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INTEGRAÇÃO DOS ESTUDANTES HAITIANOS À UFPR

Resumo

Neste artigo, apresento o resultado de um estudo realizado sobre o processo de integração de um grupo de imigrantes haitianos à UFPR, em Curitiba, fruto de uma pesquisa de iniciação científica com abordagem baseada na discussão sobre hospitalidade e racismo, preconceito, segregação e outras discriminações. Analiso as interfaces dessa abordagem a partir das contribuições decoloniais de Aníbal Quijano, Jacques Derrida, entre outras referências. A interpretação e as técnicas de obtenção de dados utilizados foram a comunicação informal, questionários, revisão bibliográfica, pesquisa documental, sistematização e análise dos dados coletados. Sugerimos em nossa pesquisa que determinadas condições da hospitalidade acabam por impedir a integração e a socialização dos imigrantes haitianos, levando-os, em muitos casos, a um sentimento de inferioridade. Também, com a pesquisa, nos aproximamos das perspectivas de futuro imaginadas por esses imigrantes e também da constituição do trauma, apontado por muitos entrevistados, como um dos principais problemas que envolvem a integração destes imigrantes no espaço social universitário curitibano.

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Palavras-chave: Imigrantes haitianos, Hospitalidade, UFPR.

Introdução

Neste texto, problematizo alguns aspectos da integração e socialização de um grupo de estudantes imigrantes haitianos na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, a partir de entrevistas, pesquisa documental e revisão bibliográfica, abordando as situações de acolhimento, hospitalidade e preconceito.

Os contextos socioculturais da cidade de Curitiba, nos quais esses estudantes imigrantes haitianos se inserem, comportam uma complexidade de fenômenos envolvendo o preconceito, a segregação, a discriminação e a fragilidades dos processos de integração e de socialização, em geral, em razão da origem étnica dos estudantes.

Como ocorre com quase todos os imigrantes, a integração ao novo lugar envolve dificuldades, como a de encontrar alojamento e emprego, com o agravante de, em geral, ter de enfrentar discriminação étnica e racial (BERNÈCHE,1983). No caso de Curitiba, a questão da habitação é, de fato, um elemento importante, pois a formação desse espaço urbano é marcada historicamente pelas desigualdades (CARVALHO; SUGAI, 2014). A cidade apresenta duas facetas distintas e contrastantes: uma, composta por territórios nos quais vive uma parcela da população mais bem servida pelo Estado; outra, espacial e socialmente menos estruturada, em que habita parte da população em condições mais precarizadas de acesso a serviços e emprego. Conforme Carvalho (2014), como produto social, esse espaço é resultado do conjunto de movimentos e ações humanas em torno do consumo e exclusão.

É nessa Curitiba dividida - em meio a uma quase ausência de políticas de acolhimento com marcantes cenas de preconceito, exclusão, racismo e xenofobia - que ocorre, conforme afirmam Bomtempo e Barbosa (2019), o processo de integração das populações haitianas. Veremos com Vieira (2016) que existem certas doses de ideologia de branqueamento e seletividade dos imigrantes, fazendo com que preconceitos e discriminações raciais dificultem a integração dos imigrantes haitianos, principalmente quando se trata de encontrar um lugar para morar. Em nosso entendimento, isso contribui para a concentração desses imigrantes (inclusive estudantes imigrantes haitianos matriculados na UFPR) em bairros distantes e periféricos da cidade de Curitiba ou, ainda que no centro, em condições mais precárias. Ou seja, uma realidade que evidencia não apenas o preconceito e a discriminação racial, mas também social e econômica na cidade, algo que torna ainda mais difícil a integração desses imigrantes no espaço social da Universidade e gera diferentes traumas. Entendo o preconceito, a discriminação e a segregação espacial como questões centrais que levam, portanto, ao problema da integração.

Discutiremos como o preconceito se efetiva não apenas em ataques verbais, mas também em atos como o de manter esses imigrantes fora de alguns espaços sociais em virtude de sua origem geográfica, mas sobretudo histórica; trata-se de segregação espacial, visto que a forma pela qual grupos são excluídos de certos espaços anda de mãos dadas com a discriminação, a qual priva o grupo racializado de certos direitos ou privilégios sociais. Além disso, apresentaremos algumas das razões pelas quais um indivíduo ou um grupo de indivíduos pode ser alvo de um ato de racismo, entre elas, o preconceito sobre um certo “desvio político” (pautado na afirmação de que o povo haitiano poderia servir de mau exemplo por ser revolucionário e questionador); o contexto econômico de seu país (pobreza generalizada, ampliada com a inserção cada vez maior num mundo globalizado); a ignorância de seus costumes e cultura, colocando-os como raça inferior (BOUCHARD, 2002). Essas são algumas das questões que perpassam a integração desses alunos haitianos na UFPR, as quais trataremos a partir de agora.

Os estudantes haitianos face à universidade para

Todos

Derrida (2001), no texto “L’Université sans condition” 1 , nos convida a pensar sobre a universidade incondicional, uma universidade que vai além da liberdade acadêmica. Trata-se de pensar a universidade como um espaço público de transformação, de resistência crítica, que se opõe a quaisquer formas de poderes e de apropriação dogmática e injusta. Em diálogo com essa perspectiva, no ano de 2014, a UFPR realizou uma parceria com a Cátedra Sérgio Vieira de Melo, da Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que estabeleceu o Programa de Política Migratória e a Universidade Brasileira (PMUB). De acordo com a resolução 13/14-CEPE e as resoluções/legislações complementares, tornou-se possível o ingresso de imigrantes e refugiados na UFPR, nas vagas remanescentes de diversos cursos (GEDIEL; GODOY, 2016). Tal programa, somado a outros esforços, como a implementação do Programa de Estudantes-Convênio (PEC-G)2 pelo Ministério das Relações Exteriores e pelo Ministério da Educação, bem como o vestibular especial para refugiados/migrantes, facilitou o ingresso de estudantes estrangeiros. Tudo isso tem garantido o acesso de imigrantes à Universidade, compondo um aspecto importante da hospitalidade, ao qual o Estado precisa estar atento e fazer prevalecer. Ainda assim, como veremos, existem outras questões relativas à hospitalidade oferecida ao imigrante que preci- sam ser melhor abordadas, como apresento na próxima seção.

Hospitalidade face às condições raciais e sociais

A hospitalidade é um valor em que a aceitação do outro é exercida de forma incondicional e gratuita, para todas as populações migrantes, mesmo as mais vulneráveis e necessitadas. Conforme a lei cosmopolita de Emmanuel Kant, o direito à hospitalidade universal é um direito de visita entre indivíduos, que decorre da liberdade de ir e vir que cada um possui como habitante da Terra; é o poder de se deslocar em qualquer espaço sem ser perseguido como estrangeiro ou tratado como inimigo até que cometa atos hostis ou represente uma ameaça. O objetivo da lei cosmopolita kantiana é estabelecer uma convivência pacífica entre indivíduos que se movem pelo espaço. Concordando com a lógica da convivência pacífica kantiana, Emmanuel Levinas adota uma abordagem ligada à questão do “eu” que se propõe a ir ao encontro do outro sem endereçamento e enraizamento do ser. Segundo o autor, quando isso se quebra, é criado um trauma, transformando a hospitalidade em hostilidade (UCS, 2015).

Para Jacques Derrida, a hospitalidade se assemelha a um conjunto de fronteiras que, mesmo que pareçam espaços limítrofes, indicam as possibilidades de seu reconhecimento e sua superação. As mesmas condições, regras, direitos e deveres impostos aos anfitriões se impõem também aos que recebem o acolhimento, criando uma dificuldade, ou mesmo uma impossibilidade, de se cumprir a lei da hospita- lidade incondicional. Na fronteira, ou seja, no limite entre a lei da hospitalidade e a lei incondicional da hospitalidade, surgem questões complexas, tornando a reflexão sobre a hospitalidade um princípio ético, incondicional e infinito; a hospitalidade realizada como responsabilidade é traduzida em palavras e gestos; a língua constitui um paradoxo da hospitalidade, pois, ao mesmo tempo que serve como forma de acolhimento, também provoca hostilidade, já que é imposta ao hóspede (COMANDULLI, 2015).

Nesse sentido, ainda conforme Derrida (2001), a hospitalidade incondicional não estaria definida por nenhuma lei, ou seja, o “sim” ao recém-chegado, estrangeiro ou imigrante, a um hóspede ou visitante inesperado, quer o recém-chegado seja cidadão de outro país ou não, é incondicional. No entanto, quando a hospitalidade é oferecida com base no status racial, social, entre outros, isso pode acarretar, por vezes, um sentimento de superioridade de um grupo sobre outro, e assim, colocar o outro em uma posição de inferioridade, gerando problemas. À luz do conceito de hospitalidade desses autores, busco compreender, portanto, a situação encontrada no espaço social da UFPR pelos estudantes imigrantes haitianos. Destaco, em minha pesquisa, as formas de hospitalidade oferecidas considerando as condições raciais, sociais, entre outras, e as consequências que elas têm sobre este grupo de imigrantes.

A partir dos relatos das entrevistas, percebi que boa parte dos estudantes haitianos, apesar de receberem o apoio material e burocrático de acesso à Universidade, sentem-se limitados e não integrados em vários aspectos no espaço social da Universidade. Como exemplo, destacam a relação e a convivência dentro de alguns espaços, como a sala de aula, a participação nos laboratórios e a iniciação científica, nos respectivos ambientes sociais de seus cursos. Em um dos relatos que coletei no período de entrevistas, um estudante imigrante haitiano chamado Pradel Joseph3 narrou:

[...] eu não me sinto confortável [...] me sinto como uma pessoa diferente dos outros. [...] Minha presença não é muito importante para minhas colegas. [...], limite que existe entre eu e minhas colegas, cada um já tem seu grupo de amigos, conversa não existe entre eu e minhas colegas brasileiras.

Entendo, a partir de tal relato, que existe um abismo entre quem é de fora e quem é do país, e tal abismo às vezes causa mal-entendidos desnecessários devido ao desconhecimento ou falta de vontade de conhecer os outros.

Outra questão levantada nas entrevistas se refere à língua, destacada por vários estudantes como uma barreira que torna difícil sua convivência no espaço social brasileiro, desde os seus primeiros dias no Brasil. Segundo eles, a língua impõe limites que os deixam indefesos diante da lei e de algumas situações de discriminação e preconceito.

A língua me coloca muitas barreiras, até nas aulas, às vezes tem matérias que eu domino muito bem, mas não consigo me expressar em termos de compreensão. Devido ao uso incorreto dos tempos verbais, às vezes pareço grosseiro (Pradel Joseph).

Esse relato parece ter relação com a conclusão a que chega Derrida (1997), segundo a qual seria um exagero pedir a um estrangeiro que compreenda e fale uma língua, em todos os sentidos do termo, em todas as suas extensões possíveis, antes de recebê-lo.

Segundo os entrevistados, é muito comum, no espaço social brasileiro, que eles sejam alvo de todo tipo de maldade, o que pode acontecer por não estarem em seu território social de origem. Pradel Joseph declara que:

Várias vezes no meu trabalho, quando os brasileiros querem fazer algo ou não querem fazer algo, eles dizem ao gerente que eu digo que não quero fazer tal e tal coisa, enquanto eu digo nada. Eles sempre dizem o que eu não disse, porque sou estrangeiro.

Embora não estejam em seu território social de origem, esses imigrantes são sujeitos de direito como todos os brasileiros, o que não os priva também do cumprimento de seus deveres. Parte dos problemas relativos a essa questão de sujeito de direito, mencionados pelos alunos haitianos, pode ser compreendida a partir de uma interpretação de certos fatos históricos, políticos e econômicos, que, desde o período da escravidão até os mais recentes períodos de turbulência política e econômica do Haiti, são frequentemente usados no tratamento aos imigrantes haitianos em diferentes territórios para os quais migram.

Já a questão da estigmatização social balizada em preconceito racial nos faz pensar muito sobre o conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano, a partir do qual o autor explica a imposição da cultura dominante ao resto do mundo. Segundo Quijano, a colonialidade é o estabelecimento de um conjunto de normas sociais e étnicas, que permitem aos europeus afirmar sua superioridade como conquistadores sobre os conquistados a partir da ideia de raça, baseada em uma estrutura biológica. Ela reúne todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial.

A cultura dominante ignorando outros grupos humanos: o caso do sujeito cultural haitiano

Fatos históricos, políticos e econômicos, desde o período da escravidão até os mais recentes períodos de turbulência política e econômica no Haiti, são usados para caracterizar o imigrante haitiano onde quer que ele esteja, ignorando-se sua cultura e identidade. Marie Meudec (2017), pensando sobre os processos de mudança e estigmatização que afetam as comunidades haitianas em diversas sociedades, entende a perpetuação de estereótipos como um processo historicamente constituído e socialmente ancorado em noções de alteridade, imaginário colonial e hegemonia branca. O território haitiano tem um histórico revolucionário e questionador, que por vezes poderia servir de exemplo para outros territórios. No entanto, essa característica tem sido desvalorizada, como, por exemplo, em uma declaração do ex-presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, na qual, segundo Désinor (1997), ele teria afirmado que é preciso levantar de maneira contínua os pés calçados contra as pessoas descalças, pois, somente assim, será estabelecido um predomínio sobre esse país de negros que conquistou sua independência pelas armas e que é um mau exemplo para os 28 milhões de negros na América.

Essa representação do Haiti e dos haitianos pode ser entendida a partir da relação que existe entre representação e poder colonial. Essa representação está ligada a um imaginário colonial ancorado nas práticas neocoloniais. Segundo Misoczky e Böhm (2013), as práticas neocolonialistas são relações neocoloniais de hegemonia geoeconômica, geopolítica e geocultural, que funcionam efetivamente por meio da contribuição ativa de indivíduos e organizações localizadas em nações e comunidades. Elas não são abstratas; são práticas sociais reais, que frequentemente estigmatizam, desumanizam e discriminam cidadãos haitianos. Essas relações sociais hierárquicas podem ser percebidas não apenas nos discursos do cotidiano ou nas mídias, mas também em discursos científicos.

Já no Brasil, atualmente, um dos discursos mais difundidos sobre o território haitiano é o de que se trata de um dos países mais pobres do planeta (no contexto do desenvolvimento capitalista) - (HERREA et al., 2014), com uma realidade socioeconômica muito crítica e caótica. Tais discursos contribuem para a construção dos diferentes tipos de discriminação e preconceitos sofridos por haitianos/as em toda parte do mundo. O preconceito, a segregação e a discriminação são mecanismos a partir dos quais o racismo se manifesta socialmente, atingindo o imigrante haitiano de diferentes formas no território brasileiro. Conforme Meudec (2017) e Wieviorka (2007), o racismo sistêmico é a falha das instituições em prestar serviços adequados às pessoas com base na sua raça; não se caracteriza, portanto, por atos de discriminação explícitos e abertos, mas difusos na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades a diferentes segmentos da população. Vários elementos constituintes da identidade haitiana já foram objeto desse racismo sistêmico, tais como: o vodu haitiano, o crioulo e até mesmo o espaço territorial do Haiti.

O aspecto cultural de um território, ou seja, a geografia cultural de um espaço, abrange as diferentes formas de manifestações culturais, tais como a religião, a língua, a música, entre outros. Isso significa que são os habitantes no espaço e em suas relações que constituem seus territórios (CORRÊA, 2012).

O aspecto sociocultural do território haitiano e os elementos históricos nele incorporados permitem a construção de uma identidade haitiana, adquirida de uma dupla herança cultural: uma do lado oeste africano e outra da França, mas com proporções variáveis, dependendo do meio social e do aspecto cultural considerado (MÉTRAUX, 1979). O lado afro-haitiano do espaço social haitiano não tem apenas a forte dominação histórica, mas também dos costumes ou da gastronomia, o que leva autores como Montserrat Palau Marti (1965) a dizer que o Haiti é a África na América, e outros, como Édouard Glissant, a afirmar que os haitianos compõem uma população transbordante, que se torna um povo. O lado francês do povo haitiano é marcado pela língua francesa e pela educação francesa, uma educação colonial que retarda as capacidades intelectuais dos estudantes haitianos, porque é feita em uma língua que não é sua língua materna de todos os dias (MFABOUM, 2004). Dado esse contexto, entender a identidade cultural haitiana demanda uma atenção cuidadosa, que dê conta de discutir e analisar a complexidade de sua constituição. Isso porque essa mescla cultural foi conformada num longo e violento processo histórico sobre o território haitiano que deixou tristes marcas na população (inclusive de imigrantes), entre as quais destacamos: o preconceito e a discriminação balizadas no racismo e segregação socioespacial4 .

O território e seus habitantes em relação revelam que o espaço de vida está impregnado de valores que não são apenas materiais, mas éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. Pode até ser um lugar de sonho, em vez de um lugar para viver e morar. Ele não é um princípio material de apropriação, mas um princípio cultural de identificação e pertencimento, o que se traduz pela intensidade da sua relação com o seu habitante. Por isso, o espaço de vida não deve ser visto apenas como um recurso ou suporte econômico, mas como algo que faz parte da identidade coletiva de quem nele habita, que mantém uma relação essencialmente afetiva, o que explica a sua importância como construtor de identidade (BONNEMAISON; AMBREZY 1996).

No entanto, os impactos econômicos e financeiros da globalização influenciam nessa relação entre o espaço e os seus habitantes, transformando-os profundamente, para se manterem competitivos. O território passa a ser considerado como um recurso que pode ser explorado, valorizado e desvalorizado. Torna-se um meio de desenvolver atividades econômicas e as populações simplesmente se tornam sujeitos economicamente ativos (JOLIVET; LÉNA, 2000). Tal é a situação atual do território haitiano - colocado pela globalização entre as regiões mais desvalorizadas pelas forças produtivas do capital -, bem como sua posição no contexto social. Tal condição tem feito com que milhares de haitianos deixem o país em busca de melhores condições de vida no exterior. O território haitiano passa a ser utilizado como instrumento político e econômico com interesses privados globais (típicos do modo de produção da sociedade capitalista), que o controlam em todas as suas instâncias. Conhecido pela desvalorização das forças do Estado e pela parceria entre o Estado e a iniciativa privada, que, de certa forma, dominam este território, ele não recebe infraestrutura da sociedade capitalista, sendo usado por capitalistas individuais apenas para gerar lucro (HALLWARD, 2006; AMARAL; ALVES, 2016).

Essa geografia social do capitalismo, segundo Quijano (2005), molda-se desde a colonização, privando as populações colonizadas de suas produções sociais, assim como de suas identidades culturais, capturando os processos mais favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo em benefício do centro ocidental. Nessa forma de organização geográfica, social e cultural, as formas de produção de conhecimento locais foram sendo reprimidas, bem como os seus modos de produção de sentidos e seu universo simbólico. Assim se encontra hoje o território do Haiti, sendo a população haitiana a principal vítima.

Resumindo: para o sistema capitalista, o território é apenas um recurso destinado à exploração e acumulação; porém, como expus anteriormente, o território vai além de um recurso, ele se faz com base em relações afetivas, que unem aqueles que compartilham a mesma representação social, cultural e geográfica. É o lugar fundador da identidade coletiva, cultural, social, ética e de estéticas que mergulham no sagrado de quem vive lá (BONNEMAISON; AMBREZY, 1996).

Desse modo, o território, como um espaço concebido a partir de experiências humanas, é o lugar em que se desdobram atividades sociais, o que faz dele um lugar social, tratado pelo espírito humano, que se torna provedor de relações e de história (CHIVALLON, 1995). Num sentido parecido, Paul Claval (2002) reforça essa ideia, afirmando que o espaço não é um suporte neutro na vida de indivíduos e grupos, mas o resultado da ação humana que mudou a realidade natural, criando paisagens humanas e humanizadas. A memória coletiva também é feita de lugares e paisagens, aos quais as lembranças do passado conferem um forte valor sentimental. O desenvolvimento da consciência territorial está vinculado às identidades individuais e coletivas. Os elementos culturais são como pontes que estabelecem relações entre identidades e território; são, portanto, elementos importantes neste momento em que a globalização ameaça muitas identidades.

A religião, a música, a língua: elementos culturais determinantes na formação da identidade

Segundo o geógrafo Mark Edwin Sopher (1967), a religião como fenômeno cultural associada a um determinado espaço é classificada em dois tipos: religião étnica e religião universalizante. As religiões étnicas estão ligadas às práticas culturais locais associadas a um determinado espaço, enquanto as universalizantes têm práticas culturais de significados comuns e são impressas por rituais e dogmas reconhecidos em diferentes lugares. Entre as práticas universalizantes está o catolicismo (CORRÊA, 2012).

Gil Filho (2009) afirma que a paisagem religiosa gera um complexo de significados integrados, símbolos e práticas articuladas com uma comunidade de adeptos, um sistema cultural que molda o mundo de diferentes formas, afirmando especificidades que se referem principalmente a um ambiente comunitário. Está, ainda, associada à reprodução de modelos condicionados pelas circunstâncias das dinâmicas práticas de indivíduos e grupos de acordo com seus contextos socioculturais e econômicos. Assim, o vodou ayisyen5 , como religião étnica de ritual e crença, foi formado a partir da necessidade de ajuda divina, a qual, segundo os escravizados acreditavam, poderia tirá-los da escravidão e servir como auxílio para enfrentar o deus cristão branco na época. Essa religião é a pedra angular na construção do território social haitiano e o símbolo da resistência africana desde a época colonial até o estabelecimento do sistema capitalista (FICK, 1997; PROSPERE; GENTINI, 2013; MÉTRAUX, 1979).

O vodu, assim, torna-se um vetor impor- tante na construção do território e da identidade haitiana, tendo em vista que muitos de seus aspectos dependem diretamente do território social haitiano (SOUZA, 2010). Ele é parte integrante da experiência socioespacial principalmente dos habitantes do campo. Não é apenas uma religião, mas também um sistema de atenção à saúdeincluindo-se a saúde mental -, que abrange práticas de cura, cuidado da saúde, prevenção de doenças e promoção do bem-estar coletivo e pessoal. Seus remédios são feitos com plantas e são muito populares tanto no Haiti, como no exterior (BLANC, 2010). Essa religião encontra a sua origem na cultura haitiana, na particularidade espacial do território haitiano e na vontade de respeitar os lugares nos quais os eventos e o significado das coisas têm uma explicação, devendo permanecer no seu próprio universo simbólico (HURBON, 1987). A relação que existe entre o vodu haitiano e o território social haitiano é muito forte, o que leva Aubert Rabenoro e Alfred Metraux (1979) a afirmarem que o haitiano nasceu seguidor do vodu, já que sua autêntica representação espiritual territorial nacional e seu espírito criativo o envolvem e o penetram ao mesmo tempo (RABENORO; MÉTRAUX, 1979).

Apesar de sua estreita relação com o território social haitiano, o vodu haitiano está apto a se encaixar, a despeito das limitações, aos novos territórios sociais e novas realidades temporais e ambientais, no caso da migração. Pois, de fato, as relações sociais e crenças que o envolvem se transladam com seus portadores. No entanto, a adaptação a um território exterior exige ajustes nos materiais, nos rituais, sobretudo quando se refere ao ambiente urbano. Por exemplo, em Miami, nos EUA, existem muitos haitianos que praticam o Vodu haitiano, desempenhando um papel central na rede de imigrantes. Isso, segundo Béchacq (2012), tem relação também com o clima “tropical” e com o grande número de imigrantes haitianos que vivem na região. Em Curitiba, o clima chuvoso é um empecilho, pois alguns rituais de vodu não podem ser realizados quando chove com frequência. O ajuste de materiais para os rituais também é cada vez mais difícil devido às consequências da falta de integração, já que isso exige uma forte interação entre o praticante e os habitantes, principalmente nas zonas rurais. Isso porque é necessário saber quais elementos locais equivalem aos materiais necessários e também ter um conhecimento dos nomes científicos das plantas no Brasil, uma vez que muitos imigrantes só conhecem os nomes que elas têm no Haiti, o que os impede de se adaptarem. Embora haja um grande número de haitianos no Brasil/Curitiba, esses imigrantes não voltam com frequência à sua terra natal, como ocorre com os imigrantes haitianos que moram nos EUA, o que dificulta o praticante de vodu a se munir de materiais necessários a essa prática.

Outro aspecto importante da constituição da identidade haitiana se refere à música. Segundo o geógrafo francês Dominique Crozat (2016), a música é um mundo complexo caracterizado por algumas ideias iniciais, entre as quais as de que: é um vetor para a experiência dos lugares; é um campo de referências para a construção de identidades espaciais individuais e coletivas; é um ator da transformação do espaço em território; é criadora de identidade territorial, etc. A diversidade que existe nas abordagens da música para a geografia explica a complexidade que envolve a tentativa de entender esse universo. Para Crozat, “[…] a música também busca suas identidades na relação espaço-tempo” (2016, p.30), por- tanto, é uma manifestação cultural que se desenvolve no espaço e no tempo. É através dela, dos ritmos, das canções e tradições de dança, que foi possível rastrear a mobilidade espacial das populações e suas origens nos períodos históricos e pré-históricos (AROSTEGUY, 2020).

Diante disso, Marcos Alberto Torres (2011) argumenta que a paisagem sonora, sendo integrada pela música, constitui o universo simbólico de um povo, o seu jeito de fazer e/ou valorizar sua música e seus aspectos culturais. A música é um som culturalmente organizado pelo homem. É nessa relação do concreto e do simbólico da música com o território que nasceu a mizik popilè ayisyen6. Para Crozat, «[...] a música é quase sempre vista com referência a algo além dela mesma, como suporte de identificação» (2016, p. 17). É talvez a partir da mesma perspectiva que a música haitiana é vista pelos haitianos como uma ferramenta de revolta, de reconforto e de lamentação para a sociedade. Como um canal através do qual a sociedade expressa a sua identidade, projetando as suas tradições, frustrações, amor e mesmo o patriotismo, como foi o caso durante a primeira invasão do território haitiano pelos norte-americanos entre 1915 e 1934, já que foi através dela que o povo haitiano disse não às influências americanas e francesas (SANTOS, 2018). O espaço cultural e identitário haitiano é construído dialeticamente entre os haitianos e seu território; esse território desperta nos haitianos diferentes tipos de reações, que contêm peculiaridades expressas por meio de sons, tons, acústica, notas. A música haitiana não é apenas um suporte para a cultura haitiana, mas está envolvida no processo de produção dessa cultura (CROZAT, 2016).

A sua adaptação e a de seu espaço sociocul- tural, abordada e interpretada pelos haitianos, torna-se uma obra de arte que por definição é subjetiva e ao mesmo tempo coletiva; que faz dela um som que conecta os haitianos com seu território e suas memórias, etc. (AROSTEGUY, 2020). É o caso da música do Dr. Louis Achille Othello Bayard, durante a primeira ocupação norte-americana entre 1915 e 1934, que se torna uma espécie de hino não oficial do país, por evocar fortemente o sentimento nacionalista, bem como a noção de diáspora/exílio e a exaltação das virtudes da terra e do povo. É um exemplo notável de nacionalismo romântico e nostalgia que Connel e Gibson identificam nas canções folclóricas haitianas associadas à imigração, as quais invocam visões populistas de estilos de vida idílicos e comunidades harmoniosas (CONNELL; GIBSON, 2003 apud SANTOS, 2018, p. 71). A música haitiana é um espelho que reflete a realidade haitiana.

O caráter acolhedor da população brasileira, que sempre parece se entusiasmar com a ideia de conhecer novas culturas, não têm se revelado em Curitiba, quando se trata dos ritmos musicais haitianos. Isso acarreta muitos problemas, pois a música é parte importante da identidade haitiana, mas é muitas vezes negligenciada. Por exemplo, apesar da forte presença de imigrantes haitianos na sociedade curitibana, não existem eventos patrocinados ou espaços de eventos para que a sociedade aprenda sobre os ritmos musicais haitianos. Em nossa conversa com alguns entrevistados que têm o hábito de frequentar boates, foi-nos relatado que nunca toca música haitiana nesses clubes. Para Deuxant (2019), a música na vida de um imigrante é um passo importante na preservação da sua identi- dade, é o elemento que o liga à sua origem e promove a progressão para a cultura de acolhimento.

Muitas vezes, alguns nativos exibem um comportamento intolerante com os imigrantes quando eles usam a sua língua para se comunicar com seus compatriotas e essa intolerância às vezes chega ao ponto da agressão verbal.

O patrimônio popular imaterial, carregado de emoção e afeto, construído a partir do cotidiano, é geralmente vítima da invisibilidade imposta aos povos de países ditos “subdesenvolvidos”, em benefício de outra herança dos países “desenvolvidos”. Esse é o caso do crioulo haitiano. A França tem feito de tudo para garantir a visibilidade de seu patrimônio linguístico no Haiti, introduzindo-se no meio acadêmico haitiano, em instituições do Estado e outros. Apesar disso, os haitianos não se sentem totalmente identificados com essa língua; ao contrário, é o crioulo que se consolida como um patrimônio de resistência e de enfrentamento ao francês.

A língua crioula haitiana, portanto, como patrimônio emocional nacional do povo haitiano, representa memórias do passado e esperanças para o futuro, ainda que sua importância tenha sido pisoteada por vários anos. Pois, só na década de 1970, houve um debate sobre seu futuro no espaço escolar e universitário haitiano, e, só em 1987, a Constituição haitiana foi acrescida de um artigo que exigia a criação de um espaço acadêmico para o crioulo haitiano. Apesar de ter sido sufocado por todos esses anos, o crioulo haitiano é a única língua que estabelece um vínculo emocional e social entre os haitianos e seu território, pois é a língua materna falada por todos, o que não impede que seus falantes sejam discriminados em favor da língua francesa (GOVAIN, 2013).

O desconhecimento geral quanto a essa rica identidade cultural haitiana impede a compreensão mais profunda do imigrante haitiano hoje, pois se desconsidera todo um conjunto de elementos que o constituem como indivíduo, uma vez que a sua identidade está ligada a uma história, a um espaço geográfico e a uma cultura. A idealização e o desenvolvimento dessas ideias em relação ao imigrante haitiano não são apenas causadas pela falta desses elementos, mas também pela ausência de vontade de conhecê-lo. Isso, por sua vez, afasta esses imigrantes como se fossem espectros, construindo uma imagem bastante triste, que contribui muito para a ampliação de preconceitos. Assim, conhecer e respeitar abre caminho para uma nova concepção, contrária àquela que preconiza a destruição do outro - na qual o sistema socioeconômico mundial usa a raça e a cultura de modo depreciativo, impondo uma transformação que garante a sua hegemonia cultural, política, econômica e social.

Sabemos que existe uma vasta literatura sobre questões sociais dentro das Universidades, porém, percebemos que faltam estudos sobre a abordagem socioespacial desse tema. Grande parte dos trabalhos dizem respeito aos campos acadêmicos e à democratização da educação, negligenciando as abordagens socioespaciais presentes nas questões universitárias (FROUILLOU, 2014).

O espaço como resultado das relações socioeconômicas tem no Estado, produtor e distribuidor de bens e serviços, um dos principais atores na sua produção. As suas intervenções podem equilibrar ou desequi- librar a relação entre os espaços, produzindo um desequilíbrio no acesso a serviços, infraestruturas, transportes e comunicações, etc. Isso pode levar, muitas vezes, a uma situação de segregação e exclusão de parcela da população do acesso aos bairros ou regiões que têm se beneficiado desses serviços (CARVALHO, 2014).

Foi o que aconteceu com as intervenções desequilibradas ou desiguais de Curitiba, onde há áreas bem servidas pela administração pública - como Batel, Água Verde, Bigorrilho, Cabral, Juvevê, Vila Izabel, Cristo Rei, Portão - e áreas que são tratadas como parentes pobres - como Cajuru, Cidade Industrial, Sítio Cercado, Tatuquara e Uberaba - consideradas as mais violentas de Curitiba, o que Rogério Haesbaert (2009) chama de «dominação política» e Marcelo Lopes de Souza (2009) de «relações de poder». Alguns desses espaços desvalorizados e desprezados são os espaços de vida de vários estudantes imigrantes entrevistados. Ainda que haja alguns deles vivendo no centro da cidade, isso não impede que sejam submetidos a problemas como preconceitos e discriminações enfrentados pelas pessoas oriundas das zonas periféricas e violentas de Curitiba.

Alunos haitianos que enfrentam desequilíbrios socioespaciais

Para o geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert (2009), o espaço é considerado um espaço ocupado em um processo de produção de identidade, subjetividade e simbolismo, que é ao mesmo tempo um processo de dominação política e jurídica. Já para Marcelo Lopes de Souza (2009), o território é um espaço definido e delimitado por e a partir das relações de poder. Levar em consideração esses aspectos, o que se produz e o que é produzido em um determinado espaço, é relevante para a compreensão da produção espacial, inclusive a partir das relações de poder, bem como dos laços emocionais e identitários, assim como dos conflitos e contradições sociais e econômicas que se desenvolvem entre os grupos sociais no espaço. Apesar de não nos aprofundarmos em todas essas questões, discutiremos aqui os aspectos que se aproximam desse debate envolvendo a hospitalidade e acolhimento na universidade e o caráter de segregação socioespacial a ele ligado.

A maioria dos estudantes imigrantes haitianos entrevistados, como vimos, não desenvolvem (ou desenvolveram poucos) relacionamentos com colegas no espaço universitário. Joseph Nikson, falando sobre sua situação relacional no espaço universitário, disse: “Não tenho amigos na sala de aula [...]. Nunca participei de uma festa com colegas de faculdade. [...], a relação que eu tenho com eles é ruim. Converso pouco com eles” (Joseph Nikson).

Esta falta de relacionamento levanta questões sociais vinculadas à existência de uma segregação desses estudantes. Por essa ausência de convívio, é muito frequente encontrar esses estudantes haitianos em pequenos grupos ou sozinhos, no restaurante ou no pátio da universidade. A situação que conduz à segregação desses estudantes decorre, em parte, da distância social e física no espaço universitário, que, de forma imbricada, conforma o distanciamento relacional. Esse distanciamento relacional é marcado pela falta de hospitali- dade e de acolhimento.

Infelizmente, os contrastes presentes no espaço social da cidade de Curitiba também parecem estar presentes no espaço universitário da UFPR, na forma do distanciamento relacional, o que contribui para a segregação (FROUILLOU, 2014). Assim, a questão do distanciamento relacional é um fator importante para entender a segregação socioespacial desses alunos imigrantes no espaço universitário da UFPR, pois, quanto mais isolados relacionalmente, mais são segregados. E, cada vez mais, eles vão evitando participar de atividades acadêmicas que são boas para sua carreira profissional, para não ter de lidar com esse problema. Compreender essa questão da distância relacional ajudará a formar uma estratégia de reagrupar esses alunos no espaço universitário da UFPR (FROUILLOU, 2017).

Percebemos que a discriminação, a segregação e diversas violências verbais sofridas pelos imigrantes haitianos não se devem apenas à cor da pele, mas também ao seu passado histórico, modo de vida e cultura diferentes, que, ao serem colocadas em relação umas com as outras, no momento da imigração, fazem com que os envolvidos tenham de lidar com as tensões e criar novos instrumentos sociais capazes de intervir e entender as divergências da vida cotidiana. Infelizmente isso não é diferente na Universidade.

O corpo social da comunidade estudantil haitiana da Universidade Federal do Paraná, de 2012 a 2020, apresenta uma configuração onde há predominância de alunos de reingresso bastante acentuada.

Em termos de proporção de sexos de 2012 a 2020, houve 74,3% de homens matriculados na universidade em comparação com 25,7% de mulheres. Em relação à área dos cursos, o

Estudantes Imigrantes haitianos na UFPR 2012-2020

Fonte: UFPR, 2020 ingresso de estudantes imigrantes haitianos é muito diversificado, como podemos ver a seguir: 76% de homens se concentram na área de ciências sociais aplicadas contra 24% de mulheres; na engenharia, 100% são homens; em ciências da saúde, 25% são homens e 75% mulheres; nas ciências humanas, 57,1% são homens e 42,9% mulheres; em ciências biológicas, há 71,4% de homens e 28,6% de mulheres; em ciências da terra e exatas, 100% são homens; nas ciências agrícolas, 80% são homens e 20% mulheres; e, finalmente, em linguística, letras e artes, 100% são homens (UFPR, 2020). Essa comunidade estudantil é composta por uma maioria de homens, o que se explicaria pela própria conformação social e cultural haitiana, que não valoriza a formação das mulheres, pois não oferece as mesmas oportunidades para as mulheres na ciência em comparação aos incentivos que são dados aos homens. Desde a infância, as mulheres são estimuladas a ficar em casa, ajudando a mãe com os serviços domésticos, até se tornarem adultas, tendo, assim, pouco tempo para elas mesmas, inclusive no quesito formação. Um outro aspecto importante para entender essa desproporcionalidade tão grande é o fato de que as mulheres no Haiti são estimuladas, por essas relações culturais da dinâmica da sociedade haitiana, a se envolverem no comércio atacadista e varejista. Ou seja, há uma divisão do trabalho naturalizada entre homens e mulheres na cultura. Desde crianças, elas são obrigadas a acompanhar suas mães comerciantes aos mercados. Todos esses fatores as afastam cada vez mais das ciências (TONDREAU, 2008).

No caso aqui em estudo, apesar das múl- tiplas e diversas dificuldades encontradas pelos imigrantes haitianos, existe um sentimento geral de gratidão por fazer parte da história da Universidade. No entanto, isso não ocorre sem sofrimento. Sofrimento ligado às pressões acadêmicas (conforme descrevemos antes, entre elas, a dificuldade com a língua, de formar grupos de estudos e outras relações do âmbito universitário); sofrimento relacionado às diferenças étnicas ou de origem étnica. Quanto ao sofrimento devido à origem étnica, Fillion et al. (2008) dirão que é uma forma de violência social que se manifesta de várias maneiras e tem impacto sobre o indivíduo gerando traumas. Quem são as vítimas e o que elas querem? Como podemos atentar ao perigo que o trauma representa nas sociedades humanas? Segundo os autores, as vítimas de trauma sofrem de uma violência social que a própria sociedade cria, ou seja, trauma é a consequência do sofrimento da violência social que a sociedade provoca.

Aqui nesta pesquisa, evidenciamos que o preconceito é uma das formas de violência mais relatadas, e isso ocorre em vários formatos: dificuldades para integrar grupos de trabalho e ausência de comunicação entre os integrantes das salas de aula são apenas algumas delas. O preconceito é um dos moldes que o racismo usa para se manifestar. Essa situação traz consequências traumáticas, como solidão e isolamento, sentida aqui por 57,1% dos entrevistados.

Quanto ao restante, cerca de 14 % se declaram indiferentes, ansiosos ou desanimados e 38% afirmaram não desenvolver com frequência uma boa relação na sala de aula, sendo os momentos de conversa bem escassos. Todas essas situações evidenciam a falta de comunicação como impeditivo à integração e socialização dessa comunidade dentro do ambiente universitário (PIERRE, 2020).

Segundo Fillion et al. (2008), “o trauma, torna a vítima um ser comum lutando com um evento extraordinário” (FILLION et al., 2008, p. 114). Ainda assim, os estudantes haitianos afirmam que é por sua vontade própria e motivação interna que não desistem, caso contrário, já teriam abandonado os cursos. Essa resiliência que os caracteriza tem várias razões, dentre as quais se destaca o sentimento de privilégio de ser um aluno da UFPR, quando comparam, por exemplo, a sua situação com a de uma grande quantidade de brasileiros que gostaria de estar no lugar deles e não consegue. Outro fator de incentivo é a chance de romper com a visão de que os haitianos migram apenas para entrar no mercado de trabalho e que não teriam capacidade de fazer parte da comunidade intelectual brasileira.

Em relação às perspectivas para o futuro, são diferentes as opiniões da comunidade estudantil. Cerca de 19% deles desejam retornar ao país após a formatura, 52,4% desejam permanecer no Brasil e 28,6% desejam ir para outros países. Entre os que desejam permanecer, 6,9% desejam fazer o mestrado e 14,3% almejam o doutorado. Independentemente das dificuldades de sociabilização e das diferenças culturais, isso parece mostrar que os haitianos, como costumam dizer, “são guerreiros e são muito resistentes”. Ser um imigrante haitiano em Curitiba, com base nesses dados, é realmente ser um guerreiro resistente às influências depressivas. Pois é uma luta contínua que requer muita moral, vontade e perseverança (PIERRE, 2020).

Considerações finais

Os imigrantes haitianos em Curitiba enfrentam diferentes obstáculos ligados à hospitalidade, ao acolhimento, às interações no cotidiano na sociedade, à língua, à cor da pele, ao trauma, ao preconceito, entre outros problemas. É importante e necessária uma política pública consistente de hospitalidade e de acolhimento, que reduza os problemas enfrentados por esses imigrantes e melhore o relacionamento entre os imigrantes e a sociedade em toda a sua integralidade. Torna-se necessário ampliar os estudos sobre essa população imigrante, visando buscar entender o porquê de ser tão difícil para a comunidade haitiana se socializar e se relacionar na sociedade curitibana, levando em consideração as particularidades dessa relação, inclusive as socioespaciais.

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