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UMA CRÓNICA CONFINADA

Não sei se passaram 50 dias, 51, talvez 60. Os dias misturaram-se, tornando-se numa sopa de letras demasiado complexa para decifrar apenas numa tarde solarenga de verão. De que dias estou eu a falar? Os dias passados em casa, longe da família e dos amigos, a olhar através de vidros que podiam estar mais limpos (com tanto tempo livre…) para a vida que não para, quando tudo o resto decide estagnar. Mas talvez esta estagnação esteja apenas nas nossas cabeças, talvez seja um conceito orquestrado pelos nossos hemisférios direitos, demasiado criativos, de modo a arranjar desculpas para a vitimização e para a inércia demasiado dependente do ser humano.

Com isto não quero dizer que todas as pessoas lidam com o confinamento da mesma forma! Decerto que uns mantêm uma perfeita sanidade mental e exercitam o corpo 6 vezes por semana através de diretos no insta, enquanto outros sentem uma força inexplicável exercida pela cama e pelo sofá que os impede de se libertarem do seu feitiço. Não existem pessoas iguais, logo não existem quarentenas iguais. Premissas que devem levar para a vida, caros leitores. Não queremos cá comparações: “Ah, na minha quarentena cozinhei 15 bolos e 4 tipos de bolachas diferentes, fiz yoga 3 vezes por semana e vi todos os diretos do Bruno Nogueira.” O que devo dizer que não tem qualquer semelhança com a minha quarentena. Não aprendi nenhuma receita nova, à exceção de como fazer pão pita e refinei as minhas skills de fazer sopas e panquecas (juro que não me alimento só à base de pão pita, sopas e panquecas). Mas aproveitei ao máximo para fazer aquilo que realmente gosto, que me preenche, que tanto adiava por estar sempre entre livros e folhas impressas aos magotes. Mas não quero enganar ninguém e vocês sabem tão bem como eu de que esta quarentena não foram férias, como muita gente alega. Tivemos momentos menos agradáveis, com uma sobrecarga de trabalhos e tarefas e afins, no entanto faz parte desta nossa vida académica de que tanto nos queixamos mas secretamente adoramos.

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Mas afinal que período foi este, a tão falada quarentena? Para mim, enquanto estudante, consistiu em isolamento total. Confinada em casa, impedida de chegar elegantemente atrasada aos convívios marcados, de ir àquele almoço de domingo verdadeiramente português e abusar nos enchidos, de acabar a noite num karaoke espontâneo, de me deitar no verdejante jardim do cisne assassino com os comparsas de sempre, de passar o dia na biblioteca rodeado de pessoas que procrastinam tanto como eu mas que também se aplicam, surtindo numa cadeia de motivação silenciosa… Os dias tornaram-se diferentes, mais solitários, sem a rotina do costume. A liberdade a que estávamos habituados foi-nos restringida, mas a verdade é que nem dávamos conta da sua presença, apenas quando esta nos foi parcialmente retirada é que sentimos a sua falta. Tantas liberdades foram suspensas… A liberdade dos afetos foi uma das que sofreu mais, e ainda hoje não foi completamente restabelecida. Como será o primeiro abraço sedento do espaço diminuto entre os dois amigos, após meses de somente contacto virtual? O primeiro jantar de amigos não terá todo um impacto e significado especiais? Não iremos pensar de forma diferente? Uma mudança não é isso mesmo, a perturbação do que é habitual? Não iremos ter perspetivas novas, desejos e confidências que antes não sabíamos que tínhamos?

Mas afinal que período foi este, a tão falada quarentena? Foram meses atarefados e dolorosos para uns; mais calmos para outros; stressantes e cheios de incertezas para outros que tais; e normais, como todos os outros meses (para uma minoria, suponho e espero eu)... Mas eu não estou aqui para falar da quarentena dos outros, senão estaria a escrever infinitamente e vocês a ler até se aperceberem que estão entediados e já podiam ter visto pelo menos 20 insta stories. Por isso, falo da minha quarentena, sem falar propriamente dela, porque é sem falar das coisas que nós falamos realmente delas, percebem?

Não foi um bicho de sete cabeças, não foi um mar de rosas (se bem que nem gosto assim tanto de rosas), foi o que foi. Fiz o que pude, fiz o que quis, aproveitei o tempo que tinha e queixei-me daquele que escasseava pelos meus dedos, como tantas outras vezes. Falei muito, ri muito e chorei também, mas isso é só mais uma segunda feira, para quem me conhece. Já agora: Olá, sou a Rita, que rude ainda não me ter apresentado, juro que não sou assim normalmente. Lá está, efeitos da quarentena, já estava demasiado habituada a monólogos que, evidentemente, carecem de apresentações. Mas quem é que eu estou a tentar enganar? Aliás, quem é que a quarentena está a tentar enganar? Ela quer os louros de tudo! Já tinha estes meus monólogos muito antes de ela chegar! Estão a ver? A quarentena quer o prémio de tudo o que uma pessoa faz durante essa altura! Mas não é devido à quarentena, é devido a nós! Somos nós que nos mexemos para fazer aquilo que nós queremos que aconteça. Por isso, segundo ensinamento: O que fizeste durante a quarentena, não por causa da quarentena, foi devido a ti. A quarentena não se pôs na cozinha a inventar novas receitas nem correu 20 km por ti! Bem queria ela! Foste TU. Não deixes que esta palavra se apodere dos teus feitos durante esse período.

Mas afinal que período foi este, a tão falada quarentena? Será que já perceberam, pessoas de 2037 que vieram ver as edições anteriores da Diagnóstico, que agora, no vosso tempo, são em formato holograma? Já vos dei um insight sobre este acontecimento histórico passado no ano de 2020? Lamento desiludir, então. Mas é tudo que tenho a dizer. Ok, mentira, porque por mim podia ficar a escrever mais umas páginas, mas como já referi anteriormente ninguém tem paciência para me aturar durante tanto tempo, dado que o concentration span desta geração é igual à de uma iguana (sem ofensa às iguanas).

Mas afinal que período foi este?, vocês teimam porque acham que eu ainda não falei o suficiente sobre estes meses de confinamento. Caros leitores, foram apenas meses diferentes da vossa vida, vividos num sofrimento e solidariedade coletivos. Mas o importante é o significado que vocês lhe derem.

Espero poder estar com os meus amigos em breve, abraçar a minha avó, andar na rua livre de preocupações… Espero pela “normalidade” de tempos subvalorizados mas não posso esperar ansiosamente, pois temos de viver cada momento presente com a calma que este merece, com a atenção devida. Não queremos desperdiçar momentos que não vamos recuperar nunca por estarmos com a cabeça nas Luas de Júpiter a pensar quando é que isto acaba, porque o que é “isto”? A vida não acaba, a vida continua, por isso vamos viver, com ou sem quarentenas, com ou sem medidas de segurança, com ou sem contacto físico. Vivamos apenas, pois o presente não perdoa a ninguém, torna-se passado a cada pestanejo nosso.

Rita Claro