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APRESENTAÇÃO:

Cenários e desafios em tempos de COVID: ações do projeto de extensão universitária Português para Migração

Humanitária (PBMIH-UFPR)

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Lá em meados de março de 2020, quando ficou claro que estávamos mesmo vivendo uma pandemia, que os casos já estavam no Brasil e em Curitiba, era exatamente a semana em que começaríamos os cursos de português para migrantes que oferecíamos na época aos sábados de tarde. O projeto PBMIH sempre se preocupou em estabelecer um diálogo com as demandas da comunidade migrante e, em resposta a isso, em 2020 abriríamos 5 turmas de um dos níveis mais procurados naquele momento: o pré-intermediário. Isso garantiria vaga para 100 alunos, o que era apenas possível com a dedicação e a colaboração de graduandos e pós-graduandos do curso de Letras da UFPR. Contudo, como diversos outros projetos em Curitiba, que também atendem a comunidade migrante, tivemos que suspender as atividades presenciais e repensar a dinâmica do trabalho.

Não começar os cursos foi frustrante para nós e para os nossos graduandos em Letras, professores dessas turmas. Dado o momento de grande instabilidade econômica, emocional e de saúde, de modo geral, éramos incapazes de projetar a realidade que estávamos enfrentando e o que estaria por vir. O impacto da pandemia e dos desdobramentos que ela gerou foi grande e incomensurável para a comunidade migrante devido às especificidades que envolvem o contexto da migração forçada contemporânea. Nossos laços com a população sempre foram próximos e afetuosos e a não oferta de cursos e das demais atividades nos fizeram refletir sobre como poderíamos manter o vínculo e nos fazermos presentes na distância física.

A questão aqui é simples – e quem trabalha com migrantes entende bem do que estamos falando: sim, é verdade que convivemos com histórias de vida pesadas, de quem perdeu tudo na guerra ou em catástrofes naturais, de quem viu minguar o sonho de uma vida digna em condições políticas ou econômicas precárias. As histórias são mais que tristes: são chocantes, muitas vezes revoltantes! Mas o outro lado dessa moeda é a alegria genuína que brota dos migrantes – e que vivenciamos na convivência com eles! A esperança de reconstruir a vida em outro lugar, a gratidão por uma oportunidade de recomeçar, a alegria de estar vivo, isso tudo é de uma força indescritível! Quem se aproxima desse universo só se aproxima mais depois e, depois ainda, não quer mais sair. É por isso que a questão é relevante: como manter nosso vínculo sem estarmos próximos fisicamente?

Dado o novo cenário, a crise sanitária que se instaurou com a disseminação da Covid-19 resultou, também, em uma crise informacional. Observamos que, diariamente, as medidas sanitárias de proteção e prevenção ao vírus eram estabelecidas e modificadas, ao mesmo tempo em que novas informações eram divulgadas pelos órgãos competentes de saúde. A velocidade das mudanças nas medidas sanitárias e os novos protocolos implementados pelos órgãos públicos geraram um grande volume de informação essencial para a segurança, mobilidade e convívio em sociedade. Tínhamos, nós mesmos, dificuldade em acom- panhar e executar essas medidas e passamos a nos perguntar como a comunidade migrante estava recebendo e lidando com essa realidade. Assim, nossa primeira ação foi desenvolver um material, em parceria com o projeto de extensão universitária da UFPR – Caminhos do SUS – que informasse sobre a rede de assistência médica em Curitiba. É importante destacar que já havia uma equipe interdisciplinar (composta por alunos e professores dos cursos de Comunicação, Psicologia, Letras e Design) com quem trabalhamos inclusive na produção do primeiro número da Revista Ressonâncias, que, nesse momento, dedicou-se à elaboração desse material juntamente com migrantes, ex-alunos do PBMIH, de modo a garantir, no material final, qualidades como ser visualmente agradável e fácil de manipular. O material foi produzido em português e traduzido para cinco outras línguas (crioulo-haitiano, árabe, francês, inglês e espanhol).

Esse primeiro material, publicado em 6 de abril de 2020, ainda traz um pouco a ideia de folheto que havíamos visto num material distribuído pela Prefeitura de Curitiba, dirigido especificamente aos migrantes hatianos; porém, a seguir, no dia 9 de abril, outro material veio a público, com tema atinente ao auxílio emergencial do governo federal, agora já com um formato desenvolvido pela equipe reconfigurada do PBMIH, com qualidades particulares: telas simples, conteúdo objetivo, de fácil manuseio nas redes sociais (em formato car- rossel para o Facebook e o Instagram, e em formato pdf para ser compartilhado por WhatsApp), e novamente com informação gabaritada em seis línguas. Ainda em abril, no dia 14, foi postado um novo material sobre crédito alimentar de 70 reais para as famílias das crianças matriculadas na rede municipal de Curitiba, para compras nos armazéns da família de Curitiba. A agilidade das informações foi um diferencial nesse momento do nosso trabalho.

Em maio de 2020, mais três materiais foram produzidos: um que ensinava como fazer, usar e higienizar máscaras de proteção caseiras, outro que visava o combate à violência doméstica durante a pandemia e um terceiro sobre como se inscrever no CadÚnico; em junho, mais dois materiais vieram a público: um sobre seguro desemprego e outro sobre como agendar horário para vagas de emprego na agência do Trabalhador.

A nossa parceria já estabelecida há tempos com professores e alunos do curso de Psicologia da UFPR nos permitiu também a produção de materiais voltados para o cuidado com a saúde mental, tanto dos adultos (preocupação do material publicado em julho de 2020) quanto da saúde mental das crianças (publicado em agosto de 2020). Em novembro também foi produzido um material com conteúdo dessa mesma natureza: trata-se de um material que abordou o problema de vivenciar o luto na pandemia, um problema que se colocou para um sem número de famílias, sejam elas de brasileiros ou de estrangeiros.

Ainda produzimos mais dois materiais em setembro e um em outubro que forneciam orientações objetivas para evitar a contaminação na rua, para evitar a contaminação ao chegar em casa e também orientações para higienizar os alimentos. O último material produzido, já em setembro de 2021, foi a respeito de doença falciforme em crianças.

A questão da violência doméstica foi uma questão que mobilizou também o Observatório de direitos humanos da UFPR e a Caritas Paraná, parceria que permitiu a criação da cartilha “Valente é a sua voz!”, cujo intuito foi instruir a mulher migrante acerca das leis brasileiras no que tange à violência doméstica. Esse é um material mais longo, com 25 páginas, que contou com o apoio da ACNUR-BR para promover a distribuição 10 mil cópias impressas no estado do Paraná.

Foram ao todo 17 materiais, todos disponíveis no site https://www.pbmihufpr.com/, que podem ser vistos, compartilhados e usados por toda a comunidade, no Brasil e no exterior. Eles refletem nosso envolvimento e comprometimento com os nossos alunos, mesmo numa situação em que os cursos tradicionais não poderiam ser oferecidos.

Assim, embora o trabalho de ensino em sala de aula tenha parado durante a pandemia, o nosso trabalho de extensão a rigor não parou, como não parou também o nosso trabalho de pesquisa sobre ensino de português brasileiro no contexto migratório. A Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-gradução da UFPR propôs, no segundo semestre de 2020, um edital para grupos de pesquisa ativos na universidade, que poderiam tanto pedir bolsas de iniciação científica quanto a compra de materiais pra laboratórios. O projeto por nós apresentado e contemplado no Edital 06/2020 propunha exatamente a produção de materiais didáticos de tipo lúdico e também no formato de aulas que poderiam ser ministradas no contexto do PBMIH. Desse modo nasceu o material que compõe o presente número da Revista Ressonâncias. Evidentemente, tudo o que produzimos no grupo foi submetido à organização da revista, passando por pareceristas que fizeram sugestões ou exclusões e o resultado é este que ora se apresenta.

Portanto, além deste Prelúdio, o segundo número da revista Ressonâncias é compos- to por materiais didáticos voltados para os níveis básico, intermediário e avançado, e ainda por outros textos que integram as seções Contrapontos e Reverberações. Voltado para o nível básico, o primeiro material, intitulado “Onde você mora?” vai se debruçar sobre a descrição do local de moradia do aluno e informações sobre ela, como o que tem na vizinhança; o material inclui exercitar a escrita de e-mails e também o tratamento de estruturas linguísticas que estão implicadas na localização espacial de pessoas e de coisas, como os verbos “ser” e “estar”. Para esse mesmo nível, temos um segundo material, com título “SUS”, que trabalha com um tema sempre extremamente útil e de grande relevância, durante a pandemia e fora dela, como hoje sabemos sem qualquer sombra de dúvida. Esse material apresenta a estrutura do SUS para os migrantes, além de sugerir os passos para cada um se cadastrar no sistema e assim ter acesso à saúde pública no Brasil. O tópico gramatical abordado é a resposta a perguntas afirmativas, que em português faz uso do verbo conjugado usado na pergunta.

No nível intermediário, temos o material intitulado “É só uma picadinha!”, que versa novamente sobre o tema da saúde, agora abordando o problema da doação de sangue. O tópico gramatical examinado é o diminutivo, cujo uso é característico do falar brasileiro, seja para expressar tamanho, seja com conotação afetiva das mais diversas, uma sensibilidade que o material procura evocar no migrante.

Para o nível avançado, temos dois materiais: o primeiro, “Reza a lenda”, que versa sobre histórias folclóricas brasileiras, procura trabalhar o gênero textual lenda e assim, para abordar a questão das narrativas, escolhe revisar os tempos verbais do passado como tópico gramatical. O segundo, “Vai no Bixiga pra ver!”, aborda o samba brasileiro, fazendo uma relação entre memória e história na cidade de São Paulo. Aqui, o trabalho mais propriamente gramatical é com certas características do gênero relato, que abrangem marcas temporais das sentenças e conectores usados para ligá-las.

A seção Contrapontos apresenta dois relatos: o da oficina de colagem promovida pela Entrelaços, visando à manutenção dos laços afetivos e de trabalho que foram construídos durante os últimos anos do PBMIH com as mulheres participantes do projeto; e o da oficina de encontro online com as crianças participantes do projeto Pequenos do Mundo e seus pais ou responsáveis, um trabalho com duas partes: a oficina 1 sobre aprendizagens e sentimentos; e a oficina 2, intitulada “Volta ao mundo”.

Finalmente, na seção Reverberações, temos um texto a respeito da integração dos estudantes haitianos à UFPR, por meio do programa de Reingresso. Temos aqui uma avaliação feita de dentro, por um haitiano participante do programa, o Dieugo Pierre, que avalia os prós e os contras do programa, suas vitórias e seus fracassos também. Esse texto é apresentado em português e também em crioulo haitiano, numa tradução feita por Rony Remy.

Gostaríamos de finalizar este Prelúdio reafirmando o nosso compro- misso com a população migrante, razão pela qual retomamos as atividades de aulas presenciais neste segundo semestre de 2022, num momento em que a pandemia parece ter arrefecido. Fizemos isso com bastante cuidado e por enquanto só com poucas turmas e turmas pequenas, na tentativa de garantir a saúde tanto dos alunos migrantes quanto dos nossos graduandos que são os professores das turmas (tutelados por algum professor mais experiente).

O prazer de retomar as aulas e a produção de material didático é indescritível, o que já nos faz começar a pensar no novo número da revista Ressonâncias para muito em breve!

Esperamos que estes materiais sejam úteis e que a leitura deles seja prazerosa!

Bibliografia

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