Jornal Rosa Maria n° 12, o jornal da Mouraria

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setembro’ 19 l maio’ 20 - semestral Associação Renovar a Mouraria www.renovaramouraria.pt directora l Inês Andrade distribuição gratuita

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n.º

a i r ó t e j a r t o ã a ç a a ç i e c Conh nos da Asso ia de 12 aar a Mourar Renov

O olhar para dentro e o cuidado como primazia em tempos de pandemia


Associa-te E participa ativamente na vida da Renovar a Mouraria, na construção da sua estratégia de intervenção e na mudança da vida daqueles que têm acesso aos nossos serviços ou participam de nossos projetos. Associar-se é uma forma de colaborar diretamente com a sustentabilidade deste projeto de desenvolvimento local e construção comunitária que completa 12 anos em meio a um momento sensível de pandemia global. O cancelamento das nossas principais atividades de rendimentos como o Arraial de Santo Antonio, eventos culturais, visitas guiadas e a loja Mouraria Composta colocou a nossa organização e equipa em uma situação financeira incerta e difícil. São tempos difíceis mas acreditamos que com a contribuição de todos é possível seguirmos na construção de uma comunidade mais justa e na qual todos e todas tenham as mesmas oportunidades e os mesmos deveres e direitos enquanto cidadãos.

ASSOCIA-TE E FAZ PARTE DESTA HISTÓRIA. Saiba mais em > www.renovaramouraria.pt/socios-e-amigos Ou através do email > geral@renovaramouraria.pt

Ilustração: Valentina Vargas (Chile) | @tinta_dulce

Direcção: Inês Andrade Direcção Gráfica: Hugo Henriques Edição editorial: Taiane Barroso Revisão: Carolina Ribeiro e João Correia Revisão em Inglês: Simone Jennifer Smith Tradução para Bengali: Nayem Hasan Tradução para Inglês: Taiane Barroso Ilustração: Carolina Elis, Hugo Henriques, Laura Penez, Nuno Saraiva, Rita Dias, Rodrigo Ribeiro e Valentina Vargas Fotografia: AcademiaCV.pt, Alexandre Abrantes, Bee_lx, CoolBRAVE.e7g (Portugal), Drag-se , Geraldo Monteiro, House of Didi, ISTAR contra a Covid-19, Loja da Mena, MenTalks, Nicole Sánchez, Queer Tropical e Sergio Pietro Textos: Alexandra Santos, Alexandre Abrantes ,Almudena Ferro, Ana Catarina Maia, Ana Salcedo, Aurelie Rosado, Camila Carrello, Carla Costa, Carla Luis, Carolina Ribeiro, Cigarra, Cristiano Figueiredo, Diego Cândido, Filipa Bolotinha, Flavio Gonçalves, Francisco Melo ,Geraldo Monteiro, Inês Andrade, João Correia, João Rosário, Jonatan Benebgui, Nathalia, Gaiarim Nayem Hasan, Nuno Gonçalves, Paula Cardoso, Raquel Silva, Ricardo Higuera, Taiane Barroso e Tita Maravilha Capa: Geraldo Monteiro Agradecimentos: Carolina Ribeiro, João Correia Propriedade: Associação Renovar a Mouraria Redacção e administração: Beco do Rosendo, n° 8, 1100-460 Lisboa, Tel.: +351218885203, Tlm.: +351922191892, rosamaria@renovaramouraria.pt Distribuição: Associação Renovar a Mouraria Versão digital: www.renovaramouraria.pt Tipos de letra: Atlantica, Lisboa e Tramuntana>Ricardo Santos Depósito legal: 310085/10 Periodicidade: Semestral Tiragem: Digital Número: doze,maio 2020 N° Registro ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social): 127232 O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade da Associação Renovar a Mouraria e não pode, em caso algum, ser considerado como expressão das posições da União Europeia.

co-financiado por:


Editorial

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Texto: Taiane Barroso (Brasil)

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Silêncio ROSA MARIA ESTATUTO EDITORIAL O ROSA MARIA é um jornal sobre as pessoas e os acontecimentos da Mouraria, mas também sobre assuntos nacionais e internacionais relacionados com os seus residentes, criado para preservar e divulgar o seu imenso património humano, histórico e cultural. O ROSA MARIA é um jornal comunitário produzido por todos os que queiram participar (jornalistas, fotógrafos, ilustradores, designers gráficos, voluntários e moradores ou trabalhadores do bairro) e que se pautem pelos princípios da solidariedade, do rigor e da qualidade. O ROSA MARIA é parte integrante da comunidade em que se insere, mas totalmente comprometido com o código deontológico que enquadra o exercício da liberdade de imprensa e independente de facções religiosas, políticas e económicas. O ROSA MARIA é editado pela Associação Renovar a Mouraria desde 2010, com periodicidade semestral. O seu nome é inspirado na mítica Rosa Maria imortalizada no fado Há Festa na Mouraria – uma mulher atrevida e virtuosa, como esta publicação. A utilização do Acordo Ortográfico é deixada ao critério de cada redactor.

“[...] estado de quem se abstém ou para de falar; cessação de som ou ruído, interrupção de correspondência ou de comunicação; sossego, quietude, calma.” O que haverá de comum entre a folha branca que antecede esta escrita e as ruas vazias pelo mundo? O silêncio. Lançamos este jornal em meio a uma pandemia mundial. Cancelamos, adiamos e ajustamos os nossos compromissos, os nossos trabalhos, os planos, as nossas viagens e também o nosso afago, os beijos e as festinhas. O Covid-19 é um vírus que nos tira tudo aquilo que é gratuito e fundamental para a nossa existência: o ar, o abraço, o outro. É bem verdade que justamente dez anos depois do lançamento da edição de número zero, este é o primeiro Rosa Maria que não leva rostos à capa. Também é o que mais leva rostos dentro. Estamos todos recolhidos, a cuidar de nós e dos outros. Em um curto espaço de tempo aprendemos sobre a nossa capacidade de adaptabilidade e interdependência. Aprendemos sobre as mazelas de um sistema que se assenta na desigualdade, em que um direito básico - o de ter uma casa - é um privilégio de poucos. E assim há menos ruído, porque há menos carros, menos vôos, menos pessoas na rua. E o que era inimaginável começa a acontecer, a natureza se recupera. O ar está menos poluído, as emissões de carbono baixaram drasticamente, as águas de rios e canais estão limpas. Entramos em uma grande pausa, coletivamente. Nunca iremos esquecer que nós completamos 12 anos de Renovar a Mouraria frente a declaração de um Estado de Emergência. Será a primeira vez na nossa história que não iremos realizar o nosso tradicional arraial de Santo Antônio, tão importante para a manutenção das nossas atividades. Nossos dias quentes de verão, a celebrar, abraçar e encontrar os nossos e a tomar uma imperial ao som de músicas do mundo terão também de ser adiados. Nunca iremos esquecer deste 25 de Abril em que não descemos a Av. da Liberdade mas sim celebramos desde as nossas janelas, num lindo coro a cantar Grândola Vila Morena, que ecoava pelas ruas vazias de Lisboa e adentrava as nossas casas como uma brisa que mais parecia um abraço enviado pelos vizinhos. E aqui temos esta Rosa Maria, voz de tantos sotaques, a falar de silêncio, recolhimento e reconhecimento. Falamos da diversidade, do respeito e das tantas possibilidades que temos aprendido diariamente a ser. Falamos sobre amor, sobre relações, sobre união e sobre não sabermos o dia de amanhã. Sobre o sistema complexo de identidades, culturas, quereres e sonhos que nos atravessam. Falamos da complexidade da nossa (re)existência. Já aprendemos que podemos nos transformar. E este jornal é sobre silêncio, mas também é sobre mudança. E para terminar este editorial, a editora que vos escreve também vem despedir-se desta posição, deste projeto, mas nunca dessa querida Rosa Maria. Como diria meu amigo Chico, “amanhã vai ser outro dia”. E vai sim. À todos aqueles que colaboraram nas últimas três edições do nosso Rosa Maria, àqueles que aqui chegaram muito antes e que nos permitiram estar aqui agora, àqueles que colaboraram e aqueles que se tornaram família, o meu mais profundo agradecimento e o meu até breve. Com amor e beleza, muito obrigada, axé. Tai Barroso


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matéria da capa

Texto: João Correia (Portugal) Fotografias: Loja da Mena (Portugal), ISTAR contra a Covid-19 (Portugal), CoolBRAVE.e7g (Portugal)

O Cuidar Tomou Primazia O estado de interrupção em que o país vive deixou muitas pessoas desprotegidas. Mais do que apoio do Estado, elas contam agora com a ajuda de outras pessoas, às vezes familiares, outras vezes vizinhos, outras desconhecidos. Fechada em casa, a sociedade olha para dentro. E mostra como se enfrenta uma pandemia com uma onda de amor colectivo como nunca tínhamos visto

Ainda nem um quarto deste século passou e já sabemos que ele ficará para sempre marcado por uma doença que faz da ironia um dos seus recursos. É uma doença que não põe familiares e amigos no leito dos doentes. Pelo contrário, exige que todos se afastem. Saudáveis ou doentes, entre as pessoas não pode haver toque, não pode haver abraço, muito menos beijo. Descobrem-se outras formas de comunicar: familiares que se encontram na rua, a dois metros de distância uns dos outros, para cantar os parabéns de cabeça levantada na direção do céu, esperando o aniversariante assomar à janela em agradecimento. Carteiros e estafetas que deixam as encomendas nos tapetes à entrada dos prédios. E videochamadas, muitas videochamadas. Há quem diga que o distanciamento, pelo menos simbólico, era já uma marca do nosso tempo, em que o movimento de desglobalização e nacionalismos vários servem de exemplo. Mas haverá algo mais irónico do que uma doença global que torna esse isolamento físico e obrigatório?

Nem tudo deve ser visto pela lupa da aflição, no entanto. A Covid-19 teve alguns méritos ou, pelo menos, serviu para mostrar os nossos. Até aqui era o amor romântico que ocupava os cabeçalhos, que animava as novelas e as conversas de café. Quando não era a paixão entre um casal, era o amor maternal, familiar. Mas agora sobrepõe-se uma onda de amor colectivo sem paralelo. Importa-se um mantra celebrizado no Brasil — “ninguém solta a mão de ninguém” — para uma adaptação que diz que “ninguém fica para trás”. Não cabe nestas linhas nem um décimo das iniciativas que saíram da sociedade civil para fazer face à Covid-19, em todas as áreas, da saúde à educação, passando pela mobilidade e alimentação. São pessoas a ajudar pessoas, sabendo que o contágio é um perigo, mas que a indiferença é o maior dos males. Talvez esta seja a doença que melhor define o nosso tempo.

grande máscara carnavalesca, que permite tapar da cabeça até ao peito, com uma pequena abertura para nariz, olhos e boca. Seguiram-se as perneiras, que são como botas de cano alto, que protegem a perna até ao joelho. A ideia foi passando de e-mail em e-mail, de boca em boca, entre médicos que conheciam outras costureiras e costureiras que viviam perto de outros hospitais. Juntou-se uma empresa de tecidos, a “Nomalism”, que voluntariamente ajuda a encontrar material, a fazer os cortes à máquina (bem mais rápidos do que à mão) e que agora coordena o projeto a nível nacional. E juntou-se também uma transportadora, a Nabais, que se oferece para levar o tecido (que é TNT, de 70 gramas) desde as fábricas até às mãos das costureiras. São elas que depois transformam aquele tecido cortado em peças de proteção para os hospitais, que agradeceram e acolheram a ideia.

SAÚDE Filomena Silva nunca tinha ouvido falar em cógulas. É costureira há vários anos, já fez um pouco de tudo e tem um bazar com diminutivo próprio — a “Loja da Mena”. Mas cógulas nunca lhe tinham passado pelos dedos. No fim de março, recebeu um telefonema de uma médica do Hospital Fernando Fonseca, o antigo Amadora Sintra, a perguntar-lhe se podia criar o molde para um desses objectos. A médica era a anestesista Ângela Ferreira, que tinha visto um colega equipado com uma cógula e quis espalhar a ideia pelo hospital, para que médicos, enfermeiros e auxiliares andassem mais protegidos do contágio. Enviou uma fotografia a Mena. “Eu só percebi que aquilo servia para tapar a cabeça e o pescoço”, conta a costureira. “Então fui experimentando na cabeça do meu marido e improvisei um molde.” Estava feito o primeiro modelo de uma cógula. Mena ainda não sabia, mas aquela proteção havia de espalhar-se pelos hospitais do país inteiro. Juntamente com o marido, Ângela Ferreira criou um e-mail a mostrar como fazer e usar a cógula, uma peça que se enfia pela cabeça como se fosse uma

Um mês depois do primeiro telefonema entre Ângela e Mena, já estão mais de 600 pessoas a trabalhar num projeto sem nome e com vários rostos. Há 43 grupos de costureiras pelo país, ilhas incluídas. Só Mena convidou 25 costureiras, algumas profissionais, outras de fim de semana. “Quando vemos as fotografias dos médicos [com as peças] no Facebook, ficamos todas contentes”, conta-nos ao telefone. “Já fizemos umas 1.300 cógulas e uns 290 pares de perneiras, 500 e tal peças. Há quem faça 100 peças de cada vez, quem faça 20, outras fazem 40.”

ABRIGO Uma das mitologias que nasceu com o início da pandemia da Covid-19 foi a de que ela seria democrática. Em Portugal, a segunda pessoa a morrer da doença foi um banqueiro — António Vieira Monteiro, presidente do Santander desde 2019 e CEO entre 2012 e 2018 —, o que adensou o mito. Como as semanas seguintes esclareceram, o novo coronavírus não é democrático. O contágio até pode passar para qualquer pessoa, mas a forma de lidar com o seu espectro depende muito do ponto de partida. É por isso que quarentena, antes de sacrifício, é luxo. Em Vila Nova de Gaia, região Norte do país, existe desde 1983 um Parque Biológico de 35 hectares que, além de auditório, salas de exposições, posto de venda, bar e esplanada, tem 12 quartos com condições de alojamento de qualidade: todos têm WC privativo e todos dão direito a usar os 3 km de circuito fechado do parque. Enquanto durar a pandemia, a Câmara Municipal da


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cidade decidiu que esse alojamento seria um “Hotel Positivo”. É positivo em dois sentidos: por um lado, porque dá casa a quem não a tem; e por outro, é destinada a pessoas que tiveram testes positivos à Covid-19.

Do outro lado da barricada, estão os médicos, enfermeiros, auxiliares de saúde, bombeiros. Com maior risco de contágio, alguns evitam ir à casa, onde estão os filhos, pais, avós. Foi por eles que Pedro Castro, fundador da ISTAS HAL, uma empresa de hotelaria ao ar livre, lançou o “ISTAR contra a Covid-19”, que reuniu dezenas de caravanas para estes profissionais descansarem ou, se precisarem, passarem as noites. Uma delas vinha com desenhos infantis, que o dono da caravana pediu aos filhos que fizessem, para que a noite dos profissionais não fosse só de descanso, mas de esperança.

MOBILIDADE No princípio eram os bilhetes. “Caras Vizinhas (os), Tendo em conta que o contágio é mais perigoso em pessoas com mais de 65 anos, disponibilizo-me a ir ao supermercado ou à farmácia, caso necessitem. Assinado: o vosso vizinho do 2º Esquerdo”. Noutro prédio, mensagem semelhante, com um acrescento. “Ninguém é uma ilha. Atenciosamente, Inês, a vizinha do 2º direito”.

Vizinhos Amigos

Como é sabido, muitos doentes não precisam de internamento hospitalar, pelo que a recomendação é que fiquem em casa. Mas muitos não têm casa, ou as condições não garantem uma recuperação adequada. No “Hotel Positivo”, cada utente tem um termómetro, uma máscara cirúrgica e folhetos informativos. E se esta ideia é da autarquia, a verdade é que a sociedade responde da mesma maneira: o Largo Residências, no Intendente, em Lisboa, está a acolher imigrantes infectados com Covid-19. Habituados a abrir residências artísticas, os responsáveis da associação SOU perceberam que os quartos vazios poderiam ser úteis.

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nº de dias

Mensagens como essas encontram-se aos milhares no “Vizinho Amigo”, um projecto sem fins lucrativos que nasceu da cabeça de Martim Ferreira, de 20 anos, numa conversa de Whatsapp com amigos. A partir daí, o grupo usou essa e outras redes sociais, como o Facebook e o Instagram, para chegar mais longe. E ao fim de um mês, os “vizinhos” são já aos milhares: há cinco mil voluntários a distribuir ajuda a grupos de risco e foram feitas parcerias com 15 juntas de freguesia, de Benfica, em Lisboa, a Tavira, no Algarve.

ALIMENTAÇÃO Mais uma vez, numa pandemia não há democracia. O Estado concede apoios, mas nem todos conseguem chegar-lhes. Luísa Sargento é coordenadora do projeto CoolBRAVE.e7g, no bairro da Estrada Militar, no Alto da Damaia, um dos bairros da Amadora em vias de ser demolido. “Nas primeiras semanas da quarentena, percebi que algumas famílias iam ficar sem emprego ou já estavam desempregadas”, conta. A população do bairro é de maioria afrodescendente e os empregos precários são mais regra do que exceção. “Muitos não têm rendimento declarado, por isso não podem recorrer aos apoios da segurança social. E as respostas do município não chegam, de todo, para a procura e necessidades da população”, explica a coordenadora, que decidiu, a partir de uma conversa com uma das “líderes positivas” do bairro, lançar um apelo. Usou o Instagram para o fazer e em pouco tempo a mensagem estava espalhada. O resultado foi um recorde. “Conseguimos apoio para 37 famílias, com agregados de duas a sete pessoas”, contabiliza Luísa Sargento. Os donativos vieram na forma de dinheiro que a própria ajudou a transformar em alimentos: arroz, massa, vários tipos de feijão, atum, salsichas, farinha, cereais,

óleo, azeite, batata, cebola, gel de banho e de mãos, fraldas para quem tem filhos. “Demos consoante o agregado”, explica. E se as questões financeiras são agora o principal problema no bairro, já que as demolições estão paradas enquanto durar a pandemia, o medo ainda se esconde nas esquinas. “Houve situações de pessoas com medo que as crianças fossem buscar a comida que a escola oferece”, confessa Luísa. O futuro é incerto — “estamos a funcionar um dia de cada vez” —, mas a história serve para lembrar que não só de apoios em larga escala o país agora precisa. Numa altura como esta, é preciso voltar ao início e repetir: “ninguém fica para trás”.


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Texto: Aurelie Rosado (Portugal)

Ser estrangeiro em Portugal em tempos de Covid-19 Perante a actual situação epidemiológica mundial, o governo português tem adotado diversas medidas excepcionais e temporárias no sentido de proteger os cidadãos que se encontram em Portugal. Nesse sentido, foi publicado o Despacho n.º 3863-B/2020, de 27/03/2020, que vem determinar que os cidadãos estrangeiros que se encontram com processos pendentes no SEF à data da declaração do estado de emergência, ou seja até ao dia 18 de Março, se encontram em situação regular.

3. Que documentos podem comprovar a minha situação regularizada em Portugal? a) Dei entrada a uma manifestação de interesse no sistema automático de pré agendamento [SAPA] do SEF ao abrigo dos art.ºs 88 e 89, da Lei n.º 23/2007: O SAPA tem agora uma nova funcionalidade que permite aos cidadãos estrangeiros a emissão e consulta de um certificado de registo dos seus processos, que serve de comprovativo da sua situação de pendência perante o SEF. b) Tenho outro pedido de concessão ou renovação de autorização de residência pendente no SEF, seja ao abrigo do regime geral como dos regimes excepcionais: Nestas situações, o email com o agendamento da marcação ou o recibo da entrada do pedido no SEF servem de comprovativo de pendência dos mesmos.

Nesta edição, decidimos expandir a nossa rubrica de forma a melhor transmitirmos aos nossos leitores alguns esclarecimentos sobre as medidas que estão a ser adoptadas, os direitos que as mesmas vêm atribuir, bem como partilhar algumas informações para os cidadãos que não foram contemplados. Esperamos que estas informações possam ajudar neste pe- 4. O que acontece ao meu processo que se encontra pendente no SEF? ríodo tão difícil em que vivemos em consequência da pandeOs cidadãos estrangeiros abrangidos pelo Despacho somente são mia provocada pelo novo Coronavírus.

1. O meu título de residência caducou após o dia 24 de fevereiro. O que devo fazer?

considerados em situação regular até ao dia 30/06/2020. Não será emitido qualquer título de residência durante este período e os respectivos processos pendentes serão sempre analisados pelo SEF. Assim que, é importante continuar a assegurar o preenchimento das condições e obtenção dos documentos necessários para a boa continuidade do seu processo.

No entanto, tendo sido temporariamente suspensos os atendimentos presenciais, os cidadãos que tinham uma marcação De acordo com o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, todos os vistos e agendada serão oportunamente contactados pelo SEF para prodocumentos relativos à permanência de cidadãos estrangeiros ceder ao seu reagendamento, que poderá ter lugar a partir de em Portugal, caducados após 24/02/2020, são considerados váli- 01/07/2020. dos até ao dia 30/06/2020, não necessitando assim de proceder para já à sua renovação. Entre estes documentos, se encontram igualmente abrangidos as certidões e certificados emitidos pelos 5. Quais são os direitos a que tenho acesso com esta medida? serviços de registos de identificação civil e criminal. Os cidadãos estrangeiros nestas circunstâncias podem, entre ou-

tros, obter o número de utente, aceder ao Serviço Nacional de 2. Como posso saber se fui abrangido pelo referido Despacho Saúde [SNS] e outros serviços de assistência médica, inscrever-se no Instituto de Emprego e Formação Profissional [IEFP], aceder a e estou em situação regular? prestações sociais de apoio, celebrar contratos de trabalho e de O Despacho n.º 3863-B/2020 contempla todos os cidadãos estran- arrendamento, abrir uma conta bancária e contratar serviços púgeiros com processos pendentes no SEF até 18/03/20. Assim que, blicos essenciais. caso tenha: (i) uma manifestação de interesse [MI] no SAPA, (ii) uma marcação agendada ou (iii) um pedido já apresentado a aguardar de6. Como posso obter o meu número de utente? cisão por parte do SEF, estará abrangido por esta medida. Por sua vez, não estão abrangidos os cidadãos estrangeiros que Pode efectuar o seu pedido junto às Unidades de Saúde e/ou não deram entrada a qualquer pedido até à referida data nem os Administração Regional de Saúde, presencialmente ou por email, acompanhado de cópia do seu documento de identificação bem familiares de cidadãos da União Europeia. como do comprovativo da pendência do seu processo no SEF.


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7. Quais são os apoios sociais a que tenho direito?

10. Estou em situação irregular e acho que posso estar infecTem direito a todos os apoios sociais cujo acesso lhe era vedado tado por Covid-19. O que posso fazer para ter acesso a cuidapor não ter residência nos termos legais, como seja ao subsídio de dos de saúde? desemprego, ao abono de família pré-natal, para crianças e jovens De acordo com o Despacho n.º 25360/2001, perante a necessie a protecção jurídica. dade de cuidados urgentes e vitais, como na verificação de uma Alertamos contudo para o facto de tais direitos estarem depen- doença transmissível que represente perigo ou ameaça para a dentes da verificação de outras condições, cuja informação pode- saúde pública, os cidadãos estrangeiros em situação irregular têm rá obter junto à Segurança Social, através da sua linha telefónica acesso a cuidados de saúde, com isenção do pagamento das taxas 300 502 502, da Segurança Social Directa ou dos diversos guias moderadoras, desde que, para o efeito, apresentem um atestado de residência emitido pela sua Junta de Freguesia a comprovar práticos constantes da sua página de internet. que se encontram em território nacional há mais de 90 dias. Poderá ainda obter, através destes meios, informação sobre as medidas de apoio excepcionais que foram criadas para fazer face Conforme informação da Direção-Geral da Saúde, os cidadãos estrangeiros que não estão inscritos num centro de saúde deverão ao Covid-19. contactar o SNS24, por telefone, através do 808 24 24 24, ou para o seguinte email atendimento@sns24.gov.pt, mesmo que não 8. Até quando serão assegurados os direitos concedidos pelo seja por suspeita de Covid-19. Despacho? A linha SNS24 é dedicada a todos os esclarecimentos e encamiOs referidos direitos mantêm-se desde 27/03/2020 até ao dia nhamentos de saúde. 30/06/2020. Assim que, no âmbito da saúde, caso não venha a apresentar um 11. O meu senhorio opôs-se à renovação do meu contrato de título de residência válido ou um documento que comprove que o arrendamento e não tenho nenhuma habitação alternativa seu pedido tenha sido aprovado pelo SEF, o seu número de utente para onde ir. O que posso fazer? será inativado após um processo de reavaliação a 01/07/2020. Até à cessação das medidas de resposta à situação epidemiológiNo que respeita à sua inscrição no IEFP, a mesma mantém-se até ca provocada pelo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19 à decisão final do seu processo no SEF, devendo, contudo, no pra- fica suspensa a produção de efeitos das denúncias de contratos zo de 8 dias úteis após a emissão do seu título de residência, apre- de arrendamento habitacional, como não habitacional, efetuadas sentar o respectivo documento no IEFP. Por sua vez, caso o seu pelo senhorio. O que significa que, mesmo tendo o senhorio posto pedido de residência seja indeferido, a sua inscrição será anulada. fim ao contrato, pode, durante este período, ficar na sua actual Quanto ao subsídio de desemprego, caso tenha apresentado o habitação, pagando a respectiva renda mensal. seu pedido no decurso do período indicado e o mesmo tenha sido A Lei n.º 1-A/2020, de 18/03/2020, veio igualmente suspender deferido, continuará a receber este apoio pelo número de dias/ as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os meses a que teria direito caso tivesse uma autorização de resi- processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o ardência em Portugal. rendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser Importa ainda referir que se encontra habilitado ao exercício de colocado em situação de fragilidade por falta de habitação próactividade profissional até à conclusão do seu processo junto ao pria. SEF, sendo válido, para estes efeitos, os documentos referidos no Aproveitamos igualmente para informar que, a Lei n.º 4-C/2020, ponto 3 acima. Isto, se o processo que se encontra pendente no de 06/04, veio definir um regime excecional para as situações SEF permite o exercício de tal actividade profissional. de dificuldade no pagamento de rendas devidas a partir de 01/04/2020 e até ao mês subsequente ao termo do estado de emergência. 9. Não fui contemplado pelo Despacho. O que posso fazer Aconselhamos assim a entrar em contacto com o seu senhorio ou para iniciar o meu procedimento junto ao SEF? advogado com vista a assegurar os seus direitos durante este peCaso pretenda requerer uma autorização de residência para o ríodo. exercício de uma actividade profissional, poderá sempre iniciar o competente procedimento via SAPA. Por sua vez, caso necessite de uma marcação para iniciar o mesmo, deverá aguardar a evolução da situação, já que, enquanto durar o estado de emergência nacional, o SEF só pode proceder ao agendamento de atendimentos presenciais urgentes, nomeadamente para cidadãos a quem tenham sido furtados, roubados ou Fontes: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras [SEF], Segurança Social, Direção-Geral da Saúde [DGS], Instituto do Emprego e Formação Profissional extraviados os documentos. [IEFP] e Alto Comissariado para as Migrações [ACM]


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Texto: Aurelie Rosado (Portugal)

Being a foreigner in Portugal in Covid-19 times In view of the current worldwide epidemiological situation, 3. What documents can prove my regularized situation in the Portuguese government has adopted several exceptional Portugal? and temporary measures to protect citizens in Portugal. a) I submitted an expression of interest (manifestação de interesse) In this sense, Order No. 3863-B / 2020, of 27/03/2020, was published, which determines that foreign citizens who are pending cases in SEF at the date of the declaration of the state of emergency, that is, until on March 18, are in a regular situation. In this edition, we decided to expand our rubric in order to better convey to our readers some clarifications about the measures that are being adopted, the rights that they come to attribute, as well as to share some information for the citizens that were not contemplated. We hope that this information can help in this very difficult period in which we live as a result of the pandemic caused by the new Coronavirus.

in the SEF automatic pre-scheduling system [SAPA] under Articles 88 and 89, of Law No. 23/2007:

SAPA now has a new feature that allows foreign citizens to issue and consult a registration certificate for their processes, which serves as proof of their pending situation before the SEF. b) I have another application for the grant or renewal of a residence permit pending at SEF, either under the general regime or under the exceptional regimes: In these situations, the email with the appointment scheduling or the receipt of the order entry at SEF serves as proof of their pending status.

4. What happens to my process that is pending at SEF? Foreign citizens covered by the Order are only considered to be 1. My residence permit expired after February 24th. What in regular situation until 30/6/2020. No residence permit will be should I do? issued during this period and the respective pending cases will alAccording to Decree-Law no. 10-A / 2020, all visas and documents ways be analyzed by SEF. So, it is important to continue to ensure related to the stay of foreign citizens in Portugal, which have ex- that the conditions are met and that the necessary documents are pired after 24/2/2020, are considered valid until 30/6/2020, thus obtained for the proper continuity of your process. not needing to proceed with its renewal for now. These documents also include certificates and certificates issued by the civil However, having temporarily suspended face-to-face assistance, citizens who had an appointment scheduled will be contacted by and criminal identification registration services. the SEF to reschedule it, which may take place from 01/07/2020. 2. How can I find out if I have been covered by the Order and 5. What rights do I have with this measure? am in good standing? Order No. 3863-B / 2020 contemplates all foreign citizens with Foreign citizens in these circumstances can, among others, processes pending at SEF until 18/03/2020. So, if you have: (i) obtain the health user number, access the National Health an “expression of interest” or manifestação de interesse [MI] at Service [SNS] and other medical assistance services, register with the SAPA, (ii) a scheduled appointment or (iii) an application already Employment and Vocational Training Institute [IEFP], access submitted pending a decision by SEF, you will be covered by this social benefits support, enter into employment and lease contracts, open a bank account and hire essential public services. measure. On the other side, foreign citizens who have not submitted an application until that date, nor the relatives of European Union citi- 6. How can I get my health user number? zens, are not covered. You can place your order with the Health Units and / or Regional Health Administration, in person or by email, accompanied by a copy of your identification document as well as proof of the pending process in SEF.


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7. What are the social supports to which I am entitled?

10. I am in an irregular situation and I think I may be infected You have the right to all social supports whose access was for- with Covid-19. What can I do to access health care? bidden because you were not resident under legal terms, such as According to Order No. 25360/2001, in view of the need for urunemployment benefits, prenatal family allowances, for children gent and vital care, as in the verification of a communicable disand young people and legal protection. ease that represents a danger or threat to public health, foreign citizens in an irregular situation have access to health care , with However, we alert you to the fact that such rights are dependent exemption from the payment of moderator fees, provided that, on the verification of other conditions, the information of which for this purpose, they present a residence certificate issued by you can obtain from Segurança Social, through their telephone their Junta de Freguesia to prove that they have been in Portugal line 300 502 502, from Segurança Social Direta or from the vari- for more than 90 days. ous practical guides on its website. According to information from the Directorate-General for Health, You will also be able to obtain, through these means, information foreign citizens who are not registered at a health center should about the exceptional support measures that were created to contact the SNS24, by telephone, through 808 24 24 24, or to the face Covid-19. following email atendimento@sns24.gov.pt, even if no suspected to be infected by Covid-19. The SNS24 line is dedicated to all health clarifications and refer8. Until when will the rights granted by the Order are guaranrals. teed? These rights are maintained from 27/3/2020 until 30/6/2020. Be aware that, in the area of health, if you do not present a valid residence permit or a document that proves that your application has been approved by SEF, your user number will be inactivated after a revaluation process on 1/7/2020. With regard to your registration with the IEFP, it remains until the final decision of your process at SEF, however, within 8 working days after the issue of your residence permit, submit the respective document at the IEFP. In case your residency application is rejected, your registration will be canceled. As for the unemployment benefit, if you have submitted your application during the period indicated and it has been granted, you will continue to receive this support for the number of days/ months you would be entitled to if you had a residence permit in Portugal. It is also important to mention that you are qualified to exercise professional activity until the conclusion of his process with SEF, being valid, for these purposes, the documents referred to in point 3 above. That is, if the process that is pending at SEF allows the exercise of such professional activity.

11. My landlord has opposed renewing my lease and I have no alternative home to go to. What can I do? Until the end of the measures to respond to the epidemiological situation caused by the Coronavirus SARS-CoV-2 and the Covid-19 disease, the landlord’s effects of denouncing housing lease agreements, as non-housing, are suspended. This means that, even if the landlord has terminated the contract, you can, during this period, stay in your current home, paying the respective monthly rent. The law No. 1-A/2020, of 18/3/2020, also suspended eviction actions, special eviction procedures and processes for the delivery of leased property, when the lessee, under the judicial decision final to be delivered, may be placed in a situation of fragility due to lack of housing. We also take the opportunity to inform you that Law No. 4-C / 2020, of 6/4/2020, came to define an exceptional regime for situations of difficulty in the payment of rents due from 01/04/2020 and until the following month of the end of the state of emergency. We therefore advise you to contact your landlord or lawyer in order to ensure your rights during this period.

9. I was not covered by the Order. What can I do to start my procedure with SEF? If you want to apply for a residence permit for the exercise of a professional activity, you can always start the competent procedure via SAPA. On the other hand, if you need an appointment to start the application, you must wait for the evolution of the situation, since, while the state of national emergency lasts, SEF can only schedule urgent face-to-face appointments, namely for citizens to whom their documents have been stolen or lost.

Resources: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras [SEF], Segurança Social, Direção-Geral da Saúde [DGS], Instituto do Emprego e Formação Profissional [IEFP] e Alto Comissariado para as Migrações [ACM]


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Rosa Maria n.º 12 maio ‘20

reportagem

Texto e Fotografia: Geraldo Monteiro (Brasil)

VIDA DE DENTRO

Passear pela Mouraria é sentir um estímulo aos sentidos: dos cheiros dos restaurantes de todos os cantos do mundo, das roupas lavadas, dos sons de diferentes idiomas e das cores vivas misturadas aos tons pastéis dos prédios. Na primeira vez que fui à área senti o seu valor histórico e toda a diversidade que as diferentes etnias trazem pra região, o que fez da Mouraria um lugar único para mim. Numa caminhada durante a quarentena, as ruas, naturalmente, estão mais vazias, mas a vida do local, mesmo que reclusa, se faz presente de outra forma. As pessoas que ali moram mantêm as atividades domésticas, entre elas lavar roupas, que quando são penduradas, mostram presença humana em cada janela.


Rosa Maria n.º 12 maio ’20

PRA FORA

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crónica

Rosa Maria n.º 12 maio ’20

Texto: Carolina Ribeiro (Brasil) Fotografia: José Sena Goulao (Portugal) | Agência Lusa

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O lugar certo na hora certa Uma volta pelo Centro Histórico de Lisboa banhada pela brisa do Tejo “Olá, humanidade!”, cumprimenta uma faixa com a frase em letras maiúsculas, estendida na fachada do Teatro Dona Maria. Nos três degraus da escada, à porta da instituição, há quatro pessoas sentadas e um cachorro a se atirar nelas. Os cinco bancos da Praça do Rossio estão igualmente ocupados. Desde 1890 instalada ali, avisa um letreiro, a pastelaria Café Gelo tem as portas fechadas – assim como quase todos os estabelecimentos vizinhos, à exceção de uma farmácia. Repousam sobre a calçada em frente um esqueleto de ferro que futuramente (quando?) terá o corpo de um andaime. A cada dúzia de passos, há uma nova pilha de mesas e cadeiras nas agora invisíveis esplanadas de restaurantes. Na outra ponta da praça, um papel colado na montra da Feira dos Tecidos sinaliza: “100% algodão para máscaras”. Do lado de fora, um senhor tenta se comunicar com o funcionário mascarado da loja para comprar um pedaço de pano. Será para fazer a sua? Enfileiro perguntas, escrevo histórias imaginárias, registro “foto-anotações” e recupero o passo apertado da caminhada de 15 quilômetros. Na pele de repórter, sinto-me autorizada a decifrar o que desliza sobre cada pedra portuguesa do centro histórico de Lisboa. Há 44 dias quase sem pisar fora de casa – com escassas idas ao mercado e esporádicas corridas –, é a primeira vez que respiro a brisa do Rio Tejo. O vento bagunça os cabelos na mesma velocidade em que refresca as ideias.

notícias

Texto e Fotografia: Almudena Ferro (Espanha)

A Academia CV.pt não é bem uma “academia”, mas sim uma metodologia que pretende, como o seu próprio nome diz, “Capacitar e Valorizar em Português”. Surge como uma resposta às necessidades apresentadas na integração de crianças e jovens migrantes no sistema de ensino em Portugal. A Academia CV.pt nasce no ano 2016 como um projeto da Fundação Cidade de Lisboa, instituição de direito privado e de utilidade pública, com 30 anos de experiência em intervenção social, situada

Homem a percorrer solitário a Avenida da Liberdade no dia 25 de Abril

Enquanto gaivotas brincam de estátua no céu, vejo uma rapariga com os pés dentro d’água. Outra, deitada na grama de biquíni sente o sol encostar na pele. Um casal segura copos de imperial ao ar livre. Um grupo de franceses joga bocha. Pego emprestada cada pequena sensação alheia em troca de sorrisos – com o olhar, não com a boca. Consigo enxergar beleza na assombrosa insegurança que acompanha a pandemia. A Avenida da Liberdade nunca fez tanto sentido. O vazio é preenchido por um túnel arqueado de árvores verdejantes. Às vésperas do 25 de abril, quatro homens com camisas de um partido político amarram cravos de plástico em cada um dos postes. Um torcedor do Flamengo atravessa a rua sem olhar para os lados diante da ensurdecedora ausência de carros. Uma senhora empurra um carrinho de bebê em câmera lenta, enquanto toca o ecrã do celular. O relógio gira noutro tempo. Chego em casa de noite achando que é dia, enganada pela proeza do sol em se esconder mais tarde nestes dias metaforicamente escuros.

Mais de quatro anos a apoiar a integração de crianças migrantes em Lisboa no Campo Grande. No ano de 2018 junta-se a Associação Renovar a Mouraria, com o intuito de levar a intervenção a outros territórios no centro histórico da cidade. O projeto já interveio nos Agrupamentos de Escolas de Alvalade, Gil Vicente e Patrício Prazeres e conta com parceiros imprescindíveis como a Câmara Municipal de Lisboa, a Junta de Freguesia da Penha de França e a de São Vicente, a Associação de Pais Rosa Lobato Faria, e a LEN2TE – Núcleo Laboratorial Teórico, Empírico, Neutro e Elementar. O objetivo do projeto é contribuir para o desenvolvimento psicossocial, académico e cívico e para a integração dos alunos migrantes do concelho de Lisboa em situação de vulnerabilidade. Para o qual, conta com atividades como capacitar uma rede de voluntários, que realizam sessões de apoio escolar e socioeducativo - tutorias para desenvolvimento de competências em língua portuguesa. Também existem ações de apoio ao envolvimento parental, momentos chave para a integração dos filhos/as; e

dinamizam-se atividades de re­ flexão-ação para interculturalidade e cidadania: atividades e ofi­ cinas com as turmas dos alunos apoiados; tudo se complementa com um centro de recursos físico e também online (https://academia-cv.pt/). A Academia CV.pt apresenta caraterísticas inovadoras, como uma abordagem individualizada que oferece respostas ajustadas às necessidades das crianças; o voluntariado de competência intergeracional (com voluntários desde os 18 aos 70 anos); uma intervenção integrada crianças-famílias-escola; o uso de metodologias ativas e participativas e o desenvolvimento integrado de competências linguísticas. A Academia CV.pt continuará a trabalhar em prol da integração de crianças migrantes na sua comunidade de acolhimento, usando as ferramentas que têm ao seu alcance para chegar aos mais vulneráveis, e continuar o seu trabalho de promoção da interculturalidade. Porque um sorriso sempre pode superar a barreira da língua.


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Texto: Alexandra Santos (Portugal) Ilustração: Rodrigo Ribeiro (Brasil) | @rod_lx

Dicionário

de questões de género Desigualdade de género > é relativa à diferença entre as Orientação afetiva-sexual > é definida pela

taxas masculina e feminina dentro de uma variável, e calcula-se subtraindo a taxa feminina à taxa masculina. Ou seja, quanto menor for o índice de disparidade entre homens e mulheres em qualquer contexto, mais perto ficamos da igualdade.

Expressão de género > é a forma como nos apresentamos e

nos mostramos ao mundo exterior, ou seja, como somos lidos pelos outros. Inclui, roupas e acessórios, maneirismos, penteados e etc. É a forma de apresentação, aspeto físico, gostos e atitudes de uma pessoa.

Feminicídio > assassinato de uma mulheres em função de seu sexo. Trata-se de um crime de ódio contra mulheres e meninas pelo simples fato de elas serem mulheres ou meninas.

Feminismo > é o movimento ideológico que preconiza ampliação

legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade entre homens e mulheres numa sociedade. O feminismo, na sua totalidade deverá ter um cunho inclusivo, diverso, interseccional e amplo.

Género > é uma construção social, baseada em padrões histórico-

culturais, atribuída às pessoas à nascença de uma sociedade de acordo com o sexo biológico. Na maior parte do mundo são legalmente reconhecidos os papéis de homem e mulher dentro do que se chama binaridade de género. Há pessoas que se identificam com os dois, ou com nenhum dos dois e por isso é importante questionar se o género binário (homem/mulher) é suficiente para classificar todas as formas como as pessoas podem identificar-se. Por ser um papel social é mutável.

Homofobia > termo usado pela primeira vez pelo psicólogo

George Weinberg num livro seu intitulado A Sociedade e o Homossexual Saudável (1972), em que se refere à homofobia como sendo um medo irrealista ou irracional ou uma aversão à homossexualidade e/ou a pessoas homossexuais. A homofobia é uma doença social que se tem vindo a prolongar devido aos estereótipos negativos e aos conceitos errados associados à homossexualidade. A homofobia pode levar ao ódio, à discriminação e à violência contra homossexuais e bissexuais.

Identidade de género > tem a ver com o que sentimos

ser. Ao longo da vida podemos sentir que o nosso género vai de encontro com o género que nos é atribuído à nascença ou não. As pessoas que se identificam com o seu género biológico são cisgénero e as que não se identificam são pessoas transgénero.

Linguagem inclusiva > é uma tentativa para que a forma como comunicamos seja mais inclusiva e menos discriminatória em relação ao género onde o todo é muitas vezes o masculino. Masculinidade tóxica > refere-se a um conjunto de

características que a sociedade tende a atribuir, de maneira estereotipada, ao sexo masculino. São nocivas ou restritivas aos próprios homens, pouco flexíveis e policiadas de forma a manter o estatuto da masculinidade nas sociedades patriarcais.

Associação Americana de Psicologia como um dos quatro componentes da sexualidade e distingue-se pela atração emocional, romântica, sexual ou atração afetiva por indivíduos de um determinado sexo.

Patriarcado > uma instituição social que se caracteriza pelo domínio masculino nas sociedades contemporâneas em várias instituições, sejam elas políticas, económicas, sociais ou familiares. Valoriza o poder e coerção de homens sobre mulheres conferindo menor valor ao que é entendido ou caracterizado como feminino, baseado muitas vezes em características biológicas fabricadas para manter este sistema de opressão. “Homem sexo forte, mulher sexo fraco” Queer > é usado como termo abrangente que define pessoas que não

sejam heterosexuais nem cisgénero. Este termo era utilizado como ofensa às pessoas que não se encaixavam nas normas de género existentes, querendo dizer “estranho” ou “bizarro”. No entanto foi apropriado pelo movimento LGBTQI+ e ressignificado. Hoje queer é um termo utilizado como ferramenta de desconstrução de conceitos que se pensam estanques, binários ou pouco fluídos. Assume a impossibilidade da certeza absoluta e a capacidade de mutação e adaptabilidade não só das pessoas mas também dos contextos. Nos dá a possibilidade de abordarmos os assuntos de forma mais complexa, e de problematizarmos com mais profundidade as situações, práticas e vivências múltiplas de cada pessoa.

Sexo biológico > sistema de classificação tendo como base

características genéticas ou fenotípicas de um indivíduo. As pessoas são classificadas, geralmente, como sendo do sexo masculino ou feminino. Existem diversos fatores que contribuem para a classificação do sexo biológico de uma pessoa: cromossomas (XY, XX, ou outras combinações), genitais (estruturas reprodutivas externas), gónadas (presença de testículos ou ovários), hormonas (testosterona, estrogénio), entre outros. Pessoas intersexo combinam características biológicas de ambos os sexos sejam elas visíveis ou não.

Sexismo > é o ato de discriminação e objetificação sexual. É quando se reduz alguém ou um grupo apenas pelo gênero ou sexo.

Transfobia > ódio, medo ou repulsa

irracionais e injustificados por pessoas transgénero.


Entendendo a Diversidade

A bandeira A primeira versão da bandeira LGBTQI+ foi desenhada pelo artista Gilbert Baker em 1978. Começou por ter sete cores e tem sofrido várias mudanças dependendo do contexto e também da necessidade de dar visibilidade a algumas intersecções identitárias. Exemplo disso foi o acrescentar de mais duas riscas, o castanho e o preto, em 2019 para significar a visibilidade das intersecções de raça nas questões LGBTQI+. São várias as bandeiras utilizadas pelos grupos dentro do movimento e que simbolizam também diferentes identidades, mudando as suas cores, e por vezes, acrescentando símbolos. Muitas vezes entende-se que criar sub-categorias gera segmentação dentro de um movimento que defende uma minoria, e não a unidade. No entanto é preciso refletir que num mundo em que se exige que sejamos todos iguais, a possibilidade de sermos iguais a “nós próprios”, de termos uma palavra que nos define e encontrarmos um símbolo que nos represente, também legitima a nossa existência. E isto é resistência. Assim, mais do que igualdade, o arco-íris da bandeira LGBTQI+ representa a liberdade e a luta para podermos ser diferentes, com direitos e R-E-S-P-E-I-T-O.

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Para mais informações:

Rede ex aequo Associação de jovens LGBTQI+ e apoiantes Amplo Associação de mães e pais pela liberdade de orientação sexual e identidade de género UMAR União de Mulheres Alternativa e Resposta QueerArquivo Arquivo LGBTQI+ Português Rede 8 de Março Grupo de associações feministas Feminista.pt Lista de eventos feministas por todo o país


A Renovar a Mouraria completa 12 anos Este percurso assinala os 12 anos da Associação Renovar a Mouraria, cumpridos em 19 de Março de 2020. Vamos aqui caminhar ao longo desta dúzia de anos de trabalho desenvolvido para fazer da Mouraria um bairro melhor.

2008 · A Petição que nunca chegou a ser entregue Éramos um grupo de cidadãos, uns moradores, outros não, mas todos tinham um amor especial pelo bairro. Era preciso mudar! Prédios devolutos ou em mau estado, pobreza e desemprego, economia paralela, baixa escolarização e, acima de tudo, um bairro desconhecido e fechado à cidade. A Mouraria merecia mais! Fez-se a petição à CML - Câmara Municipal de Lisboa reclamando atenção ao bairro e às suas problemáticas. Foram recolhidas centenas de assinaturas em papel. A CML veio ter connosco: querem ajudar-nos a desenhar um programa de reabilitação para a Mouraria? Começou assim o Programa Parcerias Para a Regeneração Urbana. A petição nem precisou de ser entregue.

2015 · Mais serviços, mais despesa

2014 · Mouraria, um bairro para todos

Com a crescente procura de serviços por parte da população, todos eles gratuitos, foi necessário procurar novas fontes de receita para fazer face ao aumento das despesas. A equipa ia crescendo, as despesas aumentando. O bar de convívio passou a restaurante. Fizeram-se as obras de adaptação e criou-se um WC comunitário.

O gosto em conhecer a Mouraria começava a crescer. Sonhávamos um bairro onde todos pudessem aventurar-se, sem medos, sem barreiras. Nasceu o Mouraria Para Todos, com visitas guiadas adaptadas para públicos com necessidades especiais. As actividades continuavam a crescer: nasceu a Casa de Férias, o Café Suspenso e… O Sabichão!

2016 · Mais beneficiários, mais necessidade de espaços O aumento de procura de apoio é crescente. O espaço já não chega. Arrendámos as salas dos nºs 4 e 6, outrora a Serralharia da Baixa. Fizemos obras e remodelámos o n.º 10, para criar novas salas. Nasce a Orquestra Batucaria e a Contaria.

2017 · Mudar o rumo A Mouraria já estava no mapa. O Beco ficou pequeno para as iniciativas culturais. O bairro e a cidade já tinham consolidado uma forte dinâmica cultural. A Mouraria já mostrava sinais de que precisava de sossego. Reformulámos a programação cultural para nos adaptar aos novos tempos. Menos público, menos ruído. Pois! Mas onde ir buscar as receitas para fazer face ao sempre crescente aumento de serviços?

2018 · A Mouraria ficou mais composta Mais turismo, mais ruído, mais poluição, menos população residente. Consolidar laços é a única forma de dar voz às nossas comunidades. A comunidade de mãos dadas com a preservação ambiental foi o mote para a Mouraria Composta, uma rede de compostagem comunitária e uma loja de produtos amigos do ambiente. Começámos a dar apoio a pessoas refugiadas.


percursos da Associação Renovar a Mouraria

Rosa Maria n.º 12 maio ’20

Texto: Inês Andrade (Portugal) Ilustração: Hugo Henriques (Portugal)

2009 · O Arraial de Santo António que acabou sem electricidade

2010 · Sai à rua o Rosa Maria n.º Zero

Sempre acreditámos que a cultura é um dos mais importantes motores de desenvolvimento e de aproximação de pessoas. O Arraial da Mouraria foi o motor de transformação que fez milhares de pessoas visitarem um bairro até então desconhecido da maioria dos lisboetas. Desde a cultura popular misturada com as novas culturas que dão mais cor ao bairro, à programação cultural que mistura novos talentos com consagrados. No dia de encerramento, uma chuva torrencial queria acabar com a festa, mas os Melech Mechaya pularam do palco para debaixo dos tanques do Largo da Rosa e, em modo acústico, a festa foi linda, pá!

A gente andava a fazer coisas em espaço público. Visitas guiadas, rondas pelas tascas e restaurantes para dinamizar o comércio local, oficinas de leitura, de artesanato, um concurso de fado e… o lançamento do nosso querido Rosa Maria!

2013 · Casa nova, Beco novo A Mouradia começa a oferecer uma série de serviços de apoio à comunidade: aulas de português e alfabetização, apoio jurídico, apoio ao estudo a crianças e jovens, o Cabeleireiro Solidário, a Saúde Para Todos e um espaço de convívio, com uma programação cultural gratuita, onde todos se pudessem juntar à mesma mesa. Depois, veio o Beco: calçada nova, churrasqueiras comunitárias, canteiros e plantas e… um palco que foi rampa de lançamento para artistas de todas as partes do mundo.

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2012 · A Mouraria ganha uma casa comunitária: a Mouradia!

2011 · Edifício-Manifesto. Um manifesto para a reabilitação urbana

Depois de um ano intenso de obras, inaugurámos em Dezembro a Mouradia – Casa Comunitária da Mouraria. Inaugurámos também a Rota das Tasquinhas e Restaurantes da Mouraria, que veio dar um novo fôlego ao comércio da restauração do bairro.

Mais um edifício devoluto do património da CML. Os n.ºs 8 e 10 do Beco do Rosendo poderiam ter ficado à mercê da especulação imobiliária, mas à época ninguém queria saber da Mouraria. Negociámos com a CML um arrendamento precário à troca de obras de reabilitação. Fomos angariar fundos e conseguimos quase todos os materiais oferecidos, só pagámos a mão-de-obra. A mensagem: reabilitar é preciso!

2019 · A Renovar a Mouraria vai à escola Saímos dos limites de um bairro que desejamos sem fronteiras. Começámos a ir às escolas ensinar português às crianças migrantes e refugiadas. E, quem diz português, diz tudo aquilo que contribui para a integração destas comunidades. Fomos também compostar e jardinar. Também um ano em que a cidadania demonstrou a sua força. Ganhámos um Jardim no Martim Moniz! A Mouraria Ganhou! Lisboa ganhou! Ganhámos todos!

2020 · E agora? O ano em que todos somos postos à prova. O que nos reserva o futuro? O que podemos fazer por um bairro frágil, tão antigo, mas tão novo a encontrar soluções para os seus desafios? Tão novo a reinventar-se? 2020 está a ensinar cada um de nós a renovar-se. Que nos ensine também a renovar em conjunto!

O tanto que ficou por dizer do que foi feito nestes 12 anos, é muito menos do que o tanto que falta por fazer no futuro. Obrigada aos sócios, trabalhadores, voluntários, parceiros, beneficiários, financiadores, doadores, amigos. Às lágrimas, às gargalhadas, aos abraços.

Estamos juntos!


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Texto e Fotografia: Tita Maravilha (Brasil) | @tita.maravilha e Agatha Cigarra (Brasil) | @agathacigarra

manifesto

Beleza como Vingança

Vingança como possibilidade. Possibilidade de mudança. Vingança não como algo que surge como primeira instância. Pudera eu ter o privilégio de não manifestar também meu ódio e revolta com quem me violenta diariamente, desde sempre. Manifesto, então, vingança, como RESPOSTA. Eu, vingativa e bela, mais que isso, meus poderes subjetivos, surgem como raios que queimam tudo que já esteve parado. Manifesto movimento. Eu, como várias, não ando e nunca andei sozinha, trago comigo todas as irmãs queimadas pela inquisição. Mais que um corpo, são CORPAS que hoje em cinzas se espalham em minha formação. Minhas irmãs, como minhas tias, avós, vizinhas, amigas, torturadas por serem quem são e exercerem seus poderes de maravilhosidade e, por isso, destruídas e humilhadas. Digo de um ponto de vista extremamente carente de afeto, porque me negaram isso a partir necessariamente, do meu género. Outras, por tantos outros motivos, do mesmo jeito negadas. Manifesto a reinterpretação de coisas que te parecem muito óbvias. Por um olhar mais intruso e curioso sem ser invasivo, por desdobramentos de possibilidades. Estou a falar necessariamente de BELEZA. Nós nos mostraremos cada vez mais belas. Beleza aqui jamais pensada como um padrão que foi pré-estabelecido para nos enquadrar. Pensamos agora numa beleza possível, acessível e subversiva. Acessar esse estado tão difícil de construir, e que tão facilmente pode ser derrubado pelo sistema, pode ser o pulo da gata, a volta por cima ou BELEZA COMO VINGANÇA. A beleza não é necessariamente branca, cis-hetero, magra... Surgimos então fulminantes como seres mágicos, mas reais na nossa própria experiência. Nos vingaremos, necessariamente sendo felizes cada passo em relação ao que não nos foi oferecido. Tudo o que existe nos pertence, e quanto mais nos negarem maior será o banquete. Meu corpo se rebela pelo estranhamento, forja estragamentos. Meu corpo se revira, se avessa à regra, versa sua própria beleza, vinga sua presença na capa do jornal mais sujo. Sou notícias populares. Minha beleza tem vida própria. (Ex)purga de mim pra te agarrar num impulso. Escarrada das mulheres da minha familia, da minha genealogia vira-lata. O sangue escorrendo memória pela pele e entre as pernas. Gestei a historia. Gastei minhas semelhanças de Maria. E vem a monstra! As estrias que gritaram e as rugas que racham. A marquinha ok, sobrancelha ok e a unha tá ok. E a baba vai sorver. Molhada e armada sempre! Vim pra fuder com a sua cabeça e a paixão que sua moral não deixa.

À TODAS AS MULHERES, A TODAS AS PESSOAS TRANS E TRAVESTIS E ESPECIALMENTE A TODA IDEIA DE MULHERIDADE INTERSECCIONAL, MARGINAL E PERIFÉRICA.


opinião

Rosa Maria n.º 12 maio ’20

Texto: Camila Carrello (Brasil) | @candidowendell Fotografia: Betina Polaroid (Brasil) | @betinapolaroid

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Relatos de uma É curioso quando começamos um processo criativo. Parece mesmo que caímos de um penhasco. Quando Wendell Cândido surgiu foi uma queda livre para a minha reinvenção. O contexto era o Rio de Janeiro, 2015. O coletivo Drag-se reuniu-se através do produtor e cineasta Bem Medeiros, quem viabilizou o projeto no ano de 2014 através de um crowdfunding. O projeto é definido por: “Drag-se é arte, cultura e política, é a expressão de que tudo é construção social.”. Lembro-me de assistir a um espetáculo do Drag-se em que haviam muitas drag queens e apenas um drag king: Charlie Wayne. A minha indagação foi: “Gente, por que só um king?” e a resposta que veio através de um amigo foi “Bicha, para de reclamar e vai você fazer”. Melhor réplica não houve em toda a minha vida.

Devemos ter muita atenção ao anunciar este conceito já que exige um estado de vigilância constante. A tensão vai existir, não é por um acaso que a sigla saiu de LGB (anos 80) para LGBTQQICAPF2K+ (2018), temos intermináveis variáveis de gênero e sexualidade. Criar um espaço de, com e para pessoas como nós, é um trabalho árduo e de consciência da própria comunidade. A minha primeira apresentação fez-me perceber isso rapidamente. As pessoas valorizavam mais o trabalho das drag queens. Mesmo em Lisboa, os espaços estão dominados pela presença delas. Mesmo em espaços ditos inclusivos, que me renderam muitos empurrões de homens imensos, marcas de cigarros apagados em mim e exclusão de oportunidades de apresentação como Wendell Cândido. Ser drag king reforça o quão normativa é a nossa comunidade, dominada por homens gays e cisgênero, que espera ver o mesmo: algo deles e para eles. Não me entendam mal, adoro a comunidade drag queen, até tenho amigos, mas será que já não chegou a hora de expandirmos, cairmos desse penhasco e reinventarmos as oportunidades?

Experiência Drag King

A partir de então, juntei-me ao coletivo e mergulhei em apresentações no Brasil, Irlanda, Inglaterra, Holanda, Bélgica e Portugal. Foram inúmeros shows, workshops e muita misoginia. Precisamos entender que espaços queer demoram muito a serem seguros para o público.

Sabia que...

Texto: Francisco Melo (Portugal) Ilustração: Nuno Saraiva (Portugal)

Enquadradas no processo de discriminação social pelas noções de diferença espacial e sendo minoria num contexto cristão étnico-religioso dominante, as mourarias formavam bairros próprios de população moura. Estes bairros eram separados da área residencial dos cristãos e geralmente situados nos subúrbios das povoações. Tolerados no território nacional, era permitido aos muçulmanos viver segundo os seus costumes e religião somente nos espaços de predomínio próprio. A sua marginalidade organizou-se através de arruamentos, leis e sinais distintivos específicos. De facto, os mouros deviam usar aljubas (coletes) de mangas largas e albornozes (capas), capuzes, balandraus e almexias (vestimentas longas características), a que teriam de acrescentar uma lua vermelha no ombro, um sinal branco no barrete e o cabelo rapado à navalha. Em paralelo, diferentes disposições se sucederam, relativas à sua miscigenação com os cristãos, às obrigações fiscais, às suas capacidades jurídico-institucionais e, ainda, à interação das mourarias com o meio circundante, na qual ressalta a obrigatoriedade de encerrar as suas portas ao toque do sino da Trindade (pôr-do-sol), sob pena de diversas sansões para com os infratores encontrados no exterior. A mouraria, enquanto espaço dominante muçulmano possuía açougues, currais, banhos, cadeias, lojas para arrecadação de impostos, escolas e cemitérios. Todos este espaços, porém, foram alienadas com a política integracionista manuelina efetivada a partir de 1496.


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notícias

Texto: Paula Cardoso (Moçambique) Ilustração: Carolina Elis (Brasil) | @c4rolinizando_

Um coro de vozes para afinar o feminismo Sabemos que é possível ser mulher e não ser feminista. Mas poderá haver feminismo se não for para todas? Ou, escrito de outro modo, deve um movimento ser classificado de feminista se não for interseccional? A discussão é tão antiga quanto as primeiras reivindicações em defesa dos direitos das mulheres, conforme demonstra o histórico discurso de Sojourner Truth, “Ain’t I a Woman?”, “E não sou eu uma mulher?”. Nessa intervenção, Sojourner questionava a abordagem universalista da condição feminina, apresentada instantes antes por um responsável político. Em 1851, no estado americano do Ohio, decorreu o segundo dia da Convenção dos Direitos das Mulheres, marcado por um assalto masculino ao palco para pregar a “superioridade” física e intelectual dos homens. Embora a identidade do encontro fosse feminista, sugerindo que o acesso à palavra seria um direito de todas, há relatos de tentativas de silenciar Sojourner, sob a alegação de que a luta que ali estava a ser travada – pelo direito ao voto – não poderia ser ‘contaminada’ por reivindicações do movimento abolicionista. Mas, para quem como Sojourner tinha nascido em cativeiro e vivido quase 30 anos na condição de escravizada, aquele era apenas mais um episódio de opressão. E como tantos outros, não a impediu de avançar. “Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir para uma carruagem, que é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal e que elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Mas nunca ninguém me ajuda a subir para a carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou eu uma mulher? Olhem para mim! Olhem para os meus braços!

Rua a Rua

Eu lavrei, plantei, colhi e nenhum homem me passava à frente. E não sou eu uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto como um homem e comer tanto (sempre que arranjasse comida) como um homem. E igualmente suportar o chicote! E não sou eu uma mulher?”. Quase 170 anos depois do histórico discurso, o “grito” de Sojourner continua a ecoar nas fileiras do movimento feminista, como expressão da diversidade – e não universalidade – da condição feminina. Não reconhecer essa diversidade e deixá-la de fora da luta pela igualdade de género enfraquece a defesa da interseccionalidade.

Opressões para além do género O conceito entrou no léxico feminista em 1989, através da ativista americana Kimberlé Crenshaw, e assenta no princípio de que as reivindicações do movimento devem considerar a existência de múltiplas opressões e em diferentes graus de intensidade. Porque a experiência de uma mulher negra, por exemplo, não só pesa pela discriminação de género, como também pode pesar pelo racismo e pela classe social. Da mesma forma, uma mulher branca lésbica terá, à partida, de lidar com preconceitos sobre a sua orientação sexual, que não se atravessam no caminho de uma mulher branca heterossexual. Pode, então, o feminismo ser outra coisa que não ser interseccional? Para as 27 mulheres que, em 2018, fundaram o INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal, a resposta está no próprio texto constitutivo. Apresentada como uma “entidade feminista interseccional e antirracista”, a instituição advoga, desde o primeiro momento, que não é possível promover a igualdade de género sem combater todas as desigualdades que se intersectam na construção de uma identidade. Como se, em vez de tentarmos falar a uma só voz, devêssemos acolher a ideia do feminismo como um coro de vozes. Em constante afinação. Maiores informações: INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal institutodamulhernegra.pt@gmail.com

Texto: Francisco Melo (Portugal)

RUA JOÃO DO

OUTEIRO

Segundo Norberto de Araújo na publicação Peregrinações em Lisboa. vol. III, pag.70: «Foi este João do Outeiro um abastado senhor, proprietário meeiro na Ilha de S. Miguel, de onde passou a Lisboa para acabar os seus dias. Isto no opulento século XVI, pois em 1552 a Rua já tinha este nome. A dois passos do mal-afamado e triste Capelão - o João do Outeiro oferece uma aparência modesta, mas mais calma. Num dos prédios topa-se mesmo um registo de S. Marçal, em azulejo, de 1767; noutro, manifestamente reedificado, uma reentrância na parede, e que teve um oratório». Já no Nobiliário de Famílias de Portugal, Diogo Rangel de Macedo, no volume com o Título dos Costas descreve o seguinte: «João do Outeiro, um homem honrado da ilha de S. Miguel, casado com Catarina Gomes Raposa, mulher nobre, que tinha sido antes casada com Rui Vaz Gajo, natural de Beja, e foi criado do infante D. Fernando, filho de el-rei D. Manuel.Teve deste casamento, por filha, D. Maria do Outeiro, a qual esteve casada com Jorge Nunes da Camara, irmão do primeiro Conde de Vila Franca, e segunda vez a casou seu pai, que neste tempo vivia em Lisboa na rua do seu nome, junto a Santo Antão o velho. com D. Gil Eanes da Costa.» «Aqui temos João do Outeiro, honrado criado-feitor de Rui Vaz Gajo, e depois, pelo casamento, meeiro de uma casa rica da ilha de S. Miguel, e dando o seu nome a uma rua, e pelos dois casamentos de sua filha aparentado com as casas nobres do Armeiro-mor, e do Conde de Vila Franca.»


Onde está o corpo queer, negro e imigrante em Lisboa? Queer

Texto: Diego Cândido (Brasil) Fotografia: Ricardo Borges (Brasil) | @ricborgesphotos

O corpo em busca de vivências

Mouraria. Imigrante. Estranho. Em meu primeiro contato ao chegar à Lisboa, tentava me enxergar na cidade, a partir do meu corpo negro, imigrante e queer. O meu corpo não correspondia à identidade europeia, principalmente portuguesa, sendo por muitas vezes impossível de ser alcançado, compreendido, reconhecido. Estava imerso em um caldeirão de identidades, de pessoas, locais, cheiros, sabores, cores, sons, vozes. O lugar onde eu poderia me encontrar, mas não estava ali. Todo o tempero fazia parte de uma “nova lisboa” glamourizada e maquiada pela gentrificação, mas tudo indicava que essa Lisboa já estava ali por muito tempo. Uma Lisboa que aos poucos se difundia em outros espaços, outras ruas, outras realidades. E ao descobrir as contradições entre o passado e presente, sinto um despertar imediato em degustar, contribuir e descobrir histórias além das que estavam visíveis aos meus olhos. Era o desejo de seguir pelos becos e ruas, em contraste com minha pele escura, o meu passaporte brasileiro, o meu andar perturbador, o meu rosto pouco familiar e os meus hábitos classificados como “fora da curva”, na esperança de encontrar os meus pares em meio ao mundo de diversidades. E daí, fiz-me a pergunta: Onde estão os meus semelhantes? Onde estão os jovens negros, imigrantes e LGBTQI+ da Mouraria, da Cova da Moura, da região central de Lisboa? Quem são? Como interagir com eles? E pela necessidade de agrupamento, de acolhimento e de contato, esses corpos acabam se encontrando no meio do caminho, surgindo ações que promovem o diálogo entre jovens imigrantes, dissidentes, queer em diáspora africana. Estes estão por suas múltiplas alianças, propondo novas formas de ver a cidade, a partir da festa, da arte, dos seus corpos em trânsito.

O corpo e a cidade

O corpo queer, imigrante e afrodescendente, debruça sobre um tipo de corporeidade em trânsito de gênero, face ao racismo e a sua relação com a produção do medo e da violência na cidade e , também, com a arte e a invenção de novas possibilidades no espaço urbano De forma criativa, através desses corpos, são estabelecidos os efeitos, as interações, os encontros e reencontros e vivências que provocam a cidade. Na difusão das experiências, onde o caminhar se transforma em arte e performance, vemos o espaço urbano sendo tomado por experiências estéticas, políticas e com linguagens das mais diversas. E é por isso que acredito no argumento de que o ativismo Queer, a bixa preta e imigrante, pode ser uma experiência potente para questionar as normas de gênero e instituir uma “partilha do sensível” na cidade, buscando superar, assim, os temores que insistem em nos aprisionar. Neste sentido, o ativismo pela arte, ou artivismo, pode ser uma importante ferramenta para discutir os medos e expor opressões. A sua ênfase se dá na potência dos corpos e dos afetos, que contribui na promoção de desconstruções nos espaços, a cuidar do medo e do controle, que delimitam e capturam os corpos e os modos de viver o espaço urbano na contemporaneidade. Indaga-se, portanto, a possibilidade de experimentação de outras maneiras de vivenciar o corpo e a cidade, do velho ao novo corpo em transformação, do corpo em trânsito, do corpo preto queer e dissidente.

Personagens

Aqui está um mapa alternativo de três artistas/coletivos em suas ações culturais e de resistência na cidade de Lisboa Esses personagens são atores de sua própria história e descrevem a cidade de Lisboa de uma nova forma, a partir das relações individuais com espaço que se circulam e na troca de afeto que compartilham. 1. pixabixa | @pixabixa_lx Projeto de arte urbana com recorte em temas do universo queer. @pixabixa_lx o coletivo vai ao espaço urbano expor questões que são específicas da vivência quotidiana enquanto corpos que se distanciam da heteronormatividade, tendo o termo “bixa” como um grito de resistência, a partir da ressignificação da palavra que foi sempre utilizada de forma pejorativa, e hoje é vista e empregada com orgulho. 2. @c4rolizando por Carolina Elis | @c4rolinizando E ao longo da caminhada nos deparamos com a Carolina Elis, lindamente @c4rolizando, utilizando o gerúndio e sua arte para descolonizar pensamentos, propondo um artivismo com viés antirracista, queer, afro, feminino, afetivo, singelo, pessoal e direto. Como bem diz Carol, a presença dos corpos negros embora orgânica nas artes, na cultura, na música, na escrita, na dança, nas ciências, nos conhecimentos, na religião e na construção das sociedades antigas e modernas, foi e continua invisível aos olhos do observador comum. As suas ilustrações buscam confrontar o epistemicídio do corpo e da alma negra, como um conto de ancestralidade e celebração da negritude. 3. House of Didi e Bee. | @bee_lx A partir de minha vivência como bixa preta imigrante, vindo do Rio de Janeiro, passado por São Paulo, Nova Iorque, Londres e agora em Lisboa, nascem a House of DiDi (49 ZDB) e a Bee. (Damas Bar) com uma residência artística mensal, onde utilizamos da festa, da música, dos ritmos e dos nossos corpos, como fonte de celebração, unidade de acolhimento, suporte, visibilidade e resistência aos artistas da cena, as bixas pretas, as manas, as monas, as trans e toda comunidade preta queer, imigrante e dissidente. A partir desses movimentos, temos a chance de estarmos um pouco mais confortáveis no caminhar na cidade, em colectivo, com a segurança que não estamos sozinhos, com a sensação que podemos nos sentir em casa. E que a definição de casa se estabelece a cada encontro, a cada descoberta, a cada novo corpo, nova história, nova forma. Sejamos casa um dos outros.


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Texto: Cristiano Figueiredo (Portugal) Tradução e revisão: Taiane Barroso (Brasil), Simone Jennifer Smith (Canadá)

Muito além da prescrição de um medicamento Saiba como a Prescrição social da Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa pode melhorar a sua saúde ou potenciar o impacto da sua organização

A Prescrição Social é um movimento que procura dar resposta às necessidades sociais, emocionais e práticas dos pacientes, ligando-os a respostas e apoios sociais disponíveis na comunidade. Esta metodologia desenvolveu-se nos anos 90, no Bromley by Bow Centre, um centro de saúde localizado no leste de Londres, num dos bairros mais desfavorecidos e multiculturais da capital britânica. As desigualdades sociais eram evidentes e ameaçavam o bem-estar e a saúde da comunidade, como tal, era necessário desenvolver respostas locais para problemas como o desemprego, a pobreza ou o isolamento social. A integração dessas respostas no prontuário terapêutico dos médicos de família originou a Prescrição Social, tornando este centro de saúde londrino numa referência internacional na prestação de cuidados de saúde personalizados, holísticos e integrados com os recursos da comunidade. A Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa é um centro de saúde localizado na Praça Martim Moniz, que presta cuidados a cerca de 15.000 utentes, residentes nos bairros históricos do centro de Lisboa. Em fevereiro de 2018, a equipa da USF da Baixa começou a reunir-se com associações e outras entidades locais, para planearem em conjunto a implementação do Projeto Piloto de Prescrição Social de Lisboa. Pretendia-se melhorar a saúde e bem-estar dos nossos utentes, dando respostas concretas às suas necessidades sociais, através dos recursos disponíveis na comunidade. Nesse outono, estavam reunidos todos os ingredientes para começar: uma equipa de saúde sensível às problemáticas sociais, uma assistente social motivada e integrada na equipa e uma rede de parceiros locais heterogénea e dinâmica. A 25 de setembro de 2018 era realizada a primeira referenciação à Prescrição Social. Existem duas formas de aceder às consultas de Prescrição Social na USF da Baixa. Quando uma pessoa vai a uma consulta e partilha que se sente sozinha, não consegue encontrar emprego, tem dificuldade em pagar as contas ou simplesmente quer ser mais ativa ou aprender coisas novas, o profissional de saúde vai propor uma referenciação à Prescrição Social. Sabemos que estes problemas podem ter um impacto muito significativo na saúde e bem-estar da pessoa, mas não se resolvem com a prescrição de um medicamento. Mas não precisa de passar pelo profissional de saúde para ter acesso a este serviço inovador. Se já sabe que a Prescrição Social é o tipo de ajuda que necessita, pode marcar uma consulta na nossa secretaria. Na consulta de Prescrição Social vai conhecer a Dra. Andreia Coelho, a assistente social da USF da Baixa, que tentará conhecer melhor as suas necessidades e interesses e encontrar consigo uma solução personalizada, que pode passar por respostas existentes na unidade de saúde ou pelo encaminhamento para serviços parceiros da comunidade. Temos uma longa lista de parceiros e serviços na comunidade com que trabalhamos em proximidade para podermos responder às suas necessidades. Todos os meses a equipa da Prescrição Social vai ao encontro da comunidade, organizando reuniões itinerantes em que visita os serviços dos parceiros sociais ou acolhendo no Centro de Inovação da Mouraria uma reunião geral com todos os parceiros. Ambas as reuniões são abertas a todas as pessoas e organizações que queiram conhecer melhor o nosso projeto ou colaborar com a Prescrição Social, seja integrando a nossa rede de parceiros ou contribuindo para o desenvolvimento do projeto. Junte-se a nós, seja nosso parceiro social e potencie a sua ação na comunidade!

A consulta de Prescrição Social é realizada pela nossa assistente social, Dra. Andreia Coelho. Juntos vão acordar um plano individualizado para melhorar a sua saúde e bem-estar. The Social Prescription consultation is carried out by our social worker, Dr. Andreia Coelho. Together you will agree on an individualized plan to improve your health and well-being.

Durante a sua consulta, o médico, enfermeiro ou psicólogo podem propor-lhe uma consulta de Prescrição Social. During your appointment, the doctor, nurse or psychologist can forward you to a Social Prescription consultation.

Na secretaria da USF da Baixa, pode marcar diretamente uma consulta de Prescrição Social, se achar que este é o serviço certo para si. At the reception of the USF Baixa, you can directly book an appointment for Social Prescription if you think this is the right service for you.

Isenção de taxa moderadora Informação sobre benefícios sociais e projetos. Moderator fee exemption Information on social benefits and projects.

Temos uma vasta rede de parceiros sociais na comunidade, que nos podem ajudar a dar resposta aos seus problemas e necessidades. We have a vast network of social partners in the community, who can help us to respond to your problems and needs.

Todos ficamos a ganhar com a Prescrição Social. Ajuda os nossos parceiros a chegar às pessoas que mais necessitam dos seus serviços. Ajuda a unidade de saúde a dar resposta às necessidades dos pacientes que o serviço de saúde não consegue colmatar. Ajuda, sobretudo, as pessoas a melhorarem as suas condições de vida e consequentemente a sua saúde. A Prescrição Social está a impulsionar uma nova forma de colaboração entre a saúde e a comunidade, que pretendemos alargar a outros centros de saúde de Lisboa. Cristiano Figueiredo Médico de Família da USF da Baixa Coordenador do Projeto Piloto de Prescrição Social de Lisboa

Entre em contacto connosco:

Email prescricaosocial.usfdabaixa@arslvt.min-saude.pt Telefone 218 843 000 Acompanhe o projeto na nossa Página Facebook: www.facebook.com/prescricaosociallisboa


Rosa Maria n.º 12 maio ’20

Duas histórias reais Two real stories Habiba A Habiba tem 26 anos e é do Bangladesh. Chegou a Portugal há 6 meses e passa o dia sozinha enquanto o marido está a trabalhar. Não sabe falar português e não tem amigas em Lisboa. Habiba is 26 years old and is from Bangladesh. She arrived in Portugal 6 months ago and spends the day alone while her husband is at work. She cannot speak Portuguese and has no friends in Lisbon.

Através da Prescrição Social, pôde inscrever-se em aulas de português para estrangeiro e encontrar uma amiga através do Programa Mentores para Migrantes. Through Social Prescription, she could sign up for Portuguese classes, and find a friend through the Mentors for Migrants Program. ------------Sra. Maria A Sra. Maria tem 75 anos e vive com o marido. Como os vizinhos foram despejados e os filhos vivem longe, passa o dia a ver televisão. Anda cada vez mais triste e esquecida. Mrs. Maria is 75 years old and lives with her husband. As the neighbors have been evicted and the children live far away, she spends the day watching television. She is increasingly sad and forgotten. Depois da consulta, pode escolher entre receber visitas domiciliárias e telefonemas, frequentar aulas de taichi ou rendas & tricô na Universidade Sénior ou reencontrar velhas amigas num Centro de Dia. After the consultation, she could choose between receiving home visits and phone calls, attending classes of taichi or lace & knitting at the Senior University or meeting old friends at a Day Care Center

Far beyond the prescription of a medicine

cal records of family doctors, gave rise to the Social Prescription, making this London health centre an international reference in the provision of: personalized, holistic and integrated health care. The Unidade de Saúde Familiar (USF) in Baixa is a health centre located in Praça Martim Moniz. It provides care to approximately 15,000 users, residing in the historic districts of downtown Lisbon. In February 2018, the team of the USF Baixa began to meet with associations and other local entities, to jointly plan the implementation of the Pilot Project of Social Prescription Lisbon. It was intended to improve the health and well-being of our users, giving concrete answers to their social needs, through the resources available in the community. That fall, all the ingredients to get started were gathered: a health team sensitive to social issues, a motivated and integrated social worker, and a heterogeneous and dynamic network of local partners. On September 25, 2018, the Social Prescription Program received their first referral. There are two ways to access Social Prescription consultations at the USF da Baixa. When a person goes to an appointment and shares that: they feel alone, cannot find a job, have difficulty paying bills, simply want to be more active or learn new things, the health professional will propose a referral to the Social Prescription. We know that these problems can have a very significant impact on the person’s health and well-being, but just prescribing medication does not solve them. The good thing is that you don’t need to go through a healthcare professional to access this innovative service. If you already know that Social Prescription is the type of help you need, you can make an appointment at our office. At your appointment, you will meet Dr. Andreia Coelho, the social worker at the USF da Baixa, who will get to know your needs and interests better, and find a personalized solution for you. We have a long list of partners and services in the community that we work closely with in order to respond to your needs. Every month the Social Prescription team goes into the community: organizing itinerant visiting the services of the social partners, or hosts a general meeting with all partners at the Mouraria Innovation Centre. Meetings are open to all people and organizations that want to get to know our project better or collaborate with Social Prescription. You can do this either by joining our network of partners, or contributing to the development of the project. Join us, be our social partner and boost your action in the community! We all stand to gain from the Social Prescription. It helps our partners to reach the people who need their services the most. It helps the health unit to respond to the needs of patients that the health service cannot address. Above all, it helps people to improve their living conditions and consequently their health. The Social Prescription is promoting a new form of collaboration between health and the community, which we intend to extend to other health centres in Lisbon. Cristiano Figueiredo Family Doctor at USF da Baixa Coordinator of the Lisbon Social Prescription Pilot Project

Find out how the Social Prescription program from Unidade de Saude Familiar (USF) in Baixa can improve your health or enhance the impact of your organization The Social Prescription is a movement that seeks to respond to the social, emotional and practical needs of patients, linking them to responses and social support available in the community. Bromley by Bow Centre - a health centre located in East London - developed this methodology in the 1990’s in one of the most disadvantaged and multicultural neighbourhoods in the British capital. Social inequalities were evident and they threatened the well-being and health of the community, so it was necessary to develop local responses to problems such as unemployment, poverty or social isolation. The integration of these responses in the medi-

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notícias

Texto: Nayem Hasan (Bangladesh) Fotografia: Geraldo Monteiro (Brasil)

Conflito entre bengaleses na Mouraria, qual é a história por trás O primeiro bengalês chegou em Portugal em 1981. Seu nome é Siddiqur Rahman. No dia 14 de Junho daquele ano, ele chegou ao Marquês de Pombal, em Lisboa. Deste esta data, o total de bengaleses vivendo em diferentes partes de Portugal ao longo do tempo já é estimado em cerca de 15 mil pessoas. A Mouraria em Lisboa e São Bento no Porto são conhecidas como as áreas mais populosas de nacionais deste país asiático. Regiões aonde os nacionais do Bangladesh passam muito tempo em uma combinação da cultura bengalesa com a cultura portuguesa local. Muitas pessoas adotaram este país e aqui se sentem como em casa. Devido ao clima agradável, as pessoas amigáveis, as diferentes oportunidades de negócios e a política de imigração facilitada em Portugal, o número de bengaleses não pára de crescer. A aparência da Mouraria mudou ao longo desses anos, aumentando gradualmente o leque de negócios e residências assim como a presença de pessoas de diversas nacionalidades, sendo a mais expressiva a comunidade do Bangladesh. Tudo corria em paz na região. Mas de repente, como uma tempestade, algo inesperado aconteceu. Houve um confronto entre dois empresários bengaleses em Setembro de 2019, na Rua de Benformoso. Já em Janeiro de 2020, as discussões chegaram a agressões físicas, numa grande confusão, gerando um grande constrangimento para todos os moradores da região. Logo em seguida, mencionou-se em alguns meios de comunicação que o conflito aconteceu por motivos religiosos, o que não é verdade. As pessoas envolvidas neste conflito são dois empresários, ambos nacionais do Bangladesh que discutiram por motivos alheios a religião. As informações equivocadas nos jornais geraram um constrangimento ainda maior para a população local, posteiormente tendo sido esclarecidos os motivos para o confronto. Os nacionais do Bangladesh vivem uma vida normal em Portugal. Vão aos seus locais de trabalho e ao fim do dia voltam para casa e para as suas famílias. Somos tão amigáveis como nação, assim como os portugueses e vemos muita semelhança no acolhimento e aceitação. Há mais de 500 anos atrás os portugueses chegaram no Bangladesh para fazer negócios. Agora, os bengaleses vem a Portugal também para fazer negócios. Nós amamos Portugal, as pessoas, o sol. Portugal é um local que temos muito carinho dentro da Europa e por isso esperamos que estas boas relações possam permanecer ao longo dos anos.


Outras Mourarias Texto: Nuno Gonçalves (Portugal) Fotografia: Chris Pearrow (Reino Unido)

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expulso após um agressivo ataque berbere. A cidade actual teve o seu início em 1764 com a remodelação levada a cabo pelo Sultão Alaui Sidi Mohammed Ben Abdallah, que transformou Essaouira num espaço de multiculturalidade e de conexão de Africa com o resto do mundo.

A cidade de Essaouira Essaouira é uma cidade da costa atlântica marroquina, localizada a aproximadamente 170 km de Marraquexe. Esta cidade é um importante ponto turístico e económico, pois é o terceiro porto de pesca de sardinhas de Marrocos e onde é possível observar os barcos azuis de pesca tradicionais marroquinos, os felloukas, e a vibrante actividade matinal da venda do peixe e crustáceos no mercado em frente ao mar. Essaouira vem do árabe Al Suwayra, que significa “a bem desenhada”, era chamada de Mogador por Portugal e Amogdul pelos berberes, ou seja “a bem guardada”. Essaouira é actualmente promovida como “a cidade do vento” ou a “noiva do Atlântico” para atrair os praticantes de surf e windsurf. As principais atrações são as praias, a gastronomia e a medina, a parte mais antiga da cidade, classificada como Património Mundial da UNESCO desde 2009. A cidade de Essaouira tem uma história rica, tendo sido habitada por Fenícios, Cartagineses, Romanos, Árabes, Portugueses, Judeus Espanhóis e Franceses. Portugal foi o responsável pela fundação de Mogador, que ocupou entre 1506 e 1510, mas acabou por ser

notícia

Essaouira destaca-se por vários aspectos, especialmente o bairro antigo da medina, onde é possível ouvir dezenas de línguas durante todo o dia, como é o caso do espanhol, do italiano, do português, do inglês, dos dialetos dos judeus e dialetos marroquinos como os Chadma, do sul de Marrocos, e dos Haha, berberes. A medina de Essaouira, construída dentro de muralhas de origem portuguesa, é um bairro muito parecido com a Mouraria devido à presença de inúmeras galerias de arte e fotografia. Ao passear pelas ruas e becos do bairro, é possível observar as lojas com inúmeras gravuras grandes e pequenas com cores vivas e sobre os mais variados temas, desde paisagens de Essaouira até retratos de Bob Marley ou Marilyn Monroe. A medina chegou mesmo a ser visitada por artistas ocidentais como Cat Stevens ou onde Orson Welles realizou alguns dos seus filmes. A medina também é conhecida pela atracção que exerce sobre músicos, tal como a Mouraria é extremamente influenciada pelas músicas do mundo. É neste local que se realiza um dos mais importantes festivais de música do mundo, o Festival de Gnaoua, que já contou com a participação de vários grupos portugueses como Al Mouraria. A medina, tal como a Mouraria, é um bairro aberto a todos os povos, culturas e religiões, ou seja um espaço onde é possível observar o movimento, a cor e o melhor que a multiculturalidade tem para oferecer a uma civilização. Aqui, como lá, é comum ver árabes, judeus, cristãos, hindus, paquistaneses, persas, asiáticos ou europeus viverem e fazerem negócio lado a lado. Os habitantes de Essaouira são conhecidos também pela qualidade do fabrico artesanal e do uso do barro. Esta é uma característica que já praticamente não existe na Mouraria, mas que faz parte da história do bairro lisboeta e que encontra grande influência na comunidade muçulmana que aqui vivia durante a Idade Média e que perdura até aos nossos dias.

Texto: Flavio Gonçalves (Cabo Verde), Jonatan Benebgui (Espanha), Ricardo Higuera (Chile) Fotografia: MenTalks

As conversas dos homens que querem acabar com a masculinidade hegemónica Muitos homens não falam sobre os seus sentimentos. Isto é uma realidade universal. Reprimir as emoções para atingir o ideal de ser um homem é uma das condições para entrar no que se conhece como “a caixa do homem”. Esta ilusão começa muito cedo: quase todos os rapazes já ouviram um “não sejas menina” quando mostram vulnerabilidade. Este medo faz como que utilizem máscaras que ocultam o que verdadeiramente são e que os acompanham, em muitos dos casos, até adultos.

Sem a tomada de consciência é muito difícil deixar as máscaras, e os seus efeitos podem ser devastadores. O (des)controlo emocional é uma consequência desta ideia de masculinidade que leva também à violência de género e aos feminicídios, assim como a muitos dos suicídios e mortes cometidas por homens. São eles os que mais matam e os que mais morrem por essa construção de uma masculinidade hegemónica que tem consequências tóxicas para a sociedade toda. O projeto Men Talks foi criado por três homens que sentiam desconforto por não poderem partilhar os seus sentimentos com outros e porque não se sentiam atraídos pela masculinidade tradicional. Começaram por organizar conversas só para homens para falar de temas “proibidos” no universo masculino. “O pessoal é político” - publicação da americana Carol Hanisch, é uma das maiores influências do feminismo neles e tem tido um impacto positivo num movimento que cresce com força: homens que se juntam como aliados à luta feminista das mulheres e que se comprometem à desconstrução da masculinidade hegemónica começando por eles próprios.

Estas conversas começaram nalguns bares de Lisboa, mas já chegaram a algumas escolas da cidade através do projeto Ser Humano, promovido pelas Mulheres na Arquitetura. Elas convidaram o Men Talks para desafiarem os adolescentes com a pergunta “o que é ser um homem?”. Temos a certeza de que essas palavras não vão sair facilmente da cabeça deles, mas também a esperança de que possam tirar as máscaras o mais cedo possível, por um mundo mais saudável e igualitário.


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notícias

Texto: Ana Catarina Maia (Brasil) Fotografia: Maria Lamas (Portugal)

Do direito ao pão e à felicidade Historicamente, o papel do Estado na vida dos portugueses foi ressignificado perante as adversidades promovidas pelo cenário nacional e internacional no âmbito da política, da sociedade e da economia. Alguns fatores influenciaram a chegada da Ditadura (em 1926) e do Estado Novo (1933 a 1974), como o surgimento dos Estados Modernos (ditatoriais e antidemocráticos) no cenário mundial; interesses da elite conservadora e seus efeitos econômicos oriundos de crises na segunda década do século XX; a permanência de Portugal num modelo económico baseado nas atividades rurais – tornando-o “dependente e periférico” e, consequentemente, gerando crises sócio-econômicas. No contexto do país então maioritariamente pobre, a população via como escassas suas chances. Homens e mulheres realizavam trabalhos braçais, cujo esforço físico necessário não era levado em consideração quando a questão era o gênero do(a) trabalhador(a), seu corpo e sua capacidade física. Toda essa situação era observada de perto por alguns jornalistas. Dentre eles, uma mulher portuguesa nascida em Torres Novas no ano de 1893 e de nome Maria da Conceição Lamas. Ela resolveu que viajaria pelo país para fotografar mulheres em seus postos de trabalho. Maria Lamas foi uma das primeiras mulheres jornalistas em Portugal e teve como primeira experiência profissional a direção do suplemento Modas e Bordados do jornal O Século, na década de 1920, mesmo período em que começa a falar abertamente no direito à felicidade, na luta pela dignificação das mulheres e na emancipação feminina. Também foi neste contexto que Lamas uniu-se ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP) e iniciou sua vida na militância, sendo ativista pelos direitos das mulheres, embora nunca tenha se autodenominado feminista. Naquela altura, o uso desta palavra era incompreendido e gerava certa desconfiança nas pessoas. Para a sociedade do começo do século XX, ser feminista era sinônimo de ser defensora da supremacia feminina e não da igualdade de direitos entre os géneros. Além disso, a causa Feminista era mais dada à união com os homens para traçar estratégias para combater o fascismo do que necessariamente reivindicar o lugar da mulher nesta sociedade. Em 1945, a jornalista tornou-se presidente da Direcção do CNMP, entretanto foi levada pelo diretor do Jornal a escolher entre seu cargo na Revista ou sua vida de activismo político. Escolheu, sabiamente, pelo segundo. Deu início a uma de suas obras mais importantes, o livro As Mulheres do Meu País; viajando por Portugal, de Norte a Sul, do litoral ao interior, fotografando mulheres portugue-

sas em seus postos de trabalho. À primeira vista, pode-se pensar neste trabalho como uma ferramenta da emancipação feminina, por tratar-se de mulheres que trabalham fora de casa e por serem remuneradas. No entanto, a grande questão é que elas trabalhavam em locais precários e com remunerações mais baixas que as dos homens, chegando à metade do ordenado masculino, mesmo exercendo as mesmas funções. É importante frisar que essas mulheres trabalhavam de acordo com as oportunidades: como ceramistas, pescadoras ou até mesmo mineiras, como é o caso das trabalhadoras das minas de carvão de São Pedro da Cova, ao Norte do país. A imagem ilustra o tipo de esforço físico a que eram submetidas, em um ambiente hostil e inadequado. Percebe-se também que as ferramentas e equipamentos de trabalho eram pensados visando maior produtividade, descartando os efeitos que seu uso contínuo poderiam causar no corpo. Como além dos trabalhos remunerados, as mulheres eram responsáveis pelos cuidados com os filhos, era comum a presença de crianças nos ambientes laborais. Muitas delas estavam de facto trabalhando e ajudando as mães em tarefas simples ou que exigiam menos esforços; outras estavam a cuidar de irmãos mais novos ou a preparar e levar marmitas de almoço para as mães. Os trabalhadores das minas já tinham histórico de luta trabalhista através de greves, a exemplo das ocorridas em 1923 e 1946. A primeira, mais impactante, contou com alta taxa de adesão dos mineiros; teve dez semanas de paralisação e forte solidariedade nacional e internacional. Apesar do grande alcance dessa luta social e, em decorrência, dos aumentos salariais que variaram entre 14% e 16%, poucas melhorias foram vistas com relação à situação das mulheres, uma vez que continuavam a receber por volta da metade do valor do ordenado dos homens. Passadas recentemente as comemorações de duas datas importantes (25 de Abril - Dia da Liberdade e 01 de Maio - Dia do Trabalhador) que nos fazem recordar este período histórico de Portugal, é necessário ratificar a importância de se continuar a contar esta História, com ênfase nestas personagens. Embora saibamos que a luta feminista teve grandes avanços até hoje, é válido considerar que precisou ser atualizada, repensando as diversas mulheres que devem ser incluídas nos feminismos, bem como suas diferentes necessidades - e nas dificuldades que nós mulheres ainda enfrentamos perante a sociedade. É urgente contemplar a voz e o espaço femininos nos ambientes mais diversos da sociedade, prevendo e lutando por igualdade completa de direitos entre géneros.


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Texto: Carla Luis (Portugal) Ilustração: Rita Dias (Portugal)

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Eleições: o nosso voto constrói o mundo Certamente percebeste que tivemos eleições há pouco tempo – esperemos que tenhas votado! Aqui vamos falar um pouco sobre eleições, para que servem e que impacto podem ter na nossa vida. Em Outubro de 2019 votámos nas eleições legislativas, para escolher 230 deputados à Assembleia da República (ou Parlamento). A partir destes resultados foi formado o Governo. É no Parlamento que se fazem as leis, e se alteram as que já existem – e isso pode fazer muita diferença na nossa vida. Por exemplo, a Lei da Nacionalidade, as leis que definem os apoios sociais, o sistema de ensino, o Serviço Nacional de Saúde, os impostos... todos nós sentimos isto no dia a dia, tenhamos votado ou não. É por isso importante votar, para fazermos ouvir a nossa voz e participar nestas escolhas que nos afetam tanto. Mesmo sem votar continuamos a ter uma palavra a dizer. Podemos contactar os partidos ou deputados e escrever-lhes uma carta, um e-mail... Expor uma situação, um problema, algo que queremos mudar. É importante receberem a opinião das pessoas sobre os assuntos em discussão. Se achas que uma causa é importante, podes lançar uma petição. Sabes quantas pessoas são precisas para levar uma petição ao Parlamento? Uma! Podes ser tu. Também podes criar uma petição, online, em papel (ou ambos) e pedir a mais pessoas que assinem. Se conseguirem 4.000 assinaturas ela é discutida no plenário da Assembleia da República. Todas as petições têm uma resposta, qualquer que seja o número de subscritores – ou seja, a Assembleia da República, através de um ou mais deputados, vai responder à tua questão. Vai a www.parlamento.pt e está lá tudo. Paridade e igualdade de género: o que é? Uma alteração importante nas últimas eleições foi o aumento de mulheres nas listas de candidatura. A Lei da Paridade exige um equilíbrio de género nas listas concorrentes, prevendo uma percentagem mínima de homens e mulheres. Em 2019 essa percentagem passou para 40%, além de outras regras para uma maior igualdade de oportunidades. Isto acontece porque ao longo dos tempos (e em todo o mundo) tem havido sempre menos mulheres que homens nos cargos do poder político (entre outros). Em Portugal esta lei existe desde 2005 e permitiu um real aumento de mulheres eleitas. Atualmente há cerca de 40% de deputadas, mas presidentes de câmara ainda são só 10%. Há um longo caminho a percorrer, mas são estas mudanças que conseguimos quando votamos, e é para isto que existem eleições.

Próximas eleições: quando são? Já agora, sabes quando vamos poder votar novamente? No início de 2021, nas eleições para a Presidência da República. Nos Açores vota-se já em finais de 2020, para a Assembleia Legislativa Regional (mas só quem está ali recenseado). Por isso, verifica na tua Junta de Freguesia se estás inscrito para votar. Os cidadãos portugueses com mais de 18 anos não precisam de fazer nada (só votar!), os cidadãos estrangeiros com direito a voto têm de se inscrever na Junta de Freguesia. É também na Junta de Freguesia que podem obter mais informação, estejam atentos. O recenseamento fecha cerca de dois meses antes de cada eleição, por isso não deixem para a última!

Não sou português mas resido em Portugal. Posso votar? Para poder votar há sempre que estar inscrito no recenseamento eleitoral. Para não portugueses isso faz-se na Junta de Freguesia, e é voluntário, ou seja, a pessoa tem de pedir para se recensear. Os nacionais de países da União Europeia podem inscrever-se com prova de residência em Portugal; para cidadãos de países de língua portuguesa é necessária a residência legal em Portugal por dois anos, e para todos os outros, três anos. Podes obter mais informação também em www.portaldoeleitor.pt. O direito de voto é diferente para cada eleição, mas mais alargado nas eleições autárquicas, que são já em 2021. Por isso, não perca esta oportunidade. Sobretudo, mantenha-se atento e participa. Nos tempos que correm, a democracia está sujeita a novas ameaças e todos nós temos uma palavra a dizer sobre o país e o mundo que queremos construir. Carla Luís, Coordenadora do VoteDHR – Eleições, Democracia e Direitos Humanos Saiba mais em: www.facebook.com/VoteDHr


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crónica

Texto e Fotografia: Alexandre Abrantes(Portugal)

Martim Moniz e os gêneros que o povoam Todas as pessoas têm o direito de viver as suas vidas como querem. Independentemente da forma como o fazem, merecem sempre a nossa atenção e respeito. Esta gente é boa gente, mesmo com as suas diferenças que são muito particulares em relação aos demais. Tenho assistido à mudança lenta desta população que vive grande parte da vida neste local de Lisboa.

Desde há 20 anos que tenho vindo a conhecer as pessoas que utilizam o seu corpo para sobreviver, comer, pagar a renda da casa ou quarto (mesmo assim muitas destas trabalhadoras do sexo vivem na rua por opção), e a maior parte do dinheiro que ganham no seu trabalho é gasto nos seus vícios, noite após noite. À medida que fui conhecendo as/os profissionais da área fui ficando com o conhecimento das várias metodologias do negócio, os muitos problemas que enfrentam, as suas histórias pessoais que são ao mesmo tempo trágicas e divertidas, mas acima de tudo, e em muitas situações, violentas, verbal e também fisicamente. A forma como se relacionam entre si no local de trabalho, junto à entrada principal do Centro Comercial da Mouraria, torna-as inevitavelmente cúmplices mas sobretudo amigos/as, que chegam a ser uma família. Nos últimos dez anos, com o exponencial crescimento do turismo na cidade, os bairros típicos são visitados e cada vez mais habitados por estrangeiros de muitas nacionalidades. Estes bairros vão perdendo as características que os novos habitantes, não nacionais, tentam a muito custo manter (facto estranho). Os velhos que vivem desde o início do século passado em casas com paredes de tabique são expulsos pelas imobiliárias para locais afastados das raízes, porque o dinheiro que os novos vizinhos trazem, dos seus países, atualmente, vale mais do que a vida dos (estes sim), lisboetas.

Uma das muitas histórias reais pertence a uma travesti que conheço desde Janeiro de 2019. O nome com o qual a vou “batizar” é Única, africana de Moçambique, sem transformações corporais, próteses caseiras nas mamas (balões de ar), cabelo ruivo com madeixas de vários tons de louro, pestanas postiças e unhas pintadas de várias cores. Num dia de Setembro de 2019 jantei no refeitório dos Anjos, serviço da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, instituição com 521 anos de existência, que ultrapassa largamente o comum catering. Nas instalações, há uma sala fechada com janelas para a rua onde alguns poucos utentes podem ouvir boa música escolhida muitas vezes pelos próprios, jogar damas, cartas, ler jornais do dia, beber chás com vários sabores (o melhor é limão com mel), e onde também são apoiados por monitores com formação que dão carinho, atenção, amor e muito respeito. Nesse fim de tarde encontrei a Única à porta do refeitório na companhia de um travesti que também conheço, e de quem gosto muito, cumprimentei ambas juntamente com os outros inevitáveis e sempre muitos beijos na face. Como íamos para o mesmo sítio, resolvemos fazer esta curta caminhada juntos. Na descida para o Martim Moniz, Av. Almirante Reis abaixo, rimo-nos uns dos outros, fumámos pontas de cigarros que apanhávamos no chão e comentavámos as muitas belezas masculinas que passavam — claro que nos divertimos muito imaginando os pormenores sexuais escabrosos que íamos inventando, sempre muito africanos e asiáticos. Lembro-me que ao chegar ao final da avenida pensei em dormir na rua, portanto fora do albergue onde estava de noite, unicamente para dormir debaixo de um teto. Queria estar perto delas, das frases que diziam, das nossas gargalhadas, da atenção intrínseca que ao chegar ao local de trabalho tinham umas com as outras. A Única, e sempre ela, a catapultar a boa disposição mas sobretudo a preocupação com as colegas.


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Volto ao início, conheci esta pessoa de exceção num projecto de uma ONG, que é o GAT, Grupo de Ativistas em Tratamentos, o In-Mouraria. Neste projeto trabalha um mediador de pares, nome pomposo que os sem abrigo que são utilizadores de drogas lícitas e ilícitas não conhecem. Vale aqui nomear este mediador, o Renato Pinto que é o principal motor no funcionamento deste drop-in.

Para terminar gostaria de fazer finca-pé na questão dos relacionamentos. Nesse final de tarde que vos estou a relatar, quando chegamos ao Martim Moniz, Única comprimentou suas colegas, uma a uma, rigorosamente, com um beijo na face. Quando finalmente terminou todos os cumprimrentos disse-me que queria encontrar o Renato Pinto com o objetivo de lhe “cravar” 1 euro para comprar um pacote de vinho para se descontrair antes da função. Ele não estava no lugar de costume, a tasca do Sr. António da Severa na Rua do Capelão, despedimo-nos carinhosamente com os habituais muitos beijos e festas nos cabelos, (dela porque eu não tenho).

Para ficarem com uma opinião formada sobre esta minha amiga, um dia de Setembro de 2019 eu estava no refeitório dos Anjos na linha de atendimento para jantar e, quando chegou a minha vez de me servir da sopa, já não havia. Quem se tinha servido da ultima sopa tinha sido a Única. Sentou-se numa mesa próxima a minha e quando estava a meio da sopa parou de comer, levantou-se com a tigela na mão e dirigiu-se a mim, disse então: “Alex, come a metade da minha sopa porque eu sei que tu adoras sopa.” No momento em que vos descrevo a cena só me É verdade: depois das despedidas ela chamou-me e pediu-me o isqueiro ocorrem os seguintes adjetivos: generosa, solidária, amiga a sério de emprestado. todas as pessoas, independentemente de as conhecer ou não. Claro que ficou com ele. A minha amiga Única terá sempre o meu Ainda hoje, nos meus trajetos de rotina vou sempre à arcada onde isqueiro. dorme durante o dia para saber se comeu e também para verificar se está bem tapada com as mantas que as ONGs fornecem. Considero-me um homem de sorte por conhecer estas pessoas, sobretudo por muitas vezes ser o seu confidente, dela, a Única. Quando a vejo cabisbaixa pergunto o que se está a passar e a história é sempre igual: uma paixão recente por um hétero que após dias se torna em amor platônico. É o que me diz sempre, mas mesmo assim sempre pergunto, porque pode haver algum outro problema.


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notícias ARM

Orquestra Batucaria está de volta O início de 2020 viu renascer a Batucaria, orquestra de percussão instrumental, corporal, exploração sonora e voz, direccionada à comunidade migrante e não migrante. Esta pretende explorar e criar diferentes sonoridades musicais que dão voz inclusiva à diversidade cultural da Mouraria e de Lisboa, sendo um espaço único para encontros e partilha de diferentes saberes, culturas e tradições onde todos são bem-vindos. Os ensaios, de periodicidade semanal, a ocorrer no Grupo Desportivo da Mouraria, já contaram com a participação de 43 pessoas, de 11 nacionalidades, entre os 7 e os 62 anos. Na actual conjetura do Covid-19, e fazendo justiça ao ditado “a necessidade aguça o engenho”, os encontros prosseguem, via online. A reactivação desta Orquestra multicultural e intergeracional, ocorre no âmbito do projecto europeu Intimate Bridges que defende o poder transformador da arte na educação por um diálogo intercultural construtivo entre imigrantes, refugiados e a população local. O projecto visa, assim, o desenvolvimento de workshops multidisciplinares e a criação de performances artísticas comunitárias, num processo que envolve artistas e não artistas. Desenvolvido em Portugal, Aústria, Itália e Grécia, o Intimate Bridges pressupõe a arte como catalizadora de mudanças sociais em prol da tolerância intercultural, promovendo o reconhecimento e a valorização da diversidade, o desenvolvimento pessoal, o empoderamento e, inevitavelmente, a empatia. Para mais informações, visite o site www.intimatebridges.eu ou a nossa página de facebook @ orquestrabatucaria.

Renovar a Mouraria em publicação do Conselho da Europa Em Novembro de 2019, a Renovar a Mouraria foi participante convidada no workshop sobre turismo alternativo e sustentável, promovido pelo Conselho da Europa, no âmbito da Convenção de Faro, em Saint-Denis – Paris. O convite tinha como objetivo a apresentação das visitas guiadas Migrantour em Lisboa e a partilha desta boa pratica, presente em várias cidades europeias. Agora, a Associação foi convidada a participar numa publicação do Conselho da Europa que visa divulgar os princípios da Convenção de Faro e dar a conhecer casos de sucesso com eles alinhados.

As vidas da Enciclopédia dos Migrantes A Enciclopédia dos Migrantes é um objeto artístico que reúne em três volumes encadernados à antiga, 400 cartas de 400 migrantes, escritas a alguém que vive no seu país de origem. Cartas íntimas que falam da “distância”. O conceito e curadoria artística é de Paloma Sobrino, e o projeto europeu foi financiado pelo programa Erasmus+ e teve o envolvimento de oito cidades. Em Lisboa, os volumes foram adquiridos pela Câmara Municipal e tem sido várias as iniciativas que a Renovar tem dinamizado para lhes dar vida. Estão a ser organizadas sessões de leitura e de escrita criativa, no âmbito de outros projetos e parcerias – Desafios para a Cidadania Global, co-financiado pelo Instituto Camões, parceria com o Instituto IMVF e a Fundação Cidade de Lisboa; Academia CV.pt, financiado pelo Bip Zip, da CML, em parceria com a Fundação Cidade de Lisboa, Agrupamento de Escolas Patrício Prazeres, Junta de Freguesia da Penha de França e Junta de Freguesia de São Vicente. Inicialmente estas sessões decorreram em espaços de escrita e leitura, como a Biblioteca da Penha de França e o Polo Cultural de São Vicente, mas atualmente o seu formato foi adaptado e estão a ser dinamizadas online, com imensa participação e resultados muito ricos. Para maiores informações e próximos encontros virtuais, fica atento as nossas redes sociais.


O que nos une?

Foi esta a provocação que buscamos responder nas últimas três edições do Jornal Rosa Maria. Depois de quase dois anos deste projeto, temos aqui uma pista para responder a pergunta: a nossa diversidade. O Sinergias em Ação - Metodologias participativas e integração para nacionais de países terceiros é um projeto em colaboração com a Fundação Cidade de Lisboa e com a Casa do Brasil, co-financiado pelo pelo Fundo para o Asilo a Migração e a Integração [FAMI] e foi um dos responsáveis por nos levar por esta grande jornada em transformar a criação do Rosa Maria numa ferramenta de integração. E graças a cada um destes rostos aqui e a tantos outros, nós conseguimos. E por isso, fica aqui o nosso mais profundo agradecimento e o convite a seguirmos sempre construindo e encontrando aquilo que nos une.

Até já.


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banda desenhada

Texto e Ilustração Nuno Saraiva

pppp

Texto: Raquel Silva (Portugal) Fotografia: Sergio Pietro (Brasil)

O ‘ninguém solta a mão de ninguém’ e a resistência transatlântica

O coletivo Queer Tropical foi fundado no Porto, em Outubro de 2018 e o seu trabalho consiste em ajudar a comunidade LGBTQI+ brasileira a obter informações necessárias sobre a vinda para Portugal, tendo em conta a eleição de Bolsonaro e a crescente discriminação e violência contra pessoas LGBTQI+ no Brasil. O grupo é composto por voluntários das mais diversas áreas que informam sobre processos que envolvam migração, regularização e a vida em Portugal. Com o objetivo imediato de dar uma resposta positiva a quem necessita, são facultadas informações em questões diversas, como critérios de seleção para as universidades portuguesas, mercado laboral, documentação e regularização no país, custos de vida e acesso a serviços públicos, como de saúde, entre outros. As informações fornecidas baseiam-se não apenas nas experiências pessoais dos colaboradores, mas principalmente em diplomas legais e normas vigentes no país. É importante ressaltar que o grupo não fornece orientação jurídica, hospedagem ou auxílio financeiro para quem deseje viver em Portugal. O Queer Tropical tem servido como uma fonte de ajuda informativa a quem é LGBTQI+ e pretende sair do Brasil, especialmente por se sentir ameaçado ou por estar em situação de discriminação, homofobia, transfobia ou qualquer outra manifestação de violência. Ao longo de 2019 o coletivo organizou alguns encontros públicos como um piquenique em Lisboa e esteve presente nas marchas do orgulho LGBTQI+ em Aveiro, Porto e Lisboa.

Atualmente podes obter informações essenciais através das redes sociais: Facebook, Twitter e Instagram, pelo blogue [https://lgbtbrasilportugal. blogspot.com]. por email [queertropical@gmail.com] e através do grupo no Facebook com mais de 3 mil membros.


Dicas para moda sustentável

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Trocar ● Aproveitar as peças que os amigos têm e que já não usam ● Visitar frequentemente os pontos de trocas perto de nós ● Ir aos eventos de trocas organizados frequentemente.

Suplemento ambiental do jornal Rosa Maria

Comprar em 2ª mão Visitar um espaço de venda de roupa em segunda mão antes de comprar algo novo.

Ser sustentável também está na moda · Ilustração: Laura Penez (França)

Lavar ● Uma máquina de lavar roupa utiliza em média mais de 13 mil litros de água por ano ● Lavar a frio sempre que possível. ● Lavar na máquina só quando necessário, avaliar bem o estado das peças antes de decidir se têm que ser lavadas. ● Secar sempre ao ar, evitar a máquina de secar. Reparar e reutilizar ● Levar aquelas peças onde falta um botão ou que precisam de uma bainha para reparar em vez de as descartar. ● Alterar peças transformandoas em algo que usaremos. T-shirts fazem ótimos sacos de tecido, por exemplo.

Tips for a sustainable fashion

Swap ● Swap for items that friends have and that they no longer use. ● Frequently visit the SWAP SPOTs near you. ● Attend swapping events hosted nearby

Buy second hand Visit a second-hand shop before buying something new. Wash ● A washing machine uses on average more than 13 thousand liters of water per year ● Cold wash whenever possible.

● Machine wash only when necessary, evaluate the condition of the pieces well before deciding that they have to be washed. ● Always dry naturally, avoid the tumble dryer.

Repair and reuse ● Gather those items where a button is missing or need a sheath and repair instead of discarding them. ● Reuse clothes for something you will use. T-shirts make great fabric bags, for example.


Receitas com ingredientes naturais e baratos, para prolongar a vida das suas roupas e gerar menos lixo SABÃO LÍQUIDO Este sabão líquido natural cuida e prolonga a vida das suas roupas e também pode ser usado para lava loiça, chão, vidros, tudo o que quiser. Ele é muito mais barato e evita o consumo de muitas embalagens. Ingredientes: - 3 L de água - 200g de sabão em barra - 50ml de álcool - 3 colheres de sopa de bicarbonato de sódio. Ferva a água em uma panela, de preferência, maior que os 3 litros para não transbordar. Rale todo o sabão. Quando a água estiver a ferver, coloque o sabão e mexa lentamente até dissolver tudo. Desligue o fogo. Coloque o álcool e depois, o bicarbonato de sódio. Nessa hora a mistura vai espumar bastante, é normal. Deixe a mistura esfriar e armazene em potes de vidro. TIRA NÓDOAS ● O suco de limão é um adstringente natural que limpa profundamente, elimina toda a sujidade e deixa as roupas mais brancas. Basta colocar as roupas de molho por uma hora em um balde com água fervente e rodelas de limão e depois lavá-las normalmente. ● Outra opção é misturar sabão, uma colher de sal e suco de dois limões. Deixe a roupa de molho nesta mistura, depois lave normalmente. ● A água oxigenada é um produto que ajuda a branquear e cuidar das roupas porque não contém cloro. Na lavagem normal, adicione 1/2 copo de água oxigenada com o seu sabão de costume. Ela também pode ser aplicada de forma direta sobre a nódoa.

Recipes with cheap and natural ingredients to prolong the life of your clothes and generate less waste

Texto: Rita Gomes (Portugal) Fotografia: Nicole Sánchez (Portugal) | @nimagens

Prolongar o nosso guarda roupa sendo sustentável e circular com a Circular Wear Os números da indústria da moda não deixam ninguém indiferente: são necessários entre 10 a 20 mil litros de água para produzir um par de calças de ganga novo, a produção de uma t-shirt de algodão tem a pegada ambiental equivalente a 2.1Kg de CO2, e uma de polyester a de 5.5Kg. Portugal produz anualmente mais de 80 toneladas de desperdício têxtil, e recicla apenas 10%. Estes são apenas alguns dos números relevantes para que actuemos e para que, com a alteração dos nossos hábitos de consumo e comportamentos, possamos fazer a diferença. O projecto Circular Wear colocou em prática a montagem de vários pontos de trocas. Estes denominados SWAP SPOTs têm como missão a criação de uma comunidade de partilha, de troca, e principalmente de aumento da vida útil de todas aquelas peças de roupa que temos no armário e que já não usamos. Com uma rede de mais de 20 pontos espalhados por 5 cidades actualmente, permite a comunidade utilizar estes roupeiros partilhados de uma forma livre, podendo deixar peças num SPOT e levar peças de um outro, de acordo com o que há disponível e o gosto e tamanho do utilizador.

LIQUID SOAP This natural liquid soap takes care and prolongs the life of your clothes and can also be used for sinks, floors, glass, anything you want. It is much cheaper and avoids the consumption of many packages.

Esta iniciativa promove uma consciência ambiental que respeita o que vestimos e como podemos reduzir a nossa pegada aumentando a longevidade das nossas peças de roupa. Em apenas três meses estamos a contribuir para uma redução de entre 5 a 10% nas pegadas de carbono, água e desperdício. Ao adquirirmos um par de calças de ganga em segunda mão, por exemplo, estamos reduzindo a utilização de água em uma média de 15 mil litros. É importante alterar a nossa percepção de roupa em segunda mão: entendermos que aderirmos a este comportamento é uma causa ambiental, e não porque não podemos comprar roupa nova. A reutilização de tecidos para a criação de novas peças é também uma boa resposta ao excedente existente. Apoiar os projectos e comprar os seus produtos quando precisamos de algo novo faz a diferença e contribui para a alteração do mercado. O parceiro da Circular Wear nesta missão é a marca Flahica que cria peças reutilizando fatos de surf e tecidos excedentes vários, incluindo as (poucas) peças que se encontram nos SPOTs que já não estão em boas condições de utilização. Visita o nosso SPOT na Mouraria Composta: Beco do Rosendo, n°10 Para saber mais sobre a Circular Wear visita www.circularwear.com e no Instagram @circularwear

Ingredients: - 3 L of water - 200g bar soap - 50ml of alcohol - 3 tablespoons of baking soda.

Boil the water in a pan, preferably larger than 3 liters to avoid overflowing. Grate all the soap. When the water is boiling, add the soap and stir slowly until everything dissolves. Turn off the fire. Add the alcohol and then the baking soda. At that time the mixture will foam a lot, it is normal. Allow the mixture to cool and store in glass jars.


Texto: Ana Salcedo (Portugal)

Compromisso - Lixo + Humanidade O amanhã sempre foi desconhecido; o que mudou, drasticamente, foi a familiaridade com o que nos rodeia. Tudo mudou, à escala planetária, ao mesmo tempo. Um grande susto, uma grande pausa, cheia de desafios e oportunidades. Os desafios, sentimo-los facilmente na pele, no coração, no bolso, e são-nos relembrados constantemente nas notícias. A cultura do medo é insistente. No contraponto, temos visto imensa beleza no cuidar uns dos outros. De forma inédita, estamos juntos a enfrentar um desafio invisível, que nos relembra a fragilidade da vida, que voltou a trazer para o centro da atenção o que estava nas margens — os mais frágeis e a própria morte — incentivando um importante salto qualitativo da apatia para a empatia. O vírus também é espelho da saúde da sociedade e do planeta, a Mãe Terra que nos cuida e sustenta. A água do rio contaminada pelas beatas de cigarro no chão ou pelos plásticos levados pelo vento, é a mesma que evapora para as nuvens e vai regar as plantas que nos alimentam — todos somos relacionados e interdependentes. No Zero Waste Lab, pensamos a comunidade e a humanidade através do olhar apurado sobre o lixo e o desperdício. Ficam aqui alguns convites: 1 – As ruas estão cheias de máscaras e luvas descartáveis a voar, que podem contaminar pessoas e animais, além de durarem séculos no mar onde provavelmente vão parar. Seja cuidadoso; 2 – Procure máscaras reutilizáveis, laváveis com água e sabão. Se tiver uma máquina de costura, reaproveite tecidos, um mínimo de duas camadas, e um filtro: PVC é recomendado pela DGS. Uma opção menos eficaz mas acessível é um filtro de café; 3 – O lixo reciclável deixou de ser recolhido porta-a-porta, mas não deixe de reciclar. Leve os sacos até ao ecoponto. Lembre-se: não existe “fora” no “deitar fora”;

9 - Guarde os cantos dos vegetais que geralmente vão para o lixo - o canto da cenoura, da beterraba, da cebola— coloque num fundo com água, vá regando e deixe germinar para depois plantar;

SAQUINHOS PERFUMADOS ● Reutilize um pequeno pedaço de tecido daquela roupa que você não vai mais usar, e que já não é possível vender e nem doar, para fazer saquinhos perfumados para gavetas e armários. ● Além de deixarem com um cheiro mais agradável, também ajudam a evitar o aparecimento de traças e outros insetos que estragam as roupas. Encha o seu saquinho de tecido com cravo da índia e canela em pau. Feche com uma fita de sua preferência e coloque-o entre as roupas no seu armário ou gaveta. ● Outra dica é, ao invés de cravos e canelas, pingue algumas gotinhas do óleo essencial que preferir em um algodão e coloque esse algodão no seu saquinho de tecido. Feche com uma fita e guarde-o onde quiser eliminar o mau cheiro.

10 – Estes meses mostraram-nos que o tanto que parecia impossível, aconteceu. Como podemos contribuir para o mundo melhor que o nosso coração sabe que é possível? Sonhe alto, e converse com alguém sobre o sonho. É importante lançar para o ar a energia da esperança e a faísca da possibilidade de um mundo melhor, para trazer cor ao cinzento do medo e abrir janelas de oportunidade. Toda a manifestação, começa com uma boa ideia. Vá a www.zerowastelab.pt, siga-nos nas redes sociais @zerowastelab.pt e partilhe dúvidas e ideias!

4 – Observe o caixote do lixo e o excesso de embalagens de alguns produtos. São necessárias tantas camadas? Há alternativa menos embalada ou até sem embalagem? 5 - Agora que temos de nos organizar para ir às compras, acaba a desculpa do saco esquecido em casa. Leve sacos grandes e pequenos para frutas e vegetais. Transforme esta organização num novo hábito, para nunca mais pedir um saco de plástico; 6 - Procure receitas de produtos para fazer em casa e poupar o ambiente, a saúde e as economias. No nosso site temos de leite de aveia, detergentes, sabonete, creme hidratante; 7 - Os pequenos produtores entregam cabazes em casa a preços acessíveis e sem embalagens. Para os vegetais durarem mais tempo no frio, embrulhe-os num pano húmido; 8 – Para carne ou peixe, leve recipientes de casa. É boa altura para experimentar mais receitas vegetarianas;

STAIN REMOVER ● Lemon juice is a natural astringent that deeply cleanses, removes all dirt, and makes clothes whiter. Just soak the clothes for an hour in a bucket with boiling water and slices of lemon and then wash them normally. ● Another option is to mix soap, a spoon of salt, and the juice of two lemons.

Soak the clothes in this mixture, then wash normally. ● Hydrogen peroxide is a product that helps to whiten and care for clothes because it does not contain chlorine. In normal washing, add 1/2 cup of hydrogen peroxide with your usual soap. It can also be applied directly to the stain.

SCENTED SACHETS ● Reuse a small piece of fabric from that outfit that you will no longer be using, and it is no longer possible to sell or donate, to make scented sachets for drawers and closets. ● In addition to leaving them with a more pleasant smell, they

also help to prevent the appearance of moths and other insects that damage clothes. Fill your fabric bag with cloves and cinnamon sticks. Close with a string of your choice and place it between the clothes in your closet or drawer.

● Another tip is, instead of cloves and cinnamon, drop a few drops of the essential oil you prefer on cotton and place this cotton in your fabric bag. Close with a string and keep it where you want to eliminate the bad smell.


Texto: João Rosário (Portugal) Fotografia: Reprodução Pixabay.com

Companheiras silenciosas O tempo foi de recolher. Foi de comportamentos novos para muitos: isolamento e distância dos outros por medo de um contágio que chegou do outro lado do planeta e mostrou-nos como somos vulneráveis. E ajudou-nos a reparar nas plantas que temos por casa, mesmo debaixo dos nossos narizes. João tem há umas semanas um vasinho de “amoresperfeitos” ao sol da janela do quarto de dormir. Num canto do balcão da cozinha, tem antúrios, cactos e bambus a formar uma pequena mas densa mata. Há, na sala, uma hera que começa a ziguezaguear por uma das paredes. O morador solitário deste apartamento de Lisboa passou a ter tempo por causa de um vírus que veio do outro lado do mundo instalar-se nas nossas vidas e interromper, de repente, os dias como os conhecíamos. Há dois anos que as plantas se acumulam na sala do João como ornamentos. Serviam para descansar os olhos no verde das folhas que emolduram a base da janela e o espaço entre a sala e a cozinha. Em trabalho, o dono da casa apenas gastava os minutos necessários para as alimentar de água e para abrir os cortinados para que o sol as tingisse de luz. A companhia destas formas de vida já lá estava, serena e silenciosa. E serena e silenciosa continua mas agora com outra forma de existência na vida de quem delas cuida.

Nalini não costuma pensar que está sozinha em casa, mesmo quando os filhos não estão. “Converso com as plantas, canto para elas, queixo-me da vida. E elas ficam mais bonitas. Sugam toda a energia negativa”. Para João, o momento transformador foi o recolhimento geral. A ordem fique em casa trouxe-lhe tempo. Uma novidade para muitos. Um excesso para outros. João viu-se entre as paredes do apartamento em arrumações, séries de televisão e experiências culinárias. Um dia, num dos vasos, há um botão de flor a despontar. Noutro dia, noutra planta, folhinhas novas. E noutro ainda, a preocupação com aquela que tanto se aprendeu a gostar e que passou a ter os ramos secos e amarelados. E já não são bibelôs vivos. Precisam de atenção e tempo. Da humidade certa na terra ou pormenores tão simples como terem as folhas largas sem pó. Ou de serem movidas para fugir de onde o sol entra mais forte. De lhes trocar os vasos para defender as agredidas. Ajuda ter esta companhia a preencher as tardes.

Um jardim no sexto andar

A oportunidade de mudar

Nalini Seik começou a cuidar de plantas a ver a mãe fazê-lo. Além das de casa, também havia uma horta da família. Dos quatro irmãos, é a única que mantém a relação com as plantas. “São seres. São como os animais, se se tratarem bem, se as cuidarmos, tirarmos as folhas secas, elas gostam. Ficam mais verdes”.

A família de Myriam Taylor levou a sério a ameaça do vírus desconhecido. Uma semana antes do estado de emergência já se tinham fechado em casa, no centro de Lisboa. O logradouro do apartamento é um pequeno jardim. Tem dois cedros, uma roseira, bambus, fetos, aloés e nos últimos tempos já tinham começado a plantar morangos, tomate, malagueta, hortelã-pimenta, alecrim e alfazema. Myriam passou a dar mais atenção ao espaço. “As folhas estão sempre a cair. Limpo, vou mimar e falar com as plantas, cuidar delas, regar. Todos os dias espreito para ver se cresceram mais um bocadinho. O confinamento fez-me pensar que temos de nos tornar mais autónomos. Devia ter mais tomate, plantar batatas. Acho que vou plantar mais coisas”, diz com risos pelo meio.

No seu apartamento, no sexto andar do bairro dos Olivais, há uma divisão inteira transformada em jardim interior. A luz do dia preenche o espaço. À exceção das janelas bordadas a alumínio da marquise, as paredes do quarto estão quase todas forradas de variações de tons de verde. Há açucenas, jarros, chuva de prata, não-te-metasna-minha-vida e muitas mais. São uma coleção da qual nem sempre interessa saber o nome de cada uma das formas vivas que guarda.

Diz Nalini que os dias de confinamento não trouxeram grandes mudanças nas rotinas com as plantas do seu jardim de apartamento. É certo que houve mais tempo para as acompanhar. “É terapêutico, mesmo que não houvesse a pressão de ficar em casa”. E o que retira das semanas de retenção é o agrado pleno “de ver o efeito das coisas boas que somos capazes de fazer”.

Mas para Myriam, a relação com o espaço verde que cuida em casa foi mais especial. O jardim chegou a estar ao cuidado de um profissional mas já era a família que tratava quando chegou a pandemia. Ainda assim “as coisas apareciam feitas”, recorda Myriam. Mas agora vai lá “todos os dias mexer na terra. O que se colhe é quase uma relação espiritual. É a conexão. Fomos obrigados a parar e a nos reconectarmos. Mesmo com a terra, mesmo que seja num pequeno quintal”. Acrescenta que a relação com o logradouro verde não será igual quando voltarem os dias sem restrições e imagina como seria diferente uma Lisboa que aproveitasse esta experiência para se tornar numa cidade em que cada terraço fosse uma horta urbana dos moradores de cada prédio. Voltamos a João. Resguardado em casa por dias seguidos, fazia as suas idas à rua nos momentos com a janela aberta, entre as plantas. Com a consciência das suas companheiras silenciosas - mas vivas - e tão ávidas da luz desta Primavera como ele próprio, que antevê o ponto final neste texto para deixar a bênção da água a cair do regador sobre o seu jardim.


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