Rosa Maria nº5

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Rosa Maria nº 5 junho · dezembro

reportagem

Texto Ana Luísa Rodrigues Fotografia Camilla Watson

Aqui, as paredes cantam As paredes e os edifícios da Mouraria ganharam uma nova vida. São 28 imagens em grande formato a homenagear o fado e os fadistas que aqui nasceram, por aqui passaram ou cantaram o bairro. A ideia foi de Camilla Watson, fotógrafa inglesa que adoptou a Mouraria como sua. “A ideia surgiu há três ou quatro anos. Apresentei a proposta, mas não foi logo aceite. Mas depois do reconhecimento do fado como património imaterial pela UNESCO, o projecto começou a tomar forma”, explica Camilla ao Rosa Maria. A 25 de Maio, ruas e largos da Mouraria encheram-se de público que quis ver pela primeira vez o “Tributo a Lisboa”. A exposição foi inaugurada por António Costa, presidente da Câmara, entidade que financiou o projecto. A tão cantada rua do Capelão recorda agora Fernando Maurício, o mítico fadista da Mouraria no século XX, Argentina Santos, Esmeralda Amoedo, Amália Rodrigues, Fernanda Maria e Francisco Martinho. As imagens levam depois

os visitantes por um percurso que segue pelo Largo da Severa, a travessa João do Outeiro, o beco do Jasmim, a rua da Guia, a Marquês de

Ponte de Lima, o Largo do Terreirinho e o das Olarias e a calçada do Monte, terminando na Travessa da Nazaré, junto ao Grupo Desportivo

da Mouraria e a sua Escola do Fado. A maioria das fotografias são impressas em suportes de madeira e gesso – técnica que Camilla Watson utiliza com frequência – e depois aplicados sobre os edifícios. Mas há duas fotos impressas directamente na parede, recorrendo a uma câmara escura gigante. Estas são as fotos de maiores dimensões, que retratam Fernando Maurício e a sua sobrinha Ana Maurício. Cada fotografia é acompanhada por uma inscrição com notas biográficas de cada retratado. Há fadistas de várias gerações, como os contemporâneos Mariza, que viveu na Mouraria, ou Ricardo Ribeiro, “mauriciano” confesso. Não é a primeira vez que Camilla Watson dá vida aos edifícios da Mouraria. Aliás, a fotógrafa faz das ruas e becos do bairro um território privilegiado de intervenção artística, aproveitando para homenagear os habitantes da Mouraria. Que o digam a D. Violeta, o sr. Carlos, o Zé António ou as dezenas de moradores já retratados e que resistem nas paredes desde 2009.

memórias

Mouraria da minha infância César Faustino Orgulhosamente oriundo da Mouraria, tenho constatado, com natural satisfação, que o prédio onde nasci, há quase 82 anos, na Rua Fernandes da Fonseca, 32, 2º andar, face ao Martim Moniz, continua, estoicamente, a resistir à fúria dos tempos – ao contrário, por exemplo, da demolida Igreja do Socorro, onde fui baptizado. Lembro-me de minha mãe contar que tinha confeccionado o meu primeiro enxoval à luz dos lampiões do popular, e também desaparecido, teatro Apolo, que ficava do outro lado da rua e a cujos bastidores amigos da família, que nele trabalhavam, me conduziam de vez em quando para observar partes de várias revistas, recebendo generosos carinhos e docinhos de artistas famosos, como Beatriz Costa, Vasco Santana, Mirita Casimiro, Estêvão Amarante, Irene Isidro, Teresa Gomes, Costinha ou os bailarinos Francis e Ruth, entre outros protagonistas daquele reino de fantasia que tanto me deslumbrava. Tinha eu uns 3 ou 4 anos… Outra inesquecível atracção, desfrutada da nossa varanda, eram os pregões dos vendedores e vendedeiras ambulantes, com os seus cestos e canastras de peixe fresco e bela fruta, que ecoavam na curta artéria, competindo com os cânticos dos afiadores de facas e navalhas e o ruído metálico dos “eléctricos” que, vindos da Rua da Palma, subiam a dos Cavaleiros. A minha primeira escola situava-se num primeiro andar da Rua do Benformoso e, graças aos cinquenta centavos que o meu pai me dava, embevecia-me, aos domingos, no excitante Salão Lisboa com os primeiros filmes a que assisti, os de Fred Astaire e Ginger Rogers, do Tyrone Power, do Errol Flyn e outras “estrelas” da época. Mudámos mais tarde para um apartamento maior, na Rua da Prata, quase à esquina da Praça da Figueira, cujo popularíssimo mercado, obra carismática do período do ferro, era uma espécie de lugar de convívio dos habitantes da zona. Em seu redor, vendiam gravatas os primeiros chineses que conheci, com os quais criei uma empatia pessoal ao ponto de, com o consentimento dos meus pais, eles me ensinarem a jogar majongue nos seus exíguos quartos alugados atrás do nosso prédio, na Rua dos Douradores, onde passei a frequentar a Escola de São Nicolau, tendo então por colegas alguns rapazes que viviam no Beco do Rosendo.

Tão perto da minha casa, tornaram-se obviamente assíduos os encontros naquele beco com os companheiros escolares, aos quais se juntava cada vez maior número de miúdos, entre os ali também residentes e outros das redondezas. E, claro, tinha que haver sempre futebol com bolas de trapos… Calorosas disputas num pavimento empedrado, duro e irregular, frequentemente interrompidas pela aproximação da polícia, da qual por vezes não lográvamos escapar – sendo levados à esquadra da Mouraria, onde permanecíamos retidos até os nossos irritados pais nos resgatarem… Alguns dos improvisados futebolistas tinham, de facto, grande jeito e um deles, o Inácio, até chegou a jogar na equipa principal do Belenenses.

A vida efémera do Rosendo Atlético Clube Estávamos nos primeiros anos da década de 40. Do espírito de união, solidariedade e idealismo cimentado entre amigos brotou a decisão de se fundar uma colectividade desportiva, a que, por minha proposta, foi atribuída a designação de Rosendo Atlético Clube, e da qual – contaminado pelo entusiasmo da rapaziada – foi generoso patrono o pai do nosso colega Manuel, o senhor Romão, que morava em frente do beco, no último prédio da Rua da Madalena, de esquina para o Poço do Borratém, e em cujo vão de escada possuía uma pequena retrosaria. O emblema tinha a forma de um escudeto triangular e o equipamento era composto por camisola branca com gola azul e calções também azuis, em grande parte costurado graciosamente por familiares dos sócios. Com as receitas provenientes de quotizações, sorteios e, sobretudo, de festas e arraiais – geralmente muito concorridos – conseguíamos alugar diferentes campos de terra batida para os jogos com outras agremiações bairristas. Mas, o Rosendo não se dedicava apenas ao pontapé na bola. Organizava também competições internas de saltos em comprimento e triplo salto, no próprio beco; jogos de damas ou xadrez, em casas de alguns sócios; bilhar ou pingue-pongue, em diversos locais da zona; e corridas pedestres, abertas a membros e populares, nas quais algumas vezes participei, com partida do Largo do Caldas, seguindo pelas ruas da Madalena, da Betesga, dos Fanqueiros e Conceição, voltando à

Madalena para subir até à meta, no ponto inicial. Infelizmente, o Rosendo Atlético Clube teve uma existência demasiado efémera – sem deixar história – previsivelmente encurtada pela natural evolução da maturidade e a inevitável dispersão dos seus associados por outras paragens, rumo à esperançada realização académica ou profissional – que para mim começou com uma breve experiência de praticante num pequeno escritório instalado na única divisão do terceiro andar de um encolhido prédio da Rua da Mouraria, mesmo em frente da Capela da Senhora da Saúde e, ironicamente, quase ao lado da esquadra policial de má recordação... Conservo absolutamente intacta, no entanto, a memória gratificante desses irrepetíveis tempos impregnados de ingenuidade e romantismo, que contribuíram para a modelação da nossa personalidade. Lá bem longe de Portugal – onde vivi e trabalhei durante três décadas e meia – escutar “Ai, Mouraria” ou “Há Festa na Mouraria” fazia sentir-me intensamente mais próxima essa lembrança inspiradora e tão profundamente sentimental… Quando, decorridos anos sem conta, retornei ao velho e hoje desconsoladamente degradado Beco do Rosendo – a fim de contactar pessoalmente a Associação Renovar a Mouraria, obra de raro amor, digna de todo o apoio – tornou-se-me impossível deter a emoção instantaneamente provocada pelo perpassar vertiginoso do filme mental das recordações da minha infância neste venerando bairro, tão humanamente rico e historicamente característico da minha querida Lisboa – no qual nasci, cresci, brinquei, estudei e desfrutei de tantas genuínas e estimulantes amizades. César Ferreira Faustino nasceu em Lisboa, na freguesia do Socorro, em 26 de Dezembro de 1930. Viveu 35 anos na Suécia, onde fundou e dirigiu o Centro de Turismo de Portugal para a Escandinávia e a primeira delegação comercial portuguesa nos países nórdicos – tendo sido, ainda, conselheiro de imprensa, adido comercial e de turismo das embaixadas de Portugal em Estocolmo e Helsínquia. Redactor do “Diário de Lisboa” e de “O Comércio do Porto” (Delegação de Lisboa), entre 1952 e 1961. Redactor e produtor da Rádio Nacional da Suécia (Secção Portuguesa), entre 1961 e 1972. É presidente da Assembleia Geral da Associação dos Jornalistas Portugueses de Turismo.


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