim das contas. (WEBER, 2004, p. 130)

Sobre as seitas anabatistas e batistas, Weber (2004, p. 130) afirma que este grupo “é o segundo a ocupar, ao lado do calvinismo, a posição de portador autônomo da ascese protestante”. Segundo o autor, o anabatismo deu origem a diversas seitas ao longo dos séculos XVI e XVII, entre os quais ele destaca os batistas, os menonitas e os quakers. A ideia mais importante de todas as comunidades, quer em termos históricos quer em termos teóricos, cujo alcance para o nosso desenvolvimento cultural só poderá ficar perfeitamente claro num contexto, nós já fizemos aflorar em ligeiros traços: a believer’s Church (igreja dos crentes). Ou seja: a comunidade religiosa, isto é, a “Igreja visível” no linguajar usado pelas igrejas reformadas, deixou de ser apreendida como uma espécie de instituto de fideicomissos com fins supraterrenos, uma instituição que abrangia necessariamente justos e injustos – seja para aumentar a glória de Deus (Igreja calvinistas), seja para dispensar aos humanos os bens de salvação (Igrejas católica e luterana) - e passou a ser vista exclusivamente como uma comunidade daquelas que se tornaram pessoalmente crentes e regenerados, e só destes: noutras palavras, não como uma “Igreja”, mas como uma “seita”. (WEBER, 2004, p. 131)

Weber destaca a importância da doutrina deste movimento para o espírito do capitalismo, especialmente os quakers. De acordo com o autor, a ascese intramundana que norteava os calvinistas e todos os movimentos que dele saíram, inclusive os quakers, serviu para valorizar o princípio da ética capitalista “e que, aliás, encontrou no trabalho de Franklin supracitado o seu documento clássico”. Para Weber, o calvinismo contribui para fortalecer o interesse pela aquisição na economia privada. (WEBER, 2004, p, 137) Ainda sobre a importância da ascese, Weber destaca que: Foi a concepção de “estado de graça” religioso, encontradiça em todas as dominações precisamente como um estado (status) que separa o homem do estado de danação em que jaz tudo quanto é criatura, ou seja, separa do “mundo”, mas cuja posse só se pode garantir - seja lá como tenha sido obtida, e isso depende da dogmática da respectiva denominação - (não por um meio mágico-sacramental de qualquer espécie, nem descarga na confissão nem por obras pias isoladas, mas somente) pela comprovação em uma conduta de tipo específico, inequivocamente distinta do estilo de vida de controle metódico de seu estado de graça na condução de vida e, portanto, à sua impregnação pela ascese. Esse estilo de vida ascético significava, porém, como vimos, precisamente uma conformação racional de toda a existência, orientada pela vontade de Deus. E essa ascese não era mais um opus supererogationis, mas um feito exigido de todo aquele que quisesse certificar-se de sua bem-aventurança. (WEBER, 2004, p. 139)

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Para explicar a origem da relação entre a ascese protestante e o capitalismo Weber (2004) apresenta os conceitos puritanos que nasceram no calvinismo e que se aproximam da ideia de vocação profissional. A utilidade de uma profissão com o respectivo agrado de Deus se orienta em primeira linha por critérios morais e, em seguida, pela importância que têm para a coletividade os bens a serem produzidos nela, mas há um terceiro ponto de vista, o mais importante na prática, naturalmente: a “capacidade de dar lucro”, lucro econômico privado. Pois se esse Deus, que o puritano vê operando em todas as circunstâncias da vida, indica a um dos seus uma oportunidade de lucro, é que ele tem lá suas intenções ao fazer isso. Logo o cristão de fé tem que seguir esse chamado e aproveitar a oportunidade. (WEBER, 2004, p. 148)

Weber destaca também a posição deste grupo sobre o enriquecimento. De acordo com o autor, a doutrina puritana defende que a riqueza, quando fruto do desempenho da vocação é um mandamento, e só é reprovável quando destinada ao gozo da vida e quando se ambiciona “poder viver mais tarde sem preocupação e prazerosamente”. (WEBER, 2004, p. 149) Assim como o aguçamento da significação ascética da profissão estável transfigura eticamente o moderno tipo de homem especializado, assim também a interpretação providencialista das oportunidades de lucro transfigura o homem de negócios. [...] Em compensação, verdadeiro clarão de aprovação ética envolve o sóbrio self made man burguês: God blessth his trade (Deus abençoa seu negócio) era expressão usual quando alguém se referia àqueles santos que haviam seguido com sucesso os designíos divinos, e todo o peso do Deus do Antigo Testamento, que remunera a piedade dos seus já nesta vida, haveria de operar na mesma direção para o puritano que, seguindo o conselho de Baxter, controlava seu próprio estado de graça comparando-o com a constituição anímica dos heróis bíblicos. (WEBER, 2004, p. 148-149)

Weber (2004) afirma que, na ascese protestante, o ser humano é visto como um “administrador dos bens que lhe dispensou a graça de Deus”, por essa razão não lhes era permitido gastar essa riqueza com nada que não fosse relevante para a “Glória de Deus”, o que também contribui para o capitalismo, como se vê no seguinte trecho: A ascese como a valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como o meio ascético simplesmente supremo e a um só tempo comprovação o mais segura e visível da regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim das contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expansão dessa concepção de vida que aqui temos chamado de “espírito” do capitalismo. E confrontando agora aquele estrangulamento do consumo com essa desobstrução da ambição de lucro, o resultado externo é evidente: acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança. Os obstáculos que agora se colocavam contra empregar em consumo o ganho obtido acabaram por favorecer seu emprego produtivo: o investimento de capital. (WEBER, 2004, p. 156-157)

A ascese religiosa garantiu ainda o estímulo psicológico necessário para a formação de profissionais dedicados à sua vocação, com grande disposição e conformados com as desigualdades, bem como “legalizou a exploração dessa disposição específica para o trabalho quando interpretou a atividade lucrativa do empresário também como vocação profissional” tudo com a intenção de agradar a Deus e por confiar em seus desígnios. (WEBER, 2004, p. 161-163) Em síntese, Weber (2004, p. 164) afirma que “a conduta de vida racional fundada na ideia de profissão como vocação, nasceu do espírito da ascese cristã”, elemento importante do capitalismo e da cultura moderna. O autor declara também que: A ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional,

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passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu (com sua parte) para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem - não só dos economicamente ativos - e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil.(WEBER, 2004, p. 165)

As afirmações estudadas até aqui demonstram que a relação entre a religião e o poder econômico é algo histórico e bastante complexo. Isso nos permite compreender que, ainda que não se possa atribuir ao marketing o sucesso da IURD ou qualquer outra denominação religiosa, os conceitos de marketing estão presentes nas atividades dessa instituição e indicam que a fé não é o único fator relevante para o seu sucesso.

2.8 Conceito de marketing Para compreender a influência do marketing na atividade das igrejas é importante conhecer suas definições e ferramentas. De acordo com Kotler e Keller (2006), o marketing é a relação entre as necessidades humanas, que podem ser particulares ou sociais, e a busca das empresas por lucros financeiros. Com base na definição de marketing fornecida pela AMA (American Marketing Association), os autores afirmam que a função do marketing em uma organização é somar esforços para oferecer ao cliente uma solução que faça com que ele associe valor a marca, criando assim uma relação entre cliente e organização, de forma a beneficiar as duas partes. Nesse relacionamento, chamado de administração de marketing os autores afirmam ainda que: Vemos a administração de marketing como a arte e ciência da escolha de mercados-alvo e da capacitação, manutenção e fidelização de clientes por meio da criação, da entrega e da comunicação de um valor superior para o cliente. (KOTLER e KELLER, 2006, p. 4)

Ainda sobre a definição de marketing, Kotler e Keller (2006) afirmam que a venda de determinado serviço ou produto está longe de ser a principal função de marketing. Os autores sustentam essa afirmação com base em Peter Drucker, teórico da administração que garante que a função do marketing é conhecer o cliente e suas necessidades de forma tão eficaz que a venda seja uma consequência, de modo a resumir os esforços de venda na oferta do produto ou serviço. Para compreender o relacionamento entre cliente e organização, Kotler e Keller (2006) destacam o significado de troca, que segundo eles é a base do conceito de marketing. Os autores apontam cinco condições fundamentais para que a relação de troca aconteça. A primeira condição é a necessidade de que pelo menos dois grupos estejam envolvidos, a segunda aponta que todos os grupos precisam ter algo a oferecer, que seja do interesse dos demais, a terceira condição exige que todos sejam capazes de se comunicar e de entregar aquilo que oferecem. Já a quarta, destaca a necessidade de que todos tenham liberdade quanto à decisão, e, por fim, a quinta condição é de que todos os grupos estejam certos sobre sua participação nessa relação. Destaca-se ainda que as trocas têm por objetivo o alcance de algo melhor e principalmente que elas não podem resultar em uma situação pior para nenhuma das partes envolvidas. Uma vez alcançado um acordo entre todas as partes, ocorre a transação, que pode ser clássica, baseada em valores monetários, mas que também REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 2|p. 137-179| 2015 |

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pode ser baseada na troca de bens e serviços. (KOTLER e KELLER, 2006) Em contrapartida, a transferência é um processo de doação, em que um grupo se dispõe a dar algo que interesse a outro sem a obrigação deste de recompensá-lo. No entanto, apesar de inexistir essa obrigação, quem doa sempre espera por algo, uma gratificação pelo gesto que teve. Esse comportamento faz com que também as transferências passem a fazer parte do universo estudado pelo marketing. (KOTLER e KELLER, 2006) Em um sentido mais amplo, os profissionais de marketing têm como objetivo provocar uma resposta comportamental da outra parte. Uma empresa deseja realizar uma venda, um candidato deseja um voto, uma igreja deseja um membro ativo, um grupo de ação social deseja a adoção acalorada de uma causa. O marketing consiste na tomada de ações que provoquem a reação desejada de um público-alvo. (KOTLER e KELLER, 2006, p.5)

Sobre a compreensão do marketing, é valido ainda destacar o conceito de mercado. Segundo Kotler e Keller (2006, p.6), “Hoje, os economistas descrevem um mercado como um conjunto de compradores e vendedores que efetuam transações relativas a determinado produto ou classe de produto”, no entanto, os profissionais de marketing aplicam o termo a grupos de clientes em que os vendedores ocupam o papel de setor e os consumidores de mercado. Os autores ilustram a afirmação com alguns exemplos: Falam em mercado de necessidades (mercado das pessoas que querem emagrecer), em mercados de produtos (o mercado de calçados), em mercados demográficos (o mercado jovem) e em mercados geográficos (o mercado francês); podem também expandir o conceito para cobrir outros mercados, como o mercado dos eleitores, o mercado de trabalho e o mercado dos doadores. (KOTLER e KELLER, 2006, p. 6)

2.9 Marketing de serviços Para Boone e Kurtz (2009), os serviços nada mais são que as tarefas intangíveis que satisfazem as necessidades dos consumidores. De acordo com Kotler (2000), serviço é toda atividade ou benefício, essencialmente intangível, que uma parte pode oferecer a outra e que não resulte na posse de algum bem, no entanto a prestação de serviços pode ou não estar ligada ao produto físico. Las Casas (2008, p. 22) afirma que as características dos serviços são a intangibilidade, a inseparabilidade, a heterogeneidade e a simultaneidade. A primeira significa, que ao oposto dos produtos, os serviços são abstratos, ou seja, não podem ser vistos, provados, sentidos, ouvidos ou cheirados antes de serem comprados. Já a segunda trata do fato de que “geralmente os serviços são prestados quando vendedor e comprador estão frente a frente. Por isso é necessário uma capacidade de prestação de serviços antecipada”. Já a heterogeneidade “refere-se à impossibilidade de se manter a qualidade do serviço constante”, uma vez que os serviços são produzidos por humanos, seres instáveis, o mesmo se reflete no serviço. Por último, a simultaneidade “diz que produção e consumo ocorrem ao mesmo tempo e, sendo assim, será necessário sempre considerar o momento de contato com a clientela como fator principal de qualquer esforço mercadológico. ” (LAS CASAS, 2008, p. 22) Uma das principais ferramentas do marketing de serviços é o conceito dos 7P’s, que nada mais é que a continuidade do composto mercadológico elaborado pelo professor Jerome McCarthy, 1960, amplamente conhecida como os 4p’s, sendo eles, produto, 162

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praça, preço e promoção. Ao marketing de serviços, além desses atributos, considerase a prova física, as pessoas e o processo. No produto, que pode ser tangível ou intangível, distinguem-se suas características, atributos, benefícios, sua razão de consumo, embalagens, serviços e marca. O preço engloba os valores de custo e também o valor agregado, que está relacionado ao benefício de consumir determinada marca em detrimento às outras, além disso, devem ser observados descontos, prazos e condições de pagamento. A praça é o local em que o produto ou serviço é oferecido e envolve o estudo de canais de distribuição, capacidade de produção e logística. A promoção caracteriza a forma e os meios utilizados por uma organização para se comunicar com seus clientes, mas também com seus sócios, fornecedores e funcionários. A prova física engloba, entre outros elementos, o design do estabelecimento, equipamentos usados para servir o cliente, layout, temperatura do ar, itens de papelaria, uniformes e folhetos. Já pessoas são os funcionários que interagem com o cliente fazendo o primeiro contato ou realizando o serviço final. Por fim, processos refere-se ao método utilizado para a prestação do serviço, padronizado ou customizado, através de atendimento direto ou self-service, linhas de conhecimento aplicadas, entre outros.

2.10 Marketing e religião Em uma sociedade cada vez mais voltada à lógica de consumo em que os mercados são cada vez maiores e diversificados, o uso do marketing se torna cada vez mais importante para o sucesso de uma organização, independente de sua finalidade. Essa afirmação também se aplica ao campo religioso, em que o significativo aumento no número de instituições religiosas deu margem à criação de um novo mercado. Sobre a origem da propaganda, Lupetti (2000, p. 29) afirma que a comunicação está presente na história da humanidade deste as primeiras civilizações. De acordo com a autora “a comunicação nessa época já era expressada por meio da fala, de sinais, imagens, gestos e por signos e símbolos capazes de transmitir significados e valores aos seres humanos. ” Lupetti (2000, p. 29) lembra que na idade média os brasões funcionavam como uma marca, uma identidade para os reinos, com destaque para o período das Cruzadas, em que os brasões, presentes nas armaduras dos soldados permitiam a contagem dos mortos nas batalhas. Sobre este período Lupetti (2000, p. 31) destaca ainda que “o objetivo das Cruzadas era assegurar o domínio cristão sobre os locais sagrados da Palestina” e que estas “tiveram papel de grande importância na propagação do Cristianismo, além de estimular os contatos econômicos e culturais para a civilização europeia.” Surge com as Cruzadas um dos primeiros marcos daquilo que, mais tarde, seria chamado de propaganda: a identificação por meio de uma ‘marca’ e sua divulgação. Observe que as Cruzadas propagavam a fé. Propagar! Derivado do latim propagare, que significa plantar uma muda no solo para uma nova reprodução de crenças religiosas ou princípios políticos e compreende a ideia de implantar, incluir uma ideia ou uma crença na mente alheia. (LUPETTI, 2000, p. 31)

Para Lupetti (2000, p. 31), outro registro importante da participação da igreja na origem da propaganda é a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1450, pois o primeiro livro REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 2|p. 137-179| 2015 |

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impresso foi o Saltério de Mainz, que apresentava salmos bíblicos. Lupetti (2000, p. 32) também destaca que durante o início da Reforma Protestante, “mais uma vez, a propagação de ideias se faz presente, dessa vez por meio dos panfletos” e que “Em função do crescente movimento provocado por Lutero em prol do protestantismo, em 1597 o papa Clemente VII fundou a Congregação da Propaganda, com o objetivo de propagar a fé católica no mundo”. (LUPETTI, 2000, p. 32) Menda e Slavieiro (2012), afirmam que o enfraquecimento da Igreja Católica pela Reforma Protestante também deu origem a um pluralismo religioso, aumentando significativamente o número de instituições religiosas. Baseadas nas teorias de simbolização do sociólogo Pierre Bourdieu, as autoras afirmam que esse pluralismo deu margem a criação de um mercado de bens simbólicos em que as denominações religiosas competem na prospecção de fiéis. A cerca deste assunto, as autoras afirmam ainda que: Esse mercado de bens simbólicos é influenciado pela própria racionalidade característica da cultura de consumo, na qual os indivíduos da sociedade atual estão inseridos. Dessa forma, a pluralidade religiosa que compõe o mercado de bens simbólicos provoca a ênfase de afirmação na identidade e na diferenciação, favorecendo o aparecimento de técnicas de marketing aplicadas a estas organizações religiosas a fim de conquistar e manter adeptos. (MENDA e SLAVIEIRO, 2012, p. 62)

3. Metodologia No primeiro momento, a pesquisa bibliográfica foi o método utilizado para a realização deste trabalho. A partir deste método foram encontradas as definições expostas no referencial teórico bem como se pode conhecer e estudar o método da análise de conteúdo, aplicada no segundo momento deste trabalho. De acordo com Bardin (1977, p. 15), a análise de conteúdo começou a ser desenvolvida nos Estados Unidos, no início do século vinte, dentro do ambiente jornalístico e o primeiro nome que se destaca nesse assunto é o de H. Lasswell que “fez análise de imprensa e de propaganda desde 1915 aproximadamente”. Em linhas gerais, a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações — “não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações”. (BARDIN, 1997, p. 31) Segundo Bardin (1977, p. 46), o objetivo da análise de conteúdo “é a manipulação de mensagens (conteúdo e expressão desse conteúdo), para evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre uma outra realidade que não a da mensagem.” A análise de conteúdo organiza-se em três etapas: a) a pré-análise, que se resume em escolher os documentos a serem analisados, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final; b) a exploração do material, que é o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação, que não é mais do que a administração sistemática das decisões tomadas, consistindo em operações de codificação, desconto ou enumeração, em função de regras previamente formuladas; c) por fim, o tratamento dos resultados obtidos e interpretação. “O analista, tendo à sua disposição resultados significativos e fiéis, pode então propor inferências e adiantar interpretações a propósito dos objetivos previstos, ou que diga respeito a 164

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outras descobertas inesperadas”. (BARDIN, 1977, p. 95-101) A IURD destina cada dia da semana a uma temática diferente em seus cultos, também chamados de reuniões, de modo que as segundas-feiras são destinadas às questões financeiras, as terças aos problemas espirituais, as quartas à salvação, ou seja, a superação da morte, as quintas para as questões familiares e conjugais, as sextas para a libertação de vícios e outros problemas os quais a igreja julgar ser realização de espíritos malignos, os sábados são destinados as causas que os fiéis julguem como impossíveis de se resolver, e por fim, o domingo é um complemento a todas as reuniões que acontecem durante a semana.5 Considerando o tema desta monografia, e os pontos abordados durante a pesquisa bibliográfica, os vídeos selecionados são de programas e reuniões destinados a questões econômicas os quais permitem uma análise mais clara e precisa diante do problema exposto. Chamado de Congresso dos Vencedores, Congresso para o Sucesso e também Nação dos Vencedores, essas reuniões enfatizam a bênção financeira através do pagamento de dízimos e ofertas, reforçando a doutrina da Teologia da Prosperidade e também as questões de vocação profissional abordadas por Weber. Os resultados da participação nessas reuniões são apresentados por meio dos testemunhos dos fiéis durante a própria celebração. Foram selecionados, de acordo com a pertinência de seu conteúdo, onze vídeos de programas e reuniões da IURD na televisão e/ou no rádio e disponibilizados no Youtube, em canais da instituição, ou a ela relacionados, sendo assim divididos: - Três vídeos do programa Congresso para o Sucesso, apresentado pelo Bispo Jadson Santos, em São Paulo-Capital nos dias 14 de janeiro, 25 de julho e 03 de agosto do ano de 2015; - Três vídeos do programa Congresso do Sucesso, apresentado pelo Pastor Marlllon da Nave, em Salvador- Bahia, nos dias 09 de fevereiro, 02 de março e 23 de março do ano de 2015; - Cinco vídeos do programa Palavra Amiga do Bispo Edir Macedo, em São Paulo, nos dias 04,05,16 e 23 de setembro e 31 de julho, todos do ano de 2014. Destes, quatro são apresentados aqui para a análise do seu conteúdo sob a perspectiva dos conceitos abordados durante a pesquisa bibliográfica. Os vídeos aqui apresentados fazem parte do programa Palavra Amiga do Bispo Edir Macedo e foram retirados do seu canal oficial no Youtube, mas também estão disponíveis no site da TV Universal e no blog do bispo Macedo. Os vídeos têm, em média, cinquenta minutos e, além do Bispo Macedo, contam com um ou dois convidados, também pastores ou bispos da Igreja Universal. De modo geral, os temas abordados no programa são os mais diversos, como problemas sociais, sentimentais, econômicos e de saúde e podem ter sido gravados em estúdio, apenas locução, de modo caseiro ou podem ainda ser recortes de cultos que o bispo realizou. Em comum todos os programas contam com a leitura de passagens bíblicas e testemunhos que buscam reforçar os ensinamentos doutrinários da igreja e mostrar sua eficiência na solução desses problemas. Mas, os programas procuram, principalmente, fazer com que a pessoa que está recebendo aquela mensagem vá até uma das igrejas da Universal, seja para um culto ou evento especial. Os vídeos a seguir foram gravados diretamente 5 Fonte: http://www.universal.org/. Acessado em 12/09/2015.

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do Templo de Salomão, onde há um estúdio de rádio, que transmite o programa para a rede de rádio da IURD. Também os testemunhos apresentados, bem como o convite para participar das reuniões são para este templo. Inaugurado em julho de 2014, na região do Brás, em São Paulo, a construção do Templo de Salomão foi iniciada em julho de 2010 a partir do desejo do Bispo Edir Macedo de construir no Brasil uma réplica do templo construído em Jerusalém no século XI a.C.6. A obra chama atenção pela grandiosidade e riqueza em detalhes, e se destaca também pela apropriação de vários símbolos do judaísmo, configurando um sincretismo religioso que, como abordado durante o referencial teórico, é uma característica importante na doutrina da Igreja Universal. A escolha do Templo de Salomão neste recorte se dá por se tratar da sede da IURD, seu santuário, e por retratar o sucesso dessa denominação. De acordo com Rodrigo Franklin de Sousa, especialista em história e professor de arqueologia bíblica, em entrevista para a Revista Veja São Paulo, o gigantismo do empreendimento tem a função principal de atrair fiéis pelo sonho do sucesso. “Por ser grande e ostensivo, passa o recado de ascensão social e profissional”, diz. (BATISTA JUNIOR, 2014) As etapas da análise de conteúdo foram abordadas da seguinte forma: a) a préanálise, na qual foram selecionados os vídeos da IURD, por meio dos quais buscamos validar a hipótese de que existe uma relação entre as atividades da Igreja Universal e o marketing de serviços. Essa relação pode ser observada na mensagem da igreja para o seu público, que, em linhas gerais, faz a oferta de soluções para problemas de diversas ordens por meio de uma sociedade com Deus. b) a exploração do material, em que realizamos uma análise de vídeos, destacando os momentos em que a mensagem disparada se assemelha aos conteúdos estudados durante a pesquisa bibliográfica. c) por fim, o tratamento e interpretação dos resultados obtidos, no qual contrastamos as mensagens elencadas durante a exploração do material com os conceitos estudados durante o referencial teórico, demonstrando a sua proximidade e validando a hipótese levantada na primeira etapa.

3.1 Deus garante a prosperidade Bispo Edir Macedo, Templo de Salomão, 22 de setembro de 2015. Como o título sugere, neste programa o bispo Macedo junto com os bispos Jadson e Marcio, destacam a capacidade de Deus em garantir o sucesso econômico. Macedo afirma que na Bíblia é possível encontrar exemplos de riqueza e de pobreza e que “Deus garante a prosperidade, as suas riquezas para os que obedecem, mas também, os que desobedecem ficarão a zero.” E diz também que: “é claro que quando a pessoa passa para o lado de Deus ela tem vida, ela tem prosperidade, tem respostas as suas necessidades. Quando ela permanece do outro lado, Deus não pode fazer nada”. (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’) O bispo Jadson aproveita o ensejo para comentar sobre a importância dessa obediência para prosperar, dando lugar ao conhecimento, de modo que muitas pessoas de pouca instrução conseguem vencer por não questionarem as instruções que recebem, por outro lado, aqueles que questionam, são desobedientes e por isso não prosperam. Quando a pessoa entende isso, mesmo sem ter condições humanas, porque eu tenho recebido pessoas que não sabem falar direito, pessoas que tem uma série 6 Fonte: http://sites.universal.org/templodesalomao/. Acessado em 12/09/2015.

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de dificuldades, mas elas mudam de vida por meio da fé. Deus não precisa da nossa condição humana, Deus precisa que você obedeça e pegue a visão dele (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’)

Esta valorização da obediência que podemos observar nessas afirmações ajudam a compreender as afirmações de Freud (2010) acerca da relação de paternidade que existe no campo da religião devido à busca do ser humano por uma proteção paternal mesmo na idade adulta. Freud lembra também da ambivalência que existe nessa relação, de um lado o temor e do outro a admiração do indivíduo para com o pai. O bispo Márcio aproveita para lembrar que muitas pessoas boas “desconhecem o direito que tem na palavra de Deus” (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’). Ele afirma que “o que nós estamos fazendo aqui é abrindo seus olhos a respeito da grandeza de Deus, é o que nós ensinamos no congresso, fazer você enxergar os seus direitos para que você venha conquistar. (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’) ” Nesse trecho podemos observar com clareza a prática da Teologia da Prosperidade na doutrina e nas mensagens da IURD, como visto durante a pesquisa bibliográfica. A pesquisa também explica que nessa doutrina a benção financeira é vista como uma benção de Deus para o fiel e prega a existência de uma sociedade entre Deus e o fiel, de modo que uma vez que o fiel aceita Deus como Senhor da sua vida, e Lhe demonstra sua fé através da conduta e dos dízimos e ofertas, Deus fica obrigada a retribuir, fazendo com que o fiel prospere. O bispo Jadson lembra o quanto os problemas financeiros podem ser humilhantes e atribui, ao que ele chama de “O Mal”, a razão dos problemas que a pessoa enfrenta, afirmando que esse espírito deseja que a pessoa passe por essas situações. “A vida econômica humilha, todo mundo pisa, todo mundo massacra, todo mundo tira uma lasquinha, todo mundo solta piada, dá indireta.” (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’) Na sequência são apresentados testemunhos realizados durantes os congressos realizados no Templo de Salomão. O bispo Macedo introduz esse momento dizendo “Você vai ouvir agora testemunhos de pessoas que do zero, construíram um castelo”. A seguir, a transcrição de um desses testemunhos. Bispo Jadson: Como é o seu nome? Testemunha: Luciano Alves. Bispo Jadson: Como que era sua situação antes de começar a fazer essa corrente? Testemunha: Minha situação era de miséria total, bispo. Bispo Jadson: A que ponto? Testemunha: A ponto da minha filha nascer e eu não ter dinheiro para comprar uma fralda descartável. Então a gente pegava, na época, o saco de arroz e cortava as lateral e vestia na menina. Bispo Jadson: Saco de arroz? Testemunha: Ao ponto de fazer isso. Em outra ocasião a minha esposa, eu e a minha esposa, pegou o sofá e virou ele de ponta cabeça pra ver se caia alguma moeda, que as vezes a gente senta e as moedas caem do bolso.

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Bispo Jadson: Procurando moeda? Testemunha: Procurando moedas. Bispo Jadson: O que que mudou depois que você começou a fazer o congresso? Como é que está agora? Testemunha: Graças a Deus, hoje nós temos uma empresa, abençoada, no ramo da construção civil, temos veículos, temos duas propriedades e graça a Deus, Deus tem abrido as portas. Bispo Jadson: Não falta nada? Testemunha: Não falta nada, graças a Deus. Bispo Jadson: Você estudou até que série? Testemunha: Eu estudei até a quinta série. Bispo Jadson: Então não é pela sua condição humana? Testemunha: Não, condição humana nenhuma, foi o auxílio divino mesmo. Bispo Jadson: Deus abençoe. (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’)

São aproximadamente quatro minutos nos quais testemunhos muito semelhantes a este vão sendo contados. Destaca-se que muitas das testemunhas contam sobre como prosperaram abrindo suas próprias empresas. Como visto no referencial teórico, essa presença de protestantes entre proprietários do capital, empresários, alta escalão de empresas, entre outros, é observado e estudado por Weber (2004), que destaca o racionalismo econômico com que os protestantes eram educados, principalmente a partir do calvinismo. Diferente da doutrina católica, que condenava o enriquecimento, o protestantismo, desde o princípio, favoreceu o desenvolvimento da economia, estimulando seus seguidores a crescer profissionalmente e, por consequência, ganhar mais dinheiro. Após mais uma série de testemunhos Macedo ressalta que “Vivemos em um mundo cão, ninguém vai te ajudar, só Deus pode ajudar. Quando você vai ao Templo de Salomão recebe ideias que te fazem prosperar.” (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’) Na sequência outro testemunho é apresentado, mais detalhado, desta vez gravado em estúdio. A testemunho conta sobre como conseguiu superar a pobreza, o vício em drogas e a vida na criminalidade com o auxílio da IURD. Por fim, Macedo afirma que “Só quando o Espírito de Deus incorpora, você consegue superar as dificuldades. ” (DEUS GARANTE A PROSPERIDADE, 2014, 51’53’’) Nesse trecho nota-se o uso do termo incorporar, comum em outras religiões, como o espiritismo, o que mais uma vez demostra a característica da doutrina da IURD, de sincretizar outras religiões, como apontado por MARIANO (2004). Macedo afirma também que era um espírito mal que fazia com que a testemunha agisse mal. Durante a pesquisa bibliográfica pode-se compreender com Sagan (1997) que há muito tempo os demônios significam muito para as pessoas, e que Santo Agostinho já atribuía a eles a origem de todos os males. 168

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Também algumas ferramentas do composto mercadológico do marketing ficam evidentes durante o programa. Em especial o serviço, que é o sucesso financeiro por meio da benção de Deus. A promoção por meio dos testemunhos, que procuram comprovar a qualidade do serviço, os bispos destacam ainda a garantia desse serviço a partir dos escritos bíblicos. A prova física também se destaca, uma vez que o Templo de Salomão é rico em significados, como, por exemplo, a ideia de sucesso e prosperidade que ele passa por se tratar de uma construção muito grande e luxuosa.

3.2 Poucos tem visto a grandeza de Deus Bispo Macedo, Templo de Salomão, 15 de setembro de 2014. Neste programa o bispo Macedo está acompanhado do bispo Jadson. Macedo inicia o programa destacando que a força humana é incapaz de superar as adversidades da vida, em seguida, o bispo Jadson complementa afirmando que “Deus quer fazer coisas grandes na sua vida”. O bispo Macedo reafirma a sentença dizendo que “Deus quer fazer de você a própria benção”. O trecho a seguir, retrata a ideia central do programa. (POUCOS TEM VISTO A GRANDEZA DE DEUS , 2014, 48’14’’) Pense comigo, meu amigo, minha amiga. Por conta de você não confiar cem por cento a sua vida nas mãos do Todo Poderoso, então o retorno da parte dele é insignificante na sua vida. Por isso que a sua vida está assim ruim, má qualidade, seus negócios não vão bem. Você luta com a sua força, você usa a força do seu braço, e quando você usa a força do seu braço você não consegue alcançar aquilo que Deus tem prometido na sua vida. (POUCOS TEM VISTO A GRANDEZA DE DEUS , 2014, 48’14’’)

Tais afirmações nos permitem observar de forma prática o que é abordado por Agamben (2007), sobre como apenas através da magia conseguimos alcançar nossos objetivos e ser felizes. Como o autor bem afirma “se alguém dobrar a sorte com o engano, se a felicidade depender não do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abra-te sésamo”, então e só então, pode realmente considerar-se bem-aventurado”. (AGAMBEN, 2007, p. 23) Na sequência são apresentados testemunhos de pessoas que conquistaram a prosperidade financeira participando das reuniões no Templo de Salomão. Tais testemunhos são feitos durante a própria celebração. Destaca-se que durante muitos destes testemunhos o pastor pergunta para a testemunha qual foi o momento mais humilhante que ela já passou devido a problemas financeiros e em seguida pergunta sobre como a vida da testemunha mudou com a ajuda da IURD, de forma a comover os espectadores e fortalecer a imagem da Universal no que diz respeito a qualidade dos serviços. A importância da fidelidade, no caso, a participação assídua no congresso também é bastante explorada nesse programa e pode ser observada, inclusive, durante os testemunhos. Essa obrigatoriedade de participar das reuniões semanalmente demonstra como é o processo de prestação de serviço da Universal, que começa com a ida da pessoa até a igreja, depois a formação de uma aliança com Deus, por meio de orações e/ou objetos simbólicos, então o pagamento de dízimos e ofertas e finalmente o recebimento da benção.

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Diante dos testemunhos, o bispo Jadson aproveita para afirmar que “O Congresso dos Vencedores é a Faculdade da fé”, valorizando a IURD em relação às outras formas de conhecimento e justificando o porquê de tantas pessoas de pouca instrução conseguirem prosperar financeiramente quando participam do congresso. Além de reforçar a ideia da magia como único meio de conseguir realizar-se, essa afirmação também destaca a questão da vocação profissional, entendida como um desígnio de Deus, que como Weber (2007) afirma é um produto da Reforma.

3.3 Aos que me honram, honrarei Bispo Macedo, Templo de Salomão, 03 de setembro de 2014. Neste programa o bispo Macedo, acompanhado do bispo Formigoni falam sobre como alcançar a benção de Deus, qual o preço a ser pago por isso. No início o bispo Macedo faz um discurso bem relevante sobre essa questão, no qual os seguintes trechos se destacam: E você que está me ouvindo nesse instante, você que tem dito, que tem reclamado, tem lamentado, que apesar de ser uma pessoa cristã, apesar de ser uma pessoa fervorosa, apesar de você ser uma pessoa fiel na sua igreja, na sua denominação, mesmo assim você não tem visto a grandeza de Deus na sua vida, e por quê? Seria culpa de Deus? Seria culpa da sua igreja? Seria culpa do seu pastor? Não, meu amigo, minha amiga, a culpa não é de ninguém senão sua, nem o diabo é culpado, sabia? Que neste caso nem o diabo é culpado, porque quando a pessoa conhece a verdade e ainda assim não a obedece, não a pratica, então ela se torna culpado duas vezes mais, por conta dela conhecer a verdade e não obedece-la. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’) Então você quer ser honrada por Deus, quer ser honrado por Deus, minha amiga, meu amigo, quem quiser ser honrado ou honrada por Deus precisa primeiramente dar, honrá-lo, não apenas com palavras, porque honrá-lo com palavras é simples, é fácil, é mole, não custa nada, mas honrá-lo com a sua vida, com o seu caráter, com o cumprimento da sua palavra, honrá-lo com a sua palavra de honra, honrá-lo com seus dízimos e ofertas, honrá-lo como o que tem de melhor, e não com o mais ou menos, mas honrá-lo de fato e de verdade. (...) Deus usa aqueles que estão disponíveis, aqueles que o honram, “Eu honro os que me honram” é o que ele disse, então se eu não o honrasse ele também não iria me honrar, é toma lá, dá cá, essa é a realidade. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’)

Nesses trechos, podemos observar outro ponto abordado por WEBER (2004, p. 105) e estudado durante a pesquisa teórica que é a forma de alcançar a graça pregada por Calvino, na qual se acredita que “no fim das contas, Deus ajuda quem se ajuda, por conseguinte o calvinista, como de vez em quando também se diz, “cria” sua própria bem-aventurança eterna. ” AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’) E é interessante porque com Deus não se brinca, não existe uma brincadeira, nem mesmo uma brincadeirinha com o Deus Altíssimo, todos temos que ter temor quando falamos a palavra Senhor Deus, Todo Poderoso, Altíssimo, porque ele não é como nós, ele não é como os seres humanos, ele é o senhor, o criador, ele é o todo poderoso, é o Deus infinito. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’) E ele diz com muita clareza, não há quem não entenda, qualquer que seja o incrédulo, qualquer que seja a pessoa, mesmo que ela não tenha discernimento para interpretar o espírito da palavra de Deus, ela vai entender, porque ele diz com muita clareza, com muita simplicidade “Eu honro aos que me honram, mas os que me desprezam (e quem despreza a Deus? Despreza a Deus, todos aqueles que não obedecem a sua palavra) serão desmerecidos. ” (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’)

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Já nesses trechos, mais uma vez, conseguimos identificar a importância da obediência para o alcance das bênçãos, o que remete a relação de paternidade que o ser humano busca ter com Deus, como apontado por Freud (2007), que também explica que a existência de uma “inteligência superior que, mesmo por caminhos e descaminhos difíceis de entender, acaba por guiar tudo para o bem, ou seja, para a nossa satisfação. ”. Jesus disse “da forma com que nós medimos, nós também seremos medidos. ” Da forma como nós medimos aquilo que estamos colocando no altar, também Deus mede a nossa vida. Se nós colocamos o melhor no altar, nós não vamos receber o pior, ou o mais ou menos, nós vamos receber de acordo com aquilo que nós ofertamos. Então a vida cristã depende dessa lei, a lei do dar e receber, essa é a realidade. (...) mas quando nós mantemos a nossa fidelidade em honrar o nosso Senhor, honrar aquele que nos salvou, então, obrigatoriamente ele vai nos honrar e não tem ninguém, absolutamente ninguém que possa passar por cima. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’)

Com essa afirmação o bispo Macedo reforça a doutrina da IURD, baseada na Teologia da Prosperidade, que como bem lembram SOUZA e MAGALHÃES (2002, p. 95) em contrapartida as bênçãos espera-se que o cristão “ não duvide minimamente do recebimento da benção, pois isto acarretaria em sua perda, bem como o triunfo do diabo. ” Dando continuidade ao programa são apresentados testemunhos de dizimistas, que contam como tiveram suas vidas transformadas após começarem a pagar o dízimo, Macedo introduz esses vídeos dizendo: “Nós vamos ouvir agora testemunhos de pessoas que foram honradas por Deus. ”. A seguir, um desses testemunhos. Eu vindo do Norte, como todo jovem, tem o sonho de trabalhar, conquistar as coisas, esse sempre foi o meu foco, mas a gente lutava, lutava e não conseguia porque a gente era limitado a tudo. Tudo que a gente pegava, quando chegava ao fim do mês a gente via que não dava pra fazer aquilo que a gente queria, ou seja, o sonho da gente ficava sempre pra depois. Daí veio a dependência de crediário, onde tudo que a gente conseguia era baseado em um crediário. Aí veio o sonho de me casar, mas não tinha uma casa, então tinha um recuado atrás da casa do meu pai e aí eu pedi a ele que se eu pudesse construir ali. Construí ali dois cômodos pequenos, me casei, e continuamos naquela vidinha limitada. Viver no quintal da mesma família, vem os conflitos, a vergonha, porque você vê as pessoas tendo as coisas, até mesmo pessoas que você fala – Nossa, mas porque eu não consigo? Aí veio o convite pra vir a Universal pela minha esposa, mas até então eu não concordava, porque eu era muito crítico quando se tratava de dízimo, eu era uma pessoa muito crítica, eu não concordava, não aceitava, mas, conforme eu aceitei esse convite, isso faz dezessete anos, eu cheguei, e ouvindo a palavra de uma pessoa dizendo – Vai, que vai dar certo. Eu pensei, calma aí, eu já sei o que vou fazer. Eu trabalhava em uma pequena empresa e eu falei assim: - Eu quero perder esse emprego, porque enquanto eu estiver nesse emprego, eu não vou ser ninguém, eu vou ser sempre um funcionário. E assim aconteceu, a gente trabalhava numa empresa e decidiu – Vamos fazer aquilo que a gente sabe fazer e vamos ser concorrentes do nosso patrão. A gente montou uma empresa, do mesmo seguimento e tocamos essa empresa. Essa empresa evolui, se estabeleceu, hoje dessa empresa veio a segunda, conquistamos mais um prédio comercial onde temos salas alugadas, temos um salão de festa, temos carro, casa confortável. Então, devolver o dízimo é uma honra, é um privilégio, é uma alegria maior que a gente tem, e quem não tem essa visão continua tendo pouco, continua dando nada, ou seja, não dá nada porque não tem nada, dou muito porque Deus me dá muito. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’)

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Após os testemunhos o bispo Formigoni lembra que “Quando a pessoa honra Deus, ela passa a ter direitos. E as promessas não ficam só no papel, elas vão se cumprir na vida dela por conta dessa fidelidade. ”. Macedo complementa dizendo que: O Senhor Todo Poderoso jamais ficará devendo a alguém, então quando nós damos os dízimos, as ofertas, você acha que Deus vai ficar devendo alguma coisa a alguém? (...) não há a mínima chance, zero. Então é assim que acontece quando as pessoas honram ao Senhor com os dízimos e ofertas, conforme nós vimos aí. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’)

Após a exibição de outros testemunhos, Macedo comenda uma passagem bíblica que diz: “Riquezas e honra estão comigo, bens duráveis e justiça” – Provérbios 8,18. É Deus que está falando isso, meu amigo, minha amiga. (...) Deus quer honrá-la, honrá-lo, com tudo que ele tem, ele quer fazer você rica, rico, mas primeiro você tem que honrá-lo. Aí você diz – Mas, eu ganho tão pouco. Não importa o que você ganha. Digamos que você ganhe um real, por mês, então dez centavos é de Deus, os primeiros dez centavos são de Deus. Se você honrá-lo com seus dízimos, Ele vai honrá-lo com as suas farturas. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’) Formigoni, é muito interessante que Ele abre um leque de oportunidades, para todas as pessoas, sejam pobres, ricas, sejam negras, sejam brancas, sejam brasileiras, sejam estrangeiras, sejam índios. Ele abre a oportunidade pra todos, sejam pecadores, seja lá o que for, não importa. Você que me ouve agora, meu amigo, minha amiga, talvez você seja a pessoa mais pecadora da face da terra, não importa, Deus dá chance pra você. Se você o honra ele vai honrá-lo, agora, se você não honrá-lo, então esquece. (AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’)

Macedo, mais um fez reforça a importância dessa honra de forma bastante incisiva: “Ou é ou não é. É tudo ou nada. Ou você honra o Senhor de fato ou você não honra. E se honra então você pode ter certeza que ele vai te devolver com honra, mas com honra muito maior que você possa imaginar. ” AOS QUE ME HONRAM, HONRAREI, 2014, 51’09’’) O testemunho apresentado, bem como as afirmações que se seguiram evidenciam a relação de troca entre o fiel e a IURD, por um lado a Universal oferece a prosperidade, do outro o fiel deve estar disposto a entregar parte do quem tem, por menos que seja, como forma de sacrifício. O serviço, o preço, o processo, ficam bem claros, bem como a relação entre dinheiro e religião.

3.4 Deus na sua vida econômica Macedo inicia o programa destacando a passagem bíblica que diz: “Se quiserdes e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra. ” – Isaías1,19. E comenta: “E todo mundo sabe que para comer o melhor dessa terra, você tem que ter dinheiro. É impossível você comer o melhor dessa terra sem dinheiro. ” (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’) Na sequência Macedo introduz o bispo Jadson, que o acompanha nesse programa e comenta sobre o trabalho dele nas segundas-feiras a frente do Congresso dos Vencedores. “Congresso para quem quer ganhar dinheiro, congresso para quem não tem medo de ficar rico. ” (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’) Muita gente diz assim – se Deus quiser eu vou conseguir, eu vou enriquecer. E nesse texto está claro que Deus quer, a vontade dele para o ser humano é

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justamente essa, o melhor, que vá bem, que seja a cabeça, que esteja por cima. Deus é interessado no seu sucesso e nós também, porque uma coisa é nós falarmos e outra coisa é nós termos testemunhos para mostrarmos a grandeza desse Deus. (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’)

Macedo complementa a fala do bispo Jadson, dessa vez de forma mais enérgica: Agora, o Congresso para o Sucesso começa com essas dicas de fé. Esse negócio de dizer –Ah, se Deus quiser – Se Deus quiser – Se Deus quiser, meu amigo, minha amiga, coisa nenhuma! Isso está errado, não é se Deus quiser, Deus quer! Deus quer! O problema é isso: você quer? Esse que é o problema, porque você diz assim – Se Deus quiser – Você já está pensando errado, porque Deus quer. Deus quer mudar a vida de todas as pessoas. Jesus falou “Eu vim para que todos tenham vida, e tenham vida em abundância”. O diabo vem para matar roubar e destruir, mas “eu vim para trazer vida com abundância”. Então Deus quer que você tenha vida em abundância, agora é preciso saber se você quer. Porque o texto aqui de Isaias, capítulo um, versículo dezenove, diz assim: Se quiserdes! Deus fala: SE QUISERDES! SE VOCÊ QUISER! VOCÊ QUER?! VOCÊ QUER?! ESSE É O PROBLEMA! ESSA É A PERGUNTA! ESSA É A QUESTÃO! Então, se você quer, segunda-feira o Congresso é pra quem quer! Não é pra quem tem essa ideia do – Se Deus quiser, eu vou mudar minha vida. – Não! É pra quem quer! Se você quer, é pra você que quer! Se eu quero, é pra mim que quero! (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’)

Nos trechos acima a questão abordada por Weber, acerca do racionalismo econômico presente deste o início do protestantismo fica mais uma vez evidente. Como visto, para o calvinismo, as obras sociais são o que Deus espera dos cristãos “O trabalho social do calvinista no mundo é exclusivamente o trabalho in maorem Dei gloriam {para aumentar a glória de Deus. ” (WEBER, 2004, p. 99) Você, meu amigo, minha amiga ouvinte, não tenha medo, não tenha dúvida, não mantenha aquela tradição religiosa de que riqueza é ruim, é do mal, não pense que a riqueza é do diabo. A riqueza é de Deus. Nem todos os ricos são de Deus, mas toda a riqueza é de Deus, essa que é a realidade. (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’)

Com essa fala, Macedo demonstra a diferença entre o catolicismo e o luteranismo em relação ao calvinismo, que Weber destaca. Enquanto as primeiras valorizam o ascetismo monástico, o calvinismo vê no enriquecimento uma maneira de comprovar as bênçãos de Deus. Como vimos Weber (2004) apresenta os conceitos puritanos que nasceram no calvinismo e que se aproximam da ideia de vocação profissional para explicar a origem da relação entre a ascese protestante e o capitalismo A utilidade de uma profissão com o respectivo agrado de Deus se orienta em primeira linha por critérios morais e, em seguida, pela importância que têm para a coletividade os bens a serem produzidos nela, mas há um terceiro ponto de vista, o mais importante na prática, naturalmente: a “capacidade de dar lucro”, lucro econômico privado. Pois se esse Deus, que o puritano vê operando em todas as circunstâncias da vida, indica a um dos seus uma oportunidade de lucro, é que ele tem lá suas intenções ao fazer isso. Logo o cristão de fé tem que seguir esse chamado e aproveitar a oportunidade. (WEBER, 2004, p. 148) Deus sabe da sua situação, da situação dos pobres, dos necessitados, dos oprimidos, dos doentes, dos enfermos, dos que estão atrás das grades, dos que estão acamados, na UTI de um hospital, Deus sabe de tudo isso, mas ele só vai ao encontro dessas pessoas, das necessidades dessas pessoas quando elas oferecem a crença, a fé, a certeza, quando elas manifestam que querem. – Mas bispo, o senhor está falando, eu quero a minha libertação, eu quero a prosperidade, eu quero ter uma família, eu quero ser abençoado – eu sei que todos querem, mas não basta querer, você tem que manifestar esse querer.

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(DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’) Olha, por exemplo, eu tenho quase cinquenta anos na presença de Deus, eu estou quase com setenta anos, eu me converti com dezoito, pra dezenove anos, e você sabe, Jadson, eu vou ser sincero com você e com as nossos ouvintes, eu nunca conquistei algo de Deus simplistamente orando – oh, Deus, abençoa minha vida – Nunca conquistei. Às vezes fico triste porque Deus não me responde, certas coisas que por imposição da fé eu tenho que sacrificar. Não basta eu querer, eu tenho que manifestar o meu querer, eu tenho que mostrar pra Deus que eu quero. (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’) Ora, Deus permite situações adversas, dificuldades, para provar o nosso querer, por que ele diz aqui “se quiserdes”, então como é que ele prova o nosso querer, aí ele diz em seguida, “e me ouvirdes”, então para você ouvir e obedecer, você tem que passar pelo crivo da aprovação, e são esses ensinamentos simples, mas profundos que as pessoas recebem no congresso do sucesso para que elas venham então a descobrir o seu potencial, ter a visão de Deus para poder investir naquilo que vai ser lucrativo para ela. (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’)

“Você fazendo a sua parte é certo que logo você estará dando seus testemunhos. Porque as pessoas reparam naqueles que só falam da grandeza de Deus, mas não mostram”, complementa o bispo Jadson. (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’) Essa afirmação, bem como as que se encontram logo acima, vão ao encontro do que foi estudado acerca da ascese protestante e sua importância para o capitalismo. A ascese intramundana que norteava os calvinistas e todos os movimentos que dele saíram, inclusive os quakers, serviu para valorizar o princípio da ética capitalista “e que, aliás, encontrou no trabalho de Franklin supracitado o seu documento clássico”. Para Weber, o calvinismo contribui para fortalecer o interesse pela aquisição na economia privada. (WEBER, 2004, p, 137) “E essa ascese não era mais um opus supererogationis, mas um feito exigido de todo aquele que quisesse certificar-se de sua bem-aventurança. ” (WEBER, 2004, p. 139) A bíblia, meu amigo, minha amiga, se resume em uma palavra: obediência. Obediência. E a fé se resume em uma outra palavra, mais fácil: A troca. A fé é uma troca. Você apresenta a sua vontade, o seu querer, a sua certeza, a sua convicção, e diga-se de passagem, isso vem de Deus, Deus que nos dá tanto o querer quanto o realizar. Jesus que é o autor e o consumador da fé. Então essa fé que nós temos é Deus que nos deu, é Dele, e Ele nos deu justamente pra gente manifestá-la através do nosso querer. Porque assim, Jadson, como nesse mundo você não compra nada sem dinheiro. É uma troca. O dinheiro é papel, você troca o papel por objetos de valor, porque o dinheiro tem um valor simbólico, simboliza o ouro que aquele país tem e garante aquele valor. Essa é realidade. Então, para que você compre um automóvel você tem que dar um dinheiro, há uma troca, você dá o dinheiro e a pessoa te dá o carro, o computador, a casa, tudo o que você quiser. Isso aqui no reino deste mundo. No reino de Deus, no reino da fé, a moeda de troca, a troca continua, a compra continua, porque o próprio Deus disse “Vinde e comprai, comprai sem dinheiro”, quer dizer, a compra continua, o negócio continua. Então quer dizer, no reino de Deus existe um negócio, é uma troca, você apresenta a sua fé e Deus te dá de acordo com a sua fé que você apresentou. Isso que é bacana, rapaz! (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’)

Jadson, afirma que “Essa moeda traz a existência o que não está existindo na sua vida e não tem limites. ” (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’) Deixando ainda mais clara a relação econômica entre o fiel e a igreja. Ela não fica querendo mexer com sentimentos, ela não fica achando que porque ela tá chorando, porque ela tá sofrendo Deus vai ter que se manifestar. É o seguinte, a moeda que ele aceita de troca é a fé. Manifestou a fé, tem o que quiser, não manifestou a fé, pode chorar, pode gemer, pode reclamar, pode

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achar que Deus é injusto, mas não adianta, é a única moeda, não tem limite, o crédito é sem limite pra você alcançar o que você quiser. (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’)

Macedo complementa com a seguinte afirmação: O que você quiser. Por isso que Deus fala aqui, essa promessa não é pra alguns, é pra todos. “Se quiserdes”, ou seja, ele está falando pra quem quer, quem quer, mas tem que obedecer, quando a pessoa obedece, ela tá provando quer, ela tá provando a sua fé, ela está provando aquilo que Deus está oferecendo. (DEUS NA SUA VIDA ECONÔMICA, 2014, 52’59’’)

Diante do exposto, identifica-se também neste conteúdo os elementos do composto mercadológico, estudado durante a pesquisa bibliográfica, como o serviço, que é a benção e a orientação para a prosperidade financeira, a praça, que nesse caso é o Templo de Salomão, local onde acontece o congresso; o preço, que é não é apenas a fé, mas a manifestação dessa, na qual se inclui os sacrifícios, como o pagamento de dízimos e ofertas; a promoção que se dá pelo convite e pela garantia de realização do que é prometido com base nas passagens bíblicas; o processo, que começa com a ida ao congresso, a manifestação da fé, e finalmente o recebimento da benção; a prova física, que pode ser observada durante os testemunhos apresentados por terem sido realizados durante a reunião, dentro do templo, permitindo observar a riqueza de detalhes do espaço, que passa a imagem de prosperidade e sucesso e por fim as pessoas, nesse caso os bispos, em especial na forma como o bispo Macedo introduz o bispo Jadson, destacando as atividades dele dentro da Universal.

Considerações Finais A fé, como bem afirma Freud, é um dos elementos psíquicos mais importantes do imaginário do ser humano, por essa razão, ainda hoje está presente na vida de grande parte da população mundial e é um fator relevante nas mais diversas áreas de conhecimento e de pesquisa, e na comunicação não poderia ser diferente. Entender as razões que levam as pessoas a terem fé é uma questão que envolve diversos fatores e que ainda assim não leva a uma resposta definitiva, porém alguns autores ajudam a clarear esse caminho. Aqui podemos compreender com a ajuda de autores como Freud, Agamben e Sagan que a relação com Deus torna a vida do indivíduo mais segura e confortável uma vez que se baseia numa relação de paternidade, semelhante a que temos na infância, na qual a proteção, a obediência e a recompensa são palavras chaves. A religião não só conforta o indivíduo acerca das questões que ele não tem controle, como por exemplo a morte, mas também nas suas falhas, uma vez que coloca o sucesso e a felicidade como coisas inalcançáveis senão por meio da magia. E assim como o indivíduo encontra em Deus a resposta para aquilo que ele não consegue dominar ou compreender, encontra nos demônios um culpado para as suas imperfeições como vimos com Sagan, que também explica sobre a capacidade da nossa mente em criar memórias de fatos que não ocorreram, baseados no imaginário popular. O cristianismo é o maior exemplo dessa relação de fé, religião com mais adeptos no mundo é rica em histórias e doutrinas que se desdobraram ao longo do tempo, originando inúmeras denominações, cada qual com características próprias, mas ainda ligadas à figura de um só Deus, que ao mesmo tempo é três: Pai, Filho e Espírito Santo. REVISTA ACADÊMICA DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA: MONOGRAFIAS |Curitiba | v. 1| n. 2|p. 137-179| 2015 |

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NÃO SÓ A FÉ: O MARKETING DE SERVIÇOS E A IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

Porém em meio a tantas denominações uma chamou atenção. A Igreja Universal do Reino de Deus, com sua presença na mídia, seus templos espalhados por todos os cantos do Brasil e em diversas cidades pelo mundo, sua doutrina polêmica e com a velocidade de seu sucesso, chamou atenção, nos levando a questionar se a fé é o único fator para tamanho prodígio. E foi pesquisando as origens do movimento protestante, suas práticas e doutrinas que pudemos compreender que nem só a fé está envolvida nesse processo. Com Weber foi possível entender que a fé, o trabalho e, consequentemente, o acumulo de capital, são elementos que caminham juntos há um longo tempo. A Reforma, que começou com Lutero, ganhou força com Calvino, que mais do que Lutero estava envolvido em relações políticas e culturais. Mesmo sendo um dos primeiros líderes desse movimento Calvino já vislumbrava o futuro, dando início a teorias que só se desenvolveriam nos nossos tempos, como a teologia do trabalho, a teologia da libertação, a teologia da prosperidade, entre outras. A ascese protestante pregada por Calvino e por outros movimentos protestantes que vieram nos anos seguintes foi de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo, pois tirou do indivíduo a culta por ser rico ou tentar enriquecer, dando aos bens materiais um grande valor, uma verdadeira benção. Essa ascese também está presente na relação do indivíduo com o trabalho, que a partir de então deixou de ser uma obrigação social para ser um designo de Deus, incentivo fundamental para o bom desenvolvimentos dos funcionários de qualquer empresa. Diante desse cenário e tendo em vista as diversas denominações religiosas, que surgiram a partir dessas ideias, podemos observar com mais clareza a existência de um mercado no qual essas instituições competem entre si pela fidelidade de seus fiéis. Para tanto, buscam estar cada vez mais próximas das suas necessidades, sejam elas espirituais ou não. E, uma vez que fazem parte desse mercado também o marketing se faz presente nas atividades dessas igrejas. Em especial, nesse trabalho, observamos como isso acontece na Igreja Universal do Reino de Deus. Concluídas as análises de conteúdo, foi possível verificar com clareza, diversos pontos abordados durante a pesquisa bibliográfica, como a relação do indivíduo com Deus abordada por Freud, que nas mensagens selecionadas se destaca na ênfase que os locutores dão para a obediência, palavra comum na esfera da família, em especial na relação entre pais e filhos. A conquista da felicidade exclusivamente através da parceria com Deus também ganha destaque, indo ao encontro das afirmações de Agamben e a atribuição das atitudes maldosas a influência de espíritos malignos também se encontra com os apontamentos de Sagan. As características do movimento neopentecostal, em particular da IURD, apontados por Marino também podem ser observadas, bem como as características da ascese protestante tratada por Weber, como a valorização dos bens materiais como demonstração das bênçãos de Deus, o combate a ideia de que o enriquecimento seja um pecado e também a valorização do trabalho, principalmente do desenvolvimento de empresas próprias. Os conceitos de marketing também ficam evidentes, a começar pelo conceito de troca, que é exaustivamente empregado durante as mensagens. O serviço que a IURD oferece 176

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nesses programas nada mais é que a prosperidade financeira por meio das bênçãos de Deus. A praça, neste caso, é o Templo de Salomão, mas se aplica a qualquer outro templo da IURD. O preço são os dízimos e ofertas, também claramente explorados no conteúdo analisado. A oferta acontece por meio de convites e de testemunhos. O processo para utilizar esse serviço começa pela participação nas reuniões, seguido do pagamento dos dízimos e das ofertas e por fim, o recebimento da benção. As pessoas são os bispos, pastores e também os obreiros que auxiliam o pastor durante a celebração. Por último, a prova física nesse caso é bastante destacada por se tratar da sede da instituição, lugar que denota sucesso e prosperidade. Como exposto anteriormente, o objetivo desse trabalho não foi atribuir ao marketing o sucesso da Igreja Universal do Reino de Deus, questão que, como observado, exige inúmeras análises e possivelmente nunca se encontre uma resposta concreta. No entanto, os estudos realizados demonstram que a relação entre a religião e as questões econômicas, bem como a origem da propaganda e o uso da imprensa estão atrelados há muito tempo e, com o passar do tempo, ganharam mais visibilidade. Desse modo, diante de tudo que foi abordado durante este trabalho concluímos que o marketing de serviços também faz parte das atividades da IURD e que não só de fé essa instituição se desenvolve.

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NÃO SÓ A FÉ: O MARKETING DE SERVIÇOS E A IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

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