Um caminho de duas mãos - Raul Leal

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Um Caminho de Duas Mãos

Mais que configurar um duplo fluxo de deslocamento, um caminho de duas mãos é, sobretudo, uma possibilidade de encontro de entes que transitam em direções opostas. Este é o nexo de reflexão que nos importa para pensar esta exposição de Raul Leal: um lugar de encontro conosco, com sua obra e com o tema apresentado. Para esta mostra o artista debate os esgotamentos ambientais, notadamente uma ideia de paisagem consolidada no imaginário, ao menos desde o Romantismo, como um dos atributos de nossa “identidade nacional”. Apesar da retumbante paisagem e natureza – conceitos distintos entre si, mas aqui conectados –figurarem uma imagem quase idílica em nossas memórias, aqui presenciamos a face crua do estado atual em que se encontram os elementos naturais, fauna e flora.

Abordadas por artistas viajantes desde o século XVII, as paisagens e a “natureza” brasileira são elementos documentais que contaram um “Brasil” que o Brasil nunca chegou a conhecer efetivamente. Mesmo que as representações se debruçassem cientificamente sobre elementos reais, o objeto representado estava tão distante do observador da imagem, que mesmo o real operava como uma representação idealizada daquela paisagem, natureza, objeto.

Ao longo do tempo essas imagens foram um presença simbólica na construção daquilo que definiria identitariamente o nosso povo. Porém essa miragem de paisagem encontra-se clivada numa dupla possibilidade de reflexão. A primeira diz respeito ao minoramento e empobrecimento das áreas naturais resultantes dos processos contínuos de degradação e destruição dos bens naturais que compuseram não somente o imaginário de nossa produção artística e população, como também encorpou o rol das canções, poemas e citações sobre um Brasil feliz. A segunda, diz respeito ao afastamento progressivo, principalmente após o século XX, das populações rurais de seus espaços de vida originais em direção aos centros urbanos, compondo um relevante fluxo migratório – também muito abordado por nossa segunda geração de modernistas –.

Raul Leal nesta exposição, partindo deste ponto, apresenta o resultado de suas incursões por cidades do interior. Contudo, ao contrário do que foi cristalizado no repertório imagético, revela cenas de degradação e abandono. Vegetações e animais compondo a ruina do natural em imagens pirografadas e decalcadas sobre a porosidade da madeira crua. Dor e beleza encontram-se no aspecto sensível da existência material dos seres sujeitos ao fim. Ao proceder dessa maneira, expondo esses trabalhos, Raul inverte a lógica tradicional da representação da paisagem e assume uma postura crítica que aponta para os esgotamentos daquilo que nos constituiu, ainda que simbolicamente, como sociedade. Não é demasiado arriscado dizer que ao proceder deste modo, o artista destaca seu posicionamento político e desvela um libelo em favor do que o filósofo Emanuelle Coccia nomeia como a “vida sensível”, um nexo existencial que nos atrela ao natural e nos define a ele pertencentes.

Desta forma, Um Caminho De Duas Mãos, é apresentado para nós como um lugar de encontro. Assim como defendemos no início deste texto, aqui nos encontramos com os fluxos contrários numa prática de alteridade, podendo assim decidir que posicionamentos e pensamentos assumimos diante das constatações que fazemos. A vida que sobrepujou as imagens tradicionais encontra-se fragilizada e anuncia seus limites. Saímos desta exposição com muitas reflexões, encantamentos, alegrias e atenção redobradas. Pois, nada na natureza é tão sensível que anuncie seu fim imediato e nada é tão perene que fique para sempre.

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